Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
771/10.6T2OBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PODER-DEVER
INSUFICIÊNCIA ECONÓMICA
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: CBV OLIVEIRA DO BAIRRO J FAM MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.265, 266 Nº4, 535 CPC, LEI Nº 47/2007 DE 28/8, 20 CRP
Sumário: I – Da alteração introduzida ao disposto no artigo 535.º do CPC pelo DL n.º 329-A/95, interpretada em harmonia com o disposto nos artigos 265.º, n.º 3, e 266.º, n.º 4, do CPC, resulta que a referida previsão legal consagra agora um verdadeiro poder-dever do juiz, uma “incumbência” do tribunal, de tal modo que o seu não exercício faculta à parte requerente a possibilidade de recorrer do despacho de indeferimento.

II - Portanto, actualmente, em obediência aos princípios que se encontram vertidos nos referidos normativos, quando alguma das partes alegue dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade, ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo, requisitando o documento em falta quando o mesmo seja necessário ao esclarecimento da verdade, assim se conferindo à parte uma verdadeira efectividade do acesso à justiça tal qual se mostra constitucionalmente consagrada.

III - Enquanto não for cancelada a protecção jurídica concedida à parte economicamente carenciada, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, encontra-se processualmente demonstrada a sua insuficiência económica.

IV – Alegando a mesma que tal condição económica constitui impedimento à obtenção dos documentos cuja junção o tribunal lhe determinara que efectuasse, por impossibilidade de suportar os seus custos, incumbe ao juiz, nos termos dos artigos 265.º, n.º 3, 266.º, n.º 4, e 535.º do CPC, proceder à respectiva requisição, em face do princípio da colaboração legalmente consagrado.

Decisão Texto Integral: Recurso próprio, tempestivo e recebido no efeito devido, nada obstando ao respectivo conhecimento.

******

Considerando a simplicidade da questão a decidir, a mesma será julgada sumariamente pela Relatora nos termos dos artigos 700.º, n.º 1, alínea c), e 705.º, ambos do Código de Processo Civil[1].

*****

I – RELATÓRIO

1. M (…), cabeça-de-casal no processo de inventário para partilha de bens em que é requerente J (…), por despacho datado de 13/04/2012, com a referência 14331093, foi notificada para, “no prazo de dias, juntar aos autos documento comprovativo do saldo existente nas referidas contas do “BPA” e da “CGD”, ambas reportadas à data do divórcio”.

2. Por requerimento datado de 23/04/2012, com a referência 9971656, a ora apelante requereu ao Tribunal a quo, nos termos dos arts. 266.º, n.º 4, e 535.º, ambos do CPC, se dignasse “mandar requisitar junto das referidas instituições bancárias as certidões indispensáveis à boa decisão da causa”.

Em fundamento do seu pedido, invocou que é reformada e incapaz de suportar os custos deste processo, tendo-lhe sido com tal fundamento concedido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, sendo certo que tais declarações bancárias têm um custo elevado para a sua condição económico-financeira da apelante, havendo, por outro lado, a absoluta necessidade de instruir os autos com os referidos documentos.

3. Por despacho com a referência 15161244, datado de 20/06/2012, o Mm.º Juiz decidiu o requerimento apresentado nos seguintes termos:

«Não está em causa a emissão de certidões, mas apenas de um documento particular que a cabeça-de-casal enquanto cliente pode e deve obter pelos seus próprios meios junto dos Bancos.

Concedo novo prazo de 10 dias.»

4. Inconformada com este despacho de indeferimento da requerida requisição dos documentos, a cabeça-de-casal interpôs o presente recurso de apelação, juntando logo as respectivas alegações, nos termos que se mostram vertidos de fls. 4 a 13, formulando as seguintes conclusões:

«I. O despacho com a referência 15161244, datado de 20/06/2012, que indeferiu o requerimento da Recorrente, com a referência 9971656, datado de 23/04/2012, efetuado ao abrigo dos arts.º 535º e 266º nº 4, ambos do Código de Processo Civil, deve ser revogado, uma vez que argumento aí aduzido pelo tribunal a quo, de que “não está em causa a emissão de certidões”, não justifica o indeferimento do requerido.

