Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/08.2GCACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
OMISSÃO
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 358º NºS 1 E 3, 379º CPP
Sumário: Encontrando-se o arguido acusado da prática de uma contraordenação, p. e p. pelo artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada, e tendo-se omitido na acusação e nem lhe tendo sido dado a conhecer, no decurso da audiência, a possibilidade de poder vir a ser condenado na sanção acessória de inibição de conduzir, nem tendo sido cumprido o disposto no artigo 358º nº 3 do CPP, fica o tribunal impedido de a aplicar.
Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de processo comum nº 160/08.2GCACB do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, em que é arguido

            A..., melhor id. nos autos,

            E a quem é imputada a prática, em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, al. b), do Código Penal, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200º, nºs.1 e 2, do Código Penal e de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º, do Código da Estrada,

Procedeu-se a julgamento e a final foi decidido:

- absolver o arguido do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200º, nºs.1 e 2, do Código Penal.

- condenar o arguido pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, al. b) e nº 3, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, a razão diária de 12,00 € (doze Euros) -

- condenar o arguido na proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 8 (oito) meses.

- condenar o arguido pela prática de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º, do Código da Estrada, na coima de 750,00 € (setecentos e cinquenta Euros).

- condenar o arguido na proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 2 (dois) meses e 15 dias.

            2. Desta sentença recorre o ministério Público, que formula as seguintes conclusões:

            1ª -- Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da douta Sentença de fls. ..., --- no interesse exclusivo do arguido A..., mas ainda contra esse seu mesmo interesse --- na qual se decidiu:

a) Na parte em que, ao condená-lo pela prática de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo artigo , do Código da Estrada, na coima de 750,00 € (setecentos e cinquenta Euros), também o condenou na sanção de inibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias;

b) Na parte em que o condenou pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, al. b) e nº 3, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, a razão diária de 12,00 € (doze Euros);

c) Na parte em que o absolveu do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200º, nºs.1 e 2, do Código Penal.

            2ª -- Existe uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e, por conseguinte, a imputação ao arguido de um crime diverso quando:

a)- Da referida adição ou modificação dos factos resulte que o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo;

b) - Da referida adição ou modificação dos factos resulte um facto naturalístico diferente, objecto de um diferente e distinto juízo de valoração social;

c) -- Da referida adição ou modificação dos factos resulte a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, resulte a perda da sua identidade.

            3ª -- Uma “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforme o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação”.

            4ª -- Encontrando-se o arguido acusado, para além do mais, da prática de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada, e, não lhe tendo sido dado a conhecer, no decurso da Audiência de discussão e julgamento, a possibilidade de poder vir a ser condenado, para além da coima aplicável, na sanção de inibição de conduzir prevista nos artigos 146º, al. l) e 147º, nº 2, ambos do Código da Estrada, não lhe foi dada a possibilidade de se poder defender dessa alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no artigo 358º, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal.

            5ª – Tendo ocorrido uma alteração não substancial da qualificação jurídica, impunha-se ao Tribunal a quo dar cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, sob pena de o arguido ser “surpreendido, prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica operada, por se tratar de uma alteração não substancial com relevo para a decisão da causa.

            6ª – Ao ter-se omitido tal comunicação, deverá a douta Sentença a quo ser, nesta parte, declarada nula, por ter violado o disposto nos artigos 283º, nº 3, al. c), 358º, nºs 1 e 3 e 379º, nº 1, al. b), todos do Código de Processo Penal e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa e, por via dela, ser declarada nula a condenação de que o arguido foi alvo, na parte em que foi sancionado na sanção de inibição de conduzir veículos a motor, pelo período de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias, prevista nos artigos 146º, al. l) e 147º, nº 2, ambos do Código da Estrada.

            7ª -- Com a tipificação do crime de condução perigosa de veículo rodoviário prevista no artigo 291º, do Código Penal, pretendeu o Legislador sancionar penalmente tal actividade, sempre que se verifique um desrespeito grosseiro daquelas normas de conduta, com a criação, em concreto, de um perigo para a vida, para a integridade física ou para bens patrimoniais de valor elevado, pertencentes aos demais utentes da via, já que a condução de veículos automóveis é, já por si, uma actividade intrinsecamente perigosa, cujo perigo fica contido em limites razoáveis se forem respeitadas certas normas de conduta, o que permite considerá-la uma actividade lícita, apesar de perigosa.

8ª – Resultou provado que:

(…) 19 - O arguido, durante todo o seu percurso circulou a uma velocidade de mais de 90 Km/h, sendo a velocidade permitida no local de 50 Km/h.

20 - O arguido ao agir da forma supra descrita, estava ciente de que circulava a uma velocidade que não era permitida, tendo efectuado por três vezes manobras de mudança de direcção para a esquerda sem as ter sinalizado e não tendo parado perante o sinal de STOP igualmente três vezes, isto sem se assegurar previamente que dessas manobras não resultava perigo para os demais utentes da via, bem sabendo que desrespeitava as mais elementares regras de condução rodoviária.

21 - Com a sua conduta, o arguido criou perigo para a integridade física de B... e do filho desta.

(…)

24 - O arguido bem sabia que a sua conduta não era permitida e era punida por lei, tendo agido de modo livre, deliberado e conscientemente.

            9ª – Tais elementos, objectivo e subjectivo, fazem subsumir a conduta do arguido à prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 14º, nº 1, 69º, nº 1, al. a) e 291º, nº 1, al. b), todos do Código Penal, posto que a conduta/acção daquele claramente dolosa e a criação do perigo pelo mesmo causado foi, de igual forma, claramente dolosa.

            10ª -- Ao subsumir a matéria de facto provada ao disposto nos disposto no artigo 15º e 291º, nº 3, do Código Penal, violou a douta Sentença a quo o disposto nos artigos 14º, nº 1 e 291º, nº 1, al. b), ambos do mesmo Código.

