Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1428/10.3T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º E 25º DO DL 15/93, DE 22/01
Sumário: 1.- Quando da avaliação dos factos provados se conclui que a ilicitude dos mesmos se mostra consideravelmente diminuída, preenchido está o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artº 25º al. a) do Dec. Lei 15/93 de 22/01;

2. Para essa avaliação assumem relevo, entre outros eventuais fatores, a organização que está por trás do comportamento, o tipo de atuação, a quantidade e a qualidade dos estupefacientes comercializados, os lucros obtidos, o grau de adesão a essa atividade como modo de vida, a afetação ou não de parte dos lucros ao financiamento do consumo pessoal de drogas, a duração e a intensidade da atividade desenvolvida, o número de consumidores contactados, a posição do agente na rede de distribuição clandestina dos estupefacientes;

3.- Considerando que o arguido é toxicodependente o que, agrava substancialmente o perigo de repetição de comportamentos delitivos e que sofreu anteriormente dez condenações, sendo que as últimas cinco foram em prisão efetiva e todas elas derivaram da prática, isolada ou conjunta, de crimes contra o património, a pena de prisão suspensa na sua execução não será suficiente para o afastar da prática de novos crimes.

Decisão Texto Integral: 1.
Nos presentes autos foi o arguido A... condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, do art. 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22/1.

2.
Inconformado, o arguido recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«1ª - O douto acórdão recorrido considerou, incorrectamente, como provada a matéria de facto constante dos pontos 1 a 13, 19 e 21 dos factos provados.
2ª - A impugnação daquela matéria de facto dada como provada fez-se através da análise/audição das declarações e dos depoimentos prestados pelo recorrente e testemunhas no decurso da audiência de discussão e julgamento.
3ª - Dessa análise terá necessariamente de considerar-se provado o seguinte:
- o recorrente era toxicodependente;
- é solteiro, não tendo filhos;
- o recorrente vivia e vive com a sua mãe, ajudando-a, pois é doente, e sendo por ela apoiado;
- o agregado subsiste com um rendimento de 965,00€ mensais;
- o recorrente é electricista, mas estava desempregado;
- trabalhava três vezes por semana, de noite, na Padaria …:
- auferia um rendimento mensal de superior a 100,00€;
- a última vez que apresentou comportamentos desviantes foi no ano de 2002;
- as condenações que apresenta no seu Certificado de Registo Criminal centram-se em factos/períodos da sua vida ocorridos entre os anos de 1992 e 1994 e no decurso do ano de 2002;
- os delitos pelos quais foi condenado relacionam-se com o seu problema de toxicodependência;
- em meados do ano de 2010 o recorrente teve uma recaída, reiniciando o consumo de heroína;
- nesse contexto aproximou-se mais de amigos seus, também toxicodependentes, bem como de outros consumidores, e vice-versa;
- o recorrente adquiria heroína essencialmente em Cacia;
- a pedido daqueles consumidores (que antecipadamente lhe entregavam dinheiro), quando adquiriu heroína para si, adquiriu também para eles;
- muitas dessas aquisições foram feitas com repartição de custos entre o recorrente e tais consumidores;
- com excepção das testemunhas ... e … , todas as testemunhas afirmaram ter consumido heroína, em diferentes ocasiões, juntamente com o recorrente, e não só heroína adquirida em conjunto por este, mas também por aqueles;
- o número de consumidores aos quais o recorrente se aproximou foi de sete, sendo quase todos seus amigos;
- a heroína que foi apreendida nas intercepções efectuadas pela PSP atingiu o peso total de 0,817 gramas;
- tais intercepções foram muito espaçadas no tempo, entre 7 e 29 dias;
- na residência do recorrente não foi encontrado qualquer produto estupefaciente, onde nem o recorrente aí exerceu qualquer tipo de actividade delituosa;
- os objectos encontrados na casa do recorrentes são compatíveis com um contexto de consumo;
- o dinheiro encontrado na posse do recorrente foi de apenas de 10,00 €;
- o recorrente não apresenta quaisquer sinais exteriores de riqueza, nem a sua existência pacata os denuncia;
- o recorrente fez tratamento de substituição no Estabelecimento Prisional de Aveiro, que continuou em casa, onde se encontra sob vigilância electrónica desde o mês de Fevereiro de 2011;
- o recorrente tem apoio e empenhamento da sua companheira, empregada de serviço doméstico, que passou a residir com ele aquando do decretamento da sua obrigação de permanência na habitação;
4ª - O correcto enquadramento da factualidade que deve ser considerada provada, leva a que a mesma caiba na previsão inserta no artigo 26º do DL 15/93, de 22 de Janeiro e não na do artigo 21º do mesmo diploma;
5ª - Na verdade, a actuação do recorrente foi direccionada para a satisfação das suas necessidades de consumo de heroína, o que consegui fazendo essencialmente compras conjuntas com outros consumidores, e com custos repartidos - a expressão "fazer uma vaquinha" foi utilizada por praticamente todas as testemunhas, sendo que também praticamente todas admitiram ter consumido com o recorrente.
6ª - A finalidade única da actuação do recorrente, satisfação da sua dependência, não lhe trouxe qualquer benefício/lucro, pois não se provou que procedesse à manipulação da heroína que adquiria terceiros, nem que a entregasse a preço diferente daquele pelo qual a adquiriu.
7ª - O facto único de fazer circular/transportar produto estupefaciente tipificou a sua conduta como constituindo tráfico;
8ª - Porém, o facto principal a ter em conta é a condição de toxicodependente que condicionou e balizou toda a actuação do recorrente.
9ª - Em abstracto, admite-se que a actuação do recorrente possa ser punida pelo artigo 25º do citado diploma, embora sempre muito mitigada atento o escasso número de consumidores envolvidos (7), a diminuta quantidade de produto estupefaciente apreendido (0,817g), a inexistência de qualquer tipo de organização e de meios utilizados, e a ausência de qualquer lucro para o recorrente.
10ª - Assim sendo, ter-se-á de concluir pela não punibilidade do comportamento do recorrente uma vez que não se verificam os condicionalismos previstos no nº 1 do artigo 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, devendo o mesmo ser sancionado apenas nos termos do disposto no artigo 26º, nº 1 do citado diploma em pena inferior à que foi aplicada pelo douto tribunal a quo, ou,
11ª - se assim não se entender, deve o recorrente ser sancionado nos termos do disposto no artigo 25º do mesmo diploma, na mesma em pena inferior á que foi aplicada por aquele mesmo tribunal.
12ª - Deixa o recorrente à consideração do douto tribunal ad quem a possibilidade de suspensão da pena que vier a ser aplicada, sem deixar de referir discordar-se com o referido quanto a este ponto pelo douto acórdão recorrido ao dizer que "estamos perante um arguido com um passado marcado pela prática de inúmeros ilícitos penais, em número substancial, de natureza diversa, e por um período de vida que se vem prolongando no tempo"; na verdade, há oito anos que o recorrente não tinha qualquer problema a nível penal;
13ª - E esse hiato de oito anos tem que ser entendido como resultado da sua consciencialização relativamente às condutas erradas que adoptou, discordando-se que actualmente esteja desenraizado social e profissionalmente, uma vez que tem apoio da família, da companheira e encontrava-se a trabalhar, embora ganhando pouco.
14ª - O actual estado do país a nível de desemprego, de falta de perspectivas de futuro, embora não responsável, é, neste tipo de indivíduos/patologias (um ex-toxicodependente é um doente para toda a vida, tal como o é um ex-alcoólico) é potenciador destes fenómenos de alheamento, que levam a recaídas, que foi o que aconteceu ao autor.
15ª - De realçar, mais uma vez e sob pena de repetição, que o fulcral neste processo é o consumo, o qual desencadeou a actuação do recorrente, não tendo o mesmo cometido o mesmo tipo de crimes pelos quais censurado há já bastantes anos (excepto quanto ao consumo e tráfico).
16ª - Somos assim levados a crer que a pena a aplicar deverá ser suspensa, até com injunções associadas (regime de prova, acompanhamento pelo CAT de Aveiro, etc), pois não deverá ser esquecido que o recorrente há praticamente um ano que está privado da liberdade, que está bem integrado familiarmente, e que o meio prisional a longo prazo é sempre desaconselhado para este tipo de doentes».

