Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
591/18.0T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SUPRIMENTO
EXERCÍCIO DE DIREITOS SOCIAIS
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUIZOS DO COMÉRCIO
PEDIDO GENÉRICO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 6, 7, 60, 64, 65, 411, 417, 547, 556 CPC, 243, 245 CSC, 128 LOSJ
Sumário: 1. O contrato de suprimento é um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social.

2. São direitos sociais os que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais - o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, face à própria entidade desta a que está ligado pelo vínculo societário.

3. Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das acções relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais e, assim, nomeadamente, fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo art.º 245 do CSC, é de considerar que o juízo do comércio é materialmente competente para preparar e julgar a acção (art.º 128º, n.º 1, alínea c) da LOSJ), pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social.

4. A dedução de pedidos genéricos fora dos casos taxativamente previstos no art.º 556º do CPC, configurando uma excepção dilatória inominada, é todavia sanável.

5. Se o A. invocou as razões da dificuldade em fazer um pedido preciso e concreto, dificuldade que, em seu entender, seria ultrapassada desde que fossem juntos os documentos em poder dos Réus, junção que requereu, e/ou de determinadas entidades bancárias, sendo essas razões convincentes, justifica-se que o tribunal, em conformidade com o princípio da cooperação (art.º 7º, n.º 4 do CPC) e atenta a prioridade axiológica da decisão de mérito, providencie pela remoção do obstáculo que ao A. se deparou na respectiva obtenção.

6. Releva pois o entendimento de que a parte deve cooperar com o julgador para que não se embarace ou dificulte o andamento do processo, assim como o juiz, cooperando com as partes, deve potenciar as soluções adjectivas dirigidas à justa composição do litígio (cf., v. g., o art.º 7º, n.º 4 do CPC) - numa verdadeira gestão compartilhada, razoável e proporcional do processo -, sabendo-se que a partir do momento em que as partes levam o processo a tribunal há o interesse público na boa/justa resolução/composição do litígio, dignificando, assim, também, a justiça e a sua administração.

Decisão Texto Integral:





           

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. 1. Em 09.02.2018, N (…)  intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a presente acção declarativa comum contra N (…) (1º Réu), S (…) , Lda. (2ª Ré) e N (…), Lda. (3ª Ré), pedindo que os Réus sejam condenados: a procederem à libertação do A. dos avales prestados sob pena de pagamento ao A. da importância diária de € 350 (trezentos e cinquenta euros), até à efectiva libertação do A. dos avales prestados, nos termos do art.º 829-Aº do Código Civil (CC) [a)]; ao pagamento de uma indemnização a título de danos morais ao A. pelos embaraços e arrelias causados de valor nunca inferior a € 20 000 (vinte mil euros) [b)]; ao reembolso dos suprimentos prestados pelo A. à Ré N (…), no valor de, pelo menos, € 45 000 (quarenta e cinco mil euros) [c)] e respectivos juros de mora até efectivo e integral pagamento [d)].

            Alegou nomeadamente, e em síntese:

a) No dia 16.3.1998, A. e Réu N (…) constituíram a sociedade S (…)  Lda., sendo os únicos sócios e gerentes da empresa;

b) Em 25.6.2004, A. e Réu constituíram a sociedade N (…) , Lda., com objecto diferente, e também nesta eram únicos sócios e gerentes da empresa, com uma igual participação social;

c) Na prossecução do objecto das sociedades supra referidas, as mesmas tiveram que se socorrer de financiamento junto da banca, que exigiu garantias, nomeadamente foi exigido que os sócios prestassem avales pessoais para a concessão de crédito;

d) E não restou outra alternativa ao A. que não fosse a prestação do seu aval pessoal, enquanto sócio da “S (…) e da N (…)  para que fosse concedido financiamento às empresas, avales que ainda hoje se mantêm e cuja responsabilidade pelo pagamento está a ser exigida ao aqui A., conforme consta da Central de Responsabilidades de Crédito emitida pelo Banco de Portugal em nome do A., que se junta sob “documento n.º 5”;

            e) Ulteriormente, decidiram os sócios (A. e Réu) que o A. cederia a participação social de que era detentor nas sociedades supra identificadas à sua ex-companheira M (…) (na data ainda companheira) por forma a evitar litígios mais graves entre os sócios;

f) Assim, em 12.3.2012, através de deliberações das assembleias gerais das sociedades S (…) e N (…)  o A. cedeu as quotas de que era titular nas sociedades (€ 49 000 e € 15 000, respectivamente) a M (…), nomeada gerente de ambas as sociedades em substituição do, à data, seu companheiro e aqui A., tudo conforme o acordado entre A. e Réu e para que as relações interpessoais entre ambos não prejudicassem a actividade das empresas;

g) O A. permaneceu nas sociedades N (…) e S (…), como funcionário, mas as relações interpessoais entre o Réu e a ex-companheira do A. enquanto sócios das sociedades identificadas não permitiram ultrapassar todos os diferendos e divergências existentes entre o Réu, A. e ex-companheira M (…);

            h) Dados os sucessivos problemas e entraves que vinham sendo causados pelo sócio N (…) ao longo dos tempos, A. e Réu acordaram, mais uma vez, que a sócia M (…), na data companheira do A., cederia as suas participações sociais nas sociedades S (…) e N (…)” ao Réu e sua companheira M (…), o que se concretizou a 27.3.2015;

            i) Relativamente à sociedade “S (…)”: a ex-companheira do A. dividiu a quota de que era titular no valor nominal de € 49 0000 em duas quotas, do que resultou uma quota no valor de € 26 000 que cedeu a M (…) e outra no valor nominal de € 23 000 que cedeu ao aqui Réu;

