Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2167/09.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
DEVER DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 11/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Legislação Nacional: ARTº 668º, Nº 1, D) DO CPC; 483º C.CIV..
Sumário: a) A nulidade substancial da sentença, por falta de fundamentação, só se verifica no caso de falta absoluta, total, de motivação.

b) A consideração pela sentença de facto de que não é lícito servir-se, por não ter sido alegado, não constitui causa de nulidade daquele acto decisório, por excesso de pronúncia, antes integra erro de julgamento.

c) A constituição do lesante no dever de indemnizar exige a prova, que vincula o lesado, de que o dano é objectivamente imputável à conduta daquele.

d) No caso de concorrência necessária ou de causalidade concorrente ou conjunta de um facto do agente e de qualquer outro facto para o dano, a obrigação de indemnizar a que aquele deve ser adstrito deve limitar-se ao dano que seja objectivamente assacável ao facto do lesante.

e) A licença de uma operação urbanística exclui a ilicitude dessa operação no plano do direito urbanístico, mas não no domínio do direito civil.

f) Se a decisão da matéria de facto for deficiente, por se mostrar necessário a produção de prova sobre factos relevantes alegados pelas partes que não constam da base instrutória, a Relação deve, mesmo oficiosamente, cassar aquela decisão e reenviar o processo para a instância recorrida para que se proceda ao julgamento do facto omitido.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A… pediu ao Sr. Juiz de Direito do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, em acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, que condenasse, solidariamente, o Município de Pombal e C…, Lda.:

1) A realizar as obras necessárias, tanto na Rua da …, como no prédio pertencente à 2ª Ré, de modo a que as águas das chuvas que aí caem não invadam o prédio pertencente à Autora, tendo em conta tudo o que acima se alegou.

2) A levarem a efeito todas as obras necessárias no imóvel pertencente à Autora, de modo a que este fique em condições de ser utilizado para arrendamento, como o vinha sendo antes da inundação acima relatada.

3) A levarem a efeito todas as obras necessárias no imóvel pertencente à 2ª Ré e na Rua da …, de modo a que as águas das chuvas que aí caiam não invadam o imóvel pertencente à Autora, como sucedia antes das obras levadas a efeito pela 2ª Ré, com a autorização da 1ª Ré.

4) A levarem a efeito todas as obras necessárias na Rua da V…, de modo a que a parcela de 1 metro de largura, com 57 metros de comprimento, que ocupara, fique no mesmo estado antes da ocupação e de modo a que a Autora a possa utilizar como o fazia antes dessa ocupação.

5) A pagar à Autora todas as quantias referentes às rendas que a Autora deixou de receber, desde a data da resolução do contrato de arrendamento, em virtude da inundação do seu prédio, até à data em que o imóvel estiver em condições de poder ser arrendado, acrescido ainda das respectivas actualizações anuais e dos juros moratórios, desde a data vencimento de cada mensalidade, até ao dia em que a Autora possa utilizar o seu barracão para arrendamento urbano.

Alegou, como fundamento destas pretensões, que é dona do prédio urbano, com barracão, destinado a indústria, sito em …, situado a sul do prédio rústico da ré C…, Lda. tendo a separá-los a Rua da …, relativamente à qual o seu prédio se encontra num nível mais baixo, que na frente prédio daquela existia, há 50 anos ou mais, uma vala de drenagem que recebia a água das chuvas que dele provinham para a Rua da …, que, em Março de 2005, a mesma ré, loteou o seu prédio, tendo pedido a respectiva licença à Câmara Municipal de Pombal, tapando, com as obras de infra-estruturas, a vala de drenagem e ocupando, em todo o cumprimento, 1 metro de largura do logradouro do seu prédio, pelo que a água das chuvas que cai no prédio da mesma ré, por o sistema de águas pluviais que instalou não estar suficientemente dimensionado e em condições de as receber todas, caminham em direcção àquela Rua e depois entram no seu prédio, que na noite de 24 para 25 de Outubro de 2006, choveu, no local, durante várias horas, tendo as águas provenientes do prédio da ré C…, Lda. circulado directamente para o seu prédio, destruindo parcialmente o muro do barracão voltado para a Rua da …, que o seu prédio voltou a ser inundado várias vezes e que o seu barracão estava arrendado, por € 300,00 mensais a …, que o usava como oficina da reparação de automóveis, e que, desde a queda parcial do muro, ocorrida no dia 25 de Outubro de 2006, resolveu, nesse mesmo mês, o contrato de arrendamento, tendo deixado de receber aquela renda e os aumentos anuais.

O Município de Pombal defendeu-se por excepção dilatória, invocado a incompetência, em razão da matéria do tribunal, e, por impugnação, alegando desconhecer parte dos factos articulados pela autora e afirmando que não autorizou nem licenciou a construção do barracão, que o projecto de loteamento foi aprovado após a verificação das normas urbanísticas aplicáveis, que recepcionou provisoriamente a obra, estando as soluções adoptadas para o escoamento de águas pluviais de acordo com a regulamentação aplicável, que os prejuízos sofridos pela autora resultarem de circunstâncias excepcionais, e que o alargamento da Rua da …. não foi feito através da ocupação de parte do seu prédio, mas por cedências feitas pela co-demandada no âmbito do processo de loteamento.

A ré C…, Lda., defendeu-se também por excepção dilatória, invocando a sua ilegitimidade, por ter executado o loteamento de acordo com o projecto aprovado, sendo a responsabilidade do emitente da licença de alvará de loteamento, e, por impugnação, alegando ignorar parte dos factos articulados pela autora, afirmando que não foi a execução do loteamento que originou o escoamento das águas para a Rua da … e a invasão e a inundação do prédio daquela, que o desabamento do prédio foi consequência de condições atmosféricas anormais e excepcionais e que nenhuma parte desse prédio foi ocupado com o alargamento da Rua da …

Oferecida a réplica, o despacho saneador julgou improcedente a excepção dilatória da sua ilegitimidade ad causam, invocada pela ré C…, Lda., mas procedente a da incompetência material do tribunal, alegada pelo Município de Pombal, que, com esse fundamento, foi absolvido da instância – decisão que não foi logo objecto de impugnação, através da interposição de apelação autónoma.

Seleccionada a matéria de facto e concluída a perícia colegial procedeu-se à audiência de discussão e julgamento – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, a matéria de facto seleccionada para a base instrutória.

A sentença final, julgando a acção parcialmente procedente:

a) Declarou o direito de propriedade da A. sobre o prédio referido em 1. dos factos provados e condenou a R. a entregar-lhe a parcela que do mesmo prédio ocupou com as obras de repavimentação da Rua da … e referida em 36. dos mesmos factos provados, livre e desocupada do que ali colocou e a efectuar as obras de remoção para tal necessárias;

b) Condenou a R. a realizar as obras necessárias, no empreendimento que levou a cabo no prédio dito em 4. dos factos provados, mormente no seu limite junto à Rua da …, complementando o sistema de drenagem que ali implantou, com a colocação de uma grelha, nos termos mencionados em 28. dos ditos factos, por forma a substituir a vala de escoamento antes existente no local e impedindo que as águas das chuvas que antes por ela era conduzidas, voltem a invadir o prédio da A. supra mencionado, excepção feita ás que, já antes, levavam esse encaminhamento, por extravasarem a capacidade da dita vala;

c) No demais peticionado absolveu a R. dos pedidos contra si deduzidos.