II. Não é esta a questão a decidir pelo tribunal a quo, até porque o art. 535º do C.P.P. permite a requisição de “... informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos ou outros documentos...”; não se restringindo apenas à requisição de certidões.

III. O que tribunal tem que ajuizar, tal como decorre expressamente do artº. 535º. do Código de Processo Civil é, se os documentos solicitados pela parte a um terceiro, por intermédio do tribunal, são ou não relevantes e adequados à prova dos factos. E se o forem, deve ser deferido o requerido.

IV. No caso, é o próprio tribunal, ao ordenar a junção desses documentos pela recorrente, por despacho datado de 13/04/2012, com a referência 14331093, que desde logo, entende tais documentos como necessários ao esclarecimento da verdade.

V. De facto, a decisão sobre a pertinência do requerido pela Recorrente, a 23/04/2012, não está totalmente confiada ao prudente arbítrio do juiz, devendo o tribunal proceder à requisição dos documentos caso se convença de que são necessários para o esclarecimento da verdade.

VI. Trata- se de um poder-dever (e não de um poder arbitrário e discricionário) de proceder à requisição dos documentos, oficiosamente ou a requerimento das partes, desde que a mesma se afigure com interesse para a descoberta da verdade material (artº 265º, 266º nº 4 e 535º, todos do C.P.C).

VII. Tendo a recorrente, alegado justificadamente não dispor de uma situação económico-financeira que lhe permita custear o preço desses documentos, (considerados pelo tribunal como necessários à boa decisão da causa, que ordenou a sua junção), situação económica essa que, aliás, fundamentou a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo, deverá o tribunal, nos termos do art. 266º nº 4 do C.P.C. providenciar pela remoção deste obstáculo, ordenando a requisição nos termos e com os fundamentos requeridos.

VIII. Ademais, só deste modo, providenciando pela remoção do obstáculo, (a insuficiência económica da recorrida perante o custo dos documentos), lançando mão da requisição de documentos, nos termos do art. 535º do C.P.C., se respeita o princípio constitucional do livre acesso ao direito e do livre acesso aos tribunais.

IX. Conforme dispõe o art. 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa: ‘A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos’.

X. Pelo exposto, o despacho recorrido violou o disposto nos art.ºs 265.º, 266º nº 4 e 535º, todos do Código de Processo Civil, e no art.º 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, devendo ser revogado.»

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. Tudo visto, cumpre decidir.


*****


II. O objecto do recurso[2].

O presente recurso de apelação integra duas questões essenciais, a apreciar segundo a sua ordem lógica, e versa matéria estritamente de direito:

A primeira, consiste em saber se os documentos cuja requisição foi solicitada pela cabeça-de-casal que o tribunal efectuasse, são indispensáveis à boa decisão da causa.

A segunda, em apreciar se, beneficiando a parte a quem foi solicitada a junção dos documentos, de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, deve o tribunal proceder a tal requisição quando a mesma invoque que não os pode obter em face da sua situação económica.


*****

II – Fundamentos

II.1 – Os factos com interesse para a decisão são os que constam do relatório supra.


*****

II.2. – O mérito do recurso

A Apelante sustenta a sua pretensão de revogação do despacho recorrido, em dois fundamentos essenciais: a necessidade da junção aos autos dos documentos cuja requisição solicitou; a impossibilidade de os juntar por si própria, em face da sua situação económica que motivou lhe tivesse sido concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Comecemos, pois, por apreciar a primeira questão, subdividindo-a quanto à apreciação das condições para requisição de documentos pelo Tribunal e à necessidade do documento solicitado.