            j) Relativamente à sociedade “N (…)”: a ex-companheira do A. dividiu a quota de que era titular no valor nominal de € 15 000 em duas quotas, do que resultou uma quota no valor nominal de € 7 800 que cedeu a M (…) e outra quota no valor nominal de € 7 200 que cedeu ao Réu;

k) Na mesma data, o Réu emitiu declaração, cuja assinatura foi reconhecida presencialmente no Cartório Notarial, na qual declarou que se comprometia a retirar todos os avales prestados pelo A. às sociedades N (…) e S (…), no prazo máximo de 6 meses[1], e que assumia todo e qualquer pagamento de tais avales dados pelo A. nestas sociedades, tudo conforme declaração que se junta sob “documento n.º 11”;

l) De referir que o acordo celebrado entre A., Réu e ex-companheira do A. para a cessão de quotas tinha como condição que o Réu procedesse ao cancelamento dos avales prestados pelo A. e assumisse o pagamento dos mesmos em caso de incumprimento por parte das sociedades, porque A. e Réu pretendiam que não subsistisse qualquer ligação/relação do A. com as sociedades e, consequentemente, com os seus sócios;

m) As sociedades incumpriram com os pagamentos dos créditos e financiamentos inerentes aos avales prestados e o Réu nunca assumiu o pagamento das quantias em dívida junto das entidades bancárias em causa que estavam garantidas pelos avales do A., que face à sua incapacidade para liquidação dos mesmos viu o seu nome inserido na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco Portugal, com as graves consequências daí decorrentes para a sua actividade negocial e profissional e a nível pessoal, por não conseguir obter financiamento bancário, colocando em causa a própria subsistência do A. e dos seus dependentes;

n) Perante tudo isto, o A. sofreu de uma depressão profunda, não conseguindo dormir e vendo-se agora confrontado com uma imensa angústia, vergonha e humilhação por esta situação;

            o) Devendo os Réus ser condenados como se indica sob as “alíneas a) e b)” do pedido;

            p) Acresce que o A., enquanto sócio da Ré “N(…)”, prestou suprimentos à sociedade no valor de, pelo menos, € 45 000, que lhe deverão ser agora reembolsados;

            q) Sendo convicção do A. a prestação de mais suprimentos para além daqueles que constam nos relatórios de contas juntos, pelo que se requer que seja a Ré “N(…)” notificada para juntar aos autos todos os documentos contabilísticos de suporte à actividade da empresa durante os anos em que o A. foi sócio, de acordo com as regras estabelecidas no art.º 429º do Código de Processo Civil (CPC), assim como que seja efectuada perícia à contabilidade das sociedades Rés, por forma a conseguir-se verificar todos os movimentos de empréstimos dos sócios (concretamente do A.) às sociedades através de suprimentos, nos termos do estabelecido nos art.ºs 467º e seguintes do CPC.

            2. Os Réus contestaram - impugnaram a maior parte dos factos alegados na petição inicial (p. i.) e afirmaram, nomeadamente: à data da instauração da presente acção o A. não era garante de qualquer valor junto de qualquer entidade bancária para com um qualquer produto bancário da sociedade S(…), decorrendo do “documento n.º 5” junto com a p. i. que o A. é garante de dois produtos bancários (em 31.7.2017) - Crédito habitação junto do Banco (…), S. A. (€ 111 477) e Créditos de conta corrente junto da C (…) (CGD) (€ 294 787) -, este, único produto bancário em que é avalista ou fiador e que poderá ser considerado nos Autos, referente a um crédito em conta corrente perante a 3ª Ré, a sociedade N (…), e não outra; a 2ª Ré (Socilux) já requereu junto das entidades bancárias documentação atinente de que o A. não figura como avalista ou fiador num qualquer produto bancário nas contas; o 1º Réu diligenciou logo de imediato junto das entidades bancárias para remover os avais pessoais do A. e tentou resolver o assunto no prazo de 6 meses; o único produto bancário que não consegui ainda resolver, mas que tentou via email e via ctt chegar a entendimento (a fim de apurar o valor concreto em dívida, ou seja, capital, juros de mora e penalizações) com quem decidia junto da CGD, tem a ver com a 3ª Ré (N (…)), o qual à data da escritura (27.3.2015) já se encontrava em incumprimento junto da CGD - que pretende receber valores a que não tem direito e que irão ser objecto de embargos em eventual processo executivo que venha a ser intentado -, o que era do conhecimento do A., tudo conforme documentação que se protesta juntar; aquando da outorga da escritura pública de cessão de quotas, ficou estipulado relativamente a qualquer valor de suprimento de qualquer sócio ou ex-sócio (o A.) da 3ª Ré ( N (…)), que não haveria lugar a qualquer pagamento, pois todas as contas ficaram acertadas nesse dia entre os outorgantes e com as sociedades, declarando o A. e a sua companheira que nada mais reclamariam, pretensão que sempre se encontraria prescrita.

            Concluiu pela improcedência da acção e pediu a condenação do A. como litigante de má fé.

            3. Respondendo, o A. referiu, nomeadamente, que em momento algum junta o Réu qualquer documento comprovativo de que os avales prestados por aquele a favor das Rés N (…) e S (…) foram, de facto, retirados, sendo que o Réu, por si e enquanto legal representante das Rés, continua obrigado ou a retirar os avales prestados pelo A. ou a assumir o pagamento dos mesmos.