3.
O recurso foi admitido.

4.
O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

Nesta Relação o Exmº P.G.A. aderiu ao parecer apresentado na 1ª instância.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.
*

FACTOS PROVADOS

6.
No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
«1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Julho de 2010 e até 6 de Janeiro de 2011, o arguido A..., dedicou-se, com regularidade, à venda lucrativa de substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína, que a troco de quantias monetárias entregava a indivíduos consumidores de tais substâncias.
2. O arguido vinha exercendo tal actividade a partir da sua casa de habitação, situada na Rua … , em Aveiro, local onde quer pessoalmente, quer por telemóvel, era contactado pelos indivíduos interessados em comprar-lhe aqueles produtos indo depois entregá-los aos respectivos compradores em vários locais das imediações, nomeadamente junto ao Café … , à Pastelaria … e ao Posto de Abastecimento de Combustíveis … ,
3. O arguido comprava os produtos por si transaccionados, abastecendo-se junto de terceiras pessoas, cujas identidades não foi possível apurar, a quem pagava o preço respectivo, levando depois tais produtos para sua casa, onde os dividia em doses individuais.
4. O arguido entregava depois as doses individuais de tais produtos, nomeadamente heroína, aos seus compradores, a troco de dinheiro e por valor superior ao que havia dispendido com a sua aquisição - sendo a heroína vendida ao preço de €10,00 por cada dose individual (vulgarmente denominada "pacote"),
5. Além de outros indivíduos cujas concretas identidades não foi possível apurar, no apontado período de tempo, com frequência quase diária, o arguido vendeu produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, aos seguintes indivíduos: ………………………...
6. No âmbito da descrita actividade de venda de produtos estupefacientes, o arguido vendeu heroína, além de outros, nos seguintes dias:
a) No dia 20 de Outubro de 2010, pelas 10 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,097 gramas;
b) Nesse mesmo dia, pelas 12 horas e 30 minutos, o arguido vendeu à referida … , dois pacotes contendo heroína, com o peso líquido total de 0,223 gramas;
c) No dia 19 de Novembro de 2010, pelas 11 horas e 45 minutos, o arguido vendeu ao referido … , um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas;
d) No dia 3 de Dezembro de 2010, pelas 10 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,104 gramas;
e) Nesse mesmo dia, pelas 12 horas e 55 minutos, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,105 gramas;
f) No dia 10 de Dezembro de 2010, pelas 11 horas e 45 minutos, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,106 gramas;
g) No dia 6 de Janeiro de 2011, pelas 16 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas.
7. Nesse mesmo dia 6 de Janeiro de 2011, pelas 16 horas e 30 minutos, foi realizada busca domiciliária na residência do arguido, acima referida, tendo-se encontrado:
a) No chão da sala, um pacote de um produto cuja concreta natureza não foi possível apurar, com o peso bruto de 0,150 gramas, embalado de forma em tudo semelhante às doses individuais de heroína - que o arguido destinava a misturar nas doses de heroína por si vendidas.
b) No móvel da sala e no seu quarto, mais concretamente na mesa de cabeceira, recortes em plástico, ovos em plástico e pequenos sacos em plástico - que o arguido destinava a serem usados para embalar os produtos estupefacientes por si vendidos.
8. Nessa ocasião, foi o arguido sujeito a revista sendo então encontrado na sua posse:
a) A quantia de € 10,00 (dez euros) e notas - que o arguido obteve da sua descrita actividade de venda de estupefacientes;
b) Dois telemóveis, um deles de marca "Samsung", de modelo "GT-S5230", com o …, e o outro de marca "LG", de modelo "990", com o IMEI … - que o arguido usava no âmbito da sua descrita actividade de venda de estupefacientes, para ser contactado e contactar com os indivíduos que lhe adquiriam tais produtos.
9. Agindo do modo descrito, o arguido distribuiu a várias pessoas as substâncias estupefacientes por si vendidas.
10. O arguido dedicava-se à descrita actividade de venda de estupefacientes com o intuito de obter lucros monetários, para sustentar as suas necessidades financeiras diárias.
11. O arguido conhecia a natureza estupefaciente das substâncias por si detidas e vendidas, bem sabendo que a sua aquisição, detenção, venda e cedência a qualquer título são proibidas, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.
12. O arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
13. Confessou parcialmente os factos que lhe são imputados.
14. O arguido já foi julgado e condenado:
. nos autos de proc. comum colectivo nº 793/92 do 2º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 08.03.93, pela prática de um crime de furto qualificado e um crime de falsificação, na pena de 18 meses de prisão suspensa por 3 anos, suspensão essa entretanto revogada;
• nos autos de proc. comum colectivo nº 913/94 do 2º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 20.12.94, pela prática, em 11.1993, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 14 meses de prisão suspensa por 3 anos, suspensão essa posteriormente revogada;
• nos autos de proc. comum colectivo nº 77/96 do 1º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 08.10.96, pela prática, em 1995 e 1996, de um crime de consumo de droga, na pena de 60 dias de prisão convertida em igual período de multa à taxa diária de 750$00;
. nos autos de proc. comum colectivo nº 306/96 do 1º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 05.11.96, pela prática, em 1995, de um crime de consumo e tráfico de estupefacientes agravado, na pena única de 4 anos e um mês de prisão;
• nos autos de proc. comum singular nº 761/02.2PBAVR do 2º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 10.02.2003, pela prática, em 28.06.2002, de um crime de furto, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00;
. nos autos de proc. comum colectivo nº 3154/02.5PEAVR do 1º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 25.03.2003, pela prática, em 19.11.2002, de um crime de roubo e um crime de sequestro, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão;
• nos autos de proc. abreviado nº 3131/02.8PBAVR do 1º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 30.06.2003, pela prática, em 10.11.2002, de um crime de furto, na pena de 12 meses de prisão;
• nos autos de proc. comum singular nº 2573/02.4PBAVR do 2º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 06.10.2003, pela prática, em 06.09.2002, de um crime de furto, na pena de 4 meses de prisão;
• nos autos de proc. comum singular nº 2957/02.8PBAVR do 3º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 17.10.2003, pela prática, em 16.10.2002, de um crime de furto, na pena de 8 meses de prisão;
• nos autos de proc. comum colectivo nº 1619/02.0PBAVR do 3º juízo criminal do tribunal judicial de Aveiro, em 04.12.2003, pela prática, em 13.02.2006 e 11.06.2002, de um crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito e de um crime de furto, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.
15. O arguido é solteiro, mas vive com uma companheira em casa da mãe.
16. É electricista, mas não exerce e à época trabalhava em part-time, numa padaria, 3 vezes por semana, auferindo, nessa actividade, cerca de € 100,00 mensais.
17. A mãe é reformada e a companheira é empregada doméstica, auferindo cerca de € 300,00 mensais.
18. Perdeu o progenitor com 6 anos e frequentou a escola dos 6 aos 14 anos, período que foi marcado por inadaptação e insucesso escolar, vindo a concluir a 4ª classe e a obter equivalência ao 6º ano de escolaridade no âmbito do ensino recorrente frequentado durante a execução de uma pena de prisão.
19. O seu percurso profissional é marcado por predominantes períodos de inactividade e dependência económica da mãe intercalados por fugazes experiências de trabalho.
20. O arguido é consumidor de heroína há já alguns anos.
21. As condenações e experiências prisionais já sofridas não se traduziram numa alteração dum padrão de comportamentos desviantes, não lhe tendo sido reconhecida interiorização do desvalor e gravidade da sua conduta, e envolvendo-se, nos períodos de liberdade entre as várias reclusões, em contextos sociais de risco e mantendo hábitos de ociosidade».