*****

II.2.1.– A requisição de documentos pelo Tribunal

A propósito da requisição judicial de documentos, rege o artigo 535.º do CPC, nos seguintes termos:

«1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.

2 - A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.»

Vale a pena trazer aqui à colação a redacção da norma anterior à reforma introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e que era a seguinte:

«1. O tribunal pode, por sua iniciativa ou mediante sugestão de qualquer das partes, requisitar…».

Esta redacção da norma, inculca claramente que no seu âmbito se estava perante um poder discricionário do juiz, que podia ou não aceitar a sugestão da parte, sem que da sua decisão coubesse sequer recurso.

Daí que na respectiva vigência, até por força do disposto no artigo 523.º, n.º 1, de acordo com o qual os documentos destinados a fazer prova da acção ou da defesa deviam ser apresentados com o articulado em que se alegassem os factos correspondentes, incumbindo, portanto, às partes carrear aos autos os elementos de prova que reputassem necessários, este tipo de requerimento era, em regra, indeferido, quando o interessado na sua obtenção não provava ter já diligenciado, sem êxito, pela mesma.

Ora, a alteração de redacção do preceito não é inócua ou meramente formal, e não contende com o princípio do dispositivo vertido no referido artigo 523.º, n.º 1, do CPC, que se mantém.

Na verdade, a alteração foi introduzida no âmbito duma reforma processual em que claramente se reforçaram os poderes inquisitórios, consagrando-se no artigo 265.º, n.º 3, do CPC, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”; e se elevou o princípio da cooperação, ao estatuir no artigo 266.º, n.º 4, que “sempre que alguma das partes alegue dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade, ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”, tanto mais que o artigo 519.º, n.º 1, do CPC também estabelece o dever de cooperação para a descoberta da verdade em matéria probatória. Assim, para que o tribunal se substitua à parte, carreando para o processo elementos probatórios, tem a mesma que alegar séria dificuldade em obtê-los por si.

Interpretada a alteração introduzida ao disposto no artigo 535.º do CPC, em harmonia com o disposto nos referidos artigos 265.º, n.º 3, e 266.º, n.º 4, do CPC, não existem dúvidas que a referida previsão legal consagra agora um verdadeiro poder-dever do juiz[3], uma “incumbência” do tribunal[4], de tal modo que o seu não exercício faculta à parte requerente a possibilidade de recorrer do despacho.

Portanto, actualmente, em obediência aos indicados princípios que se encontram vertidos nos referidos normativos, quando alguma das partes alegue dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade, ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo, requisitando o documento em falta quando o mesmo seja necessário ao esclarecimento da verdade, assim se conferindo à parte uma verdadeira efectividade do acesso à justiça tal qual se mostra constitucionalmente consagrada.


*****

II.2.2.– A necessidade da junção dos solicitados documentos

Como acabámos de ver, a requisição de documentos só pode ter lugar quando os mesmos sejam necessários ao esclarecimento da verdade material, isto evidentemente porquanto não é lícito realizar no processo actos inúteis, por força do disposto no artigo 137.º do CPC.

No caso dos autos, a ora Apelante é cabeça-de-casal em processo de inventário para partilha de bens, na sequência de divórcio[5], incumbindo-lhe por força do disposto no artigo 2079.º do Código Civil[6] a administração dos bens, até à sua liquidação e partilha.

Assim, “desde o início do inventário até à sua ultimação, é o cabeça-de-casal quem vai fornecendo os elementos necessários para que ele prossiga sem obstáculos e é de sua fonte que se recolhem os informes por onde há-de regular-se a partilha, finalidade objectiva do inventário iniciado” [7].

Trata-se de qualidade que constitui um direito da pessoa a quem legalmente incumbe o cargo (artigo 2080.º do CC), isto na medida em que a lei lhe reconhece uma posição privilegiada no decurso do inventário (v.g. artigos 2087.º a 2093.º do CC), sendo, porém, também um encargo obrigatório, porquanto o cargo é, regra geral, gratuito (artigo 2094.º do CC), e não é transmissível (artigo 2095.º do CC), só lhe sendo permitida a escusa nas situações muito particulares referidas no artigo 2085.º do CC.