            4. Na sequência da decisão de 07.5.2018, os autos foram remetidos ao Juízo Central Cível de Leiria.

            5. Depois dos Réus terem junto aos autos as declarações de fls. 140 (datada de 16.4.2018) e 140 verso (datada de 06.4.2018), onde, na 1ª, B (…) S. A., declara que «o cliente N(…) (…/A.) não tem, na presente data, qualquer intervenção enquanto avalista associado à responsabilidade creditícia da empresa S (…) (…) para com esta instituição», e bem assim que tal declaração «reporta-se à presente data e não envolve para a B (…), S. A.-Sucursal em Portugal qualquer compromisso ou responsabilidade», e, na 2ª, “a pedido da empresa S (…), Lda.”, Banco (…) S. A., declara que o A. «não possui, neste Banco, quaisquer responsabilidades na qualidade de avalista e ou fiador, nem tem constituídas, a 09/02/2018, junto deste Banco, quaisquer outras garantias (…) a favor do Banco em garantia de responsabilidades assumidas pela n/cliente S (…), Lda (…)» - documentos impugnados o pelo A., em 14.5.2018, manifestando os Réus posição contrária -, a Mm.ª Juíza a quo proferiu o seguinte despacho (de 04.6.2018): 

«Efectuada a análise dos presentes autos, começa-se por constatar ser pedido pelo autor, a par do mais, o reembolso dos suprimentos que alegou ter prestado a uma das sociedades rés.

Estando em causa, nessa parte e ao que se entende, o exercício de direitos sociais, face ao estabelecido nos artigos 65º do CPC e 128º, n.º 1, alínea c), da LOSJ, julga-se ser pertinente ponderar a questão da competência material deste tribunal para preparar e julgar a causa, na parte atinente àquele pedido.

Assim sendo e para efeito do estabelecido no art.º 3º, n.º 3, do CPC, suscita-se a referida questão da competência deste tribunal no que concerne ao conhecimento do aludido pedido, concedendo às partes o prazo de 10 dias para, querendo, sobre ela se pronunciarem.

Mais se constata, no seguimento da análise desta causa, que o pedido a) formulado pelo autor é absolutamente genérico, sem que se esteja perante situação enquadrável no estabelecido no art.º 556º do CPC.

Entende-se que incumbe ao autor, para concretização desse seu pedido, elencar quais os avales a que se pretende aí referir, mais lhe competindo discriminar os avales a que, ao longo da sua petição inicial se foi referindo.

Face ao exposto e nos termos do estatuído no art.ºs 590º, n.º 2, alíneas a) e

b) e n.ºs 3 a 6, do CPC, convidam-se os autores a virem, em complemento da sua petição inicial e com vista ao seu aperfeiçoamento, discriminar quais os concretos avales a que, ao longo desse seu articulado, se pretenderam referir e quais aqueles que visam ser objecto do seu pedido a). (…)»

            6. Em resposta a este despacho, o A., depois de reafirmar o alegado na p. i., referiu ainda, designadamente: que a problemática dos suprimentos é matéria civil, inserida no âmbito do estabelecido no art.º 64º do CPC e 117º da LOSJ; prestou avales nos bancos (…), sendo que os avales prestados nos bancos (…) foram referentes à sociedade S (…) enquanto na C(…)foi referente à sociedade N(…); em todos eles se trata do mesmo tipo de aval: livrança prestada para avalizar as contas correntes caucionadas das sociedades Rés no valor de € 250 000; deixou de ter acesso à documentação relativamente aos avales prestados à mesma através de livrança; contudo, e por forma a cumprir com o solicitado pelo tribunal, solicitou já aos bancos que lhe fosse prestada essa informação concreta, conforme “documentos 1 e 2” que se juntam [a fls. 157 e 157 verso – dirigidos aos directores dos bancos (…) o aval à sociedade Ré N (…) foi prestado com o intuito da empresa adquirir um prédio sito no concelho da Nazaré cujo valor de aquisição foi de € 400 000 e que iria ser dado de garantia à C(…) para libertação do aval do mesmo, desconhecendo o A. o fim que foi dado a esse prédio, se foi dado de garantia à CGD ou se foi vendido pela sociedade N(…); até à presente data o pedido efectuado pelo A. ainda não foi cumprido pelos bancos, pelo que não pode concretizar especificamente os avales em causa; contudo, tais documentos estão na posse das sociedades Rés, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 429º do CPC, requer-se que (…) notifique “as sociedades Rés para que esta proceda” (sic) à junção da documentação relativa aos avales prestados para que o A. possa concretizar o pedido; até à presente data os Réus não forneceram ainda qualquer documentação idónea ao A. com a confirmação de que os avales por si prestados às sociedades Rés tenham sido retirados.

            Terminou pedindo a notificação dos Réus para procederem à entrega da documentação relativa aos avales prestados pelo Autor às sociedades Rés S (…) e N (…) ao abrigo do disposto no art.º 429º do CPC.

            Os Réus, depois de notificados daquele requerimento (de 14.6.2018), vieram dizer, apenas, que impugnavam tudo quanto aí se alegou e que mantinham o por eles afirmado nos autos (que o único aval que o A. deu e que está pendente na altura da entrada da acção judicial até hoje é o da sociedade N (…), Lda., cuja entidade bancária é a C(…), nada mais, pois é o próprio documento que junta na sua p. i. do Banco de Portugal que o confirma), pelo que, para além da questão de incompetência do Tribunal suscitada e que reiteram, a peça processual continua a ser genérica no pedido e em relação aos factos alegados, sendo que o A. não cumpriu o despacho de 04.6.2018, devendo-se extrair as inerentes consequências legais, nomeadamente o processo prosseguir os seus termos.