É esta sentença que a autora impugna no recurso ordinário de apelação, no qual pede a sua revogação, na parte de que se recorre, tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC de 1961, e 635 nº 2, 2ª parte, e 3 do NCPC).

Em face do trânsito em julgado da decisão que absolveu o Município de Pombal da instância – resultante da não interposição da apelação autónoma – da instância, esta encontra-se subjectivamente reduzida, do lado passivo, à demandada, C…, Lda. (artº 677 do CPC de 1961 e 628 do NCPC).

Um largo troço da alegação da recorrente é ocupado com a transcrição dos depoimentos de três das testemunhas inquiridas na audiência final. Pareceria, por isso, que a impugnação da recorrente se dirigiria, também, contra a decisão da questão de facto. Porém, se era aquela a finalidade visada pela recorrente com aquela transcrição, a verdade é que a recorrente não cumpriu, com a pontualidade devida, o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que a lei é terminante em adstringi-la.

Realmente, a recorrente em lado da sua alegação especifica ou individualiza os pontos de facto que, no seu ver, foram erroneamente julgados (artº 685-B nº 1 a) do CPC de 1961).

Nestas condições, ainda que se devesse entender que a impugnação tem também, por objecto, a decisão da matéria de facto, sempre se imporia, face à insatisfação, pela recorrente, do mencionado ónus, a rejeição, nessa parte, do recurso (artº 685-B nº 1, in fine, do CPC de 1961). Mas isso não impede, evidentemente, o exercício por esta Relação dos poderes oficiosos de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância que a lei lhe reconhece, designadamente no caso de erro sobre o objecto da prova (artº 712º, nº 4, 1ª parte, do CPC de 1961).

Portanto, o recurso terá por objecto tanto o controlo sobre a matéria de facto, por erro sobre o objecto da prova, como o controlo sobre a matéria de direito, i.e., a correcção da sentença impugnada no tocante à escolha da norma aplicável para enquadrar o caso concreto, à integração dos factos apurados na norma aplicável e à aplicação, aquele caso, da consequência jurídica definida por essa norma. Ao objecto relativo ao error in iudicando da questão de direito, soma-se o error in procedendo, representado pela invalidade da decisão impugnada, resultante da sua nulidade substancial.

Dos vários pedidos condenatórios formulados pela recorrente, a sentença impugnada desamparou dois:

a) O de condenação da recorrida a levar a efeito todas as obras necessárias no imóvel pertencente à Autora, de modo a que este fique em condições de ser utilizado para arrendamento, como o vinha sendo antes da inundação acima relatada;

b) O de condenação da apelada a pagar à Autora, todas as quantias referentes às rendas que a Autora deixou de receber, desde a data da resolução do contrato de arrendamento, em virtude da inundação do seu prédio, até à data em que o imóvel estiver em condições de poder ser arrendado, acrescido ainda das respectivas actualizações anuais e dos juros moratórios, desde a data vencimento de cada mensalidade, até ao dia em que a Autora possa utilizar o seu barracão para arrendamento urbano.

São três, portanto, as questões concretas controversas que importa resolver: a da nulidade substancial da sentença impugnada; a da revogação desta sentença e da sua substituição por acórdão que condene a apelada naqueles dois pedidos; a do erro sobre o objecto da prova.

A resolução destas questões exige, naturalmente, a ponderação, ainda que breve, das causas de nulidade substancial da decisão, dos pressupostos do dever de indemnizar na responsabilidade delitual ou aquiliana e dos poderes da Relação de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância.

3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada.

Como é comum, a recorrente assaca à decisão recorrida, o vício grave da nulidade. Por uma multiplicidade de causas, de resto: a falta de fundamentação e, do mesmo passo, o excesso e a omissão de pronúncia.

A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artº 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 158 nº 1 do CPC de 1961 e 154 nº 1 do NCPC).

Isto é assim, dado que uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.

Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelos tribunais de recurso[1].

A motivação constitui, pois, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.

Portanto, o dever funcional de fundamentação não está orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do juízo. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[2]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[3].

A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

Numa palavra: a exigência de fundamentação decorre da necessidade de controlar a coerência interna e a correcção externa da decisão.

No entanto, quanto a este ponto, há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação – da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 158 nº 1 do CPC de 1961 e 154 nº 1 do NCPC)[4].

Tem-se, porém, entendido que o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação[5]; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[6]. Portanto, só a ausência total de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão: se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito – ainda que exasperadamente errado - está afastada a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão. Assim, pelo que respeita aos fundamentos de direito, não é forçoso que o juiz cite os textos da lei que abonam o seu julgado: basta que aponte a doutrina legal ou os princípios jurídicos em que se baseou.

Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[7].

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[8]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte, do CPC de 1961, e 615 nº 1 d), 1ª parte, do NCPC).

Nula é também a decisão quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC de 1961 e 615 nº 1 d), 2ª parte, do NCPC). Por força deste corolário do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso, por exemplo, sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado.

Depois de expor os fundamentos de facto – i.e., os factos que se mostravam adquiridos para o processo durante a tramitação da causa – e os pressupostos da responsabilidade extra-contratual, a sentença apelada observou, para julgar improcedente o primeiro daqueles pedidos, que a recorrente pretendia condenação da apelada a fazer obras no barracão para o colocar de modo a que este ficasse em condições para ser utilizado para arrendamento e não que o colocasse nas condições que o mesmo tinha antes da lesão, mas que o tribunal jamais poderia condenar a ré nos termos pretendidos, porque o barracão à data do facto não tinha, nem tem, licença de utilização ou de habitabilidade, pelo que não podia ter sido dado de arrendamento, sendo impossível, sem a licença de utilização, a realização da escritura pública, sem a qual, o contrato de arrendamento estava ferido de nulidade. E, para desamparar o pedido de pagamento das quantias relativas às rendas que deixou de auferir, a sentença impugnada adiantou, como justificação, a circunstância de o facto ilícito não ser gerador de proveitos com tutela legal, por verdadeiramente não se poder considerar como existente um direito a compensações adquiridas com violação de lei e, logo, tais danos não seriam compensáveis, dado que em última análise tal rendimento nem nunca deveria existir.

Em face deste conteúdo da decisão impugnada, é evidente que não pode dizer-se que aquele acto decisório não tenha elucidado as partes a respeito dos motivos da decisão, que não tenha tornado patentes os motivos determinantes da decisão, as razões em que apoia o seu veredicto. Nestas condições, é, de todo, desrazoável dizer-se que a sentença recorrida padece de falta de fundamentação.

Identicamente, não há a mínima razão para que se conclua que a sentença tenha deixado por resolver qualquer questão que as partes tenha submetido à sua apreciação. O problema que a sentença tinha que resolver era o de saber se a recorrente tinha o direito de exigir da demandada a realização das prestações reparatórias indicadas. E uma tal questão foi decidida por inteiro – não interessa, neste plano, se bem se mal – não tendo, por isso, a sentença deixado de pronunciar-se sobre questão que devia conhecer.

A indevida utilização de um qualquer facto na sentença surge, não raro, ligada á questão da sua nulidade da sentença por excesso de pronúncia[9]. Ao socorrer-se de um facto cujo uso lhe não é lícito, a sentença teria conhecido de questão de facto que nenhuma das partes submeteu à apreciação do juiz: a sentença teria assentado em factos meramente supostos; logo, ocupou-se de questão que as partes não suscitaram e, portanto, seria nula por pronúncia indevida (artº 668 nº 1, d), 2ª parte, do CPC de 1961, e 615 nº 1 d), 2ª parte, do NCPC).