Servem estas considerações iniciais para afirmar que tendo a cabeça-de-casal, sido notificada pelo juiz para juntar aos autos o documento comprovativo do saldo das contas bancárias reportadas à data do divórcio, e destinando-se o inventário à partilha dos bens do extinto casal, é evidente a necessidade de tais documentos para aquilatar do activo ou passivo existente nas mesmas à data do divórcio, situação que o Mm.º Juiz a quo considerou, uma vez que a notificou para efectuar a respectiva junção, seguramente por entender que a mesma era necessária para o apuramento da verdade e justa composição do litígio (artigo 265.º, n.º 3, do CPC).

Acresce ainda que, se o notificado para tal efeito não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no artigo 529.º do CPC, o que significa que o mesmo, em face do preceituado no artigo 519.º, n.º 2, é condenado em multa, apreciando o tribunal livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, isto sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do estatuído pelo artigo 344.º, n.º 2, do CC. Portanto, não estamos perante uma faculdade da parte, mas de um verdadeiro dever processual cujo incumprimento acarreta consequências processuais que para si são gravosas.


*****

II.2.3.– A invocação da insuficiência económica

Delimitadas as condições em que o tribunal deve proceder à requisição de documentos - alegação de dificuldade séria na sua obtenção e necessidade dos mesmos para o apuramento da verdade -, importa agora apreciar se, beneficiando a parte a quem foi determinada pelo tribunal a junção dos documentos, de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, deve o tribunal proceder a tal requisição quando a mesma invoque que não os pode obter em face da sua situação económica.

O mesmo é dizer: configura a alegação da insuficiência económica, a dificuldade séria de obtenção a que alude o artigo 266.º, n.º 4, do CPC?

Para responder a esta questão importa desde logo ter presente que «a efectividade da garantia do acesso à via judiciária implica, desde logo, a eliminação dos obstáculos de natureza económica, prosseguida pela legislação que regula o apoio judiciário»[8].

A Lei do Apoio Judiciário (Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto), em concretização do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa[9], começa logo por afirmar no seu artigo 1.º, n.º 1, sob a epígrafe finalidades que “o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício, ou a defesa dos seus direitos”.

Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 2, dispõe que o acesso ao direito compreende a informação jurídica e a protecção jurídica, que reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário – artigo 6.º, n.º 1 – e à qual têm direito os cidadãos que nos termos do artigo 7.º, n.º 1, demonstrem estar em situação de insuficiência económica.

Diz-nos o artigo 8.º, n.º 1, da Lei, que:

«Encontra-se em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta o rendimento, o património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo».

“Trata-se de uma delimitação do conceito de insuficiência económica previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, que não tem correspondência com o de pobreza, entendida como fenómeno resultante da escassez de recursos para fazer face às necessidades básicas e ao padrão de vida da sociedade atual.

A inserção do conceito de insuficiência económica em causa, envolvido de alguma objectividade, dando relevância à ponderação do património, do rendimento e da despesa permanente, visa (…) obviar à heterogeneidade de critérios na apreciação dos pedidos de protecção jurídica (…)”[10], agora plasmados no artigo 8.º-A que rege quanto à apreciação da insuficiência económica, a provar nos termos estabelecidos no artigo 8.º-B. Considerada a existência de insuficiência económica do requerente do benefício do apoio judiciário, as modalidades de concessão do mesmo, encontram-se previstas no artigo 16.º, encabeçadas no seu n.º 1, alínea a), pela «dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo», tendo sido esta a concessão efectuada à ora Apelante.

Tal significa que, enquanto não lhe for cancelada a protecção jurídica concedida, nos termos do artigo 10.º, a Apelante, goza do referido benefício para todas as fases do processo e até ao seu trânsito em julgado, estando consequentemente processualmente demonstrada a sua insuficiência económica.

