Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/10.4TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: SOCIEDADE
DIREITO AOS LUCROS
DELIBERAÇÃO
SÓCIOS
ABUSO DE DIREITO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 21º, Nº 1, AL. A), 217º, Nº 1 E 294º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS; 55º, Nº 3, AL. C) DO CVM.
Sumário: I – Entre as faculdades ou poderes que integram a participação social conta-se a de participar no lucro da sociedade (artºs 21 nº 1 a) do Código das Sociedades Comerciais – CSC – e 55 nº 3 a) do Código dos Valores Mobiliários – CVM).

II - A cláusula estatutária que preveja que assembleia de sócios delibera sobre a distribuição do lucro de exercício, constitui diferente cláusula contratual, que, por isso, derroga a regra supletiva contida no artº 294º do CSC.

III - As deliberações dos sócios que incorram, nos termos gerais, em abuso do direito são nulas e não simplesmente anuláveis.

IV - Sempre que, por erro sobre o objecto da prova, o julgamento da questão de facto seja deficiente, por não cobrir toda a matéria de facto alegada relevante, a Relação deve cassar esse julgamento e reenviar o processo para a 1ª instância para que proceda ao julgamento dos pontos de facto omissos na base da prova.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A… apelou da sentença do Sr. Juiz de Círculo de Guarda, que julgando improcedente a acção declarativa constitutivo-condenatória, com processo comum ordinário pelo valor que propôs contra P…, SA – na qual pedia a anulação da deliberação tomada na assembleia geral de 20 de Fevereiro de 2010, no sentido de a totalidade dos lucros distribuíveis ser afectado à constituição de reservas livres, e a condenação da última a pagar-lhe a quantia de € 10.385,60 a título de lucros relativos ao exercício de 2008, acrescida de juros à taxa legal, contados desde o dia da citação até integral pagamento – absolveu a demandada do peticionado.

A recorrente pede, no recurso, a anulação desta sentença e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido deduzido na petição inicial

A apelante extraiu da sua alegação estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso

Foram seleccionados para a base instrutória, entre outros, os pontos de facto seguintes:

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

O recorrente pediu – e pede no recurso – a anulação da deliberação tomada na assembleia geral de accionistas da recorrida, realizada no dia 20 de Fevereiro de 2010, que com os votos dos accionistas F…, B… e C…, representativos de 50,02% do capital social, deliberou levar a reservas todo o lucro líquido apurado do exercício de 2009, no montante de € 43.838,43, sendo € 2.191,92 para reserva legal € 41.645,41 para resultados transitados, e a condenação da apelada a pagar-lhe a quantia de € 10.385,60 a título de lucros relativos ao exercício de 2008[1], acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da citação.

A causa petendi – tal como se estabilizou com a ampliação de que foi objecto na réplica – oferecida pelo recorrente como fundamento destes pedidos é, nos seus traços mais relevantes, a seguinte: a invalidade da deliberação impugnada, resultante do seu carácter abusivo, tanto por força da natureza abusiva dos votos com que foi aprovada como por virtude do abuso de direito, e do facto de não ter sido aprovada pela maioria qualificada supletiva legalmente exigível – 3/4 dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral – uma vez que a cláusula 14 dos estatutos do recorrida não tem a virtualidade de afastar a regra supletiva, que exige aquela maioria, disposta na lei.

A sentença impugnada desamparou ambos os pedidos do autor, tendo adiantado, para justificar a decisão de improcedência, estas duas razões: resultar razoavelmente claro não só a legalidade de tal cláusula, mas também o seu carácter derrogatório, face ao regime geral de distribuição dos seus lucros de exercício; não ter o A. provado qualquer espécie de associação dos restantes accionistas no sentido de, motivados por interesses extra-societários ou apenas visando prejudicar a sua pessoa, tenham abusado do seu direito de voto.

Se o problema da eficácia derrogatória da cláusula estatutária da norma supletiva reguladora do direito aos lucros de exercício coloca, fundamentalmente, uma questão de direito - já o dos votos abusivos e do abuso de direito levanta delicados problemas de facto.

E é justamente, desde logo, contra a decisão da matéria de facto que o recorrente dirige o seu descontentamento.

No seu ver, o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por erro na valoração das provas, no tocante à decisão dos pontos de facto insertos na base instrutória sob os nºs 11, 13, 15, 18 e 21 e, bem assim, quanto aos factos identificados na fundamentação de facto sentença impugnada, com os nºs 10 e 11. Quanto a estes dois últimos pontos o eventual erro de julgamento é de fácil reparação, dado que o recorrente censura é a simples circunstância de não reproduzirem na íntegra o conteúdo dos documentos que lhe servem de suporte, e que não foram objecto de impugnação.

Todavia, o erro de julgamento de que, segundo o apelante, se encontra ferida a decisão da matéria de facto, radica numa outra causa: a sua deficiência.

De harmonia com a alegação do recorrente, não foram seleccionados para a base instrutória – e, portanto, não foram submetidos a instrução e julgamento – factos que alegou com interesse para a decisão da causa.

Estão nessas condições, segundo o apelante, as alegações contidas nos artºs 32 e 37 da réplica, referidos à causa de pedir representada pelos votos abusivos ou pelo abuso de direito.

Além disso – acrescenta – houve também omissão de um facto, que embora não tenha sido alegado nesta acção, é um facto instrumental e está demonstrado por documento que se mostra junto na acção apensa que corre termos sob o nº 108/11: a manutenção dos avales que subscreveu, como administrador da apelada, em montantes superiores a € 2.000 000,00.