7.
E foi julgado não provado que «o arguido não exercia então qualquer actividade remunerada ou geradora de rendimentos, estando desempregado».


8.
O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«O tribunal formou a sua convicção com base na prova documental junta aos autos em conjugação com os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento.
I - Relativamente aos factos dados como provados, desde logo, relevaram as declarações prestadas pelo arguido, o qual assumiu parcialmente - de forma totalmente espontânea e livre - os factos que lhe são imputados, concretamente a compra que fazia do produto estupefaciente e sua posterior venda, as datas e horas em que tal sucedeu, os locais, nomes de consumidores, doses entregues e valor das mesmas. Relativamente ao produto e objectos encontrados na sua residência, apenas identificou tal produto como sendo a medicação que então tomava, nada de diferente esclarecendo em relação ao seu destino, bem como aos sacos plásticos e ovos encontrados, acabando por admitir os factos da acusação. Relativamente ao valor pelo qual comprava o produto estupefaciente e à divisão do produto adquirido, em doses individuais, em sua casa, não concretizou nem apresentou versão diferente daquela que lhe era imputada, antes a admitindo, atitude que igualmente manteve relativamente ao dinheiro e telemóveis que lhe foram apreendidos. Aditou ser consumidor de heroína desde há cerca de 1 ano e meio, tendo sido submetido a tratamento entretanto. Aditou ainda à versão por si apresentada que juntava o dinheiro de vários consumidores, nomeadamente o seu, comprava o produto, e consumiam todos juntos, versão esta que não colheu atentos os depoimentos de outras testemunhas que concretizaram a forma como as transacções eram feitas, as quais nem sempre eram seguidas de consumo conjunto, sendo mesmo alguns consumidores praticamente desconhecidos do arguido e nunca se tendo dirigido à sua residência, procurando-o especificamente por ter conhecimento de que o mesmo teria uma facilidade maior em obter o produto estupefaciente que pretendiam obter.
… , … da PSP de Aveiro, atestou não conhecer qualquer actividade profissional ao arguido, ter presenciado a entrega efectuada pelo arguido a … , em Outubro de 2010, e decorrer, a sua actividade, na zona limítrofe da respectiva residência, sendo as transacções diárias e de alguma quantidade, com um número de consumidores diários que se situava entre os 5 e os 10. Confirmou o teor do auto de busca, por si assinado, a fls. 165, o teste rápido efectuado, a fls. 166, e as fotos colhidas, a fls. 167 e ss.
… , agente da PSP de Aveiro, atestou a sua intervenção em várias vigilâncias nas quais se deparou, nomeadamente, … , tendo mesmo visto este último entregar € 10,00 ao arguido mediante o recebimento de algo por parte deste, na Pastelaria … - quando se situava a cerca de 10 ou 12 metros de distância - tendo vindo a constatar tratar-se de um pacote de heroína quando o abordou e o viu com o pacote entre os dedos. Presenciou a busca e teve Intervenção na revista, tendo confirmado o que fora encontrado ao arguido, cfr. auto de tis. 162. Aditou ainda que os consumidores eram quase sempre os mesmos e procuravam o arguido diariamente.
… , agente da PSP de Aveiro, concretizou ter participado em vigilâncias e ter efectuado várias intercepções, as quais identificou quanto à data e consumidor abordado - … em Outubro de 2010; … , em Novembro de 2010, … , em Janeiro de 2011 -, relatando mesmo a transacção efectuada entre o arguido e … , na qual constatou a entrega daquele a este de algo que veio a apurar-se ser heroína, e deste àquele de duas notas de € 5,00, naquele dia apreendidas. Aditou ter estado presente na busca efectuada à residência do arguido, atestando o aí encontrado, em conformidade com o constante dos autos.
… , agente da PSP de Aveiro, atestou ter efectuado uma intercepção, de ..., junto do Café … , mais atestando serem as pessoas interceptadas referenciadas e conhecidas como consumidores e procurarem o arguido diariamente, num número que situou entre os 10 e os 12. Aditou ainda não conhecer qualquer actividade profissional ao arguido, vendo-o sempre no Café e sem fazer nada.
… , de 26 anos, actualmente a frequentar um curso de jardinagem, confirmou ter sido consumidor de heroína e ter estado com o arguido umas duas vezes, uma das quais foi interceptado pela PSP. Confirmou ter entregue €10,00 ao arguido e este ter-lhe entregue o produto estupefaciente, o que já havia acontecido na semana anterior, apenas uma vez tendo consumido junto com ele. Concretizou ter conhecido o arguido por intermédio de outra pessoa e tendo-o procurado no sentido de ele "lhe arranjar droga". … , de 44 anos, empregado numa empresa, referiu conhecer o arguido há já uns anos. Confirmou ter ido buscar droga ao arguido quando foi interceptado pela PSP, na Pastelaria … , tendo-lhe entregue €10,00 em momento anterior, o que já havia acontecido umas 3 ou 4 vezes, tendo-lhe entregue € 10,00 de cada vez e encontrando-se sempre na mesma zona, nas imediações da residência do arguido. Referiu que "faziam uma vaquinha" ele e outros consumidores, juntamente com o arguido, a quem entregavam o dinheiro para posteriormente dividirem o produto estupefaciente que aquele arranjasse e consumirem juntos. Não obstante, concretizou apenas ter consumido uma vez com o arguido e desconhecer se ele falava ou não com outras pessoas. Ora, a ser assim, não se compreende o conceito de "fazer uma vaquinha", pois que, afinal, o dinheiro era entregue ao arguido, individualmente por cada um dos consumidores, quando assim cada um o entendia e pretendia, a droga era entregue pelo arguido a cada um dos consumidores, em função de cada recebimento, e cada um consumia como, quando e onde entendia.
… , de 38 anos, empregado na empresa " … ", referiu ter sido consumidor há 12 anos atrás e ter tido uma recaída há cerca de um ano, altura em que procurou o arguido e lhe entregou dinheiro para adquirir droga, o que fez umas 3 ou 4 vezes, telefonando-lhe e combinando tudo previamente. Concretizou ter conhecido, então, o arguido, há cerca de um mês, num Café, e ser, também ele, consumidor.
… , de 35 anos, desempregado, atestou ter comprado heroína ao arguido, umas duas vezes, por € 10,00 a dose, que o arguido lhe entregava depois de aquele lhe entregar o dinheiro acordado.
… , empregada de refeitório, concretizou apenas conhecer o arguido de vista, pois que o marido é consumidor, já se tendo deslocado umas duas vezes a casa daquele - nunca a testemunha tendo presenciado tais encontros -, e uma vez pediu-lhe para o procurar, "o Sr. … ", em Santiago, junto à bomba de gasolina, trazer o que ele lhe entregasse e pagar, o que a testemunha fez, entregando-lhe uma nota de € 5,00 e trazendo um embrulho.
