Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1535/17.1T8CBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
PRESSUPOSTOS DA SUA APLICAÇÃO
APRECIAÇÃO JURISDICIONAL
Data do Acordão: 11/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º-A E 222º-A DO CIRE.
Sumário: I – Resulta do disposto nos art.ºs 17º-A e 222º-A do CIRE que é pressuposto da aplicação dos processos pré-insolvenciais em que se traduzem o PER e o PEAP que o devedor se encontre em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, ou seja, que o devedor “não se encontre ainda em situação de insolvência”.

II - Uma interpretação que negasse a apreciação jurisdicional das aludidas condições materiais de procedibilidade tornaria praticamente inútil a proclamação da necessidade desses requisitos – pois então seriam sempre os credores quem maioritariamente sobre ele se pronunciariam ao aprovarem ou rejeitarem o acordo. Pelo que também não nos repugna admitir como conforme ao pensamento do legislador a possibilidade do controlo jurisdicional da verificação de uma situação económica difícil ou de insolvência iminente – o que implica a exclusão de uma insolvência actual - no devedor que lança mão do PEAP.

Decisão Texto Integral:










Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Processo Especial para Acordo de Pagamento requerido por J... e M..., a correr termos no Juízo de Comércio de Coimbra, Comarca de Coimbra, foi em 19 de Março de 2018 proferida sentença a homologar o acordo de pagamento aprovado pela maioria dos credores.

Inconformados desta decisão interpuseram recurso os credores BANCO P..., S.A., EM LIQUIDAÇÃO, e a respectiva MASSA INSOLVENTE, recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância, sem qualquer impugnação:

...

 São ainda de consignar as seguintes ocorrências ou dados processuais com interesse para a decisão:

...

A apelação.

Nas conclusões que delimitam o objecto recursivo os recorrentes levantam as seguintes questões:

Inaplicabilidade do PEAP aos devedores/Requerentes por estes já se encontrarem em situação de insolvência;

Exclusão do PEAP diante da qualidade de empresários dos devedores/Requerentes;

Assim não se entendendo, a questão de saber se deve ter lugar a recusa da homologação do acordo de pagamento pela circunstância de os credores ora apelantes ficarem em pior situação do que aquela em que estariam na ausência do acordo.

Os apelados/devedores responderam, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.                    

Cumpre decidir.

A questão da inaplicabilidade do PEAP por força da situação de insolvência actual dos devedores.

Entendem os apelantes que estando demonstrada a situação de insolvência actual dos devedores e Requerentes não lhes era permitido socorrer-se do presente PEAP para com ele alcançarem o acordo de pagamento com os credores.

Por seu turno, os apelados/devedores sustentam um ponto de vista diverso: o de que escapa ao controlo jurisdicional a apreciação de mérito atinente à real situação – de insolvência iminente ou actual – dos devedores que se apresentam a iniciar um PEAP.

Vejamos.

 No que se atem ao requisito agora em apreço asseverou-se na sentença recorrida que, de acordo com o disposto nos art.ºs 17-A e 222-A do CIRE, é pressuposto da aplicação dos processos pré-insolvenciais em que se traduzem o PER e o PEAP que o devedor se encontre em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, ou seja, que o devedor “não se encontre ainda em situação de insolvência”.

O que não merece crítica uma vez que também o art.º 1º, nºs 2 e 3 do CIRE são inequívocos quanto à verificação do requisito da situação económica difícil ou insolvência meramente iminente, tanto no caso do PER como do PEAP.

De seguida a sentença ora recorrida ponderou as posições jurisprudenciais e doutrinais [1] que consideram que a insolvência actual do devedor não deve, em princípio, constituir fundamento de indeferimento liminar ou recusa da homologação do plano, no sentido de que não seria autorizada a “verificação finalística dos seus pressupostos materiais” pelo juiz. Valeria aqui a ideia de que os credores são soberanos na ponderação ou apreciação da real situação do devedor manifestada pelo modo como exercem o seu voto, aprovando ou não o acordo.

No entanto, viria a sentença recorrida a aderir à posição contrária: a de que, estando comprovada a insolvência actual do devedor, estaremos perante um abuso do procedimento, hipótese em que o plano de acordo deverá ser recusado por violação não negligenciável de norma procedimental, tendo em atenção o disposto nos art.ºs 222-F, nº 5, e 215 do CIRE.