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações do recorrente, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:

a) O Tribunal de que provém o recurso incorreu num error in iudicando da questão de facto, por erro sobre o objecto da prova e na valoração dessa mesma prova;

b) A deliberação social impugnada se encontra ferida de invalidade.

A resolução destes problemas exige, naturalmente, o exame dos poderes de controlo desta Relação sobre a decisão da matéria de facto, à aferição do conteúdo do direito do sócio aos lucros do exercício e a ponderação das causas de invalidade das deliberações dos sócios representadas pelos votos abusivos e pelo abuso do direito.

Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada um das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com exame das regras relativas ao direito dos sócios aos lucros do exercício e às causas de invalidade das deliberações sociais em que se resolvem os votos abusivos e o abuso do direito.

3.2. Direito aos lucros do exercício.

A recorrida é uma sociedade anónima e tem, por isso, um capital social, de valor nominal, expresso numa cifra monetária, correspondente à soma das participações sociais: as acções, expressas, também elas, num valor nominal (artºs 9 nº f) e 276 nº 1 do Código das Sociedade Comerciais - CSC).

O termo acção é, porém, um vocábulo polissémico, sendo utilizado em três sentidos diferentes: como participação social ou socialidade, ou seja, o conjunto unitário de direitos e obrigações, mas também ónus expectativas, faculdades e sujeições, de que uma pessoa, singular ou colectiva, é titular na qualidade de sócio de uma sociedade anónima (artºs 272 a), 276 e 302 do CSC)[2]; como fracção do capital social, v.g. das sociedades anónimas (artº 271 do CSC); como forma de representação da participação social, compreendendo, do mesmo passo, a representação cartular – título ou documento em papel – e escritural – registo em conta em suporte informático (artºs 274, 301 e 304 do CSC).

As acções adquiriram, porém, um outro significado de extraordinário relevo: o de produto financeiro, i.e., de instrumento financeiro negociável no mercado de capitais[3].

Entre as faculdades ou poderes que integram a participação social conta-se a de participar no lucro da sociedade (artºs 21 nº 1 a) do Código das Sociedades Comerciais – CSC – e 55 nº 3 a) do Código dos Valores Mobiliários – CVM).

Os sócios associam-se na sociedade para distribuírem entre si o lucro emergente da actividade social. É típico da sociedade comercial o intuito lucrativo: a lucratividade da sociedade comercial, embora não seja necessária, é típica, tipicidade que lei é, aliás, bem clara em por em relevo (artº 980, in fine, do Código Civil).

Em sentido amplo, o lucro é a diferença entre o custo e a receita da actividade económica da sociedade. Numa acepção restrita, apenas é considerado lucro a vantagem económica que se forma e apura na esfera jurídica da sociedade, para, depois, ser distribuída aos sócios.

O lucro do exercício é apurado pela contabilidade da sociedade, nas contas anuais que são, primeiramente aprovadas pela gestão, depois pelo conselho fiscal ou pelo fiscal, se existirem, e finalmente sujeitas à deliberação dos sócios em assembleia geral anual.

As contas culminam com o resultado do exercício e, em princípio, o lucro deve ser apurado e distribuído no termo do exercício. O relatório da gestão deve conter uma proposta de aplicação dos resultados devidamente fundamentada e, havendo lucro, essa proposta deve submeter aos sócios o destino que lhe deve ser dado (artº 66 nº 5 f) do CSC). O lucro pode ser retido como reserva, pode ser distribuído e pode ser parcialmente retido e parcialmente distribuído: também neste domínio os sócios têm um elevado grau de discricionariedade na deliberação - observados, evidentemente, os limites definidos na lei.

Na verdade, a lei proíbe a distribuição dos lucros que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas legais ou estatutárias e enquanto não estiverem amortizadas as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento, excepto se cobertos por reservas livres (artº 33 nºs 2 e 2 do CSC). É também proibida a distribuição de verbas provenientes de reservas ocultas (artº 33 nº 3 do CSC). Além disso, a lei impõe que as sociedades anónimas mantenham uma reserva legal, constituída pelo mínimo de uma vigésima parte dos lucros do exercício, até que alcance, pelo menos, um quinto do capital da sociedade (artº 295 do CSC).

Este núcleo de lucros não distribuíveis recorta, pela negativa, a noção de lucros do exercício distribuíveis[4].

Os lucros que seja lícito distribuir, mas que seja deliberado reter constituem as reservas livres: estas são constituídas através da retenção de lucros na própria sociedade.

A retenção de lucros, através da constituição de reservas, tem, para os sócios e para a sociedade, vantagens e inconvenientes.

Para a sociedade tem, evidentemente, a vantagem de reforçar a sua robustez financeira, de acautelar antecipadamente perdas futuras e de diminuir a sua dependência de capitais alheios, cuja obtenção e custo podem ser problemáticos; o inconveniente consiste na redução dos dividendos, criando tensões entre os sócios e fazendo baixar a cotação das acções, tornando mais difícil o seu financiamento no mercado primário.

Para os sócios, a retenção dos lucros na sociedade tem vantagens para quem investir a longo prazo, tornando economicamente sólida e mais valiosa, a médio e a longo prazo, a participação social, e elimina ou reduz a exigência de prestação de garantias pelos sócios para a obtenção de financiamento; o inconveniente traduz-se, claro, na redução, no exercício considerado, do dividendo.

