Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/09.0TBFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
DESCONHECIMENTO DO PARADEIRO
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1878º, 1879º E 1905º CC
Sumário: I – Mesmo no caso de se desconhecer o paradeiro e a situação económica do progenitor, deve fixar-se a pensão de alimentos devidos a menor.

II – Os alimentos devidos aos filhos menores compreendem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação, mas o conceito de “sustento” é mais vasto que a simples necessidade de alimentação, não se aferindo pelo estritamente necessário à satisfação das necessidades básicas, mas o indispensável à condição de vida necessária ao seu desenvolvimento integral.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - A requerente – A... ( representada pelo Ministério Público )  – instaurou ( 13/1/2009 ) na Comarca de Ferreira do Zêzere acção de regulação do exercício do poder paternal, com forma de processo especial, contra os requeridos – B... e C... .

         Alegando que os requeridos, seus pais, vivem separados e não estão de acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, pediu a sua efectivação judicial.

         1.2. - Após a instrução do processo, foi proferida sentença ( fls.141 e segs.) que decidiu regular o exercício das responsabilidades parentais, estabelecendo a confiança da menor à requerida e o regime de visitas do requerido, mas não fixou qualquer pensão de alimentos a cargo do requerido B....

A sentença recorrida justificou a não condenação na pensão de alimentos, com a seguinte argumentação:

“ (…)

“ Ora, a verdade é que não foi possível localizar o requerido e, muito menos, apurar-lhe qualquer rendimentos.

Assim sendo, esta situação não é diferente daquela em que o progenitor, simplesmente, não dispõe de rendimentos.

Não saber se dispõe ou saber que não dispõe, acaba, ao fim de contas, por ir dar ao mesmo resultado: desconhece-se as possibilidades e os meios daquele que deve prestar os alimentos.

Por esse motivo, numa situação destas, a fixação de uma pensão de alimentos serve apenas – digamo-lo frontalmente! – para, logo no momento seguinte, se accionar o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos aos Menores (FGADM).

E, com todo o respeito e consideração por todas as opiniões contrárias – incluindo, neste processo, a opinião do Ministério Público – entendemos que se trata de uma subversão da lógica para que foi criado o FGADM. Este fundo foi criado para substituir, em determinadas situações, o devedor faltoso, ficando o Fundo subrogado nos direitos do credor; não foi criado como se de um subsídio se tratasse, sem qualquer correlação com os rendimentos do devedor.

Entendemos, por isso, que devemos ser tributários directos da lei. E se não é possível saber os rendimentos do requerido, então também não é possível fixar uma pensão de alimentos, porque se desconhece “possibilidades do obrigado à prestação de alimentos”.”

         1.3. - Inconformado, o Ministério Público recorreu de apelação ( fls.154 e segs.), com as seguintes conclusões:

[…)

         Não houve resposta.


II - FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. - O objecto do recurso

         A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, consiste em saber se, face à ausência do paradeiro do requerido e de elementos disponíveis sobre a sua situação económica, deve ou não o tribunal fixar uma pensão de alimentos à menor.

2.2. – Os factos provados

1. A menor A...nasceu no dia 27/11/2001, é filha dos requeridos, que nunca foram casados entre si, nem vivem juntos.

2. Os requeridos não regularam, até hoje, o exercício das responsabilidades parentais.

3. Os requeridos não estão de acordo quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais.

4. A menor é fruto de uma relação que durou 11 anos, e viveu sempre com a requerida.

5. Desde que a menor tinha 3 anos de idade que o progenitor deixou de a contactar.

6. A menor reside com a progenitora e com os avós maternos.

7. A requerida é empresária do ramo das compotas caseiras e o agregado familiar tem um rendimento global de € 767.53, sendo ainda a requerida ajudada pela Santa Casa da Misericórdia.

8. A menor tem despesas de cerca de €150,00 euros mensais sem contar com a alimentação e calçado.

9. A menor teve um acidente com ingestão de produtos corrosivos necessitando de cuidados de saúde com regularidade.

10. O requerido em nada contribui para o sustento da menor.

11. Não é conhecida a residência do requerido.

2.3. – O mérito do recurso

Problematiza-se a questão de saber se não se apurando os rendimentos do requerido, deve ou não fixar-se uma pensão de alimentos, e sobre a qual existem duas orientações:

Uma ( seguida na sentença ) no sentido de que não é possível a atribuição da pensão de alimentos porque os factores da medida da obrigação alimentar são também requisitos da própria existência;

Outra ( defendida pela recorrente ) sustentando a sua fixação, com fundamento nos tópicos argumentativos, proficientemente desenvolvidos nas doutas alegações.

Pela maior consistência argumentativa deve acolher-se a tese ( prevalecente na jurisprudência, como se ilustra nas alegações ) da obrigatoriedade da fixação dos alimentos, porque, em síntese, se trata de um direito fundamental e irrenunciável da menor e a intervenção do FGADM pressupõe a prévia condenação do obrigado a alimentos ( cf., desta Relação, por ex., Ac RC de 17/6/2008, proc. nº 230/07, de 28/4/2010, proc. nº 1810/05, de 4/5/2010, proc. nº 1014/08, disponíveis em www dgsi.pt ).