Que dizer ?

Diremos que uma interpretação que negasse a apreciação jurisdicional das aludidas condições materiais de procedibilidade tornaria praticamente inútil a proclamação da necessidade desses requisitos – pois então seriam sempre os credores quem maioritariamente sobre ele se pronunciariam ao aprovarem ou rejeitarem o acordo. Pelo que também não nos repugna admitir como conforme ao pensamento do legislador a possibilidade do controlo jurisdicional da verificação de uma situação económica difícil ou de insolvência iminente – o que implica a exclusão de uma insolvência actual - no devedor que lança mão do PEAP.

Deste modo, haverá que averiguar se, no caso vertente, existem na materialidade apurada elementos  fácticos que apontem para uma insolvência actual dos devedores, hipótese em que quedarão afastadas/excluídas as aludidas condições materiais de instauração do PEAP.

Porém, percorrendo todo o elenco dos factos provados não se divisa aí matéria que respalde um quadro de insolvência existente ou verificada dos Requerentes/devedores.

O que se recolhe desse elenco é apenas que o passivo relacionado dos Requerentes, como devedores principais ou garantes, é de € 123.892,952,43 - cfr. o facto provado em 9sendo o total dos activos relacionados do plano de € 150.000.000,00, aí se incluindo créditos litigiosos cuja soma ascende a € 43.000.000,00 cfr. o facto provado em 23.

Sem embargo dos créditos dos apelantes se cifrar, com juros, em € 9.020.783,50, o processo não evidencia, portanto, que o património, isto é, o activo, dos Requerentes seja inferior ao passivo, ou que haja impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, designadamente a respeitante aos ora apelantes.

Donde que não seja de reconhecer a insolvência actual dos Requerentes como obstáculo ao processo e fundamento de recusa do plano de acordo.

Sobre a qualidade de empresários dos devedores.

Defendem também os credores ora apelantes que o regime jurídico do PEAP é inaplicável aos apelados em virtude da sua qualidade de empresários, pelo que a sentença incorreu em erro na forma do processo, e bem assim, na violação do âmbito de aplicação subjectiva do PEAP, previsto nos art.ºs 222-A e segs. do CIRE, o que configura uma violação não negligenciável das normas procedimentais aplicáveis, nos termos do disposto no art.º 215 do CIRE.

Todavia esta questão esbarra com o caso julgado formal ou interno formado pela decisão singular desta Relação de 2 de Agosto de 2017[2], a qual, face à entrada em vigor do DL nº 79/2017, apesar de considerar que os devedores não eram empresários, isto é, que enquanto pessoas singulares não eram titulares de empresas, determinou a convolação do processo de PER para PEAP.  

A forma processual em função da natureza dos Requerentes ficou, assim, definitivamente regulada.

Improcede, por conseguinte, esta segunda questão.

A ponderação das situações hipotéticas dos credores na ausência do plano.

Por fim, querem os apelantes que a Relação recuse a homologação do plano de acordo de pagamento aprovado nos termos do art.º 215, e 216, nº1, al.ª a), ex vi do art.º 22-F, nº 2, do CIRE, porque os cenários alternativos lhes seriam mais favoráveis.

Para esse fim esgrimem com duas alternativas à homologação do plano:

Subsistência da acção executiva movida aos devedores; ou

Insolvência destes.

Vejamos.

Com interesse para esta questão decorre da matéria provada que o plano de acordo aprovado, junto a fls. 1043 e ss., considera no ponto A3, entre os créditos garantidos com garantias reais autónomas, o crédito do Banco P..., S.A., em Liquidação com o capital em dívida de € 6.188,525,37, tendo por garantia “Direitos emergentes de contrato de gestão” , com o “valor proposto para dação” de € 4.000.000,00; prevê no ponto A1 que “Os créditos existentes com garantia real (penhor, penhor financeiro, hipoteca) serão amortizados mediante a dação em cumprimento (datio pro solutum) dos bens e/ou ativos que lhe servem de garantia desde que o credor titular aceite expressamente essa dação em cumprimento”; no ponto A4 que “Caso os credores titulares créditos garantidos com garantia real não aceitem a dação em cumprimento aqui proposta, especificamente em relação a algum ou alguns dos créditos de que sejam titulares, os “ativos” ou “valores mobiliários” ou “outros bens” sobre os quais incide a respectiva garantia real serão objecto de venda (…)”; e no ponto A6 que “O valor remanescente dos créditos garantidos que não sejam amortizados ou não na medida em que não sejam amortizados, acrescerá ao montante dos créditos (…)”.    

