Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
569/04.0TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INTERESSE EM AGIR
RECURSO DE REVISÃO
Data do Acordão: 04/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA, LEIRIA – INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 696, AL. D), DO NCPC
Sumário: No recurso de revisão de sentença com fundamento na nulidade da transacção, falta interesse em agir à recorrente que não é titular de nenhuma relação jurídica nem factual que possa ser afectada pela decisão revidenda.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

“A..., S.A.” intentou o presente recurso de revisão de sentença contra os réus B... e C..., Massa Insolvente de “D..., S.A.” e “E...s, Lda.”, todos identificados nos autos, pedindo se declarasse a nulidade da transacção e da sentença homologatória proferida na sequência daquela nos autos principais ou, se assim se não entender, se declare a mesma ineficaz relativamente às segunda e terceira rés enquanto as mesmas não a ratificarem.

*

A recorrente não é parte nos autos principais, nos quais foi proferida a aludida sentença homologatória de transacção, mas fundamenta o seu interesse processual, entre outros, nos seguintes factos:

- Em 22 de Julho de 2009, adquiriu, com todas as suas componentes e de forma integral, o crédito que a sociedade “I... , Lda.” detinha sobre H... , que foi notificado da cessão operada em 23 de Março de 2012.

- É credora de H... na quantia de € 27.627,30, tendo instaurado contra o devedor, por intermédio da cedente, em 26 de Outubro de 1998, execução sumária para pagamento dessa quantia, que corre termos por estes Tribunal e Juízo sob o n.º 680/1998.

- Aí se concretizou a penhora de metade indivisa de que o devedor é proprietário em 17 fracções autónomas do prédio urbano, da freguesia de Leiria, descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 03(...) – com as letras F, G, H, I, AS, AZ, BB, BC, BE, BG, BH, BI, BJ, BK, BL e BM e BP.

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Pronunciaram-se os recorridos B... e C... , pedindo fosse negado provimento ao recurso interposto porquanto, em resumo, a recorrente é parte ilegítima, dado que os prédios sobre que recai a penhora da “Madeileina, L.da” nunca foram propriedade do devedor da reclamante, H... e a transacção foi devidamente ratificada pelos mandantes, sem que lhe fosse apontado qualquer vício, do que decorre não ter a ora recorrente qualquer interesse, directo ou indirecto, no desfecho da acção.

            Findos os articulados, a M.ma Juiz a quo, proferiu a decisão de fl.s 403 a 407, na qual se decidiu o seguinte:

            “Julgo verificada a excepção dilatória de falta de interesse processual da recorrente.

            Absolvo os recorridos da presente instância.

            Condeno o recorrente no pagamento das custas.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a autora, “ A... , SA”, recurso, esse, admitido, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 448), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. A aqui apelante não se conforma com a Douta Decisão proferida nos presentes autos, a qual, por Despacho Saneador de 02.07.2014, julgou verificada a excepção dilatória de falta de interesse processual da recorrente e, consequentemente, absolveu os recorridos da instância.

2. Como veremos, a decisão do Tribunal “a quo” proferida pelo Mma. Juiz (cuja pessoa nunca fica em causa nas presentes Alegações, mas apenas e tão-somente a decisão) faz, no entendimento da recorrente, uma errónea interpretação das disposições legais aplicáveis o que sempre determinaria a não prolacção do Despacho nos termos em que o mesmo se operou.

3. A questão a que importa dar resposta e que fundamenta o presente Recurso, reportando-se os autos a Recurso de Revisão, prende-se com o facto de saber se, mesmo que se entenda que a aqui recorrente não possui interesse processual para prosseguimento dos autos, se os mesmos, por a nulidade suscitada e invocada se tratar de vício de conhecimento oficioso, não deverão os autos prosseguir para prolacção de decisão.

4. A factualidade fixada na Douta Decisão em crise peca por defeito, devendo ser ainda fixado, como provado, o constante em 6. a 28.º das alegações.

5. Conceptualmente, o interesse em agir relaciona-se com a “necessidade de usar o processo”, de instaurar ou de fazer prosseguir a acção, ou, de forma mais expressiva, da necessidade de tutela judiciária. Existe esse interesse processual, se para afirmação do direito a que alguém se arroga, seja necessária a intervenção dos tribunais.

6. Entende-se que tal necessidade não tem de ser absoluta, mas carece de ser sempre justificada, ter fundamento, ser razoável, afirmativa e com carência tal que exija a tutela judiciária.