11ª -- Se o Tribunal valorar a prova contra todos os ensinamentos da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou apesar de proibições legais, incorre em erro na apreciação da prova.

12ª -- Sendo que o erro na apreciação da prova é aquele que se mostra ostensivo, de tal modo chocante que não passa desapercebido ao comum dos observadores, ou seja, aquele erro de que o cidadão médio dele facilmente se dá conta.

13ª -- Só haverá erro na apreciação da prova, quando, entre outros:

- “Houver erro na crítica dos factos.

- Se emitir juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne inaceitável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida;

- Se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável;

- Se valorizar prova contra regras da experiência comum ou critérios legalmente fixados;

- Se for um erro de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da sentença. As provas revelam, claramente um sentido e a decisão ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela, algum facto essencial.”

14ª -- Foi incorrectamente julgado como não provado que “o arguido tenha configurado a possibilidade que os ocupantes do veículo automóvel XF-14-83 teriam sofrido traumatismos e que necessitariam de urgente socorro médico.”

            15ª -- Os documentos de fls. 109, 122, 122 v., conjugado, por um lado, com o teor do exame pericial de fls. 130 e 131 e, por outro, com os depoimentos das testemunhas B...  e C... são válidos, deviam e devem ser tidos em conta,

16ª – Pelo que se impõe e requer, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, als. a), b) e c) e 4, do Código de Processo Penal a renovação de tais meio de prova, nos termos acima transcritos.

            17ª -- Dessa renovação deverá resultar provado que:

- O arguido configurou a possibilidade que os ocupantes do veículo automóvel XF-14-83 teriam sofrido traumatismos e que necessitariam de urgente socorro médico;

- O menor D..., tinha, na data dos factos, 4 anos de idade;

- O menor D... seguia no interior do veículo, no banco de trás, do lado direito, sentado na cadeira de bebé, com o cinto apertado;

- Na sequência do embate, o menor D... foi projectado contra a janela/porta;

- Na sequência do embate, o menor D... sofreu um pequeno hematoma, com ligeira escoriação na região supra parietal direita;

- Após o embate, o menor D... manteve-se sentado na cadeira de bebé, com o cinto apertado, até à chegada dos médicos do Instituto Nacional de Emergência Médica;

- O menor D... foi transportado à Urgência Pediátrica do Centro Hospitalar de Caldas da Rainha, onde deu entrada pelas 10.31 horas, com suspeita de traumatismo crâneo-encefálico, que não se veio a confirmar.

18ª -- Isto porque “o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência”.

19ª – Dado que a crítica dos factos, o juízo sobre a verificação da matéria de facto aceitável, a conclusão logicamente aceitável, as regras da experiência comum, o sentido que as provas revelam, assim como a decisão logicamente possível apenas poderia sido a enunciada na 17ª Conclusão que antecede.

20ª -- Ao assim não ter decidido, violou a douta Sentença a quo o disposto nos artigos 14º, nº 3, 69º nº 1, al. b) e 200º, nºs 1 e 2, todos do Código Penal, 127º e 410º, nº 2, al. c), ambos do Código de Processo Penal.

            21ª – Com a tipificação do crime de omissão de auxílio previsto no artigo 200º, do Código Penal, pretendeu o Legislador proteger “o direito natural ao socorro que assiste a toda a pessoa vítima de acidente, ao qual assim é conferida dignidade jurídica com o estabelecimento do correspondente dever de socorro a favor dela”.

            22ª – “A expressão “grave necessidade” não respeita à gravidade das consequências do acidente, calamidade, etc., mas às condições anormais em que surge a violação dos bens eminentemente pessoais do ofendido, e o conceito de “afastamento do perigo” que se encontra na base do dever de solidariedade social engloba também, e necessariamente, as situações em que a violação de qualquer daqueles bens eminentemente pessoais de outrem já foi efectivada, mesmo que de forma irremediável, mas cuja extensão ou possíveis futuras consequências se não tornem perceptíveis a quem se depare com a situação em causa”.

            24ª -- Resultando das regras das experiência comum, que:

a) Da ocorrência de uma colisão automóvel como a descrita nos Autos, colisão essa violenta”, que fez “rodopiar e projectar o veículo automóvel  … para a berma da estrada”;

b) Circunstâncias essas que motivaram a testemunha C... a “chamar logo a ambulância”;

c) Um dos ocupantes do veículo --- o menor D..., de 4 anos de idade na data da prática dos factos ---, estava “carecido em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, dado que, por si só, era incapaz de superar;

d) Para além desse ocupante, ou outros podiam, com grande probabilidade / previsibilidade / potencialidade / perigosidade, vir a sofrer lesões traumáticas, expostas, ou não, lesões torácicas e/ou do foro cervical e neurológico;

e) Leões essas que, podendo não ser na esmagadora maioria dos casos, lesões expostas, sangrantes, não são perceptíveis para a generalidade do homem médio, comum,

- As lesões apresentadas pelo menor --- no local do acidente --- constituem, no quadro exterior descrito nos factos dados como provados, uma situação de “grave necessidade, provocada pelo arguido na sequência de acidente de viação” que punha em perigo a integridade física do referido menor.”

25ª – Face aos fundamentos de facto e de direito supra aduzidos, entende o Ministério Público que a douta Sentença a quo deverá ser substituída por outra que também condene o arguido A... pela prática, em autoria material, em concurso, efectivo, real, de 1 (um) crime de omissão de auxílio, p. e p. pelos artigos 14º, nº 3, 26º, 30º, nº 1, 77º, 69º, nº 1, al. b) e 200º, nºs. 1 e 2, todos do Código Penal.