Ora, apesar de o despacho recorrido não ter citado qualquer norma legal para o indeferimento do requerido pela cabeça-de-casal, considerando que aduziu que não estavam em causa certidões mas um documento particular que a mesma, enquanto cliente, pode e deve obter pelos seus próprios meios junto dos bancos, tudo indica que para fundamentar o mesmo considerou que a requerente que beneficia de apoio judiciário, apenas tem direito à gratuitidade dos documentos quando se trate de certidões para instrução do processo[11].

Colocou, portanto, a questão do mero ponto de vista das custas processuais.

Para tal efeito importa ter presente o que estabelece a respeito de custas processuais o artigo 447.º do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que estatui:

«1 - As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte.

2 - A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.

3 - São encargos do processo todas as despesas resultantes da condução do mesmo, requeridas pelas partes ou ordenadas pelo juiz da causa.

4 - As custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais».

Por seu turno, o artigo 447.º-C do CPC, rege sobre a responsabilidade pelo pagamento dos encargos, sendo a regra a de que os encargos são da responsabilidade da parte que requereu a diligência ou, quando a tenha sido realizada oficiosamente, da parte que aproveita da mesma.

Este preceito é complementado pelo artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26 de Setembro[12], de cujo n.º 1, e para o que ora interessa, decorre que “as custas compreendem os seguintes encargos:

d) os pagamentos devidos ou pagos a quaisquer entidades pela produção ou entrega de documentos, prestação de serviços ou actos análogos, requisitados pelo juiz a requerimento ou oficiosamente, salvo quando se trate de certidões extraídas oficiosamente pelo tribunal;

f) os pagamentos devidos a quaisquer entidades pela passagem de certidões exigidas pela lei processual, quando a parte responsável beneficie de apoio judiciário.

“Os encargos são, grosso modo, as despesas que os processos em geral comportam diversas da taxa de justiça, sobretudo no âmbito da produção da prova dos factos em que o litígio se consubstancia” [13].

Portanto, são encargos, tanto os pagamentos devidos ou pagos a quaisquer entidades pela produção ou entrega de documentos, requisitados pelo juiz a requerimento ou oficiosamente, como os pagamentos devidos a quaisquer entidades pela passagem de certidões exigidas pela lei processual, quando a parte responsável beneficie de apoio judiciário.

Diz-nos Salvador da Costa[14], que a referida alínea f) constitui um “normativo inovador, por virtude da condição constante da sua última parte relativa ao apoio judiciário, e reporta-se ao custo de certidões, exigidas pela lei processual, emitidas por quaisquer entidades.

A lei distingue, assim, entre as situações em que a parte responsável pelo pagamento do custo das certidões beneficie ou não do apoio judiciário, naturalmente na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e de encargos.

Em regra, o apoio judiciário não abrange os encargos relativos ao custo de certidões emitidas por terceiros com vista a integrarem o processo para o qual o mesmo foi concedido.

Não obstante, decorre do artigo em análise, que, no caso de a entidade responsável pelo respectivo pagamento não beneficiar do apoio judiciário na modalidade de assistência judiciária, o seu pagamento, a seu cargo, não integra o conceito de encargos ou de custas.

No caso inverso, ou seja, quando a parte responsável pelo pagamento das mencionadas certidões beneficie do apoio judiciário, o custo das referidas certidões integra o conceito de encargos, e, consequentemente, o conceito de custas” [15].

Porém, no caso dos autos, como sabemos, não estão em causa certidões. Trata-se apenas da junção aos autos de documento comprovativo do saldo existente nas contas bancárias em causa nos autos.

E a questão colocada pela ora Apelante ao tribunal, salvo o devido respeito, encontra solução legal em momento anterior àquele em que a mesma foi colocada pelo Mm.º Juiz a quo, isto é, deve ser resolvida por via do disposto na interpretação conjugada dos artigos 265.º, n.º 3, 264.º, n.º 4, e 535.º, todos do CPC.