7. O interesse em agir é um interesse processual, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário e tem por objecto a providência solicitada ao tribunal, através do qual se procura ver satisfeito aquele interesse primário, lesado pelo comportamento da contraparte, ou, mais genericamente, pela situação de facto objectivamente existente.

8. O interesse em agir surge, pois, da necessidade em obter do processo, a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível, integral satisfação. Temos portanto, que esse pressuposto não se destina a assegurar a eficácia à sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade: - não fora exigido o interesse e a actividade jurisdicional exercer-se-ia em vão”

9. Contrariamente ao decidido, a A/Recorrente tem interesse no presente pleito, pois que, na verdade, com o de prosseguimento dos presentes autos e, para o caso de vir a ser declarada – como se impõe – a nulidade da transacção efectuada nos autos de que os presentes se encontram apensos, não obstante o trânsito em julgado da decisão proferida nos autos que com o n.º 680-D/1998 correram seus termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria, teremos que assistirá à, nesses autos, embargada (entenda-se a aqui recorrente face à cessão de créditos operada) direito a Recurso de Revisão face à verificação – aí sim – de manifesta falta de interesse em agir dos embargantes B... e C... , pois não seriam os mesmos titulares de qualquer direito ou interesse relativamente aos imóveis em questão.

10. Sem prejuízo ainda do vertido em 26.º n.º 3 do CPC na redacção à data aplicável.

11. A transacção é um negócio jurídico (contrato) que pode ser celebrado judicial ou extrajudicialmente e, quando celebrada judicialmente, carece de intervenção do juiz que, proferindo a sentença homologatória (arts. 300º, nºs 3 e 4 do CPC na redacção à data), confere ao acto os efeitos processuais dele decorrentes, passando a coexistir duas realidades: a transacção - que, enquanto contrato, produz os efeitos negociais que lhe são próprios - e a sentença que a homologa – que produz os efeitos processuais que lhe estão associados.

12. E, como resulta do disposto no art. 301º (na redacção à data), quer a transacção, quer a sentença que a homologou, podem ser atacadas.

13. A transacção, enquanto negócio jurídico, pode ser atacada através de acção judicial, que, por via da declaração da respectiva nulidade ou anulabilidade, visa a destruição dos seus efeitos negociais; a sentença pode ser atacada por via de recurso extraordinário de revisão que visa a destruição dos seus efeitos processuais.

14. A declaração de nulidade ou a anulação da transacção, destruindo os seus efeitos negociais, têm efeito retroactivo, em conformidade com o disposto no art. 289º do Código Civil, e produzem os demais efeitos previstos nesta disposição legal, determinando, por isso, a restituição de tudo o que tiver sido prestado.

15. Certo é que a declaração de nulidade ou a anulação da transacção não são idóneas para destruir a sentença que a homologou, já que este efeito só pode ser obtido através do recurso extraordinário de revisão. Daí que, não sendo revista a sentença, esta mantém-se e produz os seus efeitos, ainda que tenha sido declarada a nulidade ou anulada a transacção em que se fundou.

16. Conforme dispõe o art. 771º do Código de Processo Civil (na redacção à data) a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão quando se verifique a nulidade ou anulabilidade da confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundasse - alínea d).

17. A decisão em causa - relativamente à qual se coloca a necessidade de ser objecto de revisão – à data da interposição do recurso, havia transitado em julgado há menos de cinco anos, pelo que, face ao disposto no citado art. 772º, nº 2 (na redacção à data), o presente recurso de revisão foi tempestivo.

18. Por outro lado, a transacção em causa e a subsequente sentença homologatória é nula, pois num primeiro momento aquela foi outorgada por mandatário judicial sem poderes e, num segundo momento, as sociedades que subscreveram a sua rectificação e ratificação não se encontravam devidamente representadas por quem detivesse poderes para a sua representação.

19. As aludidas 2.ª e 3.ª Recorridas nos presentes autos foram representadas, no requerimento apresentado a 06.06.2008, por quem já não detinha poderes para tal, os quais, reitera-se, não podiam desconhecer tal facto, podendo inclusive estar-se perante a prática de ilícito criminal igualmente a impor extracção de certidão para efeitos de instauração do competente processo.

20. Face à ausência de poderes de representação, é igualmente nula a transacção, que reitera-se, veio a ser alterada na sequência do requerimento subscrito e apresentado em 06.06.2008, face à inexistência de poderes para que as mesmas se considerem representadas.