26ª -- Ponderando a matéria de facto provada, os bens jurídicos violados, a gravidade dos ilícitos e as molduras penais que lhe são abstractamente aplicáveis, a personalidade do arguido, a medida da sua culpa e as necessidades de reprovação e de prevenção de futuros crimes, entende o Ministério Público que teria sido justo aplicar ao arguido, por equitativas, as seguintes penas parcelares:

A) Manter a coima de 750,00 € (setecentos e cinquenta Euros) em foi condenado, pela prática de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada;

B) A pena de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de 12,00 € (doze Euros), pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto nos artigos 47º, nº 1, 69º, nº 1, al. a) e 291º, nº 1, al. b) do Código Penal, e a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 10 (dez) meses;

C) A pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 12,00 € (doze Euros), pela prática de 1 (um) crime de omissão de auxílio, previsto nos artigos 69º, nº 1, al. b) e 200º, nº 1 e 2, Código Penal, e a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 6 (seis) meses.

27ª -- E, por força dos critérios plasmados no artigo 77º, do Código Penal, sendo que o cúmulo material, in casu, correspondente à soma das penas parcelares, se situa entre o limite mínimo de 200 (duzentos) dias de multa e o máximo de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, ponderando-se os factos supra enunciados, entende o Ministério Público que teria sido justo aplicar ao arguido, por equitativa, em cúmulo jurídico daquelas penas parcelares, a pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa à razão diária de 12,00 € (doze Euros) e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.

            28ª -- Ao ter decidido de forma diversa da ora sustentada pelo Ministério Público, violou a douta Sentença o disposto nos artigos 40º, 69º, nº 1, als. a) e b), 70º, 71º e 77º, todos do Código Penal.

29ª -- Em consequência, deverá o presente recurso ser julgado procedente e a douta Sentença a quo substituída por douto Acórdão que condene o arguido A... nos termos supra expendidos.

            3. O arguido não respondeu ao recurso.

            4. Nesta instância, a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que acompanha a posição do MºPº em 1ª instância, à excepção no que respeita à alteração não substancial dos factos na medida em que, conforme resulta de fls. 314 dos autos, foi comunicado ao arguido a alteração da qualificação jurídica com vista à imputação da sanção acessória de inibição de conduzir. Devendo, assim improceder o recurso, nesta parte.

            5. Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.


II

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida com relevância para apreciação do recurso:

FACTOS

            Cumprido o legal formalismo, procedeu-se ao julgamento e, discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 - No dia 3 de Maio de 2008, em hora não concretamente apurada, mas seguramente antes das 8h00, o arguido circulava na EN nº 1, no sentido Sul-Norte, pelo lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha,  …, área desta cidade e comarca de Alcobaça quando embateu no veículo pesado de mercadorias de matrícula … que se encontrava estacionado no parque do restaurante “O Bigodes”.

2 - O arguido conduzia o veículo automóvel de marca …, pertencente à empresa “ ….”.

3 - Em seguida, nesse mesmo dia e cerca das 9h30m, o arguido conduzia o mesmo veículo automóvel na Rua  …- Benedita, momento em que foi avistado pelos agentes da GNR que seguiam na Rua dos Combatentes.

4 - Nesse local existe um entroncamento com a Rua dos Combatentes e o arguido, nesse momento, efectuou uma manobra de direcção para a esquerda e passou a circular na Rua dos Combatentes.

5 - Então, os agentes da GNR F... e G... ordenaram ao arguido que parasse através do uso de um megafone, tendo proferido a seguinte expressão: "Senhor condutor encoste à direita e imobilize o veículo”, ordem que não foi acatada pelo arguido.

6 - Seguidamente, ao chegar ao entroncamento com a Rua Nova da Goucharia, o arguido passou a circular na Rua Nova da Goucharia, não tendo sinalizado a manobra de mudança de direcção para a sua esquerda.

7 - No momento em que se encontrava no final da Rua Nova da Goucharia, o arguido não parou no sinal de paragem obrigatória STOP ali existente e efectuou nova mudança de direcção, sem ter sinalizado tal manobra e passou a circular na Rua das Moreias.

8 - Então, o arguido percorreu a Rua das Moreias até ao fim e virou novamente à esquerda para a Rua dos Combatentes, não respeitado o sinal STOP ali existente e não tendo sinalizado a manobra de mudança de direcção.

9 - Durante o período temporal em que o arguido efectuou as manobras referidas em 6° a 8°, o arguido foi sempre seguido pelos agentes da GNR F... e G....

10 - Posteriormente, cerca das 10h00, o arguido conduzia novamente o veículo automóvel  … na Rua Nova do Goucharia.

11 - No local existe um cruzamento com a Rua dos Combatentes/Rua da Goucharia/ Estrada da Fonte Quente, de visibilidade reduzida.

12 - Nesse momento, B... conduzia o veículo automóvel de matrícula …, na Rua dos Combatentes, no sentido Ribafria-Benedita.

13 - Então, o arguido ao chegar a tal cruzamento não parou diante do sinal STOP ali existente e embateu com o seu veículo automóvel na porta traseira e guarda -lamas do veículo automóvel  … conduzido por B..., pertencente a … .

14 - Como consequência do referido embate, o veículo automóvel  … rodopiou e foi projectado para a berma da estrada.

15 - No interior do veículo automóvel conduzido por B... seguia também o seu filho D..., o qual foi assistido no Centro Hospitalar das Caldas da Rainha.

16 - Do referido acidente, resultou para D... pequeno hematoma na região supra-parietal direita, o que lhe determinou 15 dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

17 - À data do acidente, o veículo automóvel conduzido por B... tinha o valor de € 900,00 (novecentos euros).

18 - Após ter embatido no veículo automóvel referido em 12°, o arguido abandonou imediatamente o local sem ter parado o seu veículo automóvel.

19 - O arguido, durante todo o seu percurso circulou a uma velocidade de mais de 90 Km/h, sendo a velocidade permitida no local de 50 Km/h.    