            7. Seguidamente, o A., por requerimento de 09.7.2018, veio dizer que continua a aguardar que as entidades bancárias remetam a documentação relativa aos avales prestados para juntar os mesmos aos autos e que, relativamente ao aval prestado à sociedade Ré N(…) foi citado da execução movida pela C(…) com o fim de cobrar o montante em dívida pela falta de pagamento, conforme “documento 1” [fls. 162 verso a 185 e 189/despacho de citação na acção executiva n.º 193/18.0T8PBL], vendo-se assim prejudicado pelas condutas dos Réus que lhe poderão acarretar elevados prejuízos; teme que relativamente aos demais avales venha a suceder exactamente o mesmo que sucedeu com o aval prestado à N(…), visto que até à presente data ainda não foi junto qualquer documento nem foi o A. informado por qualquer dos Réus da libertação dos avales por si prestados às sociedades Rés.

            E apresentou ainda nos autos o requerimento de 06.8.2018, referindo, nomeadamente, que, não obstante o requerido junto das instituições bancárias, até à presente data apenas a C(…) procedeu ao envio da documentação relativa aos avales prestados, documentos que agora junta e que dizem respeito aos avales a favor da sociedade “S(…)” e da sociedade “N(…)” [fls. 191 verso e seguintes], sendo que não se pronunciou a C(…) no sentido de que os mesmos, ou algum deles, esteja já resolvido; quanto ao avale prestado à sociedade “S(…)” a C (…) contrariamente aquilo que os Réus pretenderam demonstrar, não se pronunciou pela libertação da responsabilidade do A., o que significa que o mesmo ainda não foi libertado de tal responsabilidade; quanto às demais entidades bancárias as mesmas ainda não procederam ao envio da documentação solicitada pelo Autor, pelo que logo que o mesmo disponha de tal documentação remeterá a mesma aos autos.

            Os Réus pronunciaram-se quanto a estes requerimentos e concluíram pela sua inadmissibilidade e como no seu anterior requerimento.

8. Finalmente, em 11.10.2018, a Mm.ª Juíza a quo declarou o Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção no respeitante aos “pedidos c) e d)”, por tal competência pertencer aos Juízos de Comércio, absolvendo os Réus da instância quanto a tais pedidos; e absolveu os Réus da instância quanto aos “pedidos a) e b)” formulados na p. i., com a consequente extinção da mesma instância, por considerar que quanto ao “pedido a)” ocorre excepção dilatória atípica decorrente da respectiva falta de concretização (ou seja, da dedução de pedido genérico fora das situações legalmente admitidas), sendo que esse vício afecta também o “pedido b)”, uma vez que o respectivo conhecimento sempre seria directamente decorrente do conhecimento do “pedido a)”.

               Inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª - A sentença viola o disposto nos art.ºs 7º, 429º e 547º do CPC; bem como os art.ºs 59º, 67º, 77º, 121º, 156º, 266º e 458º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e o art.º 128º, n.º 1, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

2ª - O pedido de condenação dos Apelados na libertação dos avales e no pagamento de uma indemnização por danos morais está devidamente concretizado.

3ª - O Apelante carreou a estes autos informação e documentação essencial tendo em vista a concretização de tal pedido, nomeadamente, em sede de resposta ao convite para o aperfeiçoamento indicou que prestou avales a contas correntes caucionadas no valor de € 250 000 (duzentos e cinquenta mil euros), a favor dos Bancos (…)

4ª - O Apelante informou os autos da dificuldade em juntar mais documentação e informação aos autos, pelo facto de já não ser sócio das Apeladas, tendo-lhe sido vedado qualquer acesso a documentação.

5ª - O Apelante, no seguimento dos requerimentos que apresentou junto das mencionadas instituições bancárias, obteve informação que lhe foi prestada pela C(…) na qual consta o montante do aval prestado pelo Apelante à N(…) no valor de € 300 000, bem como o aval prestado à Socilux, também no valor de € 300 000, informação e documentação que juntou por requerimento enviado em 06.8.2018.

6ª - O tribunal, ao abrigo do disposto nos princípios da cooperação e da adequação processual, plasmados nos art.ºs 7º e 547º, respectivamente, do CPC, deveria ter determinado a notificação dos Apelados para juntar a informação requerida pelo Apelante, face à dificuldade por este alegada na sua obtenção.

7ª - Efectivamente, tendo o Apelante invocado e justificado as razões da dificuldade em fazer em pedido preciso e concreto, devidamente quantificado, dificuldade que, em seu entender, seria ultrapassada desde que fossem juntos os documentos em poder da parte contrária, junção que requereu, justifica-se que o tribunal, em conformidade com o princípio da cooperação processual, providencie pela remoção do obstáculo que ao Apelante se deparou na respectiva obtenção.

8ª - No que respeita ao pedido do reembolso de suprimentos e dos respectivos juros de mora, o mesmo não traduz o exercício de qualquer direito social, porquanto o Apelante já não é sócio das Apeladas.

9ª - O conceito de “exercício de direitos sociais” abrande apenas os direitos dos sócios previstos no art.º 121º do CSC, nomeadamente, o direito a quinhoar nos lucros, participar nas deliberações dos sócios, obter informação sobre a vida da sociedade e ser designado para os órgãos de administração e fiscalização da sociedade, sempre nos termos do contrato e da Lei. Para além dos direitos de acção de anulação de deliberações sociais, de requerer inquérito judicial por falta de apresentação de contas e de deliberação sobre elas, de propor acção judicial de responsabilidade contra membros da administração, de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro e o direito à quota de liquidação.

10ª - Considerando o que o CSC considera como direitos sociais, conclui-se que a situação dos autos não se integra em tal conceito.

11ª - Os créditos que o Apelante invoca, mesmo que sejam considerados suprimentos, não são um direito emergente do contrato de sociedade. São antes créditos que resultaram de contratos de suprimentos.