Mas realmente parece que não se verifica a nulidade em discussão quando o juiz, na decisão, se serve de factos que não podia servir-se por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes. Isto porque uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra bem diversa, conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento: o facto material é um elemento para a solução da questão – mas não a própria questão. Uma coisa é erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer de questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento.

Segundo a recorrente, a sentença seria nula por ter apreciado uma questão de que não lhe era lícito conhecer: a da inexistência de licença utilização do prédio urbano – do barracão. E tal apreciação estar-lhe-ia vedada por o facto correspondente não ter sido por nenhuma das partes. Esta razão é exacta: realmente nem a recorrente nem a apelada, C…, Lda. alegaram um tal facto – o que explica, de resto, que não tenha sido sequer seleccionado para a base da prova.

O facto relativo à inexistência de licença de utilização do prédio da recorrente foi julgado provado em resposta ao ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 58. Este ponto de facto no qual se perguntava se devido à conduta da ré e enquanto não forem levadas a cabo obras, não é possível ceder o barracão a terceiros, obteve, realmente, na fase da audiência, esta resposta: provado apenas que em face do estado em que se encontra o barracão, que até à data não sofreu qualquer obra de reparação, não é possível ali exercer qualquer tipo de actividade em termos práticos, com o esclarecimento contudo, de que o barracão em causa não tem licença de utilização ou habitabilidade.

É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC de 1961 e 5 nº 1 do NCPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.

A esse poder de disposição quanto aos factos da causa, corresponde um limite do julgamento: o juiz não pode utilizar factos que as partes não tragam ao processo (artº 664 do CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da designação impugnada). Correspondentemente, o decisor da matéria de facto não pode pronunciar-se sobre facto que as partes não tenham alegado. Caso o faça, essa resposta deve considerar-se não escrita, portanto, inexistente (artº 646 nº 4 do CPC de 1961, vigente ao tempo do proferimento da decisão impugnada, por interpretação extensiva)[10].

Seja qual for, em definitivo, a solução exacta para o problema das respostas restritivas – i.e., que declaram provado menos de que o alegado – e explicativas – i.e., que julgam provada a causa do facto declarado assente – no tocante às respostas excessivas ou exorbitantes, a única doutrina admissível – à luz da lei adjectiva vigente ao tempo do proferimento da decisão - é a de as ter por não escritas, e, logo, por inexistentes[11]. O tribunal da audiência só pode conhecer da matéria de facto abrangida pelos pontos insertos na base instrutória, ou na sua falta, alegados nos articulados, e não pode responder ao que lhe não foi perguntado. Em boa lógica, impõe-se que não se tomem em consideração, pelo menos, as respostas exorbitantes, isto é, as respostas que excedam ou ultrapassem os factos compreendidos nos quesitos ou na alegação.

E é esse nitidamente o caso da resposta ao ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 58, no segmento relativo à inexistência da licença de utilização do prédio: a resposta é excessiva, dado que extravasa ou ultrapassa, claramente, o âmbito da pergunta.

Como quer que seja, de harmonia com a doutrina que se tem por preferível a utilização desse facto não constitui causa de nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, mas erro de julgamento. O mesmo ocorre, aliás, no tocante passo da sentença em que esta faz notar que o barracão da autora era uma construção precária, muito antiga, com paredes de bloco sobre bloco, sem reboco. Nenhum destes factos – como aliás, a sentença impugnada confessa – foi invocado nos autos: ao considera-los, a sentença incorreu também quanto a eles, num error in iudicando.

Não há, pois, fundamento sério para que se conclua que a sentença se encontre ferida com o vício da nulidade substancial que a recorrente lhe imputa.

A recorrente sustenta na sua alegação que os danos existentes no seu prédio foram provocados única e exclusivamente pelas obras levadas a cabo pela Ré. Nada de menos exacto.

3.3. Pressupostos do dever de indemnizar na imputação delitual.

A imputação delitual quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama uma conduta ilícita e culposa do infractor (artº 483 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Se o quadro dos elementos em que decompõe a responsabilidade delitual – ilicitude e culpa – é relativamente estável o mesmo não sucede, porém, com o conteúdo específico de cada um desses elementos.

A discussão gravita em torno da relação entre a ilicitude e o dolo ou a negligência e, consequentemente, à volta do conteúdo material e da função que deve ser assinalado à culpa.

Tradicionalmente, o dolo e a negligência são integrados na culpa. Nesta concepção, para que haja ilicitude, basta que o acto seja causa adequada de um resultado antijurídico; desde que da conduta decorra um resultado contrário ao direito, existe ilicitude; esta reclama apenas o desvalor do resultado, sendo-lhe indiferente as características intrínsecas da conduta.

A doutrina mais moderna, sob o signo declarado da teoria finalista da acção, desloca o dolo e a negligência da culpa para a ilicitude, subjectivizando-a. Nesta concepção subjectiva da ilicitude não é, portanto, suficiente que o resultado da conduta seja contrário ao direito; para que haja licitude, a conduta deve ser dolosa ou negligente. Ao lado do desvalor do resultado exige-se o desvalor da própria acção.

O que daqui decorre para a caracterização da culpa é meramente consequencial: incluído o dolo e a negligência na ilicitude, não é possível continuar a valorar a culpa pela relação psicológica da conduta com o seu autor: a aferição da culpa passa a depender de critérios estritamente normativos, reconduzindo-se a um juízo de censura ético-jurídica da conduta. A culpa decorre de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, de um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível.

Resta dizer que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais.

Ao contrário do direito penal, o direito civil conhece um ilícito geral de negligência (artº 483 nºs 1 e 2 do Código Civil).

O que confere especificidade e autonomia ao ilícito negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente.

Contudo, a concepção da violação do cuidado objectivamente devido como elemento individualizador do delito negligente é apenas uma proposta de solução possível: o conceito de criação ou de incremente de um perigo não permitido, importado da dogmática penal[12], é também apto a densificar o conteúdo do ilícito negligente.

De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso[13]. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido.

A diferença entre uma e outra proposta de solução é mais aparente do que real, dado que numa perspectiva prático-normativo, os dois conceitos acabam por se equivaler: a determinação do cuidado objectivamente devido corre paralelamente aos limites do risco permitido[14].

Seja como for, há sempre que proceder à concretização das normas de cuidado, à determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, i.e., dos deveres que devem ser observados pelo agente para que se possa excluir a imputação por negligência.

A imputação negligente não se basta com a inobservância do cuidado geral com que toda a pessoa se deve comportar na interacção social; a sua comprovação exige, antes, a violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, ou, dito doutro modo: na aferição do preenchimento do ilícito negligente, assume importância nuclear a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto.

Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (artº 487 nº 2 do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, assim, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio.

Todavia, uma coisa é a constatação da violação objectiva de um dever de cuidado outra bem diferente a imputação objectiva do dano à violação desse dever[15]. Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.

De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta.

É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento – cuja prova, por se tratar de facto de nítida feição constitutiva do direito à reparação alegado, compete ao lesado - a que se procura dar resposta com a causalidade (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (artº 563 do Código Civil)[16].

A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado.

A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: com este oximoro quer-se significar que o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento[17]. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar.