20 - O arguido ao agir da forma supra descrita, estava ciente de que circulava a uma velocidade que não era permitida, tendo efectuado por três vezes manobras de mudança de direcção para a esquerda sem as ter sinalizado e não tendo parado perante o sinal de STOP igualmente três vezes, isto sem se assegurar previamente que dessas manobras não resultava perigo para os demais utentes da via, bem sabendo que desrespeitava as mais elementares regras de condução rodoviária.

21 - Com a sua conduta, o arguido criou perigo para a integridade física de B... e do filho desta.

22 - O arguido A..., não obstante a violência do embate por si causado abandonou o local, e deixou os ocupantes do veículo … abandonados à sua sorte, prosseguindo a sua marcha indiferente ao destino dos mesmos e sem providenciar por ajuda.

23- O arguido sabia que ao desobedecer a uma ordem de paragem emanada pela autoridade policial estava a cometer um ilícito, tendo querido adoptar tal conduta.

24 - O arguido bem sabia que a sua conduta não era permitida e era punida por lei, tendo agido de modo livre, deliberado e conscientemente.

25 - O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos. (…)”


*

Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa, designadamente não se provou que:

a) O arguido tenha configurado a possibilidade que os ocupantes do veículo automóvel  … teriam sofrido traumatismos e que necessitariam de urgente socorro médico.

b) (…).”


III

Questões a apreciar:

1. A nulidade parcial da sentença.

2. Da incorrecta subsunção da norma penal aos factos dados como provados quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário

3. Incorrecta apreciação da prova com consequência directa no crime de omissão de auxílio.


IV

Cumpre decidir:

1ª Questão: a nulidade parcial da sentença.

1. Diz o recorrente Ministério Público na sua motivação:

Conforme resulta do douto libelo acusatório proferido pelo Ministério Público, foi imputada ao arguido A..., para além do mais, a prática de 1 (uma) contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada.

                Conforme resulta do douto despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 311º, do Código de Processo Penal, aquele douto libelo acusatório foi recebido “pelos factos, qualificação e disposições nela indicados e que se dão por integralmente reproduzidos.”

                Sucede, porém, conforme melhor consta da douta Sentença, que tal contra-ordenação é qualificada como sendo muito grave e, por isso, punível com sanção de inibição de conduzir pelo período compreendido entre dois meses a dois anos.

                Conforme melhor consta igualmente da douta Sentença, assim como do teor da Acta da Audiência de Discussão e Julgamento, “o Digno Magistrado do Ministério Público requereu a alteração da qualificação da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, com a imputação ao arguido da sanção acessória de inibição de condução de veículos motorizados, prevista no art. 69º, do CP”.

                Compulsados os Autos, nem na Acusação, nem na referida Acta da Audiência de Audiência de Discussão e Julgamento, o Ministério Público requereu que o arguido A... fosse condenado, para além da coima aplicável à contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 4º nº 3, do Código da Estrada, com a sanção de inibição de conduzir pelo período compreendido entre dois meses e dois anos, nos termos do disposto nos artigos 146º,al. l) e 147º, nº 2, ambos do mesmo Código.

                Ora, analisada a douta Sentença, dela consta que o arguido A... foi condenado, para além da coima, na sanção de inibição de conduzir pelo período de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias.

Tendo ocorrido uma alteração não substancial da qualificação jurídica, impunha-se ao Tribunal a quo dar cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1 e 3, do Código de Processo Penal, na medida em que o arguido foi surpreendido, foi prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica operada, por se tratar de uma alteração não substancial com relevo para a decisão da causa” - Cfr. Ac. da R.P. de 28/11/2008, Proc. 0712205, in www.dgsi.pt/jtrp.

                Neste sentido, aliás, já se pronunciara o Acórdão do S.T.J. para Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008, relativamente à omissão na acusação, ou na pronúncia, da disposição legal aplicável -- in casu, o artigo 69º, do Código Penal, -- aos crimes condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.

                Destarte, face ao supra exposto, deverá a douta Sentença a quo ser, nesta parte, declarada nula, por ter violado o disposto nos artigos 283º, nº 3, al. c), 358º, nºs 1 e 3 e 379º, nº 1, al. b), todos do Código de Processo Penal e 32º, nºs. 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa e, por via dela, ser declarada nula a condenação de que o arguido foi alvo, na parte em que foi em que foi condenado na sanção de inibição de conduzir veículos a motor, pelo período de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias, prevista nos artigos 146º, al. l) e 147º, nº 2, ambos do Código da Estrada.

2. Esta alegação tem plena constatação nos elementos juntos aos autos, maxime na acusação pública do MºPº e na sentença ora recorrida.   Ou seja, na acusação é de facto imputada ao arguido a prática da contra-ordenação do artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada, mas sem qualquer referência à aplicação de sanção acessória.

Por sua vez, na sentença é aplicada ao arguido a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pela prática daquela contra-ordenação, pelo período de 2 meses e 15 dias, sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, do CPP.

         Ora, sobre esta matéria, para além da maioria da jurisprudência vir entendendo que o arguido não poderia ser condenado nesta sanção acessória, sem que previamente tivesse sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, do CPP, quando essa referência de aplicação da inibição de conduzir não conste da acusação, veio o STJ a uniformizar a Jurisprudência através do ac. de  Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008, publicado no D.R. Iª Série, nº 146, de 30 de Julho de 2008:, com o seguinte teor:

            “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1 do artigo 69º, do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nºs. 1 e 3 do artigo 358º, do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 379º, deste último diploma legal”.

            3. Pese embora a observação da Exmª PGA neste Tribunal de que este preceito foi cumprido, conforme teor da acta de fls. 314, esta afirmação deve-se com certeza a lapso ou confusão com o cumprimento deste preceito relativamente à aplicação, também pelo Tribunal a quo, na sentença, da pena de inibição de conduzir pelo período de oito meses, em virtude da condenação do arguido pelo crime de condução perigosa de veículo nos termos do artigo 291º, do CP.