Nas sociedades anónimas fechadas, a retenção é, usualmente, justificada com o argumento da necessidade de constituir reservas livres para tornar mais sólida a situação financeira da sociedade perante os perigos e incertezas da conjuntura económica e do mercado. O argumento corresponde, normalmente, à realidade. Porém, não são de excluir os casos em que a retenção de lucros é feita com o objectivo oculto ou dissimulado de prejudicar os accionistas minoritários, conduzindo-os, por exemplo, à venda das suas acções aos sócios maioritários ou à própria sociedade ou a terceiros, por preços inferiores ao seu valor de rendimento.

Como quer que seja, a lei estabelece mínimos de distribuição dos lucros pelos sócios: metade dos lucros do exercício, salvo preceito estatutário ou deliberação tomada com os votos correspondentes, pelo menos, a três quartos do capital social (artºs 217 nº 1 e 294 nº 1 do CSC). Em caso de divergência dos sócios prevalece, pois, o voto da maioria, não cabendo ao tribunal decidir sobre a conveniência da sociedade, excepto, claro, se for invocado abuso.

O regime da obrigatoriedade de distribuição de pelo menos metade dos lucros do exercício, salvo deliberação de, pelo menos, três quartos do capital social é puramente supletivo, dado que só é aplicável se outra coisa não constar dos estatutos. É o que indubitavelmente resulta da expressão salvo diferente cláusula contratual (artº 294 nº 1, proémio, do CSC)[5].

Todas as dificuldades estão, porém, em saber o que se deve entender por diferente cláusula contratual.

Está nessas condições, decerto, a cláusula em que a percentagem relativa de lucros a distribuir obrigatoriamente e de lucros a conservar é diferente da estabelecida na lei. As dúvidas têm incidido sobre a vulgar cláusula que deixa à assembleia geral poder para, como entender, atribuir lucros do exercício aos sócios ou dar-lhes outro destino lícito.

De harmonia com alguma doutrina, para que a cláusula produza o efeito derrogatório, é necessário que ocorra mais do que uma mera reprodução da regra da competência da assembleia para a distribuição ou retenção dos lucros do exercício, através da fixação, no contrato da sociedade, de uma percentagem diversa da legalmente exigível[6], ou da previsão da possibilidade de supressão da distribuição de dividendos, ou de uma deliberação da assembleia geral sobre a matéria com uma certa maioria[7], ou tomada por maioria qualificada de, pelo menos três quartos, dos votos correspondentes ao capital social.

Outra, porém, sustenta que a derrogação da norma apontada não requer qualquer exigência específica, excepto uma previsão directa ou indirecta, no contrato de sociedade, ou a tomada, com a maioria requerida, de deliberação de sentido diverso. Segundo este entendimento do problema, admite-se que os estatutos da sociedade se limitem a prever que a assembleia delibera sobre a distribuição do lucro do exercício, caso em que, aquele órgão societário poderá deliberar, por maioria simples, sobre a distribuição ou retenção de dividendos[8].

Tem-se por doutrina preferível o último destes entendimentos.

Realmente, não deixa de notar-se que uma cláusula estatutária que reconheça à assembleia geral o poder para, como entender, distribuir os lucros do exercício ou retê-los pela sociedade é formalmente diferente da regra supletiva. Substancialmente, está, por inteiro, respeitada a intenção da lei; esta assegura aos sócios a distribuição dos lucros, mas não contra a vontade deles; se no contrato da sociedade todos permitem a derrogação dessa regra, tanto faz que o façam por estabelecimento de percentagens diferentes, como deixando à assembleia o referido poder.

Foi, aliás, esta a conclusão a que chegou o acórdão desta Relação de 21 de Dezembro de 2010[9], tirado justamente num recurso entre as mesmas partes, em que se discutia a validade da deliberação dos sócios da recorrida de 16 de Junho de 2009, relativa à distribuição do lucro do exercício de 2008, de conteúdo absolutamente homótropo àquela que se impugna neste recurso.

E nesse mesmo acórdão, esta Relação foi até mais longe: ao proceder – por aplicação dos critérios de interpretação dos negócios jurídicos, entendidos numa feição marcadamente objectiva[10] – à interpretação daquela cláusula estatutária - que no nº 1 se limita a relegar para deliberação dos sócios a distribuição ou a retenção dos lucros, e no nº 2, admite que todo o lucro do exercício seja levado na sua totalidade a reservas livres – concluiu que, o recorrente, face àquela previsão estatutária estava em condições de, perceber exactamente o seu alcance, i.e., que a assembleia geral podia deliberar, por maioria simples, sobre o destino dos lucros de exercício, depois de deduzidas as previsões ou reservas impostas por lei.

Não há qualquer razão, por mais leve que seja, para divergir.

Com a deliberação social de atribuição dos lucros, constitui-se o direito de crédito – de conteúdo pecuniário - do sócio a determinado lucro - nas sociedades anónimas ao dividendo (artº 294 nºs 1 e 2 do CSC).

3.3. Deliberações abusivas.

As sociedades formam a sua vontade funcional através das deliberações sociais. As deliberações sociais são, porém, actos muito peculiares, dado que, por um lado, são actos dos sócios e, por outro, são actos da sociedade.