A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro ou da intervenção de qualquer outro evento.

A produção do dano pode, realmente, ser o resultado de uma concorrência efectiva de causas, o que sucederá sempre que o prejuízo tenha resultado de uma variedade de eventualidades, tenha sido causado por dois ou mais factos[18]: se dois ou mais eventos concorreram para a produção do dano, e essa concorrência foi essencial para a sua verificação, o caso é de concorrência necessária[19] ou de causalidade concorrente ou conjunta, conforme a terminologia que se tiver por preferível.

                Se um e outro dos factos concorrentes forem imputáveis, por exemplo, a dois sujeitos, não ofereceria dúvida o surgimento de uma obrigação de indemnizar subjectivamente complexa, a cargo dos dois agentes (artºs 490 e 497 do Código Civil). Sendo o dano assacável, em parte, ao agente e, em parte, por exemplo, a caso fortuito ou de força maior, sendo irrecusável a vinculação do agente ao dever de indemnizar, é também inegável que a obrigação de indemnização que deve ser posta a cargo desse agente, se deve limitar ao dano que seja objectivamente imputável à sua conduta.

A obrigação de indemnização tem por escopo fundamental a remoção do dano imputado e, portanto, a medida da indemnização é, por regra, simplesmente, a do dano efectivamente imputado ao lesante (artº 562 do Código Civil). Questões como o nexo de causalidade transcendem, por isso, a problemática da determinação da indemnização.

No entanto, o Código Civil actual rompeu com o princípio da não influência da culpa sobre o quantum respondeatur, permitindo ao juiz, nos casos em que a imputação delitual opere por ilícito negligente, fixar a indemnização, equitativamente, em montante inferior ao dano, desde que o justifiquem não só o grau de culpa do lesante, como também a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artº 494 do Código Civil).

E o concurso de riscos - ou, se se preferir, a contribuição causal de facto não imputável ao agente para a verificação do dano - é certamente, uma das demais circunstâncias do caso a ponderar pelo tribunal.

Todavia, a fixação da indemnização em valor inferior ao do dano justifica-se sempre que os danos sejam provocados por terceiro ou por qualquer outro facto diverso daquele que é objectivamente imputável ao lesante – e na medida em que o sejam. Verdadeiramente, não há aqui uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados, pelo que a redução prescinde da comprovação, mesmo no caso de facto imputável a um terceiro, dos pressupostos da imputação delitual, relativamente a este.

Qualquer que seja o escopo preciso que, em definitivo, se deva assinalar á responsabilidade civil[20], é inquestionável que esta visa, fundamentalmente, a reparação do dano. A responsabilidade civil depende tenazmente da existência de dano, que constitui mesmo condição essencial dessa mesma responsabilidade: a supressão deste assume-se, por isso, como o seu escopo primordial[21].

Apesar de a lei não disponibilizar verdadeiramente uma definição de dano ou prejuízo, este bem pode ser definido como a lesão ou prejuízo real, sob a forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem[22], a lesão de bens juridicamente protegidos do lesado, patrimoniais ou não, ou simplesmente uma desvantagem de uma pessoa que é juridicamente relevante, por ser tutelada pelo direito, ou – de harmonia com o conceito que se tem por preferível – como a diminuição duma vantagem tutelada pelo Direito ou de um bem, em sentido amplo, que seja protegido, a diminuição duma situação favorável que estava protegida pelo Direito[23].

É ao lesado que cumpre a prova do dano (artº 342 nº 1 do Código Civil). Caso não consiga libertar-se do encargo dessa prova, intervém a regra de julgamento representada pelas normas sobre a distribuição do ónus da prova: a questão de facto correspondente é resolvida contra o lesado (artºs 516 do CPC de 1961, e 414 do NCPC, e 346, in fine, do Código Civil).

A indemnização pode ser específica ou pecuniária. A lei civil fundamental portuguesa revela uma nítida preferência pela indemnização específica, considerada mais perfeita do ponto de vista da reparação do dano. Este deve ser reparado mediante a reconstituição, restauração ou reposição natural meio mais eficaz de obter o escopo visado com a obrigação de indemnização: a remoção do dano real (artº 566 nº 1 do Código Civil)[24].

Se, porém, a reconstituição natural não foi possível, se mostrar insuficiente para reparar a totalidade do dano ou for excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização deve ser fixada em dinheiro (artº 566 nº 1 do Código Civil)[25].

Com o escopo de facilitar a determinação da indemnização pecuniária, a lei estatui que esta se mede pela diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existisse o dano (artº 566 nº 2 do Código Civil). A finalidade conspícua é sempre a remoção do dano, resultado que se atinge se o lesado receber uma soma com a qual possa agora conseguir as mesmas vantagens e utilidades que o facto constitutivo da responsabilidade lhe fez perder. Computando-se o dano como uma diferença no património, segue-se que se trata de uma grandeza que evolui a todo o momento e, portanto, para se conseguir um resultado quanto possível perfeito, deve tomar-se por base o último momento possível[26].

Tanto no caso de indemnização específica como no caso de indemnização pecuniária é ao lesado que compete a prova, no primeiro caso, da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que vincula à reparação, e, no segundo, da hipótese diferencial (artº 342 nº 1 do Código Civil).

3.4. Erro sobre o objecto da prova.

A Relação pode usar, oficiosamente, poderes de rescisão ou cassatórios do julgamento da matéria de facto e anular a decisão correspondente da 1ª instância.

É-lhe lícito fazê-lo sempre que repute deficiente a decisão da matéria de facto e considere indispensável a ampliação dessa matéria, por entender que deve ser produzida prova sobre factos alegados pelas partes que não constam da base instrutória (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC de 1961).

Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução do problema material colocado no recurso.

3.4. Concretização.

                Em face da matéria de facto julgada provada, tem-se por certo o carácter ilícito do facto da recorrida, dando que a sua conduta preenche uma das modalidades de ilicitude previstas na lei: a violação de um direito de outrem – o direito real de propriedade da recorrente sobre o prédio urbano (artº 483 nº 1 do Código Civil).

Não depõe em sentido contrário, a circunstância de a operação urbanística - loteamento - através do qual procedeu à transformação do seu prédio ter sido licenciada pela Câmara Municipal de Pombal.

Consabidamente qualquer operação urbanística exige um título habilitativo – a licença administrativa que constitui o acto de controlo prévio mais exigente e rigoroso das operações urbanísticas. Estão sujeitas a licença administrativa, desde logo, as operações de loteamento, cujo alvará deve definir os parâmetros das obras de urbanização – i.e., de dotação do terreno de infraestruturas urbanísticas - bem como das obras de construção de edifícios (artº 4 nº 2 do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei nº 559/99, de 16 de Dezembro, modificado, por último, pela Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro, e pelo Decreto-Lei nº 26/2010, de 30 de Março).

O controlo prévio da operação urbanística é actuado – de harmonia com o princípio da procedimentalização da actividade administrativa – através de um procedimento – o procedimento de licença - rigorosamente formal, e a legitimidade para a sua promoção, radica na titularidade de qualquer direito que confira a faculdade de realizar a operação urbanística, titularidade que deve ser indicada e comprovada no requerimento, através do qual aquele procedimento é colocado em marcha (artº 8 nº 1 e 9 nºs 1 e 2 do RJUE).

Pode dizer-se, de forma deliberadamente simplificadora, que a licença da operação urbanística – v.g., obras de construção de edifício - mais não é de que o acto administrativo autorizativo pelo qual a administração realiza um controlo prévio da actividade dos administrados, traduzidas, em geral, na realização de transformações urbanísticas do solo, com vista a verificar se ela se ajusta ou não, às exigências do interesse público urbanístico, tal como ele se encontra plasmado no ordenamento jurídico vigente. A concessão da licença – que é um título que adopta a designação tradicional no nosso direito autárquico de alvará – permite a realização da operação urbanística e atesta, em princípio, a sua conformidade com o ordenamento jurídico-urbanístico, e, portanto, a sua licitude administrativa; o indeferimento do pedido de licenciamento, tem, naturalmente, o efeito inverso.

Todavia, o facto de ao autor de uma operação urbanística ter sido concedida, pela autarquia, uma licença não inibe terceiros de exercerem os seus direitos.

O problema de saber se um acto autorizativo administrativo, que exclui a ilicitude no âmbito do direito administrativo, deverá também ser considerado como causa justificativa o domínio jurídico-civil é particularmente complexo[27].

Uma solução possível é a de delimitar o âmbito da aplicação da norma de justificação ao domínio específico de que ela faz parte, deixando incólume a norma de ilicitude pertencente a outros ramos de direito. Assim, uma licença de construção civil exclui apenas a ilicitude segundo as normas do direito urbanístico e de edificações urbanas – mas não exclui a ilicitude no campo do direito civil. Portanto, apesar de a actividade destinatária de uma autorização ser valorada como lícita pela ordem jurídico-administrativa, ela pode ter suportar, em alguns casos, a actio negatória de terceiros e acções de responsabilidade extracontratual por actos ilícitos.

A autorização administrativa opera como causa justificativa no âmbito do direito administrativo não se transfere ipso facto para o direito civil. O acto autorizativo jurídico-público deixa, por isso, imperturbados os direitos de terceiro modelados pela lei civil. Está nestas condições a autorização de construção ou utilização que deve limitar-se a reconhecer e a conotar juridicamente o ius aedificandi e já não a obrigar terceiros a tolerar efeitos resultantes do exercício, pelo beneficiário da autorização, da actividade privada de construção, autorizada pela administração. O acto administrativo não conforma jurídico-materialmente a relação jurídica civil, não produzindo quaisquer efeitos preclusivos dos direitos de terceiros[28].

É esta, de resto, a razão que explica as especiais exigências de publicidade a que o alvará de licença está sujeito, que têm justamente por finalidade facilitar a utilização por terceiros lesados nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, pelos actores populares ou pelo Ministério Público, dos meios jurisdicionais de protecção contra a licença.

Numa palavra: o facto de uma operação urbanística ter sido licenciada pela administração não obsta a que terceiros a quem ela prejudica, exerçam os direitos que para eles decorrem, por exemplo, do conteúdo do seu direito real de propriedade[29].

Também não deve oferecer dúvida séria a conclusão de que, no caso, a recorrida violou um dever objectivo de cuidado cuja observância lhes era exigível, nas circunstâncias em que actuou, para evitar a produção de danos no prédio da recorrente e, portanto, que a apelada agiu com uma culpa negligente.

Realmente, por força da transformação que levou a cabo no seu prédio através de operações de loteamento e de urbanização, grande parte das águas pluviais que nele caem passarem a escorrer para o prédio da recorrente por virtude da ineficiência do sistema de drenagem que ela mesma construiu, escorrimento que - lê-se na decisão da matéria de facto - podia ter sido evitado se tivesse sido colocada uma grelha para recolha daquelas águas no fundo da rua que foi aberta, na direcção norte-sul, no local em que mesma desemboca na Rua da ...

Já se adquiriu, porém, à certeza, que para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.

Ora, uma leitura ainda que pouco detida da matéria de facto apurada na instância recorrida torna patente, no tocante ao problema da imputação objectiva ou da causalidade, duas coisas:

 Desde logo, que há danos cuja causa ou etiologia se ignora: é o que ocorre com a queda de um pedaço de uma outra parede do barracão e com a fractura de uma laje que nele existe. Como a prova da conexão objectiva ou da causalidade entre estes danos e o facto lesivo competia à recorrente, a dúvida sobre a realidade desse facto deve ser resolvida contra ela (artºs 342 nº 1 e 346 do Código Civil, e 516 do CPC e 414 do NCPC).

Depois, que os demais danos sofridos pelo prédio urbano da autora – a queda de uma das paredes, voltada para a Rua da … e a destruição da instalação eléctrica - resultaram de uma variedade de eventos ou de dois ou mais factos: as obras de urbanização levados a cabo pela recorrida no seu prédio e a deficiência do sistema de recolha de águas pluviais que nele caem; a intempérie que assolou o local, caracterizada por forte chuva durante várias horas que provocou inundações em termos tais, que a memória dos vivos não recorda igual: Aqueles danos – diz-se peremptóriamente na decisão da matéria de facto – só em parte foram provocados pelas obras levadas a cabo pela recorrida no seu prédio, e apenas em parte foram ocasionados pelas águas provindas desse mesmo prédio.

Segundo a decisão da matéria de facto do tribunal a quo, verifica-se, no caso, multiplicidade de causas dos danos, dado que estes só em parte foram provocados por um facto objectivamente imputável à apelada, tendo concorrido para a sua produção, também outro facto: a anormalidade ou a excepcionalidade da quantidade de precipitação.

Dito doutro modo: os danos cuja reparação é pedida pela recorrente são objectivamente imputáveis tanto a um facto da recorrida como a um facto da natureza, o que nos remete para os conceitos de força maior e de caso fortuito, - relevantes, como se sabe, também na área da responsabilidade em que nos situamos: a área delitual ou aquiliana (artºs 505 e 509 do Código Civil).

A doutrina mais clássica caracterizava de forma idêntica as duas figuras. Assim, o caso fortuito, em sentido lato, compreenderia todos os factos produtivos de impossibilidade de cumprir que o devedor, atendo o grau de diligência a que deva considerar-se obrigado, não possa evitar[30]. Apesar da multiplicidade de critérios adiantados para fazer o distinguo dos dois conceitos[31], a doutrina orienta-se, praticamente, pelo conceito clássico de caso fortuito – considerado sobretudo na perspectiva da imprevisibilidade do facto – e destacando na força maior a ideia de inevitabilidade do efeito – guerra, terramoto, naufrágio, bombardeamento, tempestade.

Na força maior caberiam, de modo especial, os impedimentos resultantes de forças da natureza – o abalo sísmico, a inundação grave, etc. – ou de actos insuperáveis da autoridade pública ou mesmo de particulares – a realização de obras públicas de demolição ou desaterro, a ocupação militar, etc. A força maior caracterizar-se-ia, portanto, pelo carácter irresistível, inevitável, da causa do facto: o facto ocorre devido a uma força superior à qual não se pode resistir, ainda que seja previsível: guerra, inundação, sismo, ou acto de autoridade – factum principis.

 Como quer que seja, as notas individualizadoras das duas figuras apontam classicamente para a consideração de um evento exterior, imprevisível e irresistível. Assim, por exemplo, chama-se a atenção para a total imprevisibilidade do facto, a imprevisibilidade do efeito e a inevitabilidade – de efeitos – do facto ocorrido[32].