Também Remédio Marques ( Algumas Notas Sobre Alimentos ( Devidos a Menores), 2ª ed., pág. 72 ), para quem “os direitos-deveres dos progenitores para com os menores são sempre devidos, independentemente dos seus recursos económicos e dos estado de carência económica dos filhos, posto que se trata de direitos cujo exercício é obrigatório e prioritário em atenção á pessoa e aos interesses do menor, Na nossa opinião, não tem aplicação, nestas eventualidades, o disposto no art.2004/1 do CC, de harmonia com o qual , e ao derredor do princípio da proporcionalidade se deve atender às possibilidades e económicas do devedor, para o efeito de fixar a obrigação de alimentos. Donde, faz mister fixar-se sempre uma prestação de alimentos a cargo de um ou de ambos os progenitores, mesmo que estejam desempregados e não tenham meios de subsistência “.

O poder paternal apresenta-se como um efeito da filiação ( art.1877 e segs. do CC ), sendo concebido como um conjunto de poderes-deveres que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos menores não emancipados, e que na moderna terminologia se designa por “ responsabilidade parental “.

         Não se trata de um puro direito subjectivo, visto que o seu exercício não está dependente da livre vontade do seu titular, mas antes de um poder funcional, sendo que as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral ( art.69 nº1 da CRP e Convenção Sobre os Direitos da Criança ( adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº49/90, ambos publicados publicada no DR I Série nº211/90, de 12/10/90 ).

Como é sabido, a regulação do exercício do poder paternal comporta três aspectos: a guarda, o regime de visitas e os alimentos.

O critério legal de atribuição ou repartição das responsabilidades parentais é o “ superior interesse da criança “ ( arts.1905 CC , 180 da OTM, 3 nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança ).

         O “ interesse superior da criança “, enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral ( art.69 nº1 da CRP ), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência.

         O exercício das responsabilidades parentais deve ter presente ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, legitimador do menor enquanto sujeito de direitos e não como mero objecto, o princípio da continuidade das relações familiares e da convivência familiar e o princípio da igualdade dos pais.

O direito de alimentos dos filhos menores decorre do vínculo jurídico da filiação (arts.1878, 1879 CC ), cujo dever impende por igual sobre ambos os progenitores ( art.36 nº1 da CRP e 1878 nº1 do CC ), mas o princípio da igualdade não significa que cada cônjuge seja obrigado a contribuir com metade dos alimentos.

Por seu turno, os alimentos devidos aos filhos menores compreendem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação ( art.1879 CC ).

O conceito de “sustento” é mais vasto que a simples necessidade de alimentação, visto abarcar todas as necessidades vitais, designadamente as relacionadas com a saúde, os transportes, a segurança, a educação e instrução (art. 2003 CC ), sendo maior que a exigida nos restantes casos previstos na lei ( art.2009 CC). Com efeito, a obrigação de sustento não se afere aqui pelo estritamente necessário à satisfação das necessidades básicas, mas ao indispensável ao desenvolvimento físico, intelectual, moral do menor. A criança tem direito a um nível de vida suficiente e incumbe aos pais assegurar a condição de vida necessária ao seu desenvolvimento ( art.27 nº1 da Convenção ).

Como não há, nem seria concebível, um sistema tarifado, a lei estabelece ao juiz apenas critérios gerais de orientação, como os princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, dentro dos quais terá de ser fixada a prestação ajustada às circunstâncias peculiares de cada caso.

Pois bem, considerando que a menor A... tem actualmente 8 anos de idade, vive com a mãe e avós maternos, o rendimento do agregado é de € 767,53 por mês, a menor tem despesas mensais de € 150,00, sem contar com alimentação e calçado, e necessita de cuidados especiais de saúde, e uma vez que o requerido nunca contribuiu para o sustento, deixando de a contactar desde os 3 anos de idade, tendo em conta o valor do salário mínimo nacional actual de € 485,00 ( DL nº 143/2010 de 31/12 ), o montante proposto de € 100,00 por mês revela-se ajustado, devendo ser actualizado anualmente, em função da inflação.

2.4. - Síntese conclusiva:

1. Mesmo no caso de se desconhecer o paradeiro e a situação económica do progenitor, deve fixar-se a pensão de alimentos devidos a menor.

2. Os alimentos devidos aos filhos menores compreendem as despesas com o sustento, segurança, saúde e educação, mas o conceito de “sustento” é mais vasto que a simples necessidade de alimentação, não se aferindo pelo estritamente necessário à satisfação das necessidades básicas, mas o indispensável à condição de vida necessária ao seu desenvolvimento integral.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e, revogando-se a sentença recorrida, condenar o requerido B... a pagar à sua filha menor, A..., a título de alimentos, a pensão mensal de € 100,00 ( cem euros), actualizada anualmente em função do índice de preços ao consumidor, publicado pelo INE, que deve ser entregue a C... ( mãe da menor ) até ao dia 8 de cada mês.


2)

Sem custas.


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Jorge Arcanjo (Relator)

Isaías Pádua

Teles Pereira