            Ora, a prática deste crime, para além da pena que lhe corresponde, de prisão ou multa, é ainda punida com a pena acessória de proibição de conduzir, ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea a), também do CP, entre 3 meses a 3 anos.

           

            Para além do despacho proferido na acta a fls. 314, em 11.3.2011, referir expressamente a aplicação da inibição de conduzir ao abrigo do artigo 69º, do Código Penal – que só pode ser na sequência da prática do crime do artigo 291º, deste diploma – a sanção que está em causa, de inibição, resulta da aplicação do disposto nos artigos 146º, alínea l) e 147º, nº 2, ao considerar a contra-ordenação do artigo 4º, nº 3, todos do CE, muito grave e punida com tal inibição de conduzir. É esta a decisão que consta da sentença e é desta concreta matéria que o recorrente MºPº recorre. E quanto a esta condenação dúvidas não existem de que não foi observado ou cumprido o formalismo legal do artigo 358º, do CPP, notificando, pois, o arguido, desta possibilidade de condenação pelo tribunal, para deste modo o mesmo se poder pronunciar e exercer o seu direito de defesa.

            Esta notificação existiu para a condenação da pena acessória ao abrigo do referenciado artigo 69º, quanto ao crime do artigo 291º, ambos do CP, mas já não ocorreu quanto a esta concreta qualificação ou enquadramento legal (da contra-ordenação) e consequente aplicação de inibição.

            Pelo que, existindo os fundamentos alegados pelo recorrente, terá de concluir-se que a sentença, nesta parte, sofre de nulidade parcial, na medida em que condenou o arguido por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos previstos nos artigos 358º e 359º, conforme dispõe o artigo 379º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

           

            2ª Questão: da incorrecta subsunção da norma penal aos factos dados como provados quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

1. Dispõe o artigo 291º, nº 1, do Código Penal, o seguinte:

Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) -- Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou

b) -- Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora das povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora das povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

E diz o n o nº 3 deste preceito:

“Se o perigo referido no nº.1 for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.

            Sabe-se que o recorrente foi acusado nos termos do artigo 291º, nº 1, alínea b), tendo no entanto sido condenado pelo tribunal a quo nos termos do nº 3, daquele preceito, ou seja, foi condenado a título de negligência e não de dolo, tendo em conta a qualificação do perigo causado com a condução.

            Depois de dar como provadas todas as manobras de condução – supra reproduzidas nos factos provados e que envolvem a não paragem do arguido em vários sinais de STOP, tendo à terceira violação embatido noutro veículo -, o tribunal a quo dá ainda como provado o seguinte, nomeadamente quanto ao elemento subjectivo desta condução:

            O arguido, durante todo o seu percurso circulou a uma velocidade de mais de 90 Km/h, sendo a velocidade permitida no local de 50 Km/h.         

O arguido ao agir da forma supra descrita, estava ciente de que circulava a uma velocidade que não era permitida, tendo efectuado por três vezes manobras de mudança de direcção para a esquerda sem as ter sinalizado e não tendo parado perante o sinal de STOP igualmente três vezes, isto sem se assegurar previamente que dessas manobras não resultava perigo para os demais utentes da via, bem sabendo que desrespeitava as mais elementares regras de condução rodoviária.

Com a sua conduta, o arguido criou perigo para a integridade física de B... e do filho desta.

O arguido bem sabia que a sua conduta não era permitida e era punida por lei, tendo agido de modo livre, deliberado e conscientemente.

            E enquadrou a conduta do arguido nos termos do nº 3, daquele preceito, com os seguintes fundamentos:

            (…) Ora, no caso vertente, pese embora a conduta do arguido seja dolosa quanto à acção, a mesma apresenta-se negligente quanto à criação do perigo.

            Daqui se concluiu pelo preenchimento integral dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito p.p. Pelo artigo 291º, nº1 e nº 3, do Código Penal – integrando a conduta do arguido a alínea imputada, pelo que deve ser punido pela prática deste crime”

            Ora, esta conclusão de integrar a conduta do arguido na previsão do nº 3 do artigo 291º, do CP, vai ao arrepio quer do factualismo que foi dado como provado quer à própria fundamentação que a dado momento o julgador fez constar da decisão recorrida.

            Com efeito, pode ler-se na mesma o seguinte, quando é analisado o teor do nº 1, sobre o dolo quer quanto à condução quer quanto à criação do perigo exigido:

            “É suficiente o dolo eventual, pelo que basta que o agente tenha a consciência do perigo decorrente da sua conduta para outras pessoas ou para bens patrimoniais de valor elevado e se tenha conformado com essa situação”.

            O tribunal a quo fez a opção pela integração da conduta do arguido nos termos do nº3, mas não justifica, não fundamenta e logo não explicita nem convence da bondade dessa opção. É uma afirmação imotivada.

            Ora, o dolo, como elemento subjectivo que é, sendo do domínio do conhecimento e da vontade interna e intelectual do recorrente, não é de imediata apreensão, a não ser que o arguido deliberada e voluntariamente expresse esse seu conhecimento e vontade de agir em conformidade. A sua verificação terá de resultar de elementos objectivos e concretos que se tenham provado, com base nos quais o tribunal deverá, segundo as regras da experiência de quiçá, de presunções naturais, tirar a devida conclusão sobre a sua existência.

            E os factos provados apontam e permitem decididamente concluir pela existência de dolo na actuação do arguido, quanto ao perigo concreto criado com a sua condução.