21. Mesmo que assim se não entendesse, sempre seria ineficaz enquanto não fosse ratificada.

22. Não podendo pois a transacção e subsequente sentença homologatória ser eficaz relativamente às sociedades, sem prejuízo da suscitada nulidade, pois, relativamente a estas, não se operou qualquer ratificação.

23. O mesmo se diga no que tange à impossibilidade de retroagir os efeitos da transacção a 1988 como foi homologado por sentença, pois que o processo 569/04.0TBLRA consiste em acção declarativa para execução específica de “putativo” contrato promessa celebrado em 1988, sem eficácia real, sobre 16 fracções autónomas, bem como a execução de “Acordo Global” celebrado em 2001 que ampliou de 16 para 17 fracções a transmissão a efectuar (acrescentado a fracção BH) e acrescentou o lote 3 à transmissão a operar, prevendo uma contrapartida financeira de EUR 249.398,95 a pagar por B... e C... à E... , Lda. pelo acréscimo do lote 3.

24. Sendo que, tendo a fracção BH somente sido negociada/acrescentada em 2001 ao pretenso negócio entre F... S.A. e B... e C... , como se pode pedir que tal transmissão retroaja a 1988? Até porque, para além desse facto, a sociedade que alegadamente teve intervenção na transacção, somente foi constituída em 1989 !!!

25. Veja-se ainda que os autos 680-D/1998 foram referenciados no transacção a que supra se alude, através da qual a sociedade F... cedeu a sua posição oas recorridos singulares, os mesmos que, em Janeiro desse ano de 2008, havia sido notificados de sentença a indeferir os embargos por si apresentados (apenso B), utilizando o expediente supra para efeitos de manter posição processual que já haviam perdido.

26. Conforme é doutrina e jurisprudencialmente pacífico, a nulidade pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado.

27. Sendo que, mesmo que se entendesse não ter a aqui recorrente interesse nos autos, sempre se deveria entender que o seu interesse será indirecto, ou reflexo, pois que, com a declaração de nulidade que se impõe seja proferida, ficarão os credores da insolvente F... / D... II, protegidos, podendo ver os seus créditos, pelo menos, parcialmente satisfeitos.

28. Diga-se ainda que o Tribunal, que foi utilizado para a prática de acto nulo, a coberto de transacção nula, será igualmente interessado para efeitos de declaração oficiosa da nulidade, conhecimento esse que legalmente se impõe.

29. Como tal, mesmo que se entenda que não assiste à aqui recorrente interesse processual para agir, sem conceder, sempre assiste ao Tribunal – salvo melhor e Douta Opinião, interesse para prosseguir com os autos com vista à declaração da nulidade da transacção, a qual, veio a ser judicialmente - pelo mesmo Tribunal – indevidamente homologada atendendo aos vícios de que a mesma padecia e padece.

30. Termos em que, face ao exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso de Apelação e, consequentemente, fixando-se a matéria de facto a que supra se alude nos pontos 6 a 28 por se encontrarem, integralmente, provados documentalmente, proferida decisão que declare a nulidade da transacção e, consequentemente, da sentença homologatória que sobre a mesma incidiu.

31. Caso assim se não entenda, face aos fundamentos expostos, ser determinado o prosseguimento dos autos, para a fixação da matéria de facto documentalmente provada e, subsequentemente, para a prolacção de decisão que conforme o direito aos factos.

32. Com a decisão ora em crise, entende a Apelante que o Douto Tribunal a quo violou, entre outros, os art.ºs 26.º n.º 3, 297.º, 300.º, 301.º, 771.º e 772.º, todos do CPC na redacção aplicável à data (actualmente e respectivamente art.ºs 30.º n.º 3, 287.º, 290.º, 291.º, 696.º e 697.º) e art.ºs 289.º e 1248.º do CC.

Termos em que, atento tudo o supra exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferida decisão, com base no aditamento à matéria de facto requerido, por resultar de prova documental plena, que declare a nulidade da transacção e da subsequente homologação, ou, se assim se não entender, ser o Douto Despacho revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, para efeitos de ampliação da matéria de facto dada como provada e prolacção de decisão que aplique o direito aos factos.

Com o que se fará a tão costumada …. JUSTIÇA!