Enquanto acto dos sócios a deliberação é um acto colectivo formado por uma pluralidade de actos jurídicos unitários – os votos – que são imputáveis a cada um dos sócios; como acto da sociedade, a deliberação é, no seu todo, um acto jurídico unitário, embora complexo, imputável à sociedade, ela mesma.

Na base da deliberação, está, necessariamente, uma votação. Na situação mais comum, i.e., de pluralidade de sócios, na origem da deliberação está uma pluralidade de votos. O voto é uma declaração e sendo uma declaração é também, por si, um negócio jurídico. Está, por isso, inteiramente sujeito aos vícios que afectam os negócios jurídicos[11].

                Assim, por exemplo, o voto que seja emitido em contravenção de uma norma jurídica injuntiva é nulo (artº 294 do Código Civil).

                Se alguém for ilegalmente admitido a emitir voto, e o emitiu, a deliberação deve, em princípio, ser anulada: há um vício que não consiste na falta de maioria – mas sim na emissão ilegal de um voto. Mas para se determinar a exacta repercussão do vício do voto sobre a validade da deliberação social, há sempre que recorrer à chamada prova de resistência.

Quando o voto é nulo, por violação dalguma disposição legal, o problema que se põe é o da influência que o voto nulo tenha tido para a maioria dos sócios que aprovou a proposta e, por isso, ditou a deliberação, pois bem pode suceder que, descontados os votos nulos, ainda assim se mantenha a maioria necessária para a tomada da deliberação.

A resposta exacta a este problema é esta: o vício do voto é relevante – mas só põe em causa a deliberação se o voto for determinante para essa mesma deliberação, segundo a regra da maioria aplicável. Esta é a comummente chamada prova de resistência, que no nosso ordenamento surge disposta na lei civil geral para os votos em situação de conflito e, na lei societária, para os denominados votos abusivos (artº 176 nº 2 do Código Civil e 58 nº 1 a), in fine, do CSC). Um tal regime é, patentemente, simples emanação do princípio geral de aproveitamento do acto jurídico, traduzido pela regra utile per inutile non vitiatur: é de elementar bom senso – sublinha-se – não invalidar uma deliberação por serem nulos os votos inúteis para a deliberação a tomar[12].

                O Código das Sociedades Comerciais pôs fim à velha controvérsia sobre os valores negativos das deliberações sociais, admitindo expressamente a nulidade destas, que parte da doutrina, sobretudo a mais antiga, repudiava (artº 56). De harmonia com aquele Código, os valores negativos das deliberações sociais limitam-se à nulidade, à anulabilidade e à ineficácia – embora seja de admitir uma outra categoria de valor negativo: a inexistência (artºs 55, 56 e 58).

Assim como tem o poder de participar na formação das deliberações sociais, o sócio dispõe da faculdade de as impugnar e de pedir ao tribunal que, conforme o vício de que se encontrem feridas, as anule ou declare a sua nulidade ou inexistência (artºs 59 e 60 nº 1 do CSC).

A lei comina com o vício da anulabilidade, designadamente as deliberações que violem disposições da lei, quando ao caso não caiba nulidade, e do contrato de sociedade, e as que sejam apropriadas a satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do direito de voto, vantagens especiais para si ou terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos (artº 58 nº 1 a) e b) do CSC).

Nas deliberações que acarretam vantagens especiais para o sócio ou para terceiros, em detrimento da sociedade ou de outros sócios, o caso é, nitidamente, de desfuncionalização do voto – desde que orientada para uma finalidade axiologicamente negativa; nas deliberações cujo escopo seja simplesmente prejudicar a sociedade ou outros sócios, a causa de invalidade radica no seu carácter puramente emulativo.

                Trata-se, em qualquer das situações, de deliberações abusivas, que comportam duas dimensões de ilicitude: a que atinge a deliberação em si mesma; a que inquina os votos abusivos. Como a lei considera válida a deliberação se se mantiver, desconsiderados os votos abusivos, a maioria necessária para a aprovação, torna-se claro que é o vício do voto que vicia a deliberação: o vício incide primordialmente sobre o voto e só reflexamente sobre a deliberação[13].

Todavia, o exercício do direito de voto, pode, como, em geral qualquer situação jurídica, incorrer no abuso do direito, em qualquer das modalidades das situações abusivas que compreende (artº 334 do Código Civil).

Resta, porém, saber como se relacionam entre si a categoria das deliberações abusivas e o instituto do abuso do direito.

Na jurisprudência é comum a metódica da transposição para o âmbito material das deliberações dos sócios do instituto do abuso do direito[14], o que leva a doutrina a observar que se verifica uma paulatina colonização dos votos abusivos pelo abuso de direito[15].

Não parece, no entanto, que as deliberações abusivas e os votos abusivos se devam identificar ou sequer ser referidas ao abuso do direito. Nesta perspectiva, às deliberações e aos votos abusivos é aplicável o artº 58 nº 1 b) do Código das Sociedades Comerciais; às deliberações que incorram, nos termos gerais, no abuso do direito serão anuláveis por aplicação aplicável a alínea a) do mesmo preceito, de harmonia com a qual são anuláveis as deliberações que, designadamente violem disposições da lei[16].

Mas há boas razões para divergir. A lei fere com o vício da nulidade as deliberações dos sócios cujo conteúdo ofenda, directa ou indirectamente, preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios, i.e., preceitos legais injuntivos (artº 56 nº 1 d), in fine, do CSC).