12ª - Os pagamentos ou entradas de dinheiro levadas a cabo pelo Apelante não foram efectuados na sequência de uma obrigação estipulada no contrato de sociedade, antes se deveram à necessidade da sociedade adquirir um imóvel sito na Nazaré para cuja aquisição não tinha meios e/ou dinheiro.

13ª - O alcance e sentido do conceito de “exercício de direitos sociais” deve estar estritamente ligado ao exercício dos direitos que resultam para os sócios do contrato de sociedade celebrado.

14ª - Para se ter interesses societários é necessário que a qualidade de sócio se mantenha, o que no casu decidendi não se verifica.

15ª - As especificidades do contrato de suprimento - mesmo considerando a sua característica de tipo próprio e autónomo em relação ao mútuo, em que há o elemento social a considerar (a qualidade de sócio) - são exigíveis no momento da sua constituição, mas podem não perdurar em todo o seu tempo de vida.

16ª - O contrato de suprimento é na sua essência um contrato de mútuo.

17ª - As acções tendentes a ver-se reconhecido um crédito sobre determinada pessoa não se circunscrevem na competência dos tribunais de comércio.

18ª - O tribunal de comércio não é competente para estes autos, porquanto não está em causa o exercício de direitos sociais, mas sim a condenação das Apeladas no pagamento de um crédito do Apelante, pelo que deve ser revogada a sentença, com as legais consequências.

            Os Réus responderam concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir: a) qual dos tribunais - juízo central cível ou juízo de comércio - é competente, em razão da matéria, para conhecer do pedido nas “alíneas c) e d)”; b) se, relativamente ao pedido sob as “alíneas a) e b)”, podemos desde já afirmar a falta de concretização justificativa da extinção da instância.


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório.

            2. Cumpra apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (art.º 60º do CPC).

            São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 64º, do CPC).

            As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º, do CPC).

            A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC).

            Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ/aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, na redacção conferida pela Lei n.º 40-A/2016, de 22.12), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário:

- Compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000 (art.º 117º, n.º 1, a)).

- Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a esses juízos (n.º 2).

- Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras (art.º 128º, n.º 1.)

3. Preceitua o Código das Sociedades Comerciais (CSC), aprovado pelo DL n.º 262/86, de 02.9:

- Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência (art.º 243º, n.º 1). Constitui índice do carácter de permanência [designadamente] a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, quer tal estipulação seja contemporânea da constituição do crédito quer seja posterior a esta. No caso de diferimento do vencimento de um crédito, computa-se nesse prazo o tempo decorrido desde a constituição do crédito até ao negócio de diferimento (n.º 2).

- Não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 777º do Código Civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações (art.º 245º, n.º 1). Os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade. (n.º 2). Decretada a falência ou dissolvida por qualquer causa a sociedade: a) Os suprimentos só podem ser reembolsados aos seus credores depois de inteiramente satisfeitas as dívidas daquela para com terceiros; b) Não é admissível compensação de créditos da sociedade com créditos de suprimentos (n.º 3). O reembolso de suprimentos efectuado no ano anterior à sentença declaratória da falência é resolúvel nos termos dos art.ºs 1200º, 1203º e 1204º do CPC [de 1961] (n.º 5). São nulas as garantias reais prestadas pela sociedade relativas a obrigações de reembolso de suprimentos e extinguem-se as de outras obrigações, quando estas ficarem sujeitas ao regime de suprimentos (n.º 6).

4. Como vimos, o art.º 128º, n.º 1, alínea c), da LOSJ comete aos juízos de comércio a preparação e o julgamento das acções relativas ao exercício de direitos sociais.

            Numa primeira perspectiva, os direitos sociais podem ser vistos como uma das manifestações da situação ou posição jurídica (conjunto de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) dos sócios perante a sociedade; nesta linha de entendimento, o direito social traduz sempre a situação jurídica de quem participa numa sociedade, titular do direito social é o sócio e pressuposto dessa titularidade é a existência de uma sociedade, a cujo corpo ele pertence.

            Assim, os direitos sociais são direitos dos membros da corporação ou pessoa jurídica, enquanto tais; o direito do sócio não é um direito único, mas antes um feixe de direitos diversos, de vária natureza e conteúdo, sendo esse conjunto que exprime a sua posição ou participação na sociedade – a sua quota – ou, de outro modo dito, o seu estado jurídico – o estado de sócio.

            Mas, sendo os sócios os sujeitos do contrato de sociedade, os direitos sociais não se esgotam na sua titularidade, desde logo, porque, gozando as sociedades de personalidade jurídica, será difícil recusar a qualificação de sociais aos direitos de que ela, uma vez constituída, é titular e que emergem especificamente do contrato de sociedade ou da lei societária (imperativa ou meramente supletiva).

            Com efeito, no desenvolvimento das actividades da sociedade na prossecução do respectivo objecto social (ou do que, como tal, for entendido) e na implementação das inerentes operações sociais podem gerar-se situações que reclamam tutela jurídica que não respeitam necessariamente aos sócios, mas a terceiros e à própria sociedade, pois que esta, como se sabe, sendo dotada de personalidade jurídica, é um centro autónomo de congregação e imputação de interesses que justificam certo tipo de procedimentos vocacionados para os assegurar, sem que isso signifique a existência de oposição ou conflito com outrem, sócios ou terceiros.

            Têm todos estes casos em comum a circunstância de sempre respeitarem à vida da sociedade, sendo através do recurso a juízo que se viabiliza e alcança o respectivo tratamento, com a consequente harmonização dos interesses envolvidos.[2]

            5. Uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade; logo, os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[3]

6. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[4] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.