… , desempregado, atestou conhecer o arguido há 3 ou 4 anos sendo o seu relacionamento ligado ao consumo de drogas. Confirmou ter-lhe o arguido entregue 1 pacote de heroína, na zona de Santiago, após o recebimento prévio de €10,00, sendo que já consumiram juntos, mas naquele dia iam fazê-lo separados porque a testemunha estava com pressa e não o poderia fazer naquele momento. Aditou que, entre vizinhos, costumavam juntar o dinheiro e um ia ao Porto comprar droga para todos. Não obstante, não identificou tal grupo, não explicou por que razão a incumbência de adquirir a droga cabia, atinai, sempre ao arguido, porque referiu a cidade do Porto, quando o arguido atestou comprar em Cacia, enfim, incongruências que esta testemunha não logrou explicar.
… , ligado à manutenção de condomínios, referiu conhecer o arguido há cerca de um ano, altura em que, segundo disse, o encontrou e lhe perguntou "onde podia arranjar". Atestou que a situação se repetiu por várias vezes, praticamente todos os dias, com excepção dos fins-de-semana, num período de cerca de 15 dias em que o arguido "o andava a desenrascar", encontrando-se sempre, após contacto telefónico, no Bairro de Santiago, perto da residência do arguido, recebendo sempre 1 pacote de heroína mediante a entrega de €10,00. Aditou ter chegado a consumir com o arguido, em casa deste, e tê-lo abordado inicialmente por achar que ele "podia fornecer-se", o que se confirmou.
..., assistente técnico no Instituto de … , atestou conhecer o arguido há cerca de um ano e, quando interceptado pela PSP, ter acabado de receber dele um pacote de heroína junto a uma padaria no Bairro de Santiago, sendo que já se tinha encontrado com o arguido para o mesmo fim, noutras datas e noutros locais, mas sempre naquela zona. Concretizou que consumia heroína há três meses e procurava vários fornecedores, tendo recorrido ao arguido, cerca de 10 vezes, de quem recebia sempre um pacote mediante a entrega de €10,00. Aditou ainda conhecer o arguido como consumidor, mas com facilidade de acesso a droga. Concretizou ainda que combinavam os encontros por telefone, com hora pré-determinada, e, por vezes, o arguido marcava o encontro de imediato, outras vezes, dizia-lhe para esperar, sendo que nunca consumiu com ele e uma vez, quando chegou, no mesmo local - junto a uma padaria - já se encontravam outros consumidores à espera que o arguido lhes fizesse as respectivas entregas, o que aconteceu sempre em locais públicos, nunca a testemunha tendo ido a casa dele. Por último, concretizou que o conheceu através de outro consumidor que lho apresentou como "alguém que arranjava", mais aditando que quando lhe entregava o produto, a dose já vinha feita e embalada, tendo sempre o mesmo valor.
… , electricista, atestou conhecer o arguido há anos, mas apenas ter ganho confiança com ele no último ano. Justificou o facto de o procurar com o conhecimento que tinha de que, além de ele próprio ser consumidor, ter mais conhecimentos, motivo pelo qual se dirigia a ele, lhe telefonava a perguntar "se arranjava". Concretizou ainda que a PSP o abordou em 2011 e, nessa altura, a testemunha já tinha procurado o arguido umas 4 ou 5 vezes antes, pagando € 5,00 quando dividiam a dose a meias ou € 10,00 quando recebia o pacote inteiro, recebendo o produto das mãos do arguido sempre em Santiago.
A testemunha de defesa apresentada, Verónica Vieira, companheira do arguido, por seu turno, atestou não ter então conhecimento de nada, mas aos poucos vir desconfiando, apenas tendo a certeza das suas suspeitas quando o arguido foi detido, o que é de ressaltar, pois que nem a companheira foi alheia à actividade que o arguido vinha levando a cabo, o que, de facto, seria difícil atenta a relação de proximidade e vivência que os une.
Em conclusão, temos que as testemunhas inquiridas prestaram depoimentos serenos, claros e esclarecedores, tendo merecido a credibilidade do tribunal. De salientar, entretanto, quanto à referência feita, por várias testemunhas, ao facto de "fazerem uma vaquinha" para consumirem junto com o arguido, não ter resultado que assim fosse quando as próprias tentaram explicar o que efectivamente acontecia, pois que a prova feita foi no sentido de, afinal, cada um procurar o arguido quando necessitava, entregar-lhe aquela quantia certa e posteriormente receber o produto respectivo, para consumo de cada um, conjunto ou separado. De salientar também o facto de os consumidores procurarem o arguido por intermédio de outras pessoas ou por acharem que ele tinha mais conhecimentos ou facilidade "em arranjar" o produto, nenhum outro relacionamento mantendo com o mesmo e alguns mal o conhecendo, sendo certo que todos o procuraram, por várias vezes durante certo período de tempo, até à sua detenção.
A nível pericial relevaram os exames efectuados pelo laboratório de Polícia Científica da Policia Judiciária juntos de fls. 326 a 342.
A nível documental, de relevantes ainda as fotografias do produto apreendido, a fls. 70,90,99, 107, 117, 167 a 173 e 175.
Também relevantes foram os autos de vigilância juntos aos autos e confirmados por cada um dos agentes inquiridos em sede de audiência de julgamento; os autos de apreensão de fls. 64, 67, 87, 96, 104, 114, 162 e 174; o auto de busca e apreensão, a fls. 165; o auto de notícia por detenção, a fls. 157, no qual se menciona a detenção do arguido, a revista e busca efectuadas, uma apreensão a um consumidor, entre outros elementos.
A existência de antecedentes criminais resulta do CRC junto a fls. 269 a 280. A situação sócio-económica do arguido e seu percurso profissional e vivencial decorreu do relatório social de fls. 438 a 444, em conjugação com as declarações prestadas pelo próprio e depoimento da testemunha Verónica Vieira».
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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação são as seguintes as questões a decidir:
I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
II – Impugnação do enquadramento legal dos factos provados
III – Impugnação da pena aplicada
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I – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Conforme decorre do art. 428º do C.P.P. actualmente o poder de cognição da relação abrange, sempre, a decisão da matéria de facto.
Mais do que conhecê-la a relação pode, mesmo, alterar essa decisão, conforme decorre do art. 431º do C.P.P., que dispõe: «sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova».