Nos termos gerais, uma norma é imperativa ou injuntiva, designadamente quando concretize princípios injuntivos.

Temos por certo que a cláusula geral do abuso de direito é integrada por um conjunto de princípios injuntivos e portanto, que a norma que a contém – o artº 334 do Código Civil – é, também ela injuntiva. Não faria sentido que violada esta norma ou qualquer dos princípios injuntivos que contém, se seguisse a anulabilidade: o caso é nitidamente de nulidade (artº 56 nº 1 d), in fine, do CSC)[17].

Seja como for, pode ter-se por adquirido, à certeza, que as deliberações dos sócios são inválidas sempre que incorram em abuso do direito[18], seja qual for a modalidade típica de situação abusiva considerada – o venire contra factum proprium, a supressio, o tu quoque, o desequilíbrio no exercício, etc.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[19], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou à míngua de outros e melhores argumentos, não invoquem o abuso do direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação circunspecta e cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, da correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[20].

3.4. Poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância.

A apelação destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria.

Um tal error in judicando da matéria de facto pode, no entanto, radicar em duas causas diversas: pode tratar-se simplesmente de um erro na selecção do objecto da prova ou de um erro na apreciação dessa prova.

Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância não respeita à violação dos critérios de apreciação da prova – mas à infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto. Não se trata, portanto, de controlar a correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto – mas a exactidão da operação de selecção dessa matéria.

A selecção da matéria de facto desdobra-se em duas operações diversas: a primeira é a escolha, a partir do mole de factos articulados pelas partes, dos factos relevantes, i.e., dos factos que correspondem a todos os possíveis enquadramentos jurídicos da causa (artº 511 nº 1 do CPC); a segunda é a separação, no conjunto factos julgados relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, daqueles que devem considerar-se assentes e dos que se mostram controvertidos, i.e., dos que devem constituir objecto da prova e, como tal, devem figurar na base instrutória (artºs 508-A nº 1 e 511 nº 1 do CPC).

Esta selecção deve incidir sobre todos os factos que sejam relevantes segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção. Assim, qualquer facto não deve deixar de ser seleccionado, ainda que ele só possa ser relevante se, em relação a uma questão controversa na doutrina ou na jurisprudência, o tribunal vier a adoptar um determinado entendimento ou a preferir uma certa solução: ao juiz da causa não cabe, no momento da selecção dos factos relevantes, antecipar qualquer solução jurídica e, menos ainda, excluir da escolha os factos que não forem relevantes segundo esse enquadramento.

A decisão de selecção da matéria de facto pode encontrar-se ferida dos vícios da deficiência, excesso ou da obscuridade (artº 511 nº 2 do CPC).

Aquele despacho é deficiente quando omite factos relevantes para a decisão da causa, i.e., facto articulado controvertido pertinente à causa e indispensável para a resolver; sofre do vício oposto, i.e., do excesso, se versa sobre factos não articulados ou sobre factos alegados mas que não pertencem à categoria dos factos controvertidos; padece do defeito da obscuridade, quando se encontra redigido em termos tais, que suscita dúvida legítima sobre o verdadeiro sentido ou alcance dos pontos de facto objecto de selecção ou quando de todo em todo não se apreende o seu sentido ou aqueles se prestam a interpretações diferentes.

A cada um destes vícios corresponde um simétrico fundamento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, que é decidida por despacho. Mas o despacho que recai sobre essa reclamação não é autonomamente recorrível, só podendo ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC).

Ao despacho que decida a reclamação contra a matéria de facto não se associa, portanto, o efeito de caso julgado, que torne indiscutível, a exactidão do procedimento quer da escolha dos factos relevantes quer da sua repartição entre os que devem desde logo considerar-se assentes e os que devem reputar-se controvertidos.

Todavia, a impugnação do erro na selecção do objecto da prova, não está sequer na dependência da dedução de reclamação contra o despacho correspondente, desde que qualquer dos vícios dessa selecção se repercuta no julgamento da matéria de facto, por se manterem no momento desse julgamento, seja pelo singular seja pelo tribunal colectivo.

A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido impugnada através de reclamação, não transita em julgado e, portanto, não impede o exercício, mesmo oficiosamente, pela Relação do poder de controlo da correcção do procedimento correspondente.

Esta patologia da decisão da matéria de facto, proveniente de erro na selecção da matéria de facto, pode dar lugar à alteração, pela Relação, daquela decisão ou à anulação mesmo do julgamento correspondente. No primeiro caso a apelação é julgada de harmonia com o modelo de substituição; no segundo, o julgamento desse recurso segue, nitidamente, o sistema de cassação.

Sempre que considere deficiente obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto ou quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto – por se ter omitido o julgamento de um facto relevante, designadamente por não constar da base instrutória – a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC)[21].

O julgamento do recurso de harmonia com o modelo de cassação justifica-se pelo facto de a decisão da matéria de facto se encontrar ferida de um erro de julgamento, mas de este erro não resultar de um erro na apreciação da prova - mas de um erro sobre o objecto dessa prova.

Esta Relação tem inteira consciência de que os seus poderes de cassação são nitidamente subsidiários relativamente aos poderes de substituição e, portanto, que só lhe é licito cassar a decisão da matéria de facto, com fundamento na deficiência, obscuridade ou contradição dessa decisão sobre determinados pontos dela, quando o processo não contém todas as provas que permitam a reponderação dessa mesma decisão (artº 712 nº 4 do CPC).