            7. A competência dos tribunais/juízos de comércio prende-se com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais.

            Na atribuição de competência especializada aos juízos de comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução, sendo necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (juízos do comércio) relativamente aos juízos cíveis com o objectivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspectos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais.[5]

            8. Relativamente à questão da determinação da competência material para conhecer dos pedidos deduzidos sob as “alíneas c) e d)” - reembolso dos suprimentos prestados pelo A. à Ré N (…), no valor de, pelo menos, € 45 000 e respectivos juros de mora -, dada a configuração que lhe foi dada [cf., nomeadamente, I. 1. p), supra], afigura-se correcta a perspectiva delineada em 1ª instância, porquanto se trata de uma pretensão dirigida ao exercício de direitos sociais, nos termos e para efeitos do art.º 128°, al. c), da LOSJ, não cabendo na competência residual atribuída aos juízos cíveis onde a acção foi instaurada.

            Não se questiona a existência de um contrato de suprimento - in casu, enquanto empréstimo ou mútuo efectuado pelo sócio em prol da sociedade, com um carácter de permanência (disponibilização financeira superior a um ano), ficando a sociedade obrigada a restituir bens do género e qualidade dos que lhe foram disponibilizados (art.º 243º, n.ºs 1 e 2 do CSC) - figura definida pelo elemento social/fim social que lhe subjaz e a justifica, conformando-a, e que se encontra regulada nos art.ºs 243º a 245º do CSC.

Estamos, na verdade, perante uma questão entre um (ex) sócio e a sociedade, em razão dos respectivos direitos consignados na lei das sociedades comerciais, porquanto o A. vem pedir o pagamento (reembolso) dos invocados suprimentos que, enquanto sócio e por ter essa qualidade, fez à sociedade Ré.

            E é entendimento largamente maioritário na jurisprudência e na doutrina que tal figura apenas ganha relevo no seio da regulamentação das sociedades comerciais, considerando-se que o contrato de suprimento é um tipo próprio, autónomo, em que concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo, mas onde também há um elemento social a considerar, pois que, na prestação do sócio que contrata por ser sócio, está presente o fim social; pois, direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais -nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.[6]

            Por conseguinte, fundando-se a acção em alegados suprimentos de um sócio à sociedade, cuja constituição está vedada a não sócios e cujo reembolso tem de respeitar as limitações impostas pelo citado art.º 245º do CSC, é de considerar que o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente acção é o juízo de comércio, pois quando um sócio acciona a sociedade invocando um contrato de suprimento está no exercício de um direito social.

Ademais, no regime do contrato de suprimento, estabelecido no art.º 245 do CSC, sobressaem, principalmente, as limitações ao direito de reembolso dos créditos de suprimentos, em primeiro lugar para salvaguardar os interesses dos restantes credores sociais e, em segundo lugar, para assegurar uma certa estabilidade no gozo dos empréstimos por parte da sociedade.[7]

Baseando-se o mencionado segmento do peticionado na acção em alegados suprimentos cuja constituição está vedada a não sócios (devendo-se atender ao momento em que o pretenso direito invocado se constituiu, não releva o facto do A., entretanto, ter deixado de ser sócio da Ré[8] - o invocado direito veio à sua esfera jurídica enquanto era sócio da sociedade devedora e por causa de o ser; o reembolso terá de respeitar as referidas limitações), é de concluir que a competência material para preparar e julgar o peticionado sob as “alíneas c) e d)” cabe ao juízo de comércio e não ao juízo central cível, pelo que nenhuma censura merece a 1ª parte da decisão recorrida, com a consequente absolvição da instância quanto a tais pedidos.

9. Relativamente à 2ª parte do recurso, importa atender nas seguintes normas da lei processual civil (CPC):

- Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art.º 6º, n.º 1, sob a epígrafe “dever de gestão processual”). O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (n.º 2).

- Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1, que consagra o “princípio da cooperação"). O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência (n.º 2). As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 417º (n.º 3). Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo (n.º 4).

- Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.º 411º/”princípio do inquisitório”).

O juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (art.º 547º/”adequação formal”).

10. Como vimos, a Mm.ª Juíza a quo, depois ter considerado que o pedido a) formulado pelo autor é absolutamente genérico, sem que se esteja perante situação enquadrável no estabelecido no art.º 556º do CPC - e que incumbia ao A., para concretização desse seu pedido, elencar quais os avales a que se pretende aí referir, mais lhe competindo discriminar os avales a que, ao longo da sua petição inicial se foi referindo -, convidou-o para, em complemento da sua petição inicial e com vista ao seu aperfeiçoamento, discriminar os concretos avales a que se quis referir e aqueles que visam ser objecto do seu “pedido a)” [cf. I., 5., in fine].

O A., na sequência do alegado e peticionado [como melhor se descreve em I. 1., alíneas d), k), l), m), n) e o), supra] e da posição dos Réus [I. 2., supra], e ante o teor das ”declarações” já emitidas [I. 5., supra], veio a tomar posição sobre a referida matéria e o convite ao aperfeiçoamento, como se indica em II. 6. e 7., supra, explicitando a razão de ser das diligências encetadas e a sua alegada insuficiência e suscitando o (complementar e eventual) concurso/colaboração dos Réus e do Tribunal para uma melhor e tendencialmente completa conformação da realidade em causa, da qual derivava a pretendida formulação de um pedido (mais) concreto.

