Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3671/07.3TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
NOTIFICAÇÃO AO DEVEDOR
Data do Acordão: 04/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 372, 376 CPC, 224, 583 CC
Sumário: I - O incidente de habilitação de cessionário, tramitando autonomamente, assume o jaez de processo, pelo que lhe são aplicáveis as disposições legais vigentes à data do início da sua tramitação e não aquelas vigentes à data do início do processo executivo com que se conexiona.

II - O artº 224º nº 2 do CC apenas cobra aplicação quando se prove que o não recebimento do quid material que encerra a declaração – vg. carta registada com a/r, - é, única, exclusiva, e censuravelmente, imputável ao declaratário notificando.

III - Não satisfaz tal requisito o envio de carta para uma morada fornecida pelo declaratário há pelo menos quatro anos (e nem sequer ao declarante, mas a terceiro), e devolvida com a menção de que o destinatário é ali desconhecido, pois que, assim, ao declarante era exigível que diligenciasse pelo apuramento da residência atual daquele.

IV - Em sede de cessão de créditos, atuando o alegado cessionário como referido no ponto III, a notificação ao devedor exigida pelo artº 583º do CC, como requisito sine qua non da eficácia da cessão em relação a ele, não deve ter-se por efetivada, pelo que ela não lhe pode ser oposta, e, assim, sendo de indeferir liminarmente o incidente.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

C (…) SA deduziu, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que o Banco (…) SA instaurou contra N (…) SA e F (…), o presente incidente de habilitação de cessionário, o que fez contra exequente e executados.

 Requereu:

Que seja habilitada para com eles prosseguirem os termos da execução, em substituição da primitiva exequente.

Alegou:

Por contrato escrito de 31-05-2010 a primitiva exequente cedeu o crédito exequendo à ora requerente, nos termos do contrato de cessão de créditos junto.

 Veio posteriormente esclarecer que os ora executados não foram notificados da cessão de créditos.

2.

Foi proferido despacho liminar que indeferiu o incidente de habilitação.

No qual foi aduzido o seguinte discurso argumentativo.

«Para além de não se vislumbrar fundamento para a demanda do cedente, foram alegados que permitem concluir que a invocada cessão não produziu os seus efeitos em relação aos executados nos termos do art. 583º do CC, pois que não foram dela notificados.

 Verifica-se assim que a execução já foi declarada extinta em 24-09-2008 em relação à sociedade executada, pelo que deixou de ser parte na causa principal, o que obsta à admissibilidade do presente incidente em relação à mesma.

 Por outro lado, não se avista no documento junto aos autos referência ao executado/pessoa singular, nem se consegue identificar nesse documento o crédito peticionado a esse executado nos autos principais.

 Estando em causa relações obrigacionais, impunha-se a referência expressa, nesse documento, às pessoas devedoras atingidas pelas obrigações cedidas, até para que a cessão possa produzir os seus efeitos nos termos do art. 583º do CC (o que, in casu, não aconteceu)»

3.

Inconformada recorreu a requerente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A - A presente sentença enferma de um lapso pois foram carreados para o processo elementos que, salvo melhor entendimento, teriam que levar a uma conclusão diferente.

B – Por um lado, a recorrente enviou uma carta ao executado a dar-lhe conhecimento da cessão de crédito, não tendo a mesma sido reclamada, o que é, assim, da sua exclusiva culpa, pelo que não poderá deixar de ser considerada eficaz, nos termos e para os efeitos do nº 2 do art. 224º e do art. 583.º, ambos do Código Civil.

 C – Não obstante, cumpre apreciar se esta obrigação se exigia no caso em apreço, já que a alteração operada ao art. 376° do C.P.C. pelo art. 1° do DL 226/2008 e que entrou em vigor em 21/11/2008 (art. 23°, alínea a) do DL 226/2008), apenas se aplica aos processos iniciados após esta data (art. 22.° n.° 1 do DL 226/2008).

D - Considerando que o processo principal a que o incidente de habilitação deduzido pela recorrente se mostra apenso, foi instaurado no ano de 2007, tem de concluir-se obrigatoriamente que a alteração do art. 376.° do C.P.C. operada pelo DL 226/2008 não é aplicável nos presentes autos.

E – Por outro lado, o fundamento de não se avistar no documento referência ao executado / pessoa singular, também não pode merecer acolhimento.

 F – Isto porque, o crédito está devidamente identificado e como tal tem forçosamente que se concluir que foi cedido na íntegra, pois não se afigura possível que o mesmo crédito seja cedido em relação a um devedor e não a outro.

G – Caso dúvidas existissem, resulta da cláusula segunda do Contrato de cessão de crédito, celebrado em 31/12/2009, que a cessão em causa abrangeu os acessórios e as garantias do crédito em causa, o que também referiu a Recorrente no artigo 5.º do seu articulado de habilitação de cessionário.