Compreende-se, realmente, por aplicação de um claro princípio de economia e eficiência processuais, que se a Relação, tendo disponíveis todos os elementos de prova, notar que a decisão da matéria de facto é intrinsecamente contraditória ou obscura, harmonize ela mesma as respostas contraditórias ou esclareça os pontos obscuros. Também se compreende – para obviar ao desagradável vaivém do processo da Relação para a 1ª instância e desta instância para a Relação - que se a deficiência da decisão de facto consistir, por exemplo, na omissão de julgamento de um ponto de facto que tiver sido seleccionado para a base instrutória, a Relação supra ela mesma a omissão, decidindo esse mesmo ponto de facto.

Todavia, se a deficiência da decisão da questão de facto consistir num erro sobre a selecção dessa matéria, i.e., se radicar na omissão na omissão na base instrutória de factos relevantes, alegados pelas partes, e a Relação entender que deve ser produzida prova por eles, não lhe resta outra alternativa, senão actuar os seus poderes cassatórios e reenviar o processo para a instância recorrida para que proceda a novo julgamento (artº 650 nº 2, f), por analogia, e 712 nº 4 do CPC)[22].

Porquê? Porque nestas condições, não se verifica a condição de que a lei faz depender a actuação dos poderes de substituição: constarem do processo todos os elementos probatórios que permitam a reapreciação da matéria de facto.

Efectivamente, se os factos não foram insertos na base instrutória, e, portanto, não constituíram objecto da instrução, pode ter-se como certo que não foram submetidos ao exercício da prova. Nesta circunstância, a actuação pronta dos poderes de substituição, decidindo logo a Relação pontos de facto omissos na base instrutória, privaria as partes de exercer relativamente a eles o direito à prova e à contraprova - direito é habitualmente deduzido, para a generalidade dos processos jurisdicionais do disposto no artº 6 nº 3 d) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que constitui, comprovadamente, uma dimensão ineliminável do direito a um processo equitativo (artº 20 nº 1 da Constituição da República Portuguesa).

O que pode perguntar-se é se, neste mesmo contexto, notando a deficiência da decisão da matéria de facto e a consequente necessidade da sua ampliação, a Relação deve proceder à reponderação da decisão dos demais pontos de facto cujo julgamento é impugnado no recurso.

A resposta que se tem por exacta é negativa. De um aspecto, essa solução é nitidamente contrária ao princípio da unidade de decisor da matéria facto – ínsito no princípio da plenitude da assistência dos juízes – e ao carácter unitário dessa decisão, dado que implicaria, necessariamente, uma cesure, por órgãos jurisdicionais diversos, supra ordenados, daquela decisão (artºs 654 nº 1 e 653 nº 2 do CPC); depois, porque uma tal decisão da Relação sempre se deveria por ter como puramente provisória, dada a inarredável faculdade de que dispõe o tribunal da 1ª instância de proceder à ampliação do julgamento da matéria de facto, com o fito exclusivo de evitar contradições na decisão correspondente (artº 712 nº 4, in fine, do CPC).

Estas considerações habilitam, com suficiência, à resolução dos problemas colocados no recurso – embora imponham, relativamente a cada um dos fundamentos da impugnação, decisões de sentido diverso.

3.5. Concretização.

Para convencer da anulabilidade da deliberação impugnada, o recorrente alegou a falta de maioria exigível para a sua aprovação: 3/4 dos votos correspondentes ao capital social. Mas já se assentou, porém, que a cláusula estatutária 14 derroga a norma que exige aquela maioria, sendo, por isso, lícito à assembleia de sócios da apelada deliberar com a maioria simples do seu capital. E sendo só essa maioria exigível, é bem de ver que, no caso, não houve realmente ofensa da norma supletiva contida no artº 294 nº 1 do CSC e, portanto, que a deliberação impugnada não se encontra ferida, por essa causa, com o vício da anulabilidade.

Para sustentar a invalidade da deliberação impugnada, o recorrente alegou, no articulado de réplica - ampliando a causa petendi, invocada na petição inicial - que o exercício pelos outros sócios da recorrida do direito de voto visou retirar-lhe rendimentos de que carece para viver (artº 32) e que apelada tem – e continua a ter – meios de pagar os dividendos, sem que isso ponha em causa o seu equilíbrio financeiro (artº 37). E compreende-se que o recorrente tenha tido o cuidado de alegar esses factos dado que uma das razões pelas quais o Acórdão desta Relação de 21 de Dezembro de 2010 desamparou a impugnação que dirigiu contra a deliberação dos sócios 16 de Junho de 2009, com fundamento no voto abusivo consistiu, justamente, na falta de alegação de factos passíveis de integrar o abuso de direito na tomada daquela deliberação social.

Nenhum destes factos foi seleccionado para a base instrutória. Mas eles são relevantes para a decisão da causa, segundo a solução plausível da questão de direito – o carácter abusivo do voto e da deliberação - dado que a provarem-se inculcam que o exercício pelos demais sócios do direito de voto não foi ordenado pelo bem da sociedade, mas iluminado, pelo propósito de prejudicar o recorrente e, portanto, que a deliberação correspondente é anulável – por via do voto abusivo – ou mesmo nula, por intervenção do abuso do direito.