            Contra alegando, os recorridos B... e mulher, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, estribando-se nos fundamentos nesta expostos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se a recorrente tem ou não, interesse processual que lhe legitime a instauração do presente recurso de revisão.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Por força da sentença proferida nos autos principais, datada de 20/05/2008, transitada em julgado, declararam-se vendidas pela ré “ F... S.A.” aos aí autores – B... e C... - as 17 fracções autónomas referidas do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 3 (...) , designadas pelas seguintes letras: F, G, H, I, AS, AZ, BB, BC, BE, BG, BH, BI, BJ, BK, BL e BM e BP, pelo preço total de € 324.221,64 (trezentos e vinte e quatro mil duzentos e vinte e um euros e sessenta e quatro cêntimos).

2. Por sentença proferida na acção ordinária n.º 555/99 do 3º Juízo Cível deste Tribunal, transitada em julgado em 14 de Março de 2002, foi declarada a nulidade por simulação do negócio jurídico celebrado entre a ré “ F... , Limitada” e os réus G... e H... , ordenando-se o cancelamento do registo da aquisição das fracções feito com base nesse negócio a favor destes últimos – refere-se esta acção às fracções F, G, H, I do Bloco A, AS, AZ, BB, BC, BE, BG, BH, BI, BJ, BK, BL e BM do Bloco B, e BP, BX do Bloco C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 3 (...) .

3. Na execução em cujo âmbito foi concretizada a penhora a que se reporta a recorrente foram deduzidos embargos de terceiro por “ F... , S.A.”, entretanto substituída por B... e C... contra a exequente (“ I... ”) e o executado (o referido H... ), por via do qual aquela pedia que fosse ordenado o levantamento da penhora que incide sobre as fracções autónomas referidas e o cancelamento da inscrição F5 correspondente.

4. Nos referidos autos de embargos de terceiro foi proferida sentença que julgou os mesmos procedentes, por provados, em consequência do que foi ordenado o levantamento da penhora incidente sobre as fracções autónomas em causa e o cancelamento da inscrição correspondente, nos termos peticionados, uma vez que se entendeu que a penhora realizada nos autos incidiu efectivamente sobre bens propriedade da embargante.

5. Esta sentença transitou em julgado no dia 10/02/2014.

*

- Não existem factos não provados com relevância para a decisão a proferir.

Se a recorrente tem ou não, interesse processual que lhe legitime a instauração do presente recurso de revisão.

A recorrente sustenta que sim, argumentando que com a aqui pretendida declaração de nulidade, os credores da “ F... ” ficarão protegidos, podendo ver, ainda que parcialmente, os seus créditos satisfeitos, para além de que a referida declaração de nulidade poderá ser oficiosamente decretada.

Ao invés, na decisão recorrida, considerou-se que a recorrente carece de falta de interesse processual, para a instauração/apreciação dos presentes autos, o que acarretou a absolvição dos recorridos da instância.

Nos termos do disposto no artigo 696, al. d), do NCPC:

“A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:

(…)

d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou;”.

O recurso de revisão enquadra-se nos vulgarmente designados recursos extraordinários, o qual, nos dizeres de Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in CPC, Anotado, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, a pág. 195 “visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto.”.

No ensinamento de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, anotado, vol. VI (Reimpressão), Coimbra Editora, 1981, a pág.s 335 e 336, o recurso de revisão constitui “uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.

Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio.

Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso dos inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença.”.

Ou seja, como ferramenta processual extraordinária que é, a ela apenas se pode recorrer nos apertados e fixados limites do artigo 696.º, NCPC.

E um de tais casos, como acima referido é o previsto na al. d) deste preceito, segundo o qual o mesmo se pode fundamentar na verificação/existência de nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão revidenda se fundou.

Exige-se, pois, in casu, a existência da nulidade ou anulabilidade que afecte/vicie a transacção em que se fundou a decisão aqui revidenda.

Como refere F. Amâncio Ferreira, in Manual Dos Recursos Em Processo Civil, 6.ª Edição, Almedina, 2005, a pág. 360, estamos, neste caso, perante um fundamento que se refere à situação das partes, em que os actos jurídicos em causa se encontram sujeitos à disciplina do direito substantivo, podendo ser declarados nulos ou anulados como os outros actos da mesma natureza, segundo o regime dos arts 285.º e seg.s do Código Civil, por falta ou vícios da vontade, sendo insuficiente a declaração da anulação da transacção, em acção para o efeito intentada, exigindo-se a impugnação da sentença por via do recurso de revisão, para que esta deixe de produzir efeitos.