 Porém, quando estariam ainda em curso as ditas diligências (pedidos de informação junto de entidades bancárias), a Mm.ª juíza a quo, pronunciando-se quanto aos “pedidos a) e b) e à causa de pedir que os suporta” e afirmando a competência material do Tribunal, considerou que se verificava uma “excepção dilatória atípica”, porquanto aquele “pedido a) formulado pelo autor é absolutamente genérico, sem que se esteja perante situação enquadrável no estabelecido no art.º 556º do CPC” [e o pedido da alínea b) “é directamente dependente da procedência do pedido a)”], e o A., pese embora o mencionado convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal, limitou-se a juntar aos autos nova documentação sem concretizar os factos e o pedido, sendo que não estava em causa “a produção de prova acerca dos factos objecto da acção”; considerou, ainda, não ter “qualquer cabimento legal a notificação das rés para juntarem aos autos documentos” - “meios de prova” e não “meios de alegação de factos - para concretização de factos que, por serem factos pessoais do autor, ao mesmo incumbe alegar, precisar e mesmo, em primeira linha, provar”, e que pretendia assim o A. “que sejam os próprios réus a trazerem à acção factos essenciais integradores da causa de pedir que àquele (e não a estes) incumbe alegar e, em face desses factos, eventualmente, concretizar o seu pedido”.

No mesmo segmento decisório (maxime, 2ª parte da decisão recorrida), a Mm.ª Juíza indeferiu o requerido pelo A., “por se entender absolutamente despido de fundamento legal”; concluiu que o mesmo “não deu, assim, resposta ao convite ao aperfeiçoamento que lhe foi endereçado, continuando por precisar o seu pedido a), tendo, ao invés, pretendido que sejam os réus a diligenciar para o efeito”, e bem assim que o A. “formulou um pedido genérico sem cabimento legal, à luz do art.º 556º do CPC”, o que obsta a que o Tribunal decida a pretensão em causa, por se ignorar “em absoluto, de que responsabilidades visa ser ´libertado`”, pelo que, na afirmação da dita “excepção atípica”, absolveu os Réus da instância quanto aos “pedidos a) e b)” formulados na p. i. e declarou a consequente extinção da instância [cf. I. 8., supra].

            11. Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se, desde logo, prematuro/inoportuno o assim decidido, porquanto importava dar uma melhor ou mais larga concretização, designadamente, aos princípios da colaboração/cooperação e da adequação, para que não seja eventualmente postergada a prioridade axiológica da decisão de mérito em relação às demais decisões.

            Daí que, neste domínio, releve o entendimento de que a parte deve cooperar com o julgador para que não se embarace ou dificulte o andamento do processo, assim como o juiz, cooperando com as partes, deve potenciar as soluções adjectivas dirigidas à justa composição do litígio (cf., v. g., o art.º 7º, n.º 4 do CPC) - numa verdadeira gestão compartilhada, razoável e proporcional do processo -, sabendo-se que a partir do momento em que as partes levam o processo a tribunal há o interesse público na boa/justa resolução/composição do litígio, dignificando, assim, também, a justiça e a sua administração.

Ora, se o A. não terá questionado o entendimento da Mm.ª Juíza quo quanto à existência de pedido genérico que, por conseguinte, reclamava a necessária e adequada concretização - sob pena de verificação de uma excepção dilatória atípica (nulidade), porque violadora da lei processual que regula os casos taxativos em que é admissível a dedução de pedido genérico (na previsão do art.º 556º do CPC) -, parece-nos, contudo, que não se podiam ignorar as diligências já realizadas e as que estavam em curso visando uma melhor configuração/conformação da realidade a atender na lide e, nessa decorrência, a pretendida definitiva formulação do pedido em apreço, dando-lhe a concretização possível, em princípio, em função de já indagado e do que fosse razoavelmente de indagar, sendo que o A. não terá deixado de levar aos autos tudo quanto lhe era dado conhecer e o que considerava relevante para a concretização legalmente exigível e reforçada pelo convite do tribunal.

            E para atingir tal desiderato, cremos, o Tribunal a quo não devia implementar uma visão restritiva do princípio da cooperação[9] - como fez -, devendo, sim, contribuir (providenciando pela remoção de eventuais obstáculos na obtenção dos elementos ou informações em falta) para que o A. acedesse aos elementos (que não estão em seu poder!) que lhe permitam dizer o que porventura ainda não disse e deduzir o pedido em causa com a concretização possível, pois, se bem que a regra seja, sem dúvida, a de que a junção de documentos visa fazer prova de determinados factos previamente alegados (art.ºs 410º e 423º CPC), também não é de excluir que, em determinadas situações possa suceder que a junção de documentos em poder da parte contrária seja necessária para permitir completar a alegação de factos que o autor não conseguiu concretizar suficientemente, por falta de acesso a tais documentos (cf., sobretudo, o art.º 7º do CPC).[10]

12. Daí merecer provimento a impugnação da 2ª parte da decisão recorrida, com a consequente revogação do aí decidido, pois importa averiguar se os Réus já trouxeram aos autos todos os elementos de que dispõem e/ou se as instituições bancárias já interpeladas pelo A. esclareceram a realidade que também lhes respeita, para, depois, poder o A., aperfeiçoando a p. i., alegar com mais precisão aquilo que é indispensável à dedução de um pedido concreto e determinado, que deverá formular, sanando, desta forma, a excepção dilatória inominada que fundamentou a absolvição da instância, prosseguindo depois os autos os termos subsequentes para apreciação e julgamento de tais pedidos (para os quais o juízo central cível é materialmente competente[11]; restringindo-se a absolvição da instância aos pedidos relativamente aos quais o tribunal carece de competência material[12]).