H – Por outro lado, na lista constante de fls. 17 do contrato de cessão de créditos, celebrado em 31/12/2009, em lugar devidamente assinalado por nós, consta expressamente que o montante do crédito cedido foi de € 530.000,00 sobre a sociedade “Nunes & Branca”.

 I – Resultando, assim, provado que o crédito cedido corresponde ao que se encontra executado nos autos principais.

J – Tem, assim, considerando o requerimento da habilitação, de ser notificada a parte contrária para, querendo, contestar a habilitação (arts. 376º, a) do C.P.C.), seguindo-se depois os termos previstos na alínea b) do nº 1 do art. 376º do C.P.C., já que, conforme tudo o que alegou, nenhum fundamento existe que possa justificar o seu indeferimento liminar.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  608º nº2, ex vi do artº 663º n2, 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Eficácia da cessão em relação ao devedor.

5.

Apreciando.

5.1.

Estatui o artº 376º nºs 3 e 4 do CPC, na redação que lhe foi dada pelo DL 226/2008 de 20.11:

«3 - Nos casos em que a habilitação se faz por requerimento de habilitação deve ser junto:

a) O título da aquisição ou da cessão;

b) A prova da notificação da aquisição ou cessão ao devedor que deve conter:

i) A menção dos elementos referidos no n.º 2 do artigo 235.º;

ii) A menção de que o notificado pode impugnar a validade do acto ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo; e

iii) A morada para onde o notificado pode enviar a contestação, caso o pretenda fazer.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o requerimento deve ainda ser acompanhado:

a) Da contestação do notificado; ou

b) Da declaração de que o notificado aceitou a aquisição ou a cessão; ou

c) Da declaração de decurso do prazo de contestação sem que o notificado tenha contestado a aquisição ou cessão.»

Clama a recorrente, desde logo, que a redação deste preceito, que exige a notificação do devedor, não é aplicável no caso vertente, pois que ela apenas é aplicável aos processos iniciados após a sua entrada em vigor   - art. 22.°, n.° 1 do DL 226/2008 -, e o presente processo iniciou-se ainda antes, em 2007.

Mas não tem razão.

Sendo tal redação aplicável aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, como ela própria invoca e admite, então, no caso dos autos, tem de concluir-se que nos encontramos perante um processo que se subsume em tal segmento normativo.

 Pois que o presente incidente de habilitação, tramitando não nos próprios autos a que respeita ou com que se relaciona, mas antes por apenso – artº 372º nº2 do CPC pretérito, atual 352º nº2 - , é um processado que assume autonomia, e, assim, deve se tido como um processo  para todos os efeitos adjetivos.

Ou seja, e lato sensu, como um conjunto de atos, ordenado, sequencial e tendencialmente preclusivo, atinentes à consecução/decisão de/sobre um determinado objeto ou thema decidendum.

O que, aliás, se mostra em consonância com o princípio geral da aplicação imediata da lei adjetiva, salvo aos casos que ela expressamente excecionar.

O presente caso não é exceção, antes pelo contrário cai sob a alçada da regra geral, como se viu.

Aliás tal qualificação ou jaez de processo autónomo foi atribuído no despacho de fls. 58 quando nele se declara que «o presente incidente tem a estrutura de uma ação».

Em consequência do que, se ordenou a  notificação da recorrente para aperfeiçoar o seu requerimento inicial, em conformidade com tal estrutura, o que ela cumpriu.

5.2.

Por outro lado, e no que tange à notificação, ou não, dos devedores, máxime do Fernando, pois que relativamente à sociedade, o incidente não foi admitido por motivo – extinção da execução contra ela – que a recorrente não impugnou, pelo que a decisão, neste particular, transitou em julgado.

Certo é que, nos termos do artº 224º nº 2 do CC a declaração negocial é declarada eficaz quando, «só por culpa do destinatário, não foi por ele oportunamente recebida».

Costumam ser dados como exemplos da culpa do destinatário, os casos em que,  depois de ele ter fornecido uma concreta morada, se ausenta para parte incerta, se recusa a receber a carta ou não a vai levantar à posta restante como fazia normalmente – Cfr. Ac. da RP de 18.10.1983, CJ, 4º, 260.

Ao utilizar o advérbio «só», a lei  demonstra ser exigente no sentido de considerar que apenas e exclusivamente a este deve ser imputado o não recebimento.

Nesta conformidade, a conduta, ativa ou omissiva,  a montante, do declarante que envia a carta, no sentido de diligenciar e apurar, antes ou depois da devolução da mesma, acerca da real, efetiva e verdadeira residência, morada ou local onde o destinatário se encontra, outrossim é de considerar e relevar.