Como resulta dos autos e assim foi transposto para a factualidade dada como assente, a autora fundamenta a sua pretensão no facto de ter adquirido o crédito que a “ I... ” detinha sobre H... , em função do que, por isso, era credora deste no montante de 27.627,30 €, na sequência do que, contra este, instaurou execução para pagamento de tal quantia, no âmbito da qual vieram a ser penhoradas várias fracções autónomas de um prédio urbano, identificado nos autos.

Acontece que, por força das decisões judiciais, já transitadas em julgado, referidas nos itens 1 a 4, dos factos provados, foram levantadas as penhoras acima referidas, tudo se passando como se as referidas fracções (penhoradas) nunca tivessem sido propriedade do referido H... , única pessoa, das ligadas aos autos, sobre quem a recorrente detinha um crédito.

Ou seja, a ora recorrente, por via, das várias decisões judiciais entretanto proferidas, deixou de ter qualquer ligação com a decisão revidenda, porque os bens antes penhorados e à custa dos quais pretendia exercer o alegado direito de crédito, deixaram de o estar no âmbito dos presentes autos, melhor dito, dos autos em que foi proferida a decisão revidenda.

Daí que se concorde com o trecho da decisão recorrida em que se a mesma se fundamenta, para absolver os recorridos da instância, por falta de interesse processual, e que se passa a reproduzir:

“Por via da presente lide, pretende a recorrente se declare a nulidade da transacção e da sentença homologatória proferida na sequência daquela nos autos principais ou, se assim se não entender, se declare a mesma ineficaz relativamente às segunda e terceira rés enquanto as mesmas não a ratificarem

O interesse processual consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.

Exige-se, por força deste pressuposto, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer seguir a acção.

Trata-se de pressuposto processual de verificação necessária em todas as acções (os presentes autos consubstanciam, estruturalmente, uma acção) e recursos, razão pela qual carece de fundamento o argumento invocado pela recorrente de que a nulidade suscitada, por ser, na sua perspectiva, do conhecimento oficioso do tribunal, não exige a verificação de tal pressuposto processual.

Como se referiu, a recorrente fundamenta o presente recurso de revisão, ademais, na circunstância de, sendo credora do referido H... , ter registada a seu favor uma penhora a favor das aludidas fracções para garantia do crédito que detém sobre o mesmo.

Na execução em cujo âmbito foi concretizada a penhora a que se reporta a recorrente foram deduzidos embargos de terceiro por “ F... , S.A.”, entretanto substituída por B... e C... contra a exequente (“ I... ”) e o executado (o referido H... ), por via do qual aquela pedia que fosse ordenado o levantamento da penhora que incide sobre as fracções autónomas referidas e o cancelamento da inscrição F5 correspondente.

Nos referidos autos de embargos de terceiro foi proferida sentença que julgou os mesmos procedentes, por provados, em consequência do que foi ordenado o levantamento da penhora incidente sobre as fracções autónomas em causa e o cancelamento da inscrição correspondente, nos termos peticionados, uma vez que se entendeu que a penhora realizada nos autos incidiu efectivamente sobre bens propriedade da embargante.

Esta sentença transitou em julgado no dia 10/02/2014.

A pretensão deduzida no âmbito dos referidos embargos de terceiro constitui, como se referiu, de forma indirecta, constitui pressuposto destes autos, porquanto, na sequência da decisão proferida, na sua procedência, os bens sobre os quais a ora recorrente dispunha de penhora registada a seu favor deixaram de constituir objecto da referida execução - ordenou-se o levantamento da penhora incidente sobre os mesmos.

Conclui-se, pois, que a recorrente carece de uma necessidade justificada, razoável, fundada, de fazer seguir a presente acção.

Nesta conformidade, decidindo que a recorrente não tem interesse processual, os recorridos deverão ser absolvidos da presente instância – cfr. artigo 278º do Código de Processo Civil.”.

            Efectivamente, deixou de se verificar o fundamento que a recorrente invoca para a revisão da sentença – ser credora de H... e este beneficiar das penhoras, cujo levantamento foi ordenado na sequência da decisão proferida em sede de embargos de terceiro, em função do que a recorrente deixou de ter qualquer interesse relevante a defender nos autos em que foi proferida a decisão revidenda.

            Aliás, as próprias partes, no desenvolvimento do iter processual dos presentes autos de recurso de revisão, mostraram o seu acordo em que assim é.