O arguido ataca a decisão sobre a matéria de facto, no que aos factos constantes dos pontos 1 a 13, 19 e 21 da matéria provada respeita socorrendo-se, para tanto, do art. 412º do C.P.P.
Nos termos do seu nº 3 «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas».
Acrescenta o seu nº 4 que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».
É este, pois, o iter procedimental a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Na especificação dos factos o recorrente terá que indicar o facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado.
Quanto às provas, o recorrente tem que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: quando a prova que impõe decisão diversa é documental, ele tem que especificar o documento e o excerto do documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada, tem que indicar o(s) depoimento(s) em questão, por identificação da pessoa em causa, tem que relatar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra o erro em que incorreu a decisão e tem, conforme resulta do nº 4 acima transcrito, que localizar este excerto no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo de gravação. É este o procedimento a cumprir quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto com recurso à prova gravada.
Portanto, quando o recorrente pretenda ver alterada a matéria de facto por via do mecanismo previsto no art. 412º, nº 3 e 4, do C.P.P., tem os seguintes ónus a cumprir:
1º - tem, primeiro, que concretizar o facto impugnado;
2º - tem que especificar a prova que impõe decisão diversa da recorrida;
3º - sendo esta prova oral, tem que localizar com exactidão no respectivo suporte o excerto relevante da prova gravada de que se socorreu para demonstrar o erro da decisão.
O cuidado da lei ao fixar os pressupostos de uma impugnação vitoriosa deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, não obstante incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Só se estivéssemos perante um novo julgamento é que as especificações seriam, claro está, inúteis.
Mas sendo o recurso um remédio, como remédio que é o que pretende é corrigir/sanar os concretos erros de julgamento no que à matéria de facto respeita. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstram a sua existência estejam, também elas, especificadas e localizadas.
Daí que a lei não se baste com a referência genérica ao documento X ou ao depoimento Y, antes exigindo que o recorrente escalpelize aquela concreta prova e apresente, concretize, o/s ponto/s exacto/s da mesma que comprova/m a tese do recurso e que localize o excerto, isto para que todos os demais intervenientes o localizem no suporte e comprovem, portanto, a sua existência.
Por isso o nº 6 do mesmo art. 412º determina que o tribunal procede à análise da prova mediante a audição (ou visualização) das passagens indicadas, o que demonstra que o recorrente tem que indicar e localizar as passagens relevantes (sendo certo que sempre poderá ouvir outras que considere relevantes) Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1135..
Esta é a interpretação que respeita a letra da lei e é a única que permite o exercício efectivo do princípio do contraditório e da imparcialidade do juiz. A indicação genérica, sendo certo que seria confortável para o recorrente, prejudicaria de forma intolerável todos os demais intervenientes no processo e poderia, mesmo, inviabilizar o exercício do contraditório. Se fosse aceitável que o recorrente arguísse um qualquer erro e pudesse basear a sua alegação nos “documentos do processo”, ou nos “documentos de fls…”, sem necessidade de expor as razões da relevância de tais documentos, e/ou nos “depoimentos de A, B e C”, também sem necessidade de outras especificações, todo o trabalho de indagação se transferia para os demais intervenientes. Eram os outros sujeitos do processo, nomeadamente o juiz, que teriam que catar dentre toda a prova produzida as partes que, eventualmente, relevariam para as pretensões do recorrente. Seriam eles teriam que se “afogar” em montanhas de documentos, em horas de gravações para descobrirem, se o conseguissem e se elas existissem, as concretas passagens dos documentos e das declarações em que o recorrente presumivelmente se teria baseado para impugnar um determinado facto, sendo que tais passagens poderiam resumir-se a duas ou três palavras de um depoimento. Isto equivaleria a transferir, de modo abusivo e injustificado, o ónus de fundamentar devidamente o recurso Vide o acórdão da Relação de Évora de 12-3-2008, processo 2965/07.. Para além disso, e como facilmente se percebe, o recorrente sempre poderia transferir para o juiz a responsabilidade pelo insucesso do recurso, quando a procura pela localização dos tais excertos relevantes fosse infrutífera.
Depois, a incumbência de ser o tribunal a encontrar e seleccionar as provas importantes aos interesses do recorrente violaria, igualmente, o dever de independência e equidistância do juiz porquanto este, no caso, ficaria vinculado a desenvolver o seu trabalho de acordo com o pensasse servir melhor os interesses do recorrente.

Da leitura das conclusões do recurso – que delimitam, como dissemos, o âmbito do conhecimento deste tribunal -, resulta que o arguido não cumpriu a lei no que às especificações das provas respeita, uma vez que na sua especificação se limita a indicar o nome da testemunha que entende ser relevante. E dizemos que apenas indica o nome porque o facto de remeter para a totalidade do depoimento prestado é igual a não dizer nada.
E actualmente, face ao novo método de gravação da prova oral produzida em audiência, a localização de qualquer excerto de um depoimento é obtida de imediato, assim que o suporte é colocado no leitor respetivo. A informação sobre o tempo de gravação é-nos dada a cada momento, ao longo de todo o depoimento: basta olhar para o monitor e ver em que concreto minuto é que cada concreta frase é dita.
A localização referida no nº 4 do art. 412º, como todos sabemos e/ou intuímos, fundamental. Enquanto que a especificação referida na al. b), do nº 3 do art. 412º respeita à fundamentação do vício, isto é, à demonstração da desconformidade entre a decisão e a prova produzida, já a localização destes excertos, a que se refere o nº 4 da norma, tem a ver com outra coisa. O que se pretende aqui é, evidentemente, contribuir para facilitar a sindicância daqueles excertos por parte dos demais intervenientes, sejam estes o juiz, os sujeitos processuais ou o Ministério Público: com a indicação da localização da parte do depoimento relevante para a demonstração do alegado erro de julgamento pretende-se que quem analisa a alegação vá, directamente, para o momento indicado, ao invés de ter que proceder à audição da totalidade do depoimento, correndo o risco, inclusive, de não lograr detectar o momento indicado Estamos, pois, em desacordo com o decidido por este tribunal em 21-10-2009, no processo 1233/06.1TASTS, quando disse que se o recorrente juntar com a motivação do recurso, ou o fizer na motivação, as transcrições dos depoimentos que sustentam a impugnação da matéria de facto, não carece de fazer as especificações constantes da acta. Trata-se, em nosso entender, de especificações diferentes, com fins diferentes, e o cumprimento de uma não desonera, evidentemente, que também a outra tenha que ser cumprida..

No caso dos autos o recorrente não cumpre o dever de localização das provas que alega imporem decisão diferente da recorrida.
Num primeiro momento poderíamos ser levados a pensar que haveria, então, que dirigir ao recorrente convite para corrigir as conclusões do recurso.
No entanto, assim não é.
As conclusões são o resumo da motivação e, por isso, devem expor as razões do pedido. Mas também por serem o resumo da motivação só podem conter as questões nesta abordadas. Por isso o que não figura na motivação não pode constar das conclusões.
Daí que se no texto da motivação as especificações dos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.P. não constarem, então não há lugar àquele convite, que se revelaria manifestamente inútil, uma vez que os elementos em falta nunca poderiam ser integrados nas conclusões.