O recorrente sustenta ainda que a matéria de facto deve ser ampliada de modo a compreender o facto relativo à manutenção dos avales, por quantias superiores a € 2.000.000,00 que prestou à recorrida, enquanto foi seu administrador. Diz o recorrente que, apesar de não ter sido expressamente alegado nesta acção, é um facto instrumental, que resulta de documento que foi junto na acção apensa, que corre termos sob o nº 108/11.

A procedência da acção pressupõe certos factos. Os factos necessários a essa procedência são os factos principais que compreendem, na terminologia da lei, os factos essenciais e os factos complementares (artº 264 do CPC). O distinguo entre uma e outra espécie de factos pode fazer-se do modo seguinte: os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção; os complementares são os que são indispensáveis a essa procedência mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte. Por sua vez, os factos instrumentais são utilizados para realizar a prova indiciária dos factos principais, i.e., são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais.

Assente esta distinção, a disponibilidade e oficiosidade quanto aos factos essenciais, complementares e instrumentais, obedece às regras seguintes: incumbe às partes alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir (artº 264 nº 1 do CPC); o tribunal pode considerar os factos complementares que resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultada, quanto a eles, o exercício do contraditório (artº 264 nº 3 do CPC); o tribunal pode considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais que resultem da instrução e julgamento da causa (artº 264 nº 2 do CPC). E quanto a estes últimos factos, o tribunal pode não só investiga-los como ordenar, quanto a eles, as actividades instrutórias que sejam da sua iniciativa (artº 265 nº 3 do CPC).

O facto relativo à manutenção dos avales prestados à recorrida pelo recorrente enquanto foi seu administrador não é um facto meramente instrumental – mas antes um facto essencial, portanto, necessário para identificação da situação jurídica invocada e que releva, desde logo, na viabilidade da acção: a invalidade, fundada no seu carácter abusivo, dos votos e da deliberação impugnada. Incumbia-lhe, portanto, alegá-lo. Não o tendo feito, é inadmissível a sua consideração pelo tribunal (artºs 264 nº 1, 664, 2ª parte, do CPC).

Mas ainda que o contrário se devesse entender, sempre se teria por excluída a sua inserção, ainda que por ampliação, na base da prova.

È razoável supor que por avales, o recorrente se refere à declaração cambiária que consiste no acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra ou livrança garante o pagamento dela por parte de dos seus subscritores, assumindo, assim, uma obrigação de garantia – garantia da obrigação do avalizado, que a cobre e cauciona (artºs 30 e 31, ex-vi artº 77, XI, da LUsLL).

Tal declaração só documentalmente pode provar-se (artºs 1, 31 e 77 da LUsLL e 364 nº 1 do Código Civil).

Como só pode provar-se por documento, um tal facto é insusceptível de ser seleccionado para a base instrutória, dado que o tribunal da audiência – singular e colectivo – deve restringir a sua apreciação à prova validamente produzida na audiência, considerando-se inexistente qualquer resposta desse tribunal sobre factos que só possam ser provados por documentos (artº 646 nº 4, 2ª parte, do CPC)[23]. Isto não obsta, é claro, que caso um tal documento seja produzido, à atendibilidade desse facto, dado que a sentença deve utilizar, como fundamentos de facto, todos os factos que foram adquiridos durante a tramitação da causa, e, portanto, os factos provados por documentos juntos ao processo, designadamente, por iniciativa das partes (artºs 523, 524 e 659 nº 2 do CPC)

Em todo o caso, como se notou, a matéria de facto é insuficiente. Essa insuficiência fica a dever-se à ausência na base instrutória dos factos essenciais relativos

Esse erro na selecção da matéria de facto resolve-se numa deficiência do julgamento que não cobre matéria de facto alegada pelo apelante, por ter sido omissa na elaboração da base instrutória. Essa insuficiência da matéria de facto justifica, inteiramente, o uso por esta Relação dos poderes de controlo que lhe permitem mandar ampliar a decisão de facto (artºs 712 nº 4, 1ª parte, e 650 nº 2 f), por analogia, do CPC).

Importa, portanto – sem prejuízo da imediata improcedência do recurso relativamente ao fundamento da invalidade da deliberação impugnada por ofensa do artº 294 nº 1 do Código das Sociedades Comerciais - cassar a decisão da 1ª instância e ordenar a ampliação da base instrutória no tocante aos factos apontados (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC).

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese apertada, que:

a) A cláusula estatutária que preveja que assembleia de sócios delibera sobre a distribuição do lucro de exercício, constitui diferente cláusula contratual, que, por isso, derroga a regra supletiva contida no artº 294 do CSC;

b) As deliberações dos sócios que incorram, nos termos gerais, em abuso do direito são nulas e não simplesmente anuláveis;

c) Sempre que, por erro sobre o objecto da prova, o julgamento da questão de facto seja deficiente, por não cobrir toda a matéria de facto alegada relevante, a Relação deve cassar esse julgamento e reenviar o processo para a 1ª instância para que proceda ao julgamento dos pontos de facto omissos na base da prova.

O recorrente e a recorrida sucumbem, reciprocamente, no recurso.

Deverão, por isso, suportar as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da tabela I-B integrante do RCP (artº 6 nº 2 do RCP, ex-vi artº 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Julga-se o recurso improcedente no tocante ao fundamento da impugnação representado pela violação do artº 294 nº 1 do Código das Sociedades Comerciais;

b) Anula-se a decisão da matéria de facto, no tocante ao fundamento do recurso relativo ao carácter abusivo do voto e da deliberação impugnada, e determina-se a ampliação daquela matéria, através da inserção, na base instrutória, dos factos alegados pelo recorrente nos artºs 32 e 37 do articulado de réplica.