O caso fortuito ou de força maior não é, no entanto, algo de absoluto ou de abstracto, na medida em que o seu circunstancialismo só releva se não houver interferências por parte do agente: ou seja há que confrontar o facto anómalo com a conduta que esse mesmo agente possa ou não ter adoptado para evitar o evento ou minorar ou afastar as consequências verificadas. Neste contexto há que considerar, desde logo, a hipótese de concurso causal: caso fortuito e de força maior conjugados com uma culpa do agente, como pode suceder, por exemplo, no agravamento negligente dos efeitos do incêndio ocorrido[33].

Na espécie do recurso – e em face da matéria de facto tal como se mostra julgada pelo tribunal de que provém o recurso – os danos – e mesmo só parte deles - são objectivamente imputáveis a duas causas concorrentes ou conjuntas: um facto negligente da recorrida – a construção de um sistema de drenagem da precipitação que cai no seu prédio ineficiente ou desadequado; um facto da natureza, exterior, imprevisível e irresistível – a intempérie que se abateu sobre o local da situação dos prédios e a anormalidade da precipitação registada.

Nestas condições, dado, de um aspecto, que a recorrente não demonstrou que alguns dos danos são objectivamente imputáveis a um qualquer facto da apelada – a fractura de uma laje e a ruína de um pedaço de uma outra parede do barracão – e, de outro, que ficou demonstrado, que os demais danos só, em parte, são objectivamente imputáveis ao facto ilícito e censurável da recorrida – é claro que o pedido de indemnização, quer específica quer pecuniária, nunca poderia proceder totalmente – mas apenas em parte.

É certo que, à luz da decisão da matéria de facto, não está demonstrada a proporção com que um e outro dos factos concorreram para a produção do dano. Simplesmente, a ignorância dessa proporção não obsta à condenação da recorrida no dever de indemnizar, embora, evidentemente, imponha uma condenação puramente genérica.

Constitui ocorrência ordinária, o juiz chegar à sentença e verificar que, devendo condenar a parte, o processo não lhe fornece, porém, os elementos necessários para determinar o objecto ou a quantidade da condenação. Em face desses factos, só lhe resta uma solução jurídica: proferir uma condenação genérica, quer dizer, condenar aquela parte no que se vier a liquidar (artº 661 nº 2 do CPC de 1961 e 609 nº 2 NCPC)[34].

A condenação genérica no cumprimento de uma prestação pode, assim, dar lugar à incerteza ou à iliquidez da obrigação.

A obrigação é incerta quando a respectiva prestação não se encontra determinada ou individualizada; é ilíquida quando a sua quantidade não se encontra determinada. A iliquidez pode referir-se quer a prestações pecuniárias quer a prestações de dare.

É axiomático que as obrigações ilíquidas não podem ser realizadas de forma coactiva, pela razão evidente de que não se pode executar o património do devedor antes de determinar a quantia devida ou pedir a entrega de uma coisa antes de saber a quantidade que deve ser prestada (artº 47 nº 5 do CPC e 704 nº 6 do NCPC). Assim, tem de ser liquidada a condenação em quantia ilíquida (artº 661 nº 2 do CPC de 1961 e 609 nº 2 do NCPC).

A regra é esta: a liquidação há-de fazer-se no processo de declaração que tenha por objecto o direito à prestação e, portanto, só pode reservar-se para momento ulterior, em última extremidade, quando não seja possível fazê-lo naquele processo (artº 378 nº 1 do CPC de 1961 e 358 do NCPC).

No caso, não oferece dúvida a existência da obrigação restituição que vincula reciprocamente a recorrente e a recorrida. Todavia, ao passo que a prestação restituitória da recorrente se encontra perfeitamente determinada no seu quantum, o mesmo não sucede com a de recorrida: esta deve restituir o valor do gozo do estabelecimento – mas esse valor não se mostra quantificado.

 A única solução admissível é a condenação de ambas as partes na apontada obrigação de restituição – e a remessa da fixação do respectivo valor para momento posterior. Determinado o valor da prestação restituitória da recorrida, operar-se-á então a compensação com a prestação idêntica que vincula a recorrente.

Portanto, diversamente da solução normal para as situações de non liquet – que é o proferimento de uma decisão onerada com a prova – a incerteza sobre a quantia devida justifica apenas que se relegue para momento ulterior a sua quantificação (artºs 516 do CPC de 1961, 416 do NCPC, e 346, 2ª parte, do Código Civil). Esta solução parece decorrer da circunstância de, na determinação do quantum da obrigação, não se poder ficcionar o facto contrário àquele que devia ser provado como fundamento da decisão do tribunal[35].

Este pensamento transparece nitidamente na solução disposta na lei para o caso de, mesmo no incidente ulterior específico da liquidação, a prova produzida pelas partes se mostrar insuficiente para fixar a quantia devida: quando isso sucede, incumbe-se o juiz de a completar, mediante indagação oficiosa e, nomeadamente, através da produção de prova pericial (artº 380 nº 4 do CPC de 1961 e 360 do NCPC). Mesmo aqui, a persistência do non liquet sobre a quantidade da obrigação não dá lugar à intervenção da regra de julgamento representada pelo ónus da prova e ao consequente desfavorecimento da pretensão do credor, antes se impõe ao tribunal o dever de ultrapassar a deficiência, mediante iniciativa própria. Caso os diversos critérios supletivamente dispostos na lei não se mostrem suficientes para determinar o valor daquele preço, recorrer-se-á então – e só então - à ultima ratio de julgamento também nela indicada: a equidade.

No caso, porém, a sentença impugnada adiantou, para julgar improcedente o pedido de condenação da apelada a levar a efeito todas as obras necessárias no imóvel pertencente à Autora, de modo a que este fique em condições de ser utilizado para arrendamento, como o vinha sendo antes da inundação acima relatada, esta razão: à data do facto danoso, o barracão não ter condições para ser dado de arrendamento – para o qual se exigia, então, como requisito de validade formal do contrato celebrado, sem a qual à luz do dito regime estava ferido de nulidade - pois não tinha, nem tem, licença de utilização ou de habitabilidade, não podendo, por isso, a autora pretender à custa da ré dotar o seu imóvel de condições que o mesmo eventualmente não tinha à data do facto danoso.

 E a improcedência do pedido de pagamento de todas as quantias referentes às rendas que a Autora deixou de receber, desde a data da resolução do contrato de arrendamento, em virtude da inundação do seu prédio, até à data em que o imóvel estiver em condições de poder ser arrendado, acrescido ainda das respectivas actualizações anuais e dos juros moratórios, desde a data vencimento de cada mensalidade, até ao dia em que a Autora possa utilizar o seu barracão para arrendamento urbano, assentou nestes motivos: de não de poder falar de um verdadeiro dano com tutela jurídica, pois verdadeiramente não se pode considerar como existente um direito a compensações adquiridas com violação de lei e logo, tais danos, não seria compensáveis, jamais se podendo considerar tal perda de rendimento como directamente advinda da conduta lesiva que se aprecia, pois, em última análise, tal rendimento nem nunca devia existir.

                Esta argumentação não se tem por exacta.

Analisando a noção disposta na lei, vê-se que os elementos do contrato de arrendamento são três: em primeiro lugar, resulta da locação para uma das partes – o senhorio – a obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa imóvel à contraparte; o gozo dessa coisa deve ser concedido mediante remuneração; um último essencial da locação é, decerto, o prazo: o gozo da coisa que o locador se compromete a proporcionar ao arrendatário deve ser temporário, embora não seja necessário estipular prazo, pois, há regras supletivas (artº 1022 e 1023 do Código Civil).

Há arrendamento para comércio ou indústria quando o arrendatário toma o prédio de arrendamento para fins directamente relacionados com uma actividade económica de mediação nas trocas ou uma actividade de produção – extracção ou transformação – ou circulação de riqueza. A actividade comercial deve, portanto, ser entendida em sentido económico e não jurídico, quer dizer, como actividade intermediária de mediação nas trocas, relativa à circulação de bens; por actividade industrial deve entender-se a actividade económica, pertencente ao sector secundário, que se destina à produção de riqueza[36].
De harmonia com os princípios gerais de aplicação da lei no tempo, o estatuto do contrato – as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios do consentimento, forma etc.) bem como os efeitos da sua invalidade – é regulado pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado (artº 12 nº 2, 1ª parte, do Código Civil)[37].

No caso, desde que o barracão foi cedido a pessoa que o utilizava, desde 2000/2001, mediante remuneração como oficina de reparação de automóveis, estamos face a um contrato de arrendamento para indústria (artº 110 do RAU).

Na espécie sujeita, as condições de validade do contrato de arrendamento alegado, designadamente no tocante à forma e formalidades são regidas pela vigente ao tempo da sua conclusão: o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, entretanto revogado, na quase totalidade, pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, rectificada pela declaração nº 24/06, de 17 de Abril, que aprovou o Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (NRAU), e entrou em vigor, excepto quanto a dois preceitos, no dia 27 de Junho de 2006 (artºs 60 nº 1 e 65 nºs 1 e 2 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro).

De harmonia com a lei à sombra do qual foi celebrado o alegado contrato de arrendamento urbano alegado pela recorrente, este deveria ser celebrado por escrito ou, tratando-se de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, por escritura pública (artº 7 nºs 1 e 2 b), 3 e 4 do RAU).

Nestas condições, os arrendamentos com esta última finalidade, celebrados verbalmente ou por simples documento particular são nulos e, em princípio, o regime da nulidade é o do direito comum: a nulidade pode ser invocada a todo o tempo, pelo senhorio, pelo arrendatário ou por qualquer pessoa interessada nessa declaração e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artº 286 do Código Civil)[38]. E relativamente aos arrendamentos com esta finalidade, estava mesmo excluída a faculdade de o arrendatário suprir a inobservância da escritura pública pela exibição do recibo da renda, sem prejuízo evidentemente, da passagem e da exibição daquele recibo relevar no plano da boa fé (artº 7 nºs 1 e 3, 1ª parte, do RAU).

A efectiva afectação de cada imóvel aos variados fins a que se presta materialmente assume hoje crescente importância, quer na correcta ordenação urbanística dos grandes aglomerados populacionais, quer na política geral de protecção às razões ambientais de cada espaço do território.

Esta razão explica a exigência da licença administrativa da utilização do prédio – destinada a verificar a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e com as condições de licenciamento ou de comunicação prévia - exigida para a celebração lícita de contratos de arrendamento, cuja existência deveria ser mencionada no texto do contrato (artºs 4 nº 4 e 98 nº 1 d) do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei nº 355/99, de 16 de Dezembro e 9 nºs 1 e 4 do RAU).

Todavia, a falta de licença ou documento – excepto no caso de arrendamento para fim diverso da habitação de locais licenciados apenas para este fim – não constituía causa de nulidade do contrato, mas apenas, e no caso de ser imputável ao senhorio, fundamento de uma responsabilidade contraordenacional do locador e de atribuição, ao arrendatário, do direito potestativo de resolução do contrato ou de notificação do primeiro para a realização das obras necessárias (artº 9 nºs 5 a 7 do RAU)[39].

Portanto, o contrato de arrendamento alegado pela recorrente, dado que se tratava de arrendamento para indústria, que não foi celebrado por escritura pública, era irremissivelmente nulo.

A declaração de nulidade tem efeito retroactivo (artº 289 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).

Declarada a nulidade, estabelece-se entre as partes do negócio declarado nulo uma relação de liquidação, que vincula à restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não se mostrar possível, o valor correspondente (artº 289 nº 1, 2ª parte, do Código Civil).

Nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficie do gozo de uma coisa – como, por exemplo, no contrato de arrendamento – a restituição em espécie não é possível. Quando isso suceda, deve ser restituído o valor correspondente. Esse valor é, naturalmente, o valor da contraprestação convencionada desse gozo[40]. Assim, declarada a nulidade de um contrato de arrendamento, o senhorio deve restituir as rendas recebidas, e o arrendatário o valor relativo ao gozo que lhe foi proporcionado e que equivale, por expressa convenção das partes, ao das rendas. Neste caso, ambas as prestações restituitórias se extinguem, então, por compensação e, portanto, a declaração de nulidade não tem, verdadeira ou materialmente, uma eficácia retroactiva[41].

A aplicação deste regime ao caso do recurso dá o resultado seguinte:

À recorrente não assiste o direito de exigir da recorrida a realização das obras necessárias no imóvel pertencente à Autora, de modo a que este fique em condições de ser utilizado para arrendamento, não porque o prédio não dispunha de licença de utilização – dado que tal facto por não ter sido objecto de alegação não pode ser considerado – mas por duas razões diversas: porque a recorrente não demonstrou que ao tempo verificação do facto lesivo, o prédio estava em condições de constituir objecto lícito de contrato de arrendamento, designadamente, por dispor de licença administrativa de utilização - que seria essa a situação que existiria, não fora o evento que obriga à reparação (artº 342 nº 1 e 346 do Código Civil e 516 do CPC de 1961, e 414 do NCPC); porque os danos objectivamente imputáveis à recorrente se restringem - e só em parte, e em parte não determinada – aos danos relativos à queda da parede do prédio da autora voltada para a Rua da … e à destruição da instalação eléctrica.

Mas nada impede a adstrição do lesante ao dever de reparar tais danos – na parte em que se demonstre que estes, de harmonia com concretização necessariamente ulterior, lhe são objectivamente imputáveis. Uma tal condenação – ao contrário do que se inculca na sentença impugnada – não ultrapassa nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pela recorrente – antes condena em menos do aquilo que foi pedido.

Da mesma maneira, não há qualquer impedimento, apesar da nulidade do contrato de arrendamento, a que a recorrida seja vinculada ao dever de pagar à recorrente as rendas que esta deixou de auferir entre a data em que ocorreu o facto lesivo e a data em que foi declarada ou constatada aquela invalidade. Realmente, por força da declaração de nulidade – e até essa declaração - a recorrente sempre teria direito por força da compensação da obrigação de restituir a renda com a de restituir o gozo da coisa, ao percebimento do valor correspondente àquela renda, valor que corresponde à diferença entre a sua situação patrimonial, no momento da declaração da nulidade, e a que teria nessa data se não existissem os danos. Não – pelas razões apontadas – ao valor total da renda – mas ao valor de parte dessa renda coincidente com o valor do dano correspondente que é objectivamente imputável à apelada.

Simplesmente, quanto à reparação – ainda que parcial – de um tal dano, coloca-se esta dificuldade ponderosa: é que apenas se demonstrou que desde a ruína da parede do barracão, a pessoa a quem tinha sido cedido deixou de lá trabalhar, mas não que a recorrente – como esta foi clara em alegar na petição inicial - tenha deixado de perceber a renda.