Nos termos gerais o incumprimento de um ónus leva ao não reconhecimento da pretensão exposta. Do mesmo modo, o incumprimento do ónus imposto no art. 412º do C.P.P. determina a impossibilidade de o tribunal de recurso conhecer do pedido.
E não procede a alegação de ilegalidade ou, até, de inconstitucionalidade de um tal entendimento.
Sobre uma situação idêntica à do processo em análise já se pronunciou o Tribunal Constitucional no recurso 140/2004, de 10-3-2004. Sendo certo que, à data, a lei tinha uma redacção diferente, entendemos que aquela jurisprudência continua a valer, desde logo por maioria de razão, porque a lei actual é, neste particular, mais exigente do que era a anterior.
O objecto daquele processo 140/2004 era apurar, além do mais, da inconstitucionalidade da interpretação dos nºs 3, alínea b), e 4 do art. 412º do C.P.P., no sentido de a falta daquelas especificações ter como efeito o não conhecimento da matéria de facto, por esta falta introduzir um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso. O tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do art. 412º, nºs 3, alínea b), e 4, do C.P.P., interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente se tenha que dar a oportunidade de suprir tais deficiências, por a indicação exigida pela al. b) do nº 3 e pelo nº 4 do art. 412º do C.P.P. ser imprescindível para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e porque o legislador, ao impô-lo, pretendeu que esta actividade processual se desenrolasse de forma adequada, não sendo tal exigência nem meramente formal, nem desadequada, desproporcionada ou violadora do direito ao recurso.

Assim, e no que à sindicância da prova produzida respeita, improcede a pretensão do arguido.
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A alteração da decisão sobre a matéria de facto pode derivar, ainda, da verificação de algum dos vícios descritos no nº 2 do art. 410º do C.P.P.
Nos termos desta norma pode sempre conhecer-se dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, isto desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O conhecimento dos vícios enumerados no art. 410º nº2 do C.P.P. é próprio do modelo de revista alargada adoptado pelo nosso código de processo, permitindo o conhecimento das contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, dos erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, das dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida.
Na medida em que estes vícios têm que resultar do texto da decisão, significa que lhe são intrínsecos, que são vícios da decisão e não erros de julgamento. Daí que a sua constatação tenha que resultar da leitura, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam exteriores, mesmo se constantes do processo, com excepção das regras da experiência.
O vício de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem; o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão; finalmente, o erro notório na apreciação da prova acontece quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, quando ocorre uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, insustentável, e portanto incorrecta.

Do texto da decisão nenhum destes vícios emerge.

Assim, mantém-se o decidido no que aos factos provados e não provados respeita.
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II – Impugnação do enquadramento legal

O arguido impugnou o enquadramento legal dos factos, defendendo que o crime cometido será, apenas, o do art. 26º do D.L. nº 15/93, de 22/1, mas isto tendo por base os factos que entende que ficaram provados e não aqueles que constam do acórdão recorrido.
Adianta que mesmo que se assim não entenda, então a sua atuação terá que ser integrada no art. 25º daquele diploma.
Vejamos.

Dispõe o nº 1 do art. 21º da chamada “Lei da Droga”, cuja epígrafe é “tráfico e outras atividades ilícitas”, que «quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».
Quando ao art. 25º, que trata do “tráfico de menor gravidade”, diz ele que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».
Finalmente, o art. 26º, sob a epígrafe “traficante-consumidor”, dispõe no seu nº 1 que quando o agente, pela prática de algum dos factos do art. 21º, «tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».
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Os crimes de tráfico de estupefacientes integram os chamados crimes de perigo, em que a lei se basta com a aptidão que determinadas condutas revelam de constituírem perigo para determinados bens e valores, considerando o ilícito verificado logo que qualquer das condutas descritas ocorra, independentemente das suas consequências. Nestes crimes de perigo a lei faz recuar a proteção para o momento em que o perigo se manifesta.
Conforme é entendimento geral, o art. 21º, nº 1, contém o tipo essencial relativo às actividades de tráfico de estupefacientes, conforme se retira face à sua descrição típica alargada e à amplitude e severidade da moldura penal que contempla.
Precisamente por isso, como a previsão do art. 21º não se mostrava adequada a todos os padrões de ilicitude que ocorrem nestas actividades, então a lei graduou em escalas diversas os diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade/potencialidade do perigo para os bens jurídicos protegidos. Daí que o escalonamento dos crimes de tráfico resulte essencialmente dos tipos de ilicitude presentes, respondendo às diferentes realidades do ponto de vista das condutas e do agente.

Daí a necessidade de uma outra previsão destinada a responder a uma diferente realidade.
E esta resposta é dada pelo art. 25º, aplicado aos casos em que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída.
E quais os casos em que podemos dizer que a ilicitude é consideravelmente diminuída?
Para a perceção deste quadro toda a jurisprudência aponta para a imagem global do facto: «Trata-se … de um tipo caracterizado por menor gravidade em razão do grau de ilicitude em relação ao tipo fundamental do art. 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos. A essência da distinção entre os tipos fundamental e de menor gravidade reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de “considerável diminuição de ilicitude” … A qualificação diferencial entre os tipos base (art. 21º, nº 1) e de menor intensidade (art. 25º) há-de partir, como se salientou, da consideração e avaliação global da complexidade específica de cada caso – em avaliação, não obstante, objectiva e com projecção de igualdade, e não exasperadamente casuística ou fragmentária. A construção da ilicitude e a “considerável diminuição” há-de, assim, resultar da imagem global do facto no que respeita, naturalmente, à intervenção do recorrente na actividade que está em causa e aos limites da sua intervenção no contexto que a matéria de facto revela» Acórdão do S.T.J. de 17-4-2008, processo 08P571..

A dificuldade residirá em eleger os critérios de aferição dessa imagem global dos factos.
Mas aqui a jurisprudência tem avançado dados que auxiliam numa tal tarefa. Assim, ilicitude consideravelmente diminuída pode decorrer ou da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, ou devido à não ocorrência/devido à ausência daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs como habituais nos comportamentos e actividades contemplados no crime tipo, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para integração da norma que prevê e pune o crime tipo Acórdão do S.T.J. de 20-12-2006, processo 3059/06..
Concretizando, para a constatação de uma menor ilicitude assumem relevo, entre outros eventuais factores, a organização que está por trás do comportamento, o tipo de atuação, a quantidade e a qualidade dos estupefacientes comercializados, os lucros obtidos, o grau de adesão a essa actividade como modo de vida, a afectação ou não de parte dos lucros ao financiamento do consumo pessoal de drogas, a duração e a intensidade da actividade desenvolvida, o número de consumidores contactados, a posição do agente na rede de distribuição clandestina dos estupefacientes. É a partir da ponderação conjunta desta pluralidade de factores que se deverá elaborar um juízo sobre a verificação da menor ilicitude do facto Vide, entre outros os acórdãos do S.T.J. de 25-10-2007, processo 07P3255, e de 15-4-2010, processo 17/09.0PJAMD.L1.S1..
Na esclarecedora síntese avançada no acórdão do S.T.J. proferido em 15-12-1999, no processo 912/99, «a tipificação do art. 25º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar».
E nem se diga, como muitos pensam, que a menor gravidade do crime de tráfico de droga do art. 25º vale, apenas, para as bagatelas penais.
Nada mais errado.
Trata-se de menor gravidade em confronto com a média, alta e muito alta criminalidade, por um lado, e que abrange, ainda, criminalidade de tal modo relevante que levou o legislador a prever para tais situações uma pena de prisão cujo máximo vai até aos 5 anos e cujo mínimo fixou em 1 ano.
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Regressando ao caso dos autos, temos que se provou que:
«1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Julho de 2010 e até 6 de Janeiro de 2011, o arguido A..., dedicou-se, com regularidade, à venda lucrativa de substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína, que a troco de quantias monetárias entregava a indivíduos consumidores de tais substâncias.
2. O arguido vinha exercendo tal actividade a partir da sua casa de habitação, situada na Rua … , em Aveiro, local onde quer pessoalmente, quer por telemóvel, era contactado pelos indivíduos interessados em comprar-lhe aqueles produtos indo depois entregá-los aos respectivos compradores em vários locais das imediações, nomeadamente junto ao Café … , à Pastelaria … e ao Posto de Abastecimento de Combustíveis … .
3. O arguido comprava os produtos por si transaccionados, abastecendo-se junto de terceiras pessoas, cujas identidades não foi possível apurar, a quem pagava o preço respectivo, levando depois tais produtos para sua casa, onde os dividia em doses individuais.
4. O arguido entregava depois as doses individuais de tais produtos, nomeadamente heroína, aos seus compradores, a troco de dinheiro e por valor superior ao que havia dispendido com a sua aquisição - sendo a heroína vendida ao preço de €10,00 por cada dose individual (vulgarmente denominada "pacote"),
5. Além de outros indivíduos cujas concretas identidades não foi possível apurar, no apontado período de tempo, com frequência quase diária, o arguido vendeu produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, aos seguintes indivíduos: …..
6. No âmbito da descrita actividade de venda de produtos estupefacientes, o arguido vendeu heroína, além de outros, nos seguintes dias:
a) No dia 20 de Outubro de 2010, pelas 10 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,097 gramas;
b) Nesse mesmo dia, pelas 12 horas e 30 minutos, o arguido vendeu à referida … , dois pacotes contendo heroína, com o peso líquido total de 0,223 gramas;
c) No dia 19 de Novembro de 2010, pelas 11 horas e 45 minutos, o arguido vendeu ao referido … , um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas;
d) No dia 3 de Dezembro de 2010, pelas 10 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,104 gramas;
e) Nesse mesmo dia, pelas 12 horas e 55 minutos, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,105 gramas;
f) No dia 10 de Dezembro de 2010, pelas 11 horas e 45 minutos, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,106 gramas;
g) No dia 6 de Janeiro de 2011, pelas 16 horas, o arguido vendeu ao referido … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas.
7. Nesse mesmo dia 6 de Janeiro de 2011, pelas 16 horas e 30 minutos, foi realizada busca domiciliária na residência do arguido, acima referida, tendo-se encontrado:
a) No chão da sala, um pacote de um produto cuja concreta natureza não foi possível apurar, com o peso bruto de 0,150 gramas, embalado de forma em tudo semelhante às doses individuais de heroína - que o arguido destinava a misturar nas doses de heroína por si vendidas.
b) No móvel da sala e no seu quarto, mais concretamente na mesa de cabeceira, recortes em plástico, ovos em plástico e pequenos sacos em plástico - que o arguido destinava a serem usados para embalar os produtos estupefacientes por si vendidos.
8. Nessa ocasião, foi o arguido sujeito a revista sendo então encontrado na sua posse:
a) A quantia de €:10,00 (dez euros) e notas - que o arguido obteve da sua descrita actividade de venda de estupefacientes;
b) Dois telemóveis, um deles de marca "Samsung", de modelo "GT-S5230", com o IMEI … , e o outro de marca "LG", de modelo "990", com o IMEI … - que o arguido usava no âmbito da sua descrita actividade de venda de estupefacientes, para ser contactado e contactar com os indivíduos que lhe adquiriam tais produtos.
9. Agindo do modo descrito, o arguido distribuiu a várias pessoas as substâncias estupefacientes por si vendidas.
10. O arguido dedicava-se à descrita actividade de venda de estupefacientes com o intuito de obter lucros monetários, para sustentar as suas necessidades financeiras diárias.
11. O arguido conhecia a natureza estupefaciente das substâncias por si detidas e vendidas, bem sabendo que a sua aquisição, detenção, venda e cedência a qualquer título são proibidas, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.
12. O arguido agiu de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
13. Confessou parcialmente os factos que lhe são imputados».

Considerando, apenas, os pontos 6 e seguintes são os seguintes os factos provados:
- no dia 20-10-2010, pelas 10h, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,097 gramas;
- nesse mesmo dia, pelas 12h30m, vendeu a … dois pacotes contendo heroína, com o peso líquido total de 0,223 gramas;
- no dia 19-11-2010, pelas 11h45m, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas;
- no dia 3-12-2010, pelas 10h, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,104 gramas;
- nesse mesmo dia, pelas 12h55m, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,105 gramas;
- no dia 10-12-2010, pelas 11h45m, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,106 gramas;
- no dia 6-1-2011, pelas 16h, vendeu a … um pacote contendo heroína, com o peso líquido de 0,091 gramas.
- nesse mesmo dia, pelas 16h30m, foi realizada busca domiciliária na residência do arguido, acima referida, tendo-se encontrado:
- no chão da sala, um pacote de um produto cuja concreta natureza não foi possível apurar, com o peso bruto de 0,150 gramas, embalado de forma em tudo semelhante às doses individuais de heroína - que o arguido destinava a misturar nas doses de heroína por si vendidas;
- no móvel da sala e no seu quarto, mais concretamente na mesa de cabeceira, recortes em plástico, ovos em plástico e pequenos sacos em plástico - que o arguido destinava a serem usados para embalar os produtos estupefacientes por si vendidos.
- nessa ocasião, foi o arguido sujeito a revista sendo então encontrado na sua posse:
- a quantia de € 10,00 que o arguido obteve da sua descrita actividade de venda de estupefacientes;
- dois telemóveis, um deles de marca "Samsung", de modelo "GT-S5230", com o IMEI … , e o outro de marca "LG", de modelo "990", com o IMEI … - que o arguido usava no âmbito da sua descrita actividade de venda de estupefacientes, para ser contactado e contactar com os indivíduos que lhe adquiriam tais produtos.

Temos apuradas, portanto, que o arguido efetuou sete vendas, ocorridas entre 20-10-2010 e 6-1-2011, e que nelas vendeu um total de 0,817 gramas de heroína.
Este resumo revela, claramente, uma realidade bastante desadequada ao tráfico grave. Para além do curto tempo de venda, do pequeno número de compradores e da reduzida quantidade vendida, é manifesta a inexistência de uma qualquer estrutura organizativa, sem recurso a qualquer técnica ou meio digna de menção.
Trata-se de mero “negócio” de rua, absolutamente incipiente, insusceptível de integrar a previsão do art. 21º.
E os resultados da busca não alteraram, em nada, esta imagem. Aliás, reforçaram-na substancialmente. Para além de apenas terem sido encontrados 10 € em dinheiro, os únicos objetos normalmente relacionados com a atividade de tráfico que se encontravam na habitação do arguido eram recortes em plástico, ovos em plástico e pequenos sacos em plástico.

Claro que o panorama se altera se considerarmos os factos descritos nos pontos 1 a 5 da matéria assente. Recordando, neles diz-se que:
- desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Julho de 2010 e até 6 de Janeiro de 2011, o arguido dedicou-se, com regularidade, à venda lucrativa de substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína, que a troco de quantias monetárias entregava a indivíduos consumidores de tais substâncias – 1;
- ele vinha exercendo tal actividade a partir da sua casa de habitação, onde era contactado, quer pessoalmente, quer por telemóvel, pelos indivíduos interessados em comprar-lhe aqueles produtos indo depois entregá-los aos respectivos compradores em vários locais das imediações, nomeadamente junto ao Café … à Pastelaria … e ao Posto de Abastecimento de Combustíveis … ;
- comprava os produtos por si transaccionados, abastecendo-se junto de terceiras pessoas, cujas identidades não foi possível apurar, a quem pagava o preço respectivo, levando depois tais produtos para sua casa, onde os dividia em doses individuais – 3;
- entregava depois as doses individuais de tais produtos, nomeadamente heroína, aos seus compradores, a troco de dinheiro e por valor superior ao que havia dispendido com a sua aquisição, sendo a heroína vendida ao preço de €10,00 por cada dose individual – 4.

Mas será que esta matéria, tal como está consignada, pode ser considerada para a determinação do crime praticado?
Conforme desde há muito se entende as afirmações genéricas não são susceptíveis de sustentar uma condenação penal. Sem um suporte factual concreto tais generalidades não são atendíveis.
Lembremos, apenas, a exigência que a lei faz ao conteúdo da acusação. Nos termos da al. b), do nº 3 do art. 283º do C.P.P. a acusação deve conter para além do mais e sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo …».
Face a esta norma é seguro, pensamos, que uma acusação imputando a um agente a prática do crime de tráfico de droga onde se invocasse, apenas, o que consta daquele ponto 1 não seria suscetível de suportar a realização de um julgamento por absoluta falta de factos.
Se uma tal afirmação não tem a virtualidade de determinar a realização de um julgamento, também não tem a virtualidade de suportar uma condenação.
Tal como S.T.J. desde há muito entende «não são 'factos' susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ('procediam à venda de estupefacientes', 'essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos', 'a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína' …). As afirmações genéricas contidas no elenco desses 'factos' provados … não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido …» Acórdão do S.T.J. de 6-4-2004 proferido no processo 04P908..

É verdade que por vezes são considerações genéricas que transmitem a realidade, que nos fornecem o verdadeiro quadro da atuação do agente e que, por isso mesmo, têm que ser consideradas. Mas para o poderem ser têm que estar provados, também, factos concretos que permitam, com base neles, extrair estes outros, em jeito de conclusões. Pegando no exemplo acima dado, para se considerar o ponto 1 da matéria assente sempre teríamos que ter algo de concreto, fáctico, a partir do qual se pudesse, então, concluir que o agente se teria dedicado ao tráfico desde Julho de 2010 e que nessa actividade teria vendido outras substâncias estupefacientes para além de heroína, o que não sucede.
Assim, e não obstante o elenco dos factos provados, concluímos que neles não se identificam comportamentos suficientemente ancorados em factos concretizados que permitam concluir pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, do art. 21º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1.
De concreto apenas temos que o arguido efetuou sete vendas, que elas ocorreram entre 20-10-2010 e 6-1-2011, que a droga vendida foi heroína e que a quantidade transacionada ascendeu a 0,817 gramas. Todas as restantes imputações constantes dos pontos 1 a 5, não são atendíveis em sede de enquadramento porque não existem nem factos, nem indícios provados, que lhes dêem qualquer consistência Para além do acórdão de 6-4-2004, já citado, vide, também, o acórdão do S.T.J. de 27-5-2009, processo 09P0484..

Assim, e em conclusão, os factos cometidos pelo arguido integram o crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25º do D.L. nº 15/93, de 22/1.
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III – Impugnação da pena aplicada

Por último o arguido insurge-se contra a pena que lhe foi aplicada, porque demasiado severa, chamando a atenção para o facto de a sua toxicodependência ser a causa do seu comportamento, de as anteriores condenações terem ocorrido há mais de 8 anos, de estar social e profissionalmente inserido e ter apoio familiar.

As finalidades das sanções penais são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade não podendo a pena ultrapassar, nunca, a medida da culpa - art. 40º, nº 1 e 2, do Código Penal.
À defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, reporta-se a prevenção geral positiva ou de integração, finalidade primeira da pena, no quadro da moldura penal abstracta. Depois, a sua fixação estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Partindo destas considerações gerais os art. 70º e segs. do Código Penal estabelecem as regras da escolha e medida da pena.
Dispõe o art. 71º, nº 1, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Acrescenta o nº 2:
«2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».
Percorridos estes itens a medida da pena é-nos dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, ou seja, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas Anabela Rodrigues, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, pág. 147 e segs..

Toda a jurisprudência aponta as grandes necessidades de prevenção geral a satisfazer relativamente a este tipo de crime, dada a sua grande proliferação, dado o alarme social que provoca, pela desagregação pessoal e social dos toxicodependentes e pelas consequências trágicas que tem na família e dada a criminalidade que lhe anda associada.
Repetindo, temos que se provaram 7 atos de venda no espaço de dois meses e meio e uma quantidade total de heroína transacionada de 0,817 gramas.
Para além disso, o arguido é toxicodependente.
Mas esta realidade não determina, ipso facto, um relaxamento da severidade da sanção aplicável. É que se por um lado a toxicodependência leva a uma atenuação da culpa, por outro lado também agrava os riscos de repetição criminosa.
Finalmente, quanto aos antecedentes criminais, sendo eles de monta temos que reconhecer, também, que nestes últimos anos o arguido não delinquiu. Para além disso entendemos que os antecedentes não podem, só por si, relevar em sede de fixação da pena mais do que os factos concretos a punir.

Assim, tudo visto temos por adequada a pena de dois anos e seis meses de prisão.
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Nos termos do nº 1 do art. 50º do Código Penal «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Conforme é unanimemente entendido, o pressuposto material de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, no sentido de a simples censura do facto e a ameaça da pena serem suficientes para afastar o agente da criminalidade.
Mas na formulação deste juízo não basta considerar só a personalidade do agente ou só das circunstâncias do facto. Nesta tarefa o tribunal deve atender especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto Figueiredo Dias, Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, pág. 342/343..
O factor essencial à suspensão da execução da pena é, então, a capacidade do arguido de sentir a ameaça da execução da pena e de esta bastar para, em situação semelhante, vencer a vontade de delinquir.

No caso, embora os atos concretos praticados não reclamassem, por si só, a execução da pena, o quadro geral afasta-a por impossibilidade de formulação do juízo de prognose favorável à alteração do comportamento.
O arguido sofreu dez condenações entre os anos de 1993 e 2003: as últimas cinco - nos anos de 2002, uma, e 2003, quatro -, foram em prisão efetiva, sendo que todas elas derivaram da prática, isolada ou conjunta, de crimes contra o património.
São muitas condenações e, para além disso, muitas punidas com prisão efetiva.
Para além disso, conforme se provou o arguido é toxicodependente o que, como sabemos, agrava substancialmente o perigo de repetição de comportamentos delitivos.
Finalmente, as suas condições de vida apontam, também, neste sentido.

Portanto, nem as condições de vida do arguido, nem a sua personalidade, nem a conduta anterior ou posterior ao facto permitem que se formule o necessário juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
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DISPOSITIVO

Tudo visto, e pelos fundamentos expostos, na procedência parcial do recurso decide esta relação em condenar o arguido A... na pena de 2 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, do art. 25º do D.L. nº 15/93, de 22/1.

Sem custas.


Olga Maurício (Relatora)
Luís Teixeira