Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4372/15.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB - ROGAÇÃO LEGAL
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 245 Nº2 B) CIRE, 54 Nº1 DO DL NÇ 291/2007 DE 21/8
Sumário: 1. O crédito do Fundo de Garantia Automóvel (FGA) emergente de falta dolosa de seguro obrigatório, não está abrangido pela exoneração do passivo restante, pois que cabe na previsão do art.º 245º, n.º 2, alínea b), do CIRE.

2. O FGA adquire por via da sub-rogação legal o direito de crédito do lesado, consistente num direito de indemnização devido por facto ilícito negligente mas tal sub-rogação tem subjacente determinado quadro fáctico e normativo, não se podendo ignorar o decisivo contributo do devedor/insolvente, ao incumprir, dolosamente, o dever legal (e social/comunitário) de segurar o veículo de que era proprietário e que determinou a intervenção do FGA.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

             I. Declarada a insolvência de C (…) (por sentença de 22.5.2015), elaborado o relatório a que alude o art.º 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas/CIRE[1] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3, e na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20.4) e tendo sido liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante requerido pelo devedor (por decisão de 01.12.2015)[2], o Fundo de Garantia Automóvel (FGA)[3], invocando o disposto no art.º 245º, n.º 2, alínea b), pediu que o Tribunal se pronunciasse sobre a inclusão ou exclusão do respectivo crédito no âmbito da exoneração (fls. 96 verso).

            Por despacho de 23.02.2016, o Tribunal a quo considerou que o crédito indemnizatório do FGA, resultante da sub-rogação legal prevista no art.º 54º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21.8 (decorrente de acidente de viação causado por negligência), não se encontra abrangido pela exclusão do art.º 245º, n.º 2, al. c), pelo que integra o âmbito da exoneração.

            Inconformado, pugnando pela exclusão do seu crédito dos efeitos da exoneração, o FGA interpôs a presente apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas: 

            1ª - É negligente a conduta do condutor do veículo causador do acidente de viação, mas é dolosa a conduta do proprietário/detentor que não contrata seguro para o seu veículo.

            2ª - O insolvente era o condutor na ocasião do acidente, mas também o proprietário do veículo sem seguro!

            3ª - Agiu dolosamente ao não contratar seguro automóvel para o seu veículo.

            4ª - A sentença de condenação solidária, proferida no âmbito do Processo Comum de Tribunal Colectivo n.º 165/10.3GDCNT, confirmada pelo acórdão da RC menciona expressamente que O arguido também não tinha procedido à transferência do registo de propriedade atempadamente, não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório e não tinha sujeitado o veículo à inspecção obrigatória”. (Facto Provado VIII – pág. 4)

            5ª - O insolvente foi ali responsabilizado a título de dolo, por não ter contratado seguro.

            6ª - É jurisprudencialmente assente que a inexistência de seguro válido e eficaz, sendo que o SORCA tem natureza obrigatória na legislação portuguesa, determina a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos do proprietário do veículo.

            7ª - O crédito do FGA não pode ser abrangido pela exoneração do passivo restante, pois decorre de facto ilícito (al. b) do n.º 2 do art.º 245º do CIRE).

            Não houve resposta à alegação de recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa decidir, apenas, se o crédito do FGA se enquadra na previsão da alínea b) do n.º 2 do art.º 245º do CIRE.


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e, ainda, o seguinte:[4]

            a) No dia 17.7.2010 o insolvente interveio num acidente de viação que causou a morte da pessoa que o acompanhava, tendo sido julgado e condenado no pagamento aos pais da vítima de uma indemnização no valor de € 82 500.

            b) Como não tinha seguro nem dispunha de meios financeiros que lhe permitissem fazer face ao pagamento de tais valores, estes foram pagos pelo Fundo de Garantia Automóvel, que é o seu único credor.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217º (art.º 245º, n.º 1, sob a epígrafe “efeitos da exoneração”). A exoneração não abrange, porém: a) Os créditos por alimentos; b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade; c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações; d) Os créditos tributários (n.º 2).

            A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário [cf. o art.º 6º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21.8, que aprovou o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, transpondo parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.5, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»)].

            A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos da secção seguinte (art.º 47º, n.º 1, do mesmo DL).

            São aplicáveis ao Fundo de Garantia Automóvel as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (art.º 52º, n.º 1, sob a epígrafe “exclusões”). Estão também excluídos da garantia do Fundo de Garantia Automóvel: a) Os danos materiais causados aos incumpridores da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel; b) Os danos causados aos passageiros que voluntariamente se encontrassem no veículo causador do acidente, sempre que o Fundo prove que tinham conhecimento de que o veículo não estava seguro (n.º 2, alíneas a) e b)).

            Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso (art.º 54º, n.º 1, do referido DL, sob a epígrafe “sub-rogação do Fundo”).

            3. No caso em análise, temos um crédito reclamado pelo FGA que resulta do pagamento feito por este no âmbito de um acidente de viação em que foi responsável o insolvente. 

            A sub-rogação do FGA, prevista no art.º 54º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21.8, decorre do facto de o veículo que teve intervenção no acidente não possuir, aquando do sinistro, seguro válido e eficaz, o que configura conduta contra-ordenacional (art.º 145º, n.º 2, do Código da Estrada).

            A sub-rogação constitui uma forma de transmissão de créditos que assenta no respectivo cumprimento por terceiro, o qual, por isso, se substitui ao credor primitivo, mantendo-se o devedor obrigado, agora perante o novo credor (mera modificação subjectiva da titularidade do direito). Trata-se, pois, de uma substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.[5]

            4. A existência do FGA, criado pelo DL n.º 522/85, de 31.12, obedece a um relevante interesse público de toda a comunidade no sentido de providenciar um mecanismo de aplicação generalizada que permita indemnizar os lesados em acidente de viação nos casos em que o responsável pelo acidente não é conhecido, ou em que inexiste contrato de seguro válido e eficaz ou a seguradora se torna insolvente.

            Daí que o FGA, visto como parte fundamental da operacionalização do aumento de protecção dos lesados[6], se encontre integrado no Instituto de Seguros de Portugal, pessoa colectiva de direito público (e que, naturalmente, visa a prossecução do interesse público).

            5. O FGA, ao indemnizar o lesado, nos termos da legislação relativa ao seguro automóvel, satisfez o crédito indemnizatório deste e, por isso, substituiu-se a ele, na titularidade de tal direito de crédito - um dos efeitos da sub-rogação é a transmissão para o terceiro que paga dos poderes que competiam ao credor originário, na medida da satisfação dada ao direito deste (art.º 593º, n.º 1, do Código Civil/CC).

            Está em causa nesta indemnização uma relação jurídica que não se extinguiu mas apenas foi subjectivamente modificada e que decorre da culpa do insolvente enquanto condutor responsável pela produção do acidente de viação em causa (responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos - art.ºs 483º e seguintes do CC).

            Acresce que a intervenção do recorrente decorre também de actuação dolosa do insolvente, que não providenciou pela transferência da responsabilidade civil pelos danos decorrentes da circulação do seu veículo automóvel (inexistência de seguro automóvel válido e eficaz, à data do sinistro).

            6. In casu, a sub-rogação do FGA radica na circunstância de o veículo interveniente no acidente de viação não ter, na altura do evento, seguro válido e eficaz, sendo que a omissão deste seguro sempre constituirá facto ilícito doloso; tal falta de seguro (imputável ao insolvente) é causa adequada da intervenção do FGA.

            7. E dúvidas não restam de que o devedor/insolvente era simultaneamente o proprietário e o condutor do veículo interveniente no acidente [cf. I. e II. 1., supra, e a decisão sob censura], donde decorre, de forma evidente, que a responsabilidade pela ausência de seguro recaía sobre ele (art.º 6º, n.º 1 do DL n.º 291/2007, de 21.8).

            8. Daí que se conclua estarmos perante uma indemnização que cabe na previsão do art.º 245º, n.º 2, quer em termos estritamente formais na medida em que está em causa uma indemnização devida por facto ilícito doloso praticado pelo devedor quer inclusivamente à luz da teleologia da presente norma atento o interesse público que existe no ressarcimento deste crédito e que decorre da própria natureza do credor constituído como tal por determinação normativa.[7]

            9. Contrariamente ao que vemos defendido na decisão sob censura, se é certo que o FGA adquiriu por via da sub-rogação legal o direito de crédito do(s) lesado(s), consistente num direito de indemnização devido por facto ilícito negligente, porém, como vimos, tal sub-rogação tem subjacente determinado quadro fáctico e normativo, não se podendo ignorar o decisivo contributo do devedor/insolvente, ao incumprir, dolosamente, o dever legal (e social/comunitário) de segurar o veículo de que era proprietário e que determinou a intervenção do FGA.

            10. Ainda que se considere que a problemática em análise não é isenta de dificuldades, propendemos, assim, em aceitar que o crédito reclamado pelo FGA se subsume à previsão do art.º 245º, n.º 1, alínea b), porquanto emerge de um facto ilícito e doloso praticado pelo insolvente: a inexistência de seguro válido e eficaz, o qual, socialmente, assume consequências gravosas para a comunidade em geral.[8]
            11. Procedem, desta forma, as “
conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, devendo, assim, entender-se que a indemnização ao FGA se enquadra na previsão do art.º 245º, n.º 2, alínea b), do CIRE (estando excluída dos efeitos da exoneração).        
           
Custas pela massa insolvente.

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28.6.2016

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro



[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[2] Com o seguinte segmento decisório: «a) Admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor e determino que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido ao fiduciário; considera-se rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas als. a) e b) do n.º 3 do art.º 239º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e nomeadamente do que seja razoavelmente necessário para o sustento do seu agregado familiar, que se fixa em valor correspondente a um e meio salário mínimo nacional».
[3] Indicado como único credor na “relação” de fls. 63.
[4] Atendendo ao alegado na petição inicial da insolvência e considerado na sentença de 22.5.2015.

[5] Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7ª edição, Almedina, 2004, págs. 335 e seguinte.

[6] Cf. o preâmbulo do DL n.º 291/2007, de 21.8.
[7] Cf. o acórdão da RP de 21.01.2014-processo 915/13.6TBGDM-C.P1, publicado no “site” da dgsi.

[8] Cf., neste sentido, os acórdãos da RP de 21.01.2014-processo 915/13.6TBGDM-C.P1, 17.6.2014-processo 2573/13.9TBVCD-C.P1 [defendendo-se, ainda, que “Apenas se deve considerar abarcado pela exoneração o crédito do FGA naquelas situações em que, concomitantemente, se apure que o condutor do veículo sinistrado, responsável pelo evento danoso, não era o devedor (insolvente) e que este não detinha a direcção efectiva do dito veículo, pese a sua qualidade de proprietário.”] e 16.9.2014-processo 3965/13.9TBGDM.P1 [também com o entendimento de que “Essa exclusão não abarca o caso de um crédito reclamado pelo FGA referente a uma indemnização paga por este em virtude de um acidente de viação em que foi responsável o devedor, que conduzia o veículo, mas não era seu proprietário, e em que o Fundo foi accionado por inexistir à data do acidente seguro válido e eficaz”.] e da RG de 24.4.2014-processo 124/12.1TBPCRF-F.G1, publicados no “site” da dgsi.