Ademais, a imputação ao destinatário não é meramente objetiva, mas  subjetiva, a título de culpa, ou seja, em função de um desvalor ético-jurídico que se possa fazer incidir sobre uma sua apurada conduta.

Ou, por outras palavras, não releva qualquer caso de não recebimento, objetivamente tendencialmente admissível e relevante em função de uma determinada conduta ou atuação pretérita do notificando, mas apenas aquele em que, com grande probabilidade, se demonstre o seu, censurável, alheamento, desinteresse ou inadmissível inércia, no sentido de se inteirar da do teor missiva ou carta.

O que se compreende, pois que a lei quer privilegiar o real e efetivo conhecimento da declaração, em detrimento de um suposto conhecimento formal, o que apenas se verifica quando ao destinatário  é efetivada a entrega do quid material que a encerra ou consubstancia.

5.3.

No caso vertente, versus o que alega a recorrente, a carta por ela dirigida ao executado Fernando não veio devolvida com a menção de «não atendeu», o que deixaria margem para a interpretação de que  ele na morada residia e que, assim, teria tido conhecimento da missiva, podendo ir levantá-la aos correios.

Antes constando no sobrescrito a menção de que «informam ser desconhecido na referida morada».

Assim sendo, à partida é legítimo o entendimento de que o notificando não residia naquele endereço e que da carta não teve conhecimento.

Diz a recorrente que tal morada era a que constava nos registos do Banco cedente como fornecida pelo dito executado.

Pode ter sido assim.

Mas tal não a desvinculava de ter tido uma atuação mais proactiva e diligente no sentido de apurar a atual morada do executado.

Em primeiro lugar, porque aquela morada, alegadamente fornecida por este, foi-o não à recorrente, mas a terceiro, ao Banco cedente, pelo que não se sabe em que termos, em que condições e para que efeitos foi facultada, e, ainda, se ela era, ou não, a única constante nos elementos do banco.

Em segundo lugar, porque entre a cedência da morada aquele banco e o conhecimento dela pela recorrente, passaram, no mínimo, cerca de quatro anos, que foi o lapso de tempo que medeou entre a instauração da execução e a notificação da cessão do crédito.

Ora neste largo interim é possível e admissível que o executado tivesse mudado de morada, o que, em função da informação prestada ao carteiro, até terá acontecido.

Perante este quadro de incerteza, a recorrente não poderia ficar acomodada, mas antes  deveria diligenciar, desde logo junto do Banco cedente, pela averiguação acerca da morada, de outra que este tivesse conhecimento, ou, ainda, da recolha de elementos junto  dele para que o paradeiro atual do executado fosse descortinado.

Não o tendo feito conclui-se que a não notificação efetiva, outrossim, e em maior ou menor medida, lhe é imputável.

O que, na senda do que supra se mencionou, é o quanto basta para se concluir que o disposto no artº 224º nº2 não cobra, em benefício da verdade e da justiça material, aqui aplicação.

Nesta conformidade, e exigindo o artº 583º do CC, como requisito sine qua non da eficácia, em relação ao devedor, a sua notificação, é obvio que não estando esta efetivada, a cessão não lhe pode ser oposta, desde logo liminarmente e em sede e para os efeitos deste incidente de habilitação.

 Falecendo, matricialmente por este motivo, a pretensão recursiva, queda despicienda a apreciação do restante argumento, relativamente ao qual, aliás, os elementos documentais se revelam de difícil leitura e inconclusivos.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

6.

Sumariando.

I - O incidente de habilitação de cessionário, tramitando autonomamente, assume o jaez de processo, pelo que lhe são aplicáveis as disposições legais vigentes à data do inicio da sua tramitação e não aquelas vigentes à data do início do processo executivo com que se conexiona.

II - O artº 224º nº 2 do CC apenas cobra aplicação quando se prove que o não recebimento do quid material que encerra a declaração – vg. carta registada com a/r, - é, única, exclusiva, e censuravelmente, imputável ao declaratário notificando.

III - Não satisfaz tal requisito o envio  de carta para uma morada fornecida pelo declaratário há pelo menos quatro anos (e nem sequer ao declarante, mas a terceiro),  e devolvida com a menção de que o destinatário é ali desconhecido, pois que, assim, ao declarante era exigível que diligenciasse pelo apuramento da residência atual daquele.

IV - Em sede de cessão de créditos,  atuando o alegado cessionário como referido no ponto III, a notificação ao devedor exigida pelo artº 583º do CC, como requisito sine qua non da eficácia da cessão em relação a ele, não deve ter-se por efetivada, pelo que ela não lhe pode ser oposta, e, assim, sendo de indeferir liminarmente o incidente.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 2016.04.26

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos