Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/16.4GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
ORDEM LEGÍTIMA
MEMBRO DE ÓRGÃO AUTÁRQUICO
SIMULTANEAMENTE
JORNALISTA
SESSÃO
ASSEMBLEIA MUNICIPAL DE FREGUESIA
FILMAGEM
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL DA SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 4.º, AL. C), DO E.E.L.; ART. 33.º, N.º 1, DA LEI DE IMPRENSA (LEI N.º 2/99, DE 13-01); ARTS. 4.º, N.ºS 1 E 2, 5.º, N.ºS 1 E 4, 8.º, N.º 1, AL. A) E 14.º, AL. F), DO ESTATUTO DOS JORNALISTAS (LEI 1/99, DE 16-01); ART. 348.º, N.º 1, AL. B), DO CP
Sumário: I - É incompatível o exercício simultâneo das funções de eleito local, como membro de assembleia municipal de freguesia, e de jornalista.

II - Ainda que, por hipótese, se entendesse ser lícito a jornalista, simultaneamente membro daquele órgão autárquico, proceder à filmagem de reunião acontecida no dito órgão, nunca o poderia fazer sem acreditação prévia, para o efeito, perante o presidente da mesa da assembleia.

III - Em consonância, é legítima, quer a proibição de gravação dos trabalhos sucedidos na assembleia, nas circunstâncias acima descritas, quer a subsequente ordem que, no mesmo sentido, lhe foi regularmente transmitida por militar da GNR.

IV - Tal proibição, consubstanciando ordem legítima, constitui elemento típico objectivo do crime, de desobediência, previsto no artigo 348.º, n.º 1, al. b), do CP.

Decisão Texto Integral:



ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Na Secção de Competência Genérica da Instância Local de Tondela, Comarca de Viseu – J1, após audiência de julgamento no Processo Sumário nº 106/16.4GCTND, foi o arguido A... , por sentença de 29/6/2016, condenado nos seguintes termos (transcrição):

«Pelo exposto, decide-se:

- Condenar o arguido A... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al. b) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 15,00€ (quinze euros), o que perfaz a quantia global de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros);

- Condenar, ainda, nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (art. 513º do CPP, art. 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa) e demais encargos previstos no artigo 16º do mesmo diploma legal.

Após trânsito: Remeta boletins à DSICC

   Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1. Tinha o arguido legitimidade para proceder à gravação dos trabalhos da assembleia de freguesia e esta legitimidade não estava dependente de qualquer autorização, nem o arguido estava obrigado, por força de nenhuma disposição legal, a inscrição prévia junto do Presidente da Mesa para captar sons e imagens da assembleia municipal, ou a exibir-lhe o cartão de equiparado a jornalista para poder proceder à gravação dos trabalhos da assembleia, ou ainda a pedir autorização para o poder fazer;
2. Não existe qualquer incompatibilidade entre o exercício das funções de deputado da assembleia de freguesia e de jornalista (ou equiparado a jornalista) nem a mesa da assembleia ou a GNR têm qualquer legitimidade para sindicar esse exercício por parte do arguido.
3. O art.º 31.º do Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) não pode ser entendido como obrigando os jornalistas a aceitar como única fonte de informação sobre os trabalhos da assembleia o conteúdo das respectivas actas, assim como se não pode sobrepor ao art.º 38.º da Constituição da República Portuguesa.
4. Foi ilegítima a proibição pela assembleia da gravação dos trabalhos, e foi igualmente ilegítima a ordem de desligar o aparelho dada pela GNR, incorrendo a mesa da assembleia e a GNR no crime de atentado à liberdade de informação previsto e punido pelo art.º 19.º, n.º 1, do Estatuto do Jornalista;
5. Não é aplicável aos deputados da assembleia de freguesia a protecção do direito à imagem invocada, pelo facto de a sessão em causa ser pública e ter um relevante interesse público, e ainda porque as proibições legais nessa área se dirigirem à utilização das imagens e não à captação em si;
6. Não merece de qualquer modo protecção legal a proibição de gravação, porque não subjaz à mesma qualquer interesse legítimo ou, sequer, razoável;
7. A haver motivos legítimos para a proibição de gravação, fossem eles pela violação do estatuto de jornalista ou equiparado, ou ainda pela possível perturbação dos trabalhos da assembleia, prevêem a lei e o regimento da assembleia consequências para o não acatamento dos respectivos comandos. Como tal, atento o carácter subsidiário da cominação funcional, ou ad hoc, do art.º 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, nunca esta norma seria aplicável;
8. Viola a decisão recorrida os artigos 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa, o 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, o art.º 31.º do Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) , os art.sº 6.º e 19.º, n.º 1, do Estatuto do Jornalista, o artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil e o art.º 9.º do Código de Procedimento Administrativo.

Termos em que deverá ser revogada a douta decisão recorrida, sendo o arguido absolvido do crime de que foi acusado.

Respondeu o MP, retirando desta sua resposta as seguintes conclusões:

I. Ora, dos termos da própria sentença, quer da matéria de facto dada como provada, quer da motivação do tribunal, resulta, de forma inequívoca e significativa que o arguido cometeu os factos pelos quais vinha acusado.

II. O tribunal “ancorou” a sua convicção no depoimento prestado pelo recorrente/arguido e pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento.

III. O recorrente/arguido não se conforma com tal condenação, alegando, que, na qualidade de director de um jornal regional, e sendo por isso equiparado a jornalista, tinha legitimidade para gravar som e imagem num aparelho de vídeo os trabalhos da Assembleia de Freguesia de (...) e o direito de o fazer.

IV. Não assiste razão ao recorrente/arguido uma vez que, se por um lado, o artigo 37º, nº 1, (Liberdade de expressão e informação) da Constituição da República Portuguesa, no capítulo I, dos direitos liberdade e garantias pessoais, dispõe que “Todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações”, sendo que, o nº 2, do referido diploma refere que “O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”

Por outro lado, dispõe o artigo 26º, nº 1, (outros direitos pessoais) da Constituição da República Portuguesa que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra; à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de descriminação”.

V. Verificamos haver um conflito de direitos, para o caso, o que o recorrente/arguido refere como sendo o “direito de informar, de se informar e de ser informado”, e o direito “à imagem, à palavra e ao bom nome e reputação”.

VI. Por outro lado, como jornalista, o recorrente/arguido está sujeito aos deveres consagrados no artigo 14º, do Estatuto do Jornalista aprovado pela Lei nº 1/99, de 13.01.

VII. Dispõe o artigo 14º, na alínea i) que “Independentemente do disposto no respectivo código deontológico, constituem deveres fundamentais dos jornalistas…Não recolher imagens e sons com o recurso a meios não autorizados a não ser que se verifique um estado de necessidade para a segurança das pessoas envolvidas e o interesse público o justifique”.

VIII. Relativamente à incompatibilidade entre o exercício das funções de deputado da assembleia de freguesia e de jornalista, somos a entender que a presença do eleito na dupla qualidade de membro da assembleia de freguesia e de jornalista em exercício de funções nos parece inconciliável uma vez poderia constituir um obstáculo ao exercício de participação ativa na reunião do órgão, o qual constitui um dever do eleito local, por força do artigo 4º, alínea c), subalínea i) do E.E. L., constituindo ainda violação do mesmo artigo 4º, alínea a), subalínea i) e b), subalínea ii) do E.E.L.

IX. Por outro lado, essa dupla presença poderia constituir um óbice ao pleno cumprimento do dever de isenção que está prescrito para os jornalistas por força do artigo 1º, nº 1, alínea a), do Estatuto de Jornalista.

X. Certo é que o recorrente/arguido, atento o disposto no artigo 4º, nº 1, do Estatuto de Jornalista e artigo 5º, do Dec. Lei nº 70/2008, de 15.04 do RCCJ, estava obrigado à apresentação de credencial.

XI. O recorrente/arguido não exibiu perante o Presidente da Mesa da Assembleia de Freguesia de (...) o cartão de Jornalista, nem solicitou autorização para proceder à recolha de som e imagem da reunião da referida assembleia

XII. Antes do início dos trabalhos o Presidente da Mesa da Assembleia de Freguesia de (...) pediu aos jornalistas presentes que se identificassem o que vieram a fazer, exceto o recorrente/arguido que não se quis identificar.

XIII. Perante tal situação gerada pelo recorrente/arguido, uma vez que aquele pretendia e insistia em filmar a reunião da assembleia e porque estava a perturbar os trabalhos da assembleia, o Presidente da Mesa da Assembleia solicitou a presença da GNR.

XIV.        O recorrente/arguido instado pelo militar da GNR, devidamente uniformizado, a desligar a camara de filmar uma vez que não tinha autorização para filmar, porque senão incorria no crime de desobediência, aquele recusou a ordem dada pelo militar, pelo que lhe foi dada voz de detenção.

XV. Atento o acima referido, salvo melhor opinião, entendemos, que a ordem é legitima, regularmente comunicada, feita a cominação e emanada por autoridade (militar da GNR).

XVI. Relativamente à referência que o recorrente/arguido faz do artigo 79º, do Código Civil (direito à imagem) sempre se dirá que “não se proíbe que se colha a imagem da pessoa, o que se proíbe, sim, é que se dê difusão ao retrato, expondo-o, reproduzindo-o ou lançando-o no mercado (M. Brito Código Civil Anot. 1º, pág 95).

XVII. Os direitos à imagem e á reserva da intimidade da vida privada não permitem a publicação na imprensa de imagens ou factos dessa natureza, quando não haja um interesse público relevante na sua divulgação (Acórdão da Relação de Lisboa, de 05.01.1991, publicado no Boletim Ministério da Justiça, pág. 404 a 498). 

XVIII. Entendemos que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de desobediência simples.

XIX. Pelo que, sem necessidade de outras considerações, em nosso modesto entendimento, não merece reparo a sentença que condenou o recorrente/arguido, pela prática do crime de desobediência simples.

XX. Não se verifica a violação do artigo 348º, no 1, alínea b), do Código Penal, do artigo 79º, do Código Civil e 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, artigos 6º e 19º, nº 1, do Estatuto de Jornalista, o artigo 79º, nº 2, do Código Civil e o artigo 9º, do Código de Procedimento Administrativo, nem quaisquer outras normas.

XXI. Não merece, assim, qualquer reparo a sentença proferida pelo Mma. Juiz “a quo”.

XXII. Pelo que, deve a mesma, ser mantida na íntegra, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto pelo recorrente/arguido.

  

   Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer, no sentido do não provimento do recurso.

   Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:

1. No dia 27 de Abril de 2016, pelas 21h15m, o arguido pretendia filmar, gravar a sessão da assembleia de freguesia de (...) , sem para o mesmo estar autorizado, tendo sido chamada a GNR.

2. O arguido é membro da referida assembleia e encontrava-se a filmar a sessão que decorria, utilizando para o efeito uma câmara montada num tripé, que montou na sala onde iria decorrer a assembleia sem para tal estar autorizado.

3. O militar da GNR pediu ao arguido para desligar a câmara, o que o arguido aceitou.

4. O arguido referiu que iria permanecer na assembleia na qualidade de jornalista e de membro da assembleia.

5. Foi informado pelo militar da GNR que apenas poderia permanecer numa das duas qualidades, tendo o arguido insistido em exercer as duas funções, ligando a câmara de filmar.

6. O Presidente da Mesa afirmou que o arguido estava a perturbar os trabalhos uma vez que estava a exercer em simultâneo as duas funções.

7. O militar da GNR voltou a advertir o arguido para desligar a câmara, ao que o mesmo respondeu que não desligava, tendo-lhe sido dada uma ordem clara pelo militar da GNR para a desligar, e tendo sido advertido que se não o fizesse incorria no crime de desobediência, ao que o mesmo manteve a sua posição e não desligou a câmara.

8. Foi ainda informado que se não obedecesse à ordem era detido, ordem que voltou a não acatar, continuando as filmagens dizendo expressamente que não desligava a câmara, pelo que após várias advertências foi-lhe dada ordem de detenção, com apreensão da câmara e diversos acessórios.

9. O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que desrespeitava a ordem dada pelo militar da GNR, devidamente uniformizado e em exercício de funções, para desligar a câmara de filmar, depois d ter sido advertido de que cometia o crime de desobediência, ordem que não acatou, bem sabendo criminosa a sua conduta. Contestação:

10. O arguido além de deputado da assembleia de freguesia de (...) , é diretor da publicação periódica trimestral “ x(...) ”, propriedade da Casa do Povo de (...) , registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social sob o número de registo ....., sujeita ao depósito legal para publicações nº......

11. Como diretor do periódico “ x(...) ”, órgão da imprensa regional, o arguido tem estatuto de jornalista da imprensa regional.

12. O arguido apresentou o cartão equiparado a jornalista, com o número ......., ao militar da GNR, nas circunstâncias descritas em 7 e 8.

13. Havia mais jornalistas presentes no local onde se realizavam os trabalhos da assembleia, não tendo havido qualquer oposição à gravação dos trabalhos por eles.

14. Um dos fundamentos para a proibição de gravação dos trabalhos da assembleia ao arguido foi o não poder acumular as funções de deputado da assembleia de freguesia com as funções de jornalista.

15. A máquina de filmar é silenciosa e estava instalada atrás a vários metros do local em que estava o arguido.

Mais se apurou:

16. O arguido é professor do ensino superior e aufere mensalmente 2.000,00€.

17. É casado e a sua esposa é professora e aufere mensalmente a quantia de 1.200,00€.

18. Tem mestrado em Engenharia Electrónica.

19. Tem uma filha de 17 anos.

20. Do seu CRC não constam condenações.

21. Foi proferida decisão no âmbito de processo sumário nº447/15.8GCTND, do Tribunal de Tondela, em 12.02.2016, ainda não transitada em julgado, na qual o arguido foi condenado pela prática em 29.12.2015 do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº1, al. b) do Código Penal.

22. O arguido não fez inscrição prévia junto do Presidente da Mesa para captar sons e imagens da assembleia municipal e não exibiu o cartão identificado em 12 nem ao Presidente da Mesa, nem aos membros da assembleia, nem pediu autorização para o efeito.

23. A ocorrência dos factos descritos em 1 a 9, perturbaram o normal funcionamento da Assembleia de freguesia de (...) .

24. O arguido encontra-se socialmente bem integrado.

Factos não provados:

a) A instalação pelo arguido do aparelho de recolha e gravação de som e imagem no local onde se ia realizar a assembleia de freguesia tinha como objetivo a recolha precisa da discussão e das deliberações que iriam ocorrer, do modo a com base nessa recolha poder elaborar notícia exata da mesma, a publicar no x(...) .

b) Aquando da proibição o arguido encontrava-se sentado no seu lugar de deputado.

c) A máquina de filma filmava os trabalhos sem necessidade de intervenção dele.

d) A máquina de filmar é digital, pesa menos de meio quilo.

e) O verdadeiro motivo da ordem de paragem da gravação foi impedir o arguido de recolher informação que lhe serviria de base para a elaboração de uma notícia.

   DECIDINDO:

   Como muito bem acentua o Ex.mo PGA, no seu douto parecer, o recorrente, conformando-se embora com a matéria de facto dada como assente, assim como com a matéria dada como não provada, apenas «pretende que seja efectuada uma diferente interpretação das normas que indica, como legitimando a sua acção na Assembleia de Freguesia e ao mesmo tempo considerando ilegítima a actuação do Presidente desta Assembleia e da Autoridade Policial

   Ou seja, analisadas as conclusões que formula o recorrente, logo se constata que o que ele pretende é que não se mostra integrado o tipo criminal por que acabou condenado, pois que não foilegítima a ordem da autoridade policial a que desobedeceu, já que, enquanto jornalista, poderia proceder à recolha de imagens.

   Os factos em causa tiveram lugar no decurso de uma sessão da assembleia de freguesia de (...) ; o recorrente, que era deputado dessa assembleia encontrava-se a gravar em filme essa sessão, sem para o mesmo estar autorizado (1). Após ter sido abordado por um militar da GNR, chamada ao local na sequência do incidente em causa, o arguido, na sequência dos factos descritos em 7 e 8, apresentou o cartão equiparado a jornalista, pois que, sendo director de um periódico da imprensa regional, tem estatuto de jornalista da imprensa regional (11 e 12).

   A questão que o recorrente coloca prende-se com a sua pretensa legitimidade para proceder àquelas gravações, sem dependência de qualquer autorização ou inscrição prévia junto do presidente da mesa daquele órgão autárquico. Afirma, na sequência, que não existe qualquer incompatibilidade entre aquelas funções autárquicas e jornalísticas.

   Tais questões prendem-se com o preenchimento de um elemento objectivo do tipo legal de desobediência (artº 348º, 1, b), do CP), quando exige, para a perfeição do mesmo, que a falta da obediência devida se refira a uma ordem legítima.

Resulta do art. 348º do CP, que comete o crime de desobediência quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência, ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

O tipo de ilícito em referência é, assim, constituído pelos seguintes elementos:

- ordem ou mandado;

- legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;

- competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

- regularidade da sua transmissão ao destinatário (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal anotado pág. 1089).

   No nosso caso, a questão suscitada prende-se, assim, com a legalidade formal e substancial da ordem, defendendo o arguido que a mesma não pode considerar-se legal, uma vez que lhe era permitido proceder à recolha de imagens, como o fazia.

A legitimidade da ordem reconduz-se à sua conformidade à lei ou às qualidades que esta requer; a legitimidade traduzirá também a justeza da ordem, a sua conformidade às regras da equidade, a circunstância de ser fundada na razão, segundo a natureza das coisas.

A sentença recorrida elaborou uma fundamentação em que abordou todos os temas, ora novamente levantados pelo recorrente, com argumentos de valia.

Transcrevemos, a propósito, o pertinente excerto do aresto impugnado, por com o mesmo concordarmos na íntegra:

«Vertendo todo o exposto no caso concreto, face à matéria de facto provada, dúvidas não restam de que ao arguido foi solicitado que desligasse a câmara – 1 a 9 dos factos provados. Que o arguido ouviu e percebeu o conteúdo da ordem que lhe foi transmitida, bem como das consequências do seu incumprimento e que apesar disso não a desligou, ordem transmitida pelos militares da GNR, bem sabendo que com tal comportamento desobedecia a ordem legítima, que lhe havia sido regularmente comunicada por militar da GNR, com autoridade para o fazer, bem como conhecia as consequências que da sua conduta advinham, sendo legítima a ordem não podia o arguido resistir a tal ordem nos termos constantes do artigo 21º da CRP, que dispõe: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

A referida ordem não viola a liberdade de imprensa e meios de comunicação social, contemplada no artigo 38º da Constituição da República Portuguesa que no seu n.º1 refere “É garantida a liberdade de imprensa”. Tal ordem não atenta contra a liberdade de imprensa, nem contra a liberdade de expressão. Vejamos.

O artigo 22º da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13.01), estabelece:

Constituem direitos fundamentais dos jornalistas, com o conteúdo e a extensão definidos na Constituição e no Estatuto do Jornalista:

a) A liberdade de expressão e de criação;

b) A liberdade de acesso às fontes de informação, incluindo o direito de acesso a locais públicos e respetiva proteção;

c) O direito ao sigilo profissional;

d) A garantia de independência e da cláusula de consciência;

e) O direito de participação na orientação do respetivo órgão de informação”.

O artigo 33º, nº1 da Lei de Imprensa (Lei 2/99, de 13.01), estabelece:

1. É punido com pena de prisão de 3 meses a 2 anos ou multa de 25 a 100 dias aquele que, fora dos casos previstos na lei e com o intuito de atentar contra a liberdade de imprensa:

a) Impedir ou perturbar a composição, impressão, distribuição e livre circulação de publicações;

b) Apreender quaisquer publicações;

c) Apreender ou danificar quaisquer materiais necessários ao exercício da atividade jornalística”.

Antes de mais decorre da factualidade provada em 10 e 11 que o arguido tem o estatuto de jornalista da imprensa regional, atento o facto de ser diretor da publicação periódica “ x(...) ”, em conformidade com o disposto no artigo 6º do Estatuto da Imprensa Regional (DL nº106/88, de 31 de Março).

Decorre ainda dos factos provados em 10 que o arguido é membro da assembleia de freguesia de (...) .

De facto, as reuniões da Assembleia Municipal são reuniões públicas, conforme resulta do disposto no art. 84º, nº1 da Lei 169/99, de 18.09, entretanto revogado e previsto no artigo 49º, nº1 da Lei 75/2013 de 12.09. No entanto, não resulta do facto de as reuniões serem públicas a faculdade de as mesmas serem objeto de registo de som ou imagem por parte de quem assiste às mesmas.

Aliás decorre de forma clara do artigo 31º, nºs. 2 e 3 do Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) que a publicidade dos trabalhos e dos atos da assembleia de freguesia é efetuada através das atas.

No que respeita aos jornalistas decorre do seu Estatuto (Lei nº1/99, de 01.01) no artigo 8º, nº1, al. a) o seguinte:

O direito de acesso às fontes de informação é assegurado aos jornalistas:

a) Pelos órgãos da Administração Pública enumerados no nº2 do art. 2º do Código de Procedimento Administrativo.

Resulta claro, que o acesso à informação daquilo que são os atos administrativos proferidos pelos órgãos autárquicos, no caso concreto pela Assembleia Municipal, deve ser efectuado nos termos dos citados artigos. Mas tais normativos apenas conferem a faculdade de haver acesso aos documentos administrativos, sendo que no caso em concreto seria o acesso às atas das reuniões.

Resulta ainda do referido Estatuto dos Jornalistas, no seu artigo 14º, al. f), a propósito dos seus deveres, o seguinte:

Independentemente do disposto no respetivo código deontológico, constituem deveres fundamentais dos jornalistas:

f) Não recolher imagens e sons com recurso a meios não autorizados a não ser que se verifique um estado de necessidade para a segurança das pessoas envolvidas e o interesse público o justifique”.

Ora a recolha de som e imagem sem autorização da mesa sem que se verifique qualquer das circunstâncias descritas no aludido artigo consubstancia a violação do próprio estatuto.

Decorre assim da factualidade provada em 1 a 9 e 22 que o arguido não fez a inscrição prévia junto do Presidente da Mesa para filmar a assembleia e não exibiu o cartão referido em 12 nem ao Presidente da Mesa, nem aos seus membros, só o tendo exibido aos militares da GNR - 12.

Não foi dada autorização ao arguido para recolher imagens e sons, pelo que foi assim legítima a ordem que lhe foi dada.

Acresce ainda, o facto de o arguido pretender em simultânea exercer a sua qualidade de jornalista e deputado da assembleia municipal. No que respeita à eventual faculdade de um membro da assembleia municipal poder estar, no exercício das suas funções e exercer em simultâneo as funções de jornalista, há que ter em conta que os membros dos órgãos administrativos estão sujeitos ao princípio da imparcialidade previsto no artigo 9º do CPA (Lei 4/2015 de 07.01).

Assim não pode um membro de um órgão autárquico estar a exercer o seu mandato e, em simultâneo estar a recolher informação para aquilo que é o seu interesse profissional, sob pena de violação do referido princípio.

Decorre do supra exposto, que o direito à informação, apesar de ser um direito constitucionalmente consagrado, não poderá sobrepor-se a outros direitos, liberdades e garantias – artigo 35º da Constituição da República Portuguesa.

A recolha de som e imagem e, por maioria de razão dos membros dos órgãos autárquicos deve ser autorizado pelo titular dos dados de forma expressa ou tácita – artigo 79º do Código Civil e artigo 35º da Constituição da República Portuguesa. Não havendo essa autorização seja de modo expresso, seja por previsão no Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) , a mesma não pode ser efetuada. Ainda se dirá que de acordo com o disposto no art. 18º, nº1, al. e) do Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) , compete ao presidente da assembleia de freguesia “assegurar o cumprimento da lei e a regularidade das deliberações”, pelo que caberá ao titular desse cargo verificar se se encontram cumpridas as normas legais que facultem a recolha de som e imagem aquando da realização da assembleia municipal.

Assim, o arguido pelo facto de não estar autorizado pela assembleia e seu presidente a captar sons e imagens, não tendo sequer feito a inscrição prévia junto do presidente da mesa para o efeito, nem tendo exibido o seu cartão equiparado a jornalista, não poderia manter a câmara ligada, e tal bastaria por si só para ter de obedecer à ordem que lhe foi dada.

Acresce ainda a tal facto, a dupla qualidade em que pretendia intervir, em simultâneo como jornalista e como membro da assembleia municipal, o que atentas as disposições legais acima citadas não é admissível, sendo também por isso legítima a ordem que foi dada. Aliás, decorre da factualidade provada em 13 que se encontravam mais jornalistas presentes no local onde se realizavam os trabalhos da assembleia e que não houve qualquer oposição à gravação dos trabalhos por parte daqueles. Temos assim de concluir que a ordem que foi dada ao arguido, atentos os fundamentos supra indicados, foi legítima.

Agindo deste modo o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pelo que agiu na modalidade de dolo direto do art. 14.º n.º 1 do Código Penal -9 dos factos provados. Encontrando-se, assim, satisfeitos os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime e não tendo agido, o arguido, ao abrigo de qualquer norma justificadora ou de desculpação a sua conduta é também ilícita e culposa. Encontram-se, assim, preenchidos os elementos do tipo legal de crime em análise, pelo que o arguido se constituiu como autor material de um crime de desobediência simples, previsto e punível pelo artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal.»

   Na nossa perspectiva, o tribunal recorrido enquadrou devidamente a questão:

   Em primeiro lugar, é incompatível o exercício simultâneo das funções de eleito local e de jornalista; com efeito, não se compreende como poderia o recorrente, nessas circunstâncias conciliar direitos inconciliáveis, num mesmo acto. Referimo-nos ao seu direito de exercício de participação activa na reunião do órgão (artº 4º, c), do E.E.L.) e ao seu dever de isenção, enquanto jornalista (artº 14º, 1, a) do E.J.).

   O desempenho do cargo político para que foi o recorrente eleito pressupõe a sua participação nas reuniões do órgão por inteiro e em exclusivo; não se coaduna essa participação com o simultâneo desempenho de uma outra actividade paralela, designadamente a de jornalista, que dele exige uma obrigação de isenção, incompatível com a luta partidária que, por regra, tem lugar naquele fórum participativo. Atente-se em que a norma do artº 3º, 1, f) do mesmo EJ estabelece uma incompatibilidade absoluta entre o exercício da profissão de jornalista e o desempenho de qualquer função executiva, em regime de permanência, a tempo inteiro ou a meio tempo, em órgão autárquico. Ora se existe uma incompatibilidade absoluta em tal caso, bem se compreende, que, por identidade de razões, exista uma incompatibilidade relativa, em caso de desempenho da actividade de jornalista na reunião de órgão autárquico que ele integre. Aliás, o referido artº 14º, no seu nº 1, c), concede ao jornalista a faculdade de recusar o desempenho de funções susceptíveis de comprometer a sua independência profissional. No nosso caso, o desempenho daquelas funções políticas opõe-se necessariamente ao concomitante exercício da actividade jornalística.

   A esta fundamentação de ordem substancial, acresce uma outra de ordem formal: ainda que se entendesse que era lícito ao recorrente proceder à filmagem da reunião do órgão autárquico [no que se não concede], nunca ele o poderia fazer sem que, previamente fosse acreditado para o efeito, perante o presidente da mesa da assembleia.

   Só através desta acreditação se concretiza a possibilidade de impedir que qualquer cidadão, não jornalista, proceda ao desempenho de actividades próprias desta profissão, sem ser detentor do necessário titulo profissional (artº 4º, 1 e 2 do EJ). Tal titulo profissional traduz-se na carteira profissional de jornalista e tal qualidade prova-se através da exibição da mesma (artº 5º, 1 e 4 do DL 70/2008, de 15/4).

   Recordemos que, nos termos assentes, o arguido não procedeu à sua acreditação, enquanto jornalista, perante o presidente da mesa do órgão autárquico cuja reunião decorria, apenas apresentando o cartão de equiparado a jornalista nas circunstâncias referidas em 12. Aliás, resultou também provado que havia mais jornalistas presentes no local, não tendo havido qualquer oposição à gravação dos trabalhos por eles (13).

   Se é verdade que a liberdade de imprensa merece protecção constitucional (artº 38º, CRP), não é menos certo que tal direito há-de ser conjugado com o exercício de outros direitos com igual consagração, v.g. do direito à imagem (v. o artº 26º da mesma CRP, conjugado com o disposto no artº 79º, 1 e 2, do CC), e há-de sofrer os constrangimentos resultantes da regulamentação relativa ao exercício da actividade de jornalista e do respectivo estatuto, v.g. os já invocados. O que a norma constitucional proíbe, em absoluto, é o exercício de qualquer tipo de censura (artº 37º) limitativo da liberdade de informação.

   Deste modo, somos forçados a concluir que foi legítima quer a proibição de gravação dos trabalhos pela assembleia, nas circunstâncias concretas do recorrente, quer a subsequente ordem que, no mesmo sentido, lhe foi regularmente transmitida pelo militar da GNR.

Não se mostra violada a norma do artº 31º, 1, do Regimento da Assembleia de Freguesia de (...) , pois que a legitimidade da proibição de gravação da sessão em causa não resulta dela mas sim das considerações atrás tecidas, sendo diferente o suporte legal invocado.

Do mesmo modo, e considerada essa mesma argumentação, não vislumbramos em que medida se possa chamar à colação a norma do artº 9º do CPA, v.g. afirmando a sua violação, visto termos considerado legítima a actuação do órgão autárquico.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso do arguido, confirmando na íntegra a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 5 UC’s.

Coimbra, 08 de Janeiro de 2017

(Jorge França - relator)

(Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)