13. Procedem, desta forma, parcialmente, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida quanto à declarada incompetência do juízo central cível em razão da matéria e consequente absolvição dos Réus da instância, no tocante aos pedidos das “alíneas c) e d)”, e revogando-se a mesma na parte em que julgou verificada a excepção dilatória inominada e absolveu os Réus da instância quanto aos pedidos das “alíneas a) e b)“, bem como na parte em que indeferiu o pedido de notificação dos Réus para juntar aos autos documentos necessários à concretização dos aludidos pedidos, devendo a acção prosseguir os seus termos como se indica em II. 12., supra.

            Custas da apelação por A. e Réus, em partes iguais


*

11.4.2019


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço


[1] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[2] Sobre esta problemática, vide João Labareda, Notícia sobre os processos destinados ao exercício dos direitos sociais, in Direito e Justiça, vol. XIII, Tomo I, 1999, págs. 44 e seguintes e, em geral, entre outros, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Sociedades Comerciais (Doutrina Geral), Universidade de Coimbra, 1968, págs. 348 e seguintes.
[3] Cf., sobretudo, o acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1, publicado no “site” da dgsi.
[4] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente.
[5] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 18.12.2008-processo 08B3907, 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e 05.7.2018-processo 11411/16.0T8LSB.L1 e da RL de 26.3.2009-processo 94/07.8TYLSB.L1-6, publicados no “site” da dgsi.

[6] Acrescenta-se, e decorre do exposto, que não se encontra na lei uma definição concreta de “direitos sociais”, para efeitos de integração na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 128º da LOSJ, realidade de algum modo traduzida nas dificuldades evidenciadas pela jurisprudência - atente-se, por exemplo, no expendido no cit. acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e na crítica aí expressa a respeito do percurso argumentativo seguido, sobre estas matérias, nalguns arestos do nosso mais alto Tribunal.
[7] Cf., designadamente, sobre todo o “ponto II. 8.”, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, cit., págs. 348 e seguintes; Paulo Olavo Cunha, Breve Nota Sobre os Direitos dos Sócios, em Novas Perspectivas do Direito Comercial, pág. 232 e, do mesmo autor, Direito das Sociedades Comerciais, 6ª edição, Almedina, 2016, págs. 733 e seguintes e  903 e seguintes; Brito Correia, Direito Comercial, 2º Vol., págs. 305 e seguintes; Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. II, págs. 99 e 125 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 07.6.2011-processo 612/08.4TVPRT.P1.S1 [que acolheu o “voto de vencido” proferido no acórdão objecto da revista] e 05.7.2018-processo 11411/16.0T8LSB.L1; da RP de 20.5.2002-processo 0250621, 29.4.2003-processo 0320867 e 24.4.2008-processo 0832420 e da RL de 31.01.2002-processo 0008012, 12.3.2009-processo 10562/08-2 e 18.01.2018-processo 1757-14.7T8LSB.L1-6, publicados no “site” da dgsi.

   Perfilhando um entendimento restritivo do conceito de direitos sociais (ou exercício de direitos sociais), e em sentido minoritário, cf., nomeadamente, os acórdãos da RP de 23.6.2009-processo 3341/04.4TVPRT.P1 e 09.3.2010-processo 612/08.4TVPRT.P1 [revogado pelo cit. acórdão do STJ de 07.6.2011-processo 612/08.4TVPRT.P1.S1], publicados no “site” da dgsi.

   Com o entendimento (minoritário) de que a competência do tribunal/juízo de comércio encontra-se “definida restritivamente” e limitada ao âmbito do exercício dos direitos sociais da lei processual civil [cf., hoje, os art.ºs 1048º a 1071º do CPC de 2013], vide J. Lebre de Freitas, Do tribunal competente para a acção de responsabilização de gerente ou administrador da sociedade comercial, AA.VV., Estudos dedicados ao Prof. Carvalho Fernandes, DJ, vol. especial, II, UCE, Lisboa, 2011, págs. 312 a 315.

[8] Sobre esta concreta questão - que o A. sobreleva na sua alegação de recurso -, cf., de entre vários, os citados acórdãos do STJ de 07.6.2011-processo 612/08.4TVPRT.P1.S1 e da RL de 31.01.2002-processo 0008012, 12.3.2009-processo 10562/08-2 e 18.01.2018-processo 1757-14.7T8LSB.L1-6.

[9] Pois o princípio da cooperação processual destina-se, como refere Miguel Teixeira de Sousa (in Revisão do Processo Civil – Projecto in ROA, ano 55, págs. 354 e seguintes e Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 2ª edição, pág. 62), “a transformar o processo civil numa comunidade de trabalho e a responsabilizar as partes e o tribunal pelo seu sucesso”; na reforma do processo civil de 1995/96 esteve presente a preocupação de “coadunar a estrutura do processo civil com os princípios do Estado social de direito e de garantir uma legitimação externa às decisões do tribunal. Foram três as linhas essenciais que a reforma escolheu para prosseguir essa finalidade: a sujeição do processo a um princípio de cooperação entre as partes e o tribunal, a acentuação da inquisitoriedade do tribunal e a atenuação da preclusão na alegação de factos e finalmente a prevalência da decisão relativa ao mérito sobre a forma.”

[10] Cf. o acórdão da RL de 15.02.2012-processo 284/07.3TTLSB.L1-4 (Secção Social), publicado no “site” da dgsi, cujo objecto e a decisão (à luz da lei adjectiva laboral e dos princípios consagrados nas últimas reformas ao CPC de 1961, que integram o actual CPC/2013) têm inegável similitude com o caso vertente.
[11]Atente-se, ainda, no valor da causa fixado no despacho de 07.5.2018.

[12] Vide, a propósito, nomeadamente, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, pág. 168 e J. Lebre de Freitas, e Outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 67 e, ainda, o cit. acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1.