Efectivamente, este entendimento foi lapidarmente afirmado pelo Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:

«É certo, e o Tribunal Constitucional tem-no repetidamente afirmado, que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. (…)

Ora, definido nestes termos o conteúdo essencial do direito fundamental de acesso aos tribunais, é manifesto que nele vai implicado o direito da parte economicamente carenciada a não ver negada ou substancialmente restringida a possibilidade de acesso a elementos essenciais de prova com exclusivo fundamento em dificuldades económicas já devidamente atestadas no processo. Porém - como, bem, demonstra o Ministério Público na sua alegação - a interpretação normativa do artigo 53.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, que agora vem questionada, não coloca uma barreira inultrapassável ao acesso àqueles documentos, considerados essenciais – inclusivamente pelo próprio Tribunal, que os solicitou à parte - para a prova do direito em que se funda a pretensão do autor, fornecendo o próprio sistema processual civil, para utilizarmos as palavras do representante do Ministério Público, o «remédio processual adequado para suprir as dificuldades no exercício do ‘direito à prova’ pelo litigante economicamente carenciado».

Com efeito, não podendo a parte economicamente carenciada aceder directa e gratuitamente àqueles documentos pela simples invocação, junto das entidades administrativas competentes, do benefício do apoio judiciário, a mesma não fica, só por isso, irremediavelmente impossibilitada de conseguir a sua junção aos autos, podendo consegui-lo através da intervenção do Tribunal. É que, por um lado, o artigo 266.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz deve, sempre que a parte alegue justificadamente «dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual», providenciar pela remoção do obstáculo, o que, no caso, pode ser feito mediante a requisição pelo próprio tribunal da certidão ao organismo competente para a sua emissão (cf. artigo 535.º do Código de Processo Civil), constituindo os respectivos custos encargos do processo (cf. artigo 32.º, n.º 1, alínea b), do Código das Custas Judiciais), claramente abrangidos pelo benefício do apoio judiciário (cf. artigo 15.º, alínea a), da Lei n.º 30-E/2000).

Ora, prevendo o Código de Processo Civil as alternativas processuais adequadas a suprir a dificuldade de acesso aos meios de prova pela parte economicamente carenciada, gerada por uma interpretação do artigo 53.º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, não procede o juízo de inconstitucionalidade que vem imputado a essa interpretação normativa, por dela não resultar uma quebra da garantia de protecção jurisdicional igual e eficaz, implicada nos artigos 13.º e 20.º da Constituição.

Acresce que esta solução - não permitir o acesso directo, irrestrito e gratuito a certidões mediante a simples invocação do benefício do apoio judiciário, mas apenas mediante a intervenção mediadora do Tribunal, que as solicitará ao abrigo das normas supra-referidas quando as repute necessárias ao esclarecimento da verdade - poderá encontrar ainda justificação numa certa razão de cautela, precavendo contra os riscos de um exercício abusivo daquele direito.»[16].

Desta sorte, aplicando estas judiciosas considerações ao caso dos autos, devemos concluir que, demonstrada nos autos a insuficiência económica da requerente em face do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e tendo a mesmo sido notificada pelo tribunal para juntar aos autos documentos que, por serem provenientes de instituições bancárias, têm um custo para a sua emissão, situação que constitui facto notório e que foi invocado pela requerente para solicitar ao tribunal a respectiva requisição, tal configura a dificuldade séria para a obtenção dos documentos que, como tal, deve ser atendida pelo tribunal, a quem incumbe remover tal obstáculo à boa instrução da causa, nos termos em que a havia determinado, por força do princípio da cooperação que deve observar.

Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 265.º, n.º 3, 264.º, n.º 4, e 535.º, todos do CPC, incumbe ao tribunal suprir as dificuldades sérias da requerente economicamente carenciada para satisfazer tal necessidade probatória, impondo-se consequentemente a revogação do despacho recorrido e a substituição por outro que requisite às instituições bancárias os referidos documentos considerados essenciais, os quais constituem encargos do processo nos termos do artigo 16.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento das Custas Processuais.