            Tal resulta, com clarividência, dos despachos de fl.s 319 e seg.s e 323 a 325, que versaram sobre a decisão de suspensão dos presentes autos até que se mostrassem decididos os autos de embargos de terceiro, que correram termos sob o n.º 680-D/1998, no, então 2.º Juízo Cível de Leiria, em que se condicionou a existência de interesse processual da aqui autora da decisão a proferir naqueles autos de embargos de terceiro, pois que procedendo, como procederam, estes, ficaria a autora sem razão para pretender que os presentes autos prosseguissem, em virtude de, neste caso, deixar de figurar como potencial beneficiária das penhoras em causa.

            Deixando o referido H... de figurar como beneficiário das referidas penhoras, a recorrente, por consequência, deixa de ter qualquer direito sobre as fracções antes penhoradas a favor daquele, assim se justificando a conclusão, a que se chegou na decisão recorrida, de que a recorrente carece de interesse em agir para que o Tribunal aprecie a pretensão que formulou.

            Como refere Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, a pág.s 251 a 255, o interesse em agir constitui um pressuposto processual autónomo e inominado que “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo … um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.”.

            Acrescentando que o interesse em agir “não se destina a assegurar eficácia à sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade: não fora exigido o interesse, e a actividade jurisdicional exercer-se-ía em vão.”.

            Ou, como escreve M. Teixeira de Sousa, is As Partes, O Objecto E A Prova Na Acção Declarativa, Lex, 1995, pág.s 97 a 99 “o interesse em agir pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela.”.

            Acrescentando que “o autor não tem interesse em demandar quando não extrair nenhuma vantagem da concessão da tutela judiciária.”.

            Devendo aferir-se da necessidade da tutela judicial objectivamente perante a situação subjectiva apresentada pelo autor, tendo este “interesse processual se, dos factos apresentados, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor aquela situação”, apresentando-se mesmo (o interesse em agir) como uma restrição ao exercício do direito à jurisdição, constitucionalmente garantido (cf. art.º 20.º, n.º 1, da CRP).

            Como vimos, resulta dos autos que a recorrente não tem qualquer “conexão” com a relação jurídico-factual retratada nos autos, em virtude de a mesma apenas ter assentado no facto de deter um crédito sobre o supra identificado H... , o qual, por sua vez, deixou de beneficiar das penhoras já mencionadas, do que resulta a inexistência de qualquer tutela judicial útil e relevante que a recorrente possa obter com o presente recurso de revisão.

            A que deve acrescentar-se o facto de que não obstante a pretensa nulidade da transacção poder ser invocada por qualquer interessado, cf. artigo 286.º do Código Civil, o certo é por interessado apenas se pode considerar o “titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio”, como o referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 261.

            No mesmo sentido, se pronuncia Rui de Alarcão, in A Confirmação Dos Negócios Anuláveis, vol. 1.º, Atlântida Editora, Coimbra, 1971 pág. 63, nota 68, que ensina que “a nulidade pode ser invocada por quemquer que tenha interesse nisso” e que “Interessado é aqui todo o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir”.

            Valendo, ali se acrescenta, a regra de que “a nulidade pode ser arguida por qualquer pessoa que tenha interesse em que se não produzam em relação a si os efeitos do respectivo negócio”, nisto se traduzindo o proclamado “carácter absoluto da nulidade” e sem que no nosso Código Civil esteja consagrada, a categoria da nulidade relativa, ao contrário do que sucede na doutrina italiana – cf. referida nota, pág. 64.

            Ora, como vimos, a recorrente não é titular de nenhuma relação jurídica, nem factual, que possa ser afectada pela decisão revidenda, o que acarreta a subsistência da decisão recorrida, por falta de interesse em agir por parte daquela, já que não figura nem como subadquirente do bem, nem pode pela decisão em causa ser afectada na sua consistência prática, por não ser credora das partes intervenientes na transacção.

            Por último, apenas de referir que, não obstante a possibilidade de declaração oficiosa da nulidade/anulabilidade possa ser decretada oficiosamente pelo tribunal, nos termos do supra citado artigo 286.º do CC, o certo é que a tal não se pode lançar mão porque, desde logo, não estão nos autos todos os potenciais interessados na mesma.

            De salientar, ainda, que se torna inútil a pretendida ampliação da matéria de facto (cf. conclusão 4.ª), dado que a mesma se prende com as alegadas vicissitudes da transacção e a recorrente carece de interesse processual para a atacar, conforme antes exposto.

            Consequentemente, tem o presente recurso de improceder.

            Nos termos expostos decide-se:

            Julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

            Custas pela apelante. 

            Coimbra, 28 de Abril de 2015.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emidio Francisco Santos

Catarina Gonçalves