Custas do recurso pelo recorrente e pela recorrida, em partes iguais, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa        

[1] A indicação do ano de 2008 deriva, decerto, de lapso de escrita, verificável pelo próprio contexto do articulado de petição inicial. Dado que a deliberação impugnada teve por objecto o lucro líquido apurado do exercício de 2009, é patente que o pedido do autor, no segmento em que tem por objecto uma prestação pecuniária, se refere necessariamente, ao ano de 2009. Aquele erro apenas dá, pois, direito a rectificação (artº 249 do Código Civil).
[2] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, Almedina, Coimbra, 4ª edição, 2011, pág. 209, Alexandre Soveral Martins, Valores Mobiliários (Acções) IDET, Cadernos, nº 1, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 20. Em sentido diverso, qualificando a participação social, a um tempo, como relação jurídica, direito subjectivo e estatuto jurídico do sócio enquanto tal, Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 495 a 504.
[3] Castro C. Osório, Valores Mobiliários, Conceito e Espécies, 2ª edição, UCP Editora, Porto, 1998, págs. 73 e ss.
[4] Manuel António Pita, Direito aos Lucros, 1989, pág. Filipe Cassiano dos Santos, “ A posição do accionista face os lucros do balanço/O direito ao dividendo no Código das Sociedades Comerciais”, 1986, pág. 39 e ss., e Evaristo Mendes, “Direito ao lucro de exercício no CSC, (Arts. 217/294)”, Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, 2002, págs. 508 e ss.
[5] Acs. da RC de 26.06.00, CJ, XXV, IV, pág. 24, e do STJ de 18.05.04, www.dgsi.pt. Note-se, contudo, que alguma doutrina sustenta que os sócios teriam sempre garantido o direito à distribuição de metade do lucro do exercício. Esta solução seria imposta – diz-se – pela razão de ser da participação numa sociedade, que leva a que deva assegurar-se, com a regularidade possível, a distribuição dos rendimentos obtidos. Um tal entendimento seria o que melhor harmonizaria os interesses dos sócios na remuneração do capital investido e o interesse social no reforço dos capitais próprios da sociedade. Assim, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 4ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 153 e 154, e 297 a 294. Também assim, aparentemente, o Ac. da RE de 09.11.06, CJ, XXXI, I, págs. 245.
[6] Manuel António Pita, Direito aos Lucros, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 157 e 158, e Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II, 2011, 4ª edição, pág. 469, nota 74; Acs. da RC de 06.03.90 e de 02.07.91, CJ, XV, II, pág. 45 e XVI, IV, pág. 89.
[7] Filipe Cassiano Santos, A posição do Accionista Face aos Lucros do  Balanço, Studia Iuridica, Coimbra Editora, 1996, págs. 124 a 129, e António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários, Coimbra Editora, 2008, pág. 151.
[8] Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Volume I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 336, António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, II, Das Sociedades em Especial, 2ª edição, 2007, Almedina, Coimbra, pág. 600 e nota 1588, e Evaristo Mendes, “Direito ao lucro de exercício no CSC (Arts. 217/294), cit., págs 495 e 496; Acs. da RC de  26.09.00, CJ, XXV, pág. 24 e do STJ de 18.05.04 e 12.10.10, www.dgsi.pt, e de 07.01.93, CJ, STJ, I, I, pág. 5.
[9] www.dgsi.pt.
[10] Que como o acórdão notou é suportada, na doutrina por António Pinto Monteiro – RLJ, Ano 136, nº 3941 – e que mereceu a adesão do Ac. do STJ de 12.10.1º, www.dgsi.pt.
[11] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, edição da FDUL, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 20 e 21.
[12] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, cit., pág. 42, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 268, Brito Correia, Direito Comercial, Volume II, Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1990, pág. 318 e Acs. da RC de 02.11.10 e da RL de 07.07.09, www.dgsi.pt.
[13] Oliveira Ascensão, Invalidades das Deliberações Sociais, Problemas do Direitos das Sociedades, Coimbra, 2002, pág. 398.
[14] Assim, v.g., os Acs. do STJ de 28.05.92, da RL de 03.03.94, www.dgsi.pt., e da RE de 27.04.89, CJ, 89, II, pág. 284.
[15] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, Das Sociedades em Geral, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 746.
[16] Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 161 e António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, cit., pág. 745; Acs. da RP de 26.06.96, da RL de 10.11.09 e da RC de 21.12.10, www.dgsi.pt.
[17] António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação: António Menezes Cordeiro, 2ª edição, 2011, págs. 231, 236 e 237, e o Ac. da RP de 13.04.99, CJ, 99, II, pág. 96.
[18] Acs. da RC de 06.11.12, www.dgsi.pt, de 06.03.90, CJ, 90, II, pág. 45, e de 02.07.91, CJ, 91, IV, 89, e do STJ de 07.01.93, BMJ nº 423, pág. 540
[19] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e de 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157, e VII, III, pág. 124, respectivamente.
[20] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[21] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.
[22] A menos que se possa julgar provado, por outra via, v.g., por acordo, o facto omisso: Ac. da RP de 01.03.99, CJ, III, pág. 259.
[23] Ac. da RP de 03.06.96, CJ, 96, III, pág. 352.