Mas a falta de demonstração deste facto controvertido tem uma causa precisa: a omissão da sua selecção para a base instrutória, com a consequente subtracção dele ao exercício da prova.

Nestas condições, em face dessa deficiência, outra solução não resta, que ordenar a ampliação da matéria de facto, com a consequente cassação da decisão correspondente (artº 712 nº 4 do CPC).

Síntese recapitulativa:

a) A nulidade substancial da sentença, por falta de fundamentação, só se verifica no caso de falta absoluta, total, de motivação;

b) A consideração pela sentença de facto de que não lícito servir-se, por não ter sido alegado, não constitui causa de nulidade daquele acto decisório, por excesso de pronúncia, antes integra erro de julgamento;

c) A constituição do lesante no dever de indemnizar exige a prova, que vincula o lesado, de que o dano é objectivamente imputável à conduta daquele;

d) No caso de concorrência necessária ou de causalidade concorrente ou conjunta de um facto do agente e de qualquer outro facto para o dano, a obrigação de indemnizar a que aquele deve ser adstrito deve limitar-se ao dano que seja objectivamente assacável ao facto do lesante;

e) A licença de uma operação urbanística exclui a ilicitude dessa operação no plano do direito urbanístico, mas não no domínio do direito civil;

f) Se a decisão da matéria de facto for deficiente, por se mostrar necessário a produção de prova sobre factos relevantes alegados pelas partes que não constam da base instrutória, a Relação deve, mesmo oficiosamente, cassar aquela decisão e reenviar o processo para a instância recorrida para que se proceda ao julgamento do facto omitido.

As custas deste recurso serão suportadas, pela parte que, a final, sucumbir na causa, e na medida exacta dessa sucumbência (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a complexidade do tratamento do objecto do recurso, justifica-se que a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da Tabela I-C que integra o RCP (artºs 6 nº 1 do RCP e 8 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, anula-se a decisão da matéria de facto e determina-se a ampliação dessa matéria no tocante ao facto do não recebimento, pela recorrente, A..., das rendas.

As custas deste recurso serão satisfeitas pela parte que, a final, sucumbir na causa, e na medida dessa sucumbência, com a taxa de justiça fixada na Tabela I-C que integra o RCP.

                                                                                                              13.11.05

Henrique Antunes - Relator

José Avelino Gonçalves                                                                                                            Regina Rosa                        


[1] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.
[2] Michele Tarufo, Páginas Sobre Justicia Civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[3] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.
[4] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pág. 140, Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, 2001, pág. 703, e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 221 e 222.
[6] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, cit., pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente.
[7] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22 e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420.
[8] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[9] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, págs. 144 e 145.
[10] Ac. da RC de 11.10.94, BMJ nº 440, pág. 560.
[11] Acs. da RC de 03.04.86, BMJ nº 356, pág. 453, e do STJ de 27.10.94 e 05.07.94, BMJ nºs 440, pág. 478, e 439, pág. 479, respectivamente; José de Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 631.
 [12] Cfr. Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega, Lisboa, págs. 256 a 267.
[13] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, págs. 2004, págs. 313 a 321.
[14] Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Sobre os fundamentos da doutrina penal, Sobre a doutrina geral do crime, Coimbra Editora, 2001, págs. 355 e 356.
[15] A fixação da conexão entre a conduta ou condutas e o evento danoso é uma questão de facto subtraída, portanto, à competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça, embora este, muitas vezes, não resista a considerar a aplicação do artº 563 do Código Civil como questão jurídica, com o argumento, pouco consistente, de que é necessário indagar a causa jurídica de certo evento. Cfr. Antunes Varela RLJ, Ano 122, pág. 120.
[16] Cfr., v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento nº IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícitos, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro - Direito das Obrigações, cit., págs. 338 e 338 – sugere a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente a sua sujeição ao juízo de ilicitude: nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da licitude de certo comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com a verificação do fim visado pelo agente.
[17] Ac. do STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt.
[18] Francisco Manuel Pereira Coelho, O Problema a Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 24.
[19] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 739.
[20] Cfr. Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 228 a 293.
[21] Pereira Coelho, o nexo de causalidade na responsabilidade civil, Boletim da Faculdade de Direito, Suplemento IX, Coimbra, 1951, pág. 107 e ss.
[22] Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual, cit., pág. 188.
[23] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, vol. 2º Volume, pág. 283.
[24] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed., vol. I, pág. 862 e P. de Lima e A. Varela, CC Anot., vol. I, pág. 576 e Ac. do STJ de 05.06.08, www.dgsi.pt.
[25] Cfr. a disposição paralela do artº 829 nº 2 CC.
[26] Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Coimbra, 1955, pág. 274.
[27] José Joaquim Gomes Canotilho, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1983, págs. 2 a 59.
[28] Ac. da RC de 31.10.06,www.dgsi.pt.
[29] Acs. do STJ de 25.05.00, CJ, STJ, VIII, II, pág. 80, e de 26.05.82, BMJ nº 417, pág. 734, da RL de 09.05.85, BMJ nº 534, pág. 608, e de 27.06.91, CJ, XVI, III, pág. 176 e da RC de 19.12.89, BMJ nº 292, pág. 525 e de 10.01.95, CJ, XX, I, pág. 15.
[30] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3ª edição, Coimbra, 1966, pág. 420.
[31] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 961 e 962.
[32] Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1972, págs. 123 e 124.
[33] Assim, para um caso de possível conjugação da negligência com um eventual caso de força maior, admitindo que a força maior ou o caso fortuito possam não apenas excluir mas limitar a responsabilidade do empreiteiro pela inundação da moradia em que executava obras de reparação cfr. o Ac. do STJ de 01.07.00, www.dgsi.pt.
[34] De harmonia com o artº 21 nº 3 do DL nº 38/2003, de 8 de Março, o novo regime da condenação genérica aplica-se às sentenças proferidas em processo pendentes em 15 de Setembro de 2003. Portanto, o regime anterior só é aplicável às sentenças proferidas antes daquela data. Nestas condições – ao contrário do que sustenta a recorrente na sua alegação – a liquidação deve ser relegada para momento ulterior, mas não para execução de sentença.
[35] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa 1998, pág. 110.
[36] Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pág. 41, Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, cit., pág. 23, Gravato de Morais, Alienação e Oneração de Estabelecimento, cit., pág. 28 e João Espírito Santo, Especificidades dos arrendamentos para comércio ou indústria, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. III, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 437 e 438.
[37] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 61, João Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e do Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 242 e Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Gulbenkian, Lisboa, pág. 443; Acs. do STJ de 16.01.73, 08.02.74 e 02.12.75, BMJ nºs 233, pág. 186, 234, pág. 212 e 252, pág. 123, respectivamente.
[38] Pereira Coelho, Breves Notas ao Regime do Arrendamento Urbano, RLJ Ano 126, pág. 199.
[39] Acs. da RC de 10.01.06, CJ, XXXI, I, pág. 5, e do STJ de 10.10.06 e de 29.09.09, www.dgsi.pt, e Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 200.
[40] Acs. da RL de 17.01.91 e de 28.11.96, CJ, XVI, I, pág. 133 e XXI, V, pág. 113.
[41] Ac. da RL de 04.06.98, CJ, XXIII, III, pág. 122 e João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, AADFDL, Lisboa, 1995, págs. 440 e 443.