*****

II.3. Síntese conclusiva:

I – Da alteração introduzida ao disposto no artigo 535.º do CPC pelo DL n.º 329-A/95, interpretada em harmonia com o disposto nos artigos 265.º, n.º 3, e 266.º, n.º 4, do CPC, resulta que a referida previsão legal consagra agora um verdadeiro poder-dever do juiz, uma “incumbência” do tribunal, de tal modo que o seu não exercício faculta à parte requerente a possibilidade de recorrer do despacho de indeferimento.

II - Portanto, actualmente, em obediência aos princípios que se encontram vertidos nos referidos normativos, quando alguma das partes alegue dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade, ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo, requisitando o documento em falta quando o mesmo seja necessário ao esclarecimento da verdade, assim se conferindo à parte uma verdadeira efectividade do acesso à justiça tal qual se mostra constitucionalmente consagrada.

 III - Enquanto não for cancelada a protecção jurídica concedida à parte economicamente carenciada, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, encontra-se processualmente demonstrada a sua insuficiência económica.

IV – Alegando a mesma que tal condição económica constitui impedimento à obtenção dos documentos cuja junção o tribunal lhe determinara que efectuasse, por impossibilidade de suportar os seus custos, incumbe ao juiz, nos termos dos artigos 265.º, n.º 3, 266.º, n.º 4, e 535.º do CPC, proceder à respectiva requisição, em face do princípio da colaboração legalmente consagrado.


*****

III - Decisão

Face ao exposto, julgo procedente o presente recurso de apelação, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que defira o requerido pela cabeça-de-casal.

Sem custas.


*****

                                                                                                                     

 Albertina Maria Gomes Pedroso ( Relatora )    

[1] Doravante abreviadamente designado CPC.
[2] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[3] Cfr. neste sentido, imediatamente após a alteração introduzida, Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 15.ª Edição actualizada, Setembro 1999; e o recente Acórdão deste TRC de 21-03-2011, processo n.º 350/10.8T4AVR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] É a expressão usada por Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª Edição, Almedina, 2004, pág. 474.
[5] Actualmente o Regime Jurídico do Processo de Inventário encontra-se previsto na Lei n.º 29/2009 de 29 de Junho, tendo como função, para o que ora importa, a partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre
os cônjuges, nos termos previstos no artigo 71.º, isto por força do artigo 1.º, n.º 4.
[6] Doravante abreviadamente designado CC, na redacção introduzida pela referida Lei.
[7] Cfr. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, Almedina, 1990, pág. 276.
[8] Cfr. Lopes do Rego, ob cit. pág. 15.
[9] Para uma história da Assistência Judiciária que em Portugal vem já desde 1899 ao actual Apoio Judiciário, cfr. Salvador da Costa, in O Apoio Judiciário, 8.ª Edição Atualizada e Ampliada, Almedida 2012, págs. 7 a 20. 
[10] Cfr. Salvador da Costa, ob cit. págs. 55 e 56.
[11] A questão tem vindo a ser discutida quanto a certidões destinadas à instrução de um recurso interposto ou a instruir outros processos – cfr. Salvador da Costa, in O Apoio Judiciário, pág. 105 e acórdãos aí citados.
[12] Que não sofreu alteração na parte que ora nos importa, pela Lei n.º Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro.
[13]Cfr. Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado, 2.ª edição, Almedina, 2009, pág. 256.
[14] In cit. Regulamento das Custas Processuais, págs. 261 e 262.
[15] Neste sentido já havia decidido o Ac. TRL de 06-02-2004, proferido no processo n.º 934/04-2 e disponível em www.dgsi.pt. 
[16] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/04, de 12 de Julho de 2004, publicado no DR II série, de 30-10-2004.