            Não certamente o dolo directo, no sentido de que o arguido, com a sua condução, visou ou pretendeu criar perigo para os demais utentes das vias por onde circulava, ou seja, de que era esse o seu objectivo primeiro. O seu objectivo primeiro foi certamente fugir à acção dos agentes policiais. Mas como resultado ou consequência directa desta sua conduta que se traduziu numa condução a uma velocidade muito superior è legalmente permitida – de mais de 90 Km/h em local de máximo permitido de 50Km/h – e não parando em sinais de paragem obrigatória, como é o sinal de STOP -, com certeza que qualquer condutor normal sabe porque é elementar da normal condução, que a todo o momento pode embater noutro veículo ou directamente num peão que circule naquele local e via, em consequência da sua não observância das regras estradais. O arguido previu esta possibilidade, como é de exigir a qualquer outro condutor que preveja – a não ser que exista qualquer causa de exclusão da imputabilidade, que não é o caso -, e apesar de tudo, o arguido conduziu o veículo nestas circunstâncias, até que embateu de facto noutro veículo, onde circulavam pessoas, criando o necessário perigo para a integridade física das mesmas.

            Por isso, circulando o arguido nas circunstâncias apuradas e tendo o mesmo consciência deste tipo de circulação e nas condições em que a efectuava, agindo voluntariamente, violando o mesmo sucessivas regras estradais, em que o perigo para terceiros era, em cada uma delas, iminente, será uma dedução de todo ilógica se não se concluir pela consciência do perigo criado e a sua aceitação, conformando-se por tudo o que da sua condução possa avir ou ocorrer. Como efectivamente ocorreu, como corolário do dito perigo iminente em cada acto de condução com a violação de todas as regras apontadas.

            Não andou, pois, bem o tribunal a quo ao alterar esta qualificação jurídica, face aos factos provados.

            2. Com a alteração ou integração jurídica actual dos factos, a moldura penal para a punição do crime passa também a ser outra, ou seja, de uma moldura de pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, que serviu de base ao tribunal a quo para a fixação da pena, passamos para uma moldura de prisão até 3 anos ou multa. Que por força do artigo 47º, nº 1, do Código Penal, será de 10 a 360 dias.

            Mantendo-se os pressupostos de fixação da pena os mesmos que o tribunal a quo já levou em conta, que foram observados, quer quanto à opção pela pena de multa em vez da pena de prisão e ao circunstancialismo ponderado, confirmando-se os elevados graus de culpa e de ilicitude do arguido bem com as necessidades de prevenção, no quadro da nova moldura penal, afigura-se equilibrada e justificada a pena de 200 dias sugerida pelo recorrente no seu recurso, pelo que se decide fixar esta pena. Mantém-se a taxa diária da pena de multa pois inexistem fundamentos para a alterar.

            E por fundamentos idênticos, altera-se a pena acessória de inibição de conduzir para 10 meses em substituição dos 8 meses aplicados.

            3ª Questão: Incorrecta apreciação da prova com consequência directa no crime de omissão de auxílio.

            1. Insurge-se ainda o recorrente MºPº contra a apreciação que da prova fez o tribunal a quo maxime no que respeita ao elemento subjectivo do crime de omissão de auxílio, ao dar como não provado que:

            “Nada mais se provou com relevância para a decisão da causa, designadamente não se provou que:

a) O arguido tenha configurado a possibilidade que os ocupantes do veículo automóvel XF-14-83 teriam sofrido traumatismos e que necessitariam de urgente socorro médico (…).”

            Afirmando mesmo que houve erro notório na apreciação da prova, o qual consubstancia o vício do artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP.

            Pelo que entende que deve ser dado como provado que:

            - O arguido configurou a possibilidade que os ocupantes do veículo automóvel XF-14-83 teriam sofrido traumatismos e que necessitariam de urgente socorro médico;

            - O menor D..., tinha, na data dos factos, 4 anos de idade;

            - O menor D... seguia no interior do veículo, no banco de trás, do lado direito, sentado na cadeira de bebé, com o cinto apertado;

            - Na sequência do embate, o menor D... foi projectado contra a janela/porta;

            - Na sequência do embate, o menor D... sofreu um pequeno hematoma, com ligeira escoriação na região supra parietal direita;

            - Após o embate, o menor D... manteve-se sentado na cadeira de bebé, com o cinto apertado, até à chegada dos médicos do Instituto Nacional de Emergência Médica;

            - O menor D... foi transportado à Urgência Pediátrica do Centro Hospitalar de Caldas da Rainha, onde deu entrada pelas 10.31 horas, com suspeita de traumatismo crâneo-encefálico, que não se veio a confirmar.

             Factos dos quais se deve concluir que o arguido deve ser condenado também pelo crime de omissão de auxílio do artigo 200º, do código Penal, alterando-se nesta parte a decisão do tribunal a quo, na medida em que o absolveu.

            2. Sem prejuízo da pertinência da impugnação da matéria de facto feita pelo recorrente, quer no que respeita à configuração ou possibilidade do que o arguido deveria ter feito quanto aos ocupantes do veículo automóvel XF-14-83 terem sofrido traumatismos e que necessitariam de socorro médico quer aos demais factos quanto à melhor concretização da situação do petiz D…[1], entendemos que esta matéria não justifica mais desenvolvimentos porquanto se entende que, mesmo a dar tais factos como assentes, os mesmos não configuram o cometimento do crime de omissão de auxílio imputado ao arguido na acusação.

            O Tribunal recorrido fundamentou os factos que deu como assentes nesta matéria e afastou a prática pelo arguido, de tal crime, do seguinte modo:

Fundamentação de facto relativa ao crime de omissão de auxílio:

A testemunha C... , de 43 anos, desempregada de operária fabril, afirmou conhecer o arguido por ser seu vizinho há 20 anos.

A testemunha seguia em automóvel que circulava atrás do veículo …   e viu o embate do carro escuro, com o carro da testemunha anterior.

A testemunha apresentou-se bastante nervosa, sendo que tal nervosismo condicionou a espontaneidade do seu depoimento, o qual, por vezes se revelou algo hesitante. (…)

O seu depoimento revelou-se particularmente útil na descrição do estado físico e psicológico em que se encontravam os ocupantes do veículo …  após o embate, sendo certo que apesar de ter chamado a ambulância, a testemunha referiu que não viu nenhum dos ocupantes ferido, mas como um deles era uma criança pequena, por precaução, considerou ser melhor chamar a ambulância. (…)

Fundamentação da matéria de direito quanto ao crime de omissão de auxílio:

No caso sub judice, ficou provado que o arguido, malgrado se ter apercebido da violência do embate, prosseguiu a marcha, deixando os ocupantes do veículo …  entregues à sua sorte.