Quando em 2 de Março de 2018 os credores, ora apelantes, requereram a recusa de homologação invocando o disposto no art.º 216, nº 1, al.º a) do CIRE, aduziram para tal efeito unicamente o seguinte:

Que a execução judicial dos activos que garantem o crédito do BP... iria permitir-lhe receber num relativo curto prazo, um montante superior aos referidos 4 milhões de euros;

Que o BP... é titular de penhoras de saldos de contas bancárias e imóveis que serão extintas com a aprovação do plano para acordo de pagamento;

Que a taxa de juros moratórios na execução será mais elevada.

Reiteram esta argumentação nas suas alegações de recurso.

Porém, os apelantes não só especulam sobre o montante que poderá advir da venda dos activos que garantem o crédito do BP... que referem estar penhorados na execução – e que serão exactamente os mesmos que são objecto da dação no acordo aprovado e homologado – aludindo a uma verba superior aos 4 milhões de euros aproximadamente calculados no acordo, como quantificam o suposto remanescente de valor de outros activos penhorados em € 740.000,00 sem que isso esteja comprovado ou tão pouco decorra da factualidade apurada. No que concerne à taxa de juros contratada, mesmo admitindo que seja superior à concedida pelo plano, não é igualmente possível prever se iria ou não ser efectivamente cobrada.

Por outro lado, esgrimem ainda os apelantes com o cenário da insolvência, o que de certo modo introduz matéria nova relativamente à oposição que oportunamente deduziram à homologação do plano.

Sem embargo, importa aqui observar que nada indica que seria esse o cenário que ocorreria.

Em todo o caso, admitindo que teoricamente ele pudesse vir a realizar-se, invocam os apelantes nessa hipótese:

Que por via da homologação do plano, após a dação em cumprimento, os créditos sobre os devedores serão proporcionalmente reduzidos ao montante que resultar do rateio do valor efectivamente recebido da cobrança dos créditos litigiosos B (...) , considerando-se perdoados os que ficarem por satisfazer após esse rateio;

Que a defesa dos interesses dos apelantes seria melhor prosseguida através do patrocínio judiciário desencadeado por uma entidade independente como seria o administrador da insolvência;

Que poderiam ser apreendidos activos/participações sociais que não foram nos presentes autos;

Que poderiam ser impugnados actos ou negócios prejudiciais à massa insolvente.

Há que lembrar que num cenário de insolvência não é a liquidação universal uma consequência automática/necessária.

Não obstante, também não há dados seguros que levem à conclusão de que tal liquidação seria previsivelmente mais favorável aos interesses dos apelantes.

Do que aqui essencialmente se trata é de avaliar, segundo um juízo de intelectual de prognose,[3] se os credores apelantes ficam ou não em posição “previsivelmente menos favorável” com a homologação do plano de acordo do que a que interviria na ausência deste, o que implica que se parta sempre das consequências que do seu conteúdo resultem para a satisfação dos créditos respectivos.

No que concerne ao produto da cobrança dos créditos litigiosos B (...) , uma vez que essa cobrança também está contemplada no plano, não se divisa onde pode residir o alegado prejuízo para os apelantes.

No demais, novamente os apelantes se colocam na área da especulação, pois que nem sequer quantificam os proventos que concretamente poderiam auferir com a actividade do administrador da insolvência no âmbito que traçam (proventos esse que, aliás, se afigura de difícil senão impossível prognose).    

Em suma, também nesta questão o recurso claudica.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

                                                           Coimbra, 13 de Novembro de 2018

              


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[1] Citando Catarina Serra, Processo Especial de Revitalização – contributos (…), ROA 72, V. II-III, Abril Setembro, p. 721.
[2] Não tendo havido reclamação para a conferência, a aludida decisão é definitivamente conformadora da questão processual.
[3] Frequentemente “complexo” como reconhecem Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, em anotação 6 ao artigo. Complexidade ou dificuldade será ainda maior, como é patente, quando em lugar de um plano de insolvência esteja em jogo um plano de acordo de pagamento.