Do embate apenas resultou hematoma para o menor D…, o que lhe determinou 15 dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

Atento o acima exposto e a factualidade ora demonstrada é patente que não se encontram preenchidos os elementos objectivos do crime em análise, já que inexiste no caso dos autos uma grave necessidade que tome imperioso esse auxílio.”

Esta conclusão surge no seguimento do anteriormente afirmado pelo tribunal, no seguinte sentido:

“ A prestação do dever de auxílio não é, no entanto, exigida em qualquer situação. Exige-se uma situação de “grave necessidade”, o que pressupõe a impossibilidade de a vítima, por si só, afastar o perigo que ameaça bens jurídico-pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias. É assim necessário a existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionáveis por qualquer pessoa; seriedade e premência do estado de necessidade.

            Trata-se de uma situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais que, por si só, a vítima é incapaz de superar”.

            3. Contrapõe o recorrente a interpretação do conceito de “grave necessidade” exigida pelo disposto no artigo 200º[2], no sentido de que esta grave necessidade não respeita à gravidade das lesões ou consequências do acidente, da calamidade, mas sim às condições anormais em que ocorre a violação dos bens eminentemente pessoais da vítima.

Concorda-se que o bem jurídico protegido é “o direito natural ao socorro que assiste a toda a pessoa vítima de acidente, ao qual assim é conferida dignidade jurídica com o estabelecimento do correspondente dever de socorro a favor dela” [3].

Que o presente normativo protege penalmente o mencionado dever de solidariedade social, mediante a protecção de bens jurídicos eminentemente pessoais, criando-se um tipo de crime de omissão pura, o que aconteceu após a entrada em vigor do Código Penal de 1982[4].

Que no presente ilícito o objecto de tutela são verdadeiramente os bens jurídicos de natureza pessoal, não impondo a lei qualquer “dever geral de impedir a prática de crimes, mas sim o “dever geral de prestar auxílio àqueles cuja vida, integridade física ou liberdade se encontre em perigo”, sendo certo que, o cumprimento deste dever “pode ter como efeito (…) a necessidade de impedir a conduta criminosa criadora da situação de perigo” [5].

Também se concorda com o recorrente quando, citando Maria Leonor Assunção[6], afirma que elemento do crime é a situação de “grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum” em que se encontra o sujeito passivo.

            Ou seja, o elemento típico exigido é o de “grave necessidade”. Mas esta grave necessidade tem um rosto com duas faces:

            - Uma delas é a verificação, em si mesmo, do evento, do acidente, da calamidade ou outro, que por natureza é incerto e imprevisto mas que ocorrendo, deixa a vítima numa situação de fragilidade, impotência de, só por si, afastar o perigo vivido no momento, incapaz de reagir ou por falta de discernimento ou mesmo por uma impossibilidade física para o fazer – v. situação de estado de imobilização física por “soterramento”, por “encarceramento”, por “estado inconsciente”, “membros partido” e tantos outros.

            - A outra traduz-se na necessária lesão que consubstancie o perigo iminente e efectivo para a vida, a integridade física ou a liberdade. Sem lesão, não haverá, necessariamente, perigo. Pode ocorrer o acidente, pode ocorrer a calamidade, mas se daí não resultar qualquer lesão para uma concreta pessoa, não pode falar-se em situação de perigo. A existência deste (perigo) está ligada à ocorrência do acidente e lesão simultânea. Pelo que para que possa qualificar-se a situação de “grave necessidade”, terá de existir uma lesão, que uns denominam de lesão substancial (grave) – v. Taipa de Carvalho, ob. citada, fls. 849 – mas que poderá ser denominada também de relevo, desde que tenha potencialidade para criar o necessário risco para a vida ou integridade física da vítima.

            Corolário do que acabamos de dizer é o decidido no ac. do TRP de 3.2.200, proferido no proc. nº 0011053, com o seguinte sumário:

            I - O crime de omissão de auxílio pressupõe uma situação objectiva de perigo (para a vida, a integridade física ou a liberdade de uma pessoa), significando o conceito de "grave necessidade" que se trate de um risco ou perigo iminente de lesão substancial daqueles bens jurídicos.
            II - Assim, caem fora do âmbito deste tipo de crime as situações de perigo de lesão não iminente e ou de leves lesões, mesmo que iminentes.
            III - A conduta que é exigida no artigo 200 do Código Penal, circunscreve-se à prática da actividade necessária ao afastamento do perigo, através de um juízo de prognose, com base nas circunstâncias fácticas, do sujeito activo, mediante recurso ao        comportamento de um homem médio.
            IV - Trata-se de um crime de omissão pura, impondo-se ao agente um dever de actuar, de harmonia com a norma em questão, traduzido no dever de auxílio através de acção pessoal ou através da promoção de socorro.

            Por sua vez, é o próprio recorrente a trazer aos autos também o conceito de necessidade:

A necessidade deve ainda ser grave. Gravidade que subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da actuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado.

                Por outro lado, para que preencha totalmente o elemento objectivo do crime de omissão de auxílio, torna-se mister que haja perigo para os bens jurídicos vida, saúde, integridade física e liberdade.

Parafraseando, de novo, Maria Leonor Assunção[7], “o dever de auxílio torna-se exigível quando a situação fáctica determine um perigo para bens jurídicos com consagração constitucional: vida, saúde, integridade física e liberdade.

            4. Transportando agora estes conceitos e afirmações para a análise do factualismo dos autos, não podemos deixar de afirmar que o recorrente cai em contradição, pretendendo aplicar tais definições a uma situação que simplesmente não existe ou não se verifica ou de outro modo, pretende enquadrar a situação dos autos na previsão do artigo 200º, do CP, quando é manifesto que a mesma não integra a sua previsibilidade.

            E não a integra precisamente porque, quer dos factos que se deram como assentes como eventualmente de outros que ainda se poderiam dar como provados, não resultou qualquer situação de lesão para a vítima – o D...(felizmente para ele) -, idónea a causar-lhe perigo para a vida ou para a integridade física.

            É certo que ocorreu o embate. É certo que desse embate ocorreu ligeiro hematoma para o menor D.... É certo que o arguido, causador do acidente, não parou nem providenciou por socorro das potenciais vítimas. É verdade que a sua conduta é reprovável do ponto de vista moral e social, manifestando uma falta de solidariedade para com o próximo (ainda que se interprete ou enquadre a sua conduta numa situação de fuga aos elementos policiais). Mas também é verdade que o menor D..., em consequência do acidente, não ficou em situação de necessitar de quaisquer cuidados ou assistência médica ou outra para remover qualquer perigo iminente para a sua vida ou mesmo integridade física.

            Senão vejamos:

            - Na sequência do acidente, o menor ficou sempre com o cinto de segurança e a cadeirinha não saiu do local – v. fls. 122v (relatório do serviço de urgência).

            - Sofreu pequeno hematoma na região supra-parietal direita, sem incapacidade e sem perda de conhecimento – fls. 123.

            - O estado clínico do menor era normal (aquando da observação no hospital) – v. fls. 122v e 123. A própria mãe referiu na altura que a criança estava bem.

            - O facto de ter sido fixado em 15 dias, sem incapacidade de trabalho geral e profissional o período para a cura do hematoma, na perícia legal de fls. 130 e 131, não tem a relevância que aparenta ter, na medida em que este relatório foi feito com base naqueles elementos clínicos já referenciados, tendo sido realizado um ano depois do acidente[8].

            -  Segundo o depoimento da mãe do menor D..., B..., transcrito pelo recorrente, verifica-se que a fls. 339, consta ter a mesma afirmado o seguinte:
            MP: -- Pergunto-lhe o seguinte: -- Esse hematoma que a senhora refere, do lado direito da cabeça do D..., quanto tempo demorou a sarar?

            B...: -- No hospital não foi feito nada, os doutores acharam por bem não fazer nada; demorou cerca de três semanas a um mês a desaparecer completamente.

            - Finalmente mostra-se relevante o depoimento da testemunha C...  que, pese embora não se mostre transcrito, consta da fundamentação/motivação do julgador – que não foi impugnado pelo reclamante -, que a mesma chamou a ambulância não por ter visto qualquer dos ocupantes ferido – ou a necessitar de ser urgentemente socorrido, dizemos nós -, mas pelo simples facto de um deles (ocupantes) ser uma criança pequena e, por precaução, considerou que seria melhor chamar a ambulância.

            Ou seja, esta testemunha chamou a ambulância como uma medida meramente cautelar por estar presente uma criança envolvida no acidente, não por a criança necessitar de ser socorrida, por estar numa situação de risco, ainda que diminuto mas tão só por ser criança.

            A ambulância foi chamada ao local, a criança foi transportada ao hospital, os clínicos que a observaram constataram que a mesma estava clinicamente bem e estável, não tendo sido necessário qualquer intervenção ou prática de acto médico, regressando logo com a mãe a casa.

            De todo este circunstancialismo não se pode concluir que tivesse existido uma situação considerada de “grave necessidade” para os efeitos do artigo 200º, do CP. O que significa que não se verifica um dos elementos típicos do crime em causa. Pelo que andou bem, neste aspecto, o tribunal a quo, ao não condenar o arguido, pese embora, repita-se, a censurabilidade moral e ética que poderá merecer a sua atitude para com os ocupantes do veículo no qual embateu.


V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se:

            1. Conceder provimento ao recurso na parte em que o tribunal a quo condenou o arguido pela prática do crime de crime de condução perigosa de veículo rodoviário pelo artigo 291º, nº 1, alínea b) e nº 3, alterando-se a condenação para os termos do artigo 291º, nº 1, alínea b), daquele diploma, e, consequentemente, altera-se a condenação deste crime para a pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 12,00 (doze) euros, perfazendo o total de 2400,00€ (dois mil e quatrocentos) e para a pena acessória de 10 (dez) meses de proibição de conduzir.

            2. Conceder provimento ao recurso na parte em que o tribunal a quo condenou o arguido pela prática da contra-ordenação do artigo 4º, nº 3, do Código da Estrada na inibição de conduzir de dois meses e 15 dias sem que tenha dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, do CPP, declarando nesta parte nula a sentença, baixando os autos à primeira instância para que tal nulidade seja suprida, dando para o efeito cumprimento às formalidades exigidas por aquela disposição, lavrando-se nova sentença em conformidade.

            3. Negar provimento ao recurso quanto às demais questões, mantendo, nesse aspecto, a decisão recorrida.

Sem custas.

Luís Teixeira (Relator)

Calvário Antunes


[1] Que, grosso modo, se afigura existir razão ao recorrente.

[2] Que tem o seguinte teor:

1 -- Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 -- Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.

[3] Cfr. ac. do S.T.J. de 5/01/1995, in CJ-STJ, Tomo I, pág. 165.


[4] Cfr., o Ac. do S.T.J. de 7/03/1990, Processo nº 40.119.
[5] Cfr. Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 847 e 848.
[6] In “Contributo para a interpretação do artigo 219º, do Código Penal – (O Crime de Omissão de Auxílio)”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, “Studia Juridica” – Coimbra Editora 1994, pág. 66 e 67.
[7]In obra citada, pág. 71 e 72.
[8] O acidente ocorreu em 3 de Maio de 2008 e a perícia do IML ocorreu em 12 de Maio de 2009.