Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
174/12.8TBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
USUCAPIÃO
ÁGUAS
SERVIDÃO DE VISTAS
Data do Acordão: 12/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1354º Nº 2 E 1390º Nº 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – No âmbito de uma acção de demarcação – que tem como objectivo a fixação da linha divisória entre dois prédios – é conclusiva e não deve ser inserida na matéria de facto a afirmação – resultante da ponderação de uma série de factos e da apreciação (implícita) de questões de direito relacionadas com os critérios legais de operar a demarcação – de que a linha divisória dos prédios deve passar por determinado local.

II – A distribuição do terreno em litígio em partes iguais, a que alude o art. 1354º, nº 2, do CC apenas se impõe como critério de definição da linha divisória dos prédios quando não exista qualquer elemento que permita estabelecer essa linha em função dos títulos, em função da posse dos confinantes ou em função de qualquer outro elemento que seja relevante.

III – Tendo ficado provado que os prédios em causa resultaram da divisão de uma única unidade predial e que, à data, se pretendeu efectuar essa divisão em duas partes iguais, a fixação da linha divisória (que se tornou necessária em virtude do desaparecimento de um dos marcos que procedia a tal divisão) deverá respeitar aquela intenção e como tal deverá ser estabelecida de modo a que ambos os prédios fiquem com áreas idênticas.

IV – Como decorre do disposto no art. 1390º, nº 2, do CC, a usucapião apenas poderá ser considerada como meio legítimo de aquisição do direito de propriedade das águas ou de constituição de uma servidão com vista à sua utilização e aproveitamento se for acompanhada de obras que, além da demais características ali mencionadas, revelem a captação e a posse da água por parte de quem se arroga seu possuidor.

V – Um poço existente em determinado prédio não constitui obra, sinal ou indício de que a água seja ali captada e possuída por qualquer outra pessoa que não seja o proprietário do prédio onde se situa e, como tal, não constitui obra relevante para efeitos de aquisição, por usucapião, de qualquer direito sobre as águas (seja um direito de propriedade, seja uma servidão) por parte de qualquer outra pessoa.

VI – Nos casos em que a posse é equívoca – em virtude de a actuação exercida sobre a coisa ser susceptível de integrar um direito de propriedade ou um direito de servidão – só a prova do animus do possuidor permitirá determinar qual é o concreto direito a que se reporta a sua actuação; não sendo feita a prova de que tal actuação é exercida com animus correspondente ao direito de propriedade, não poderá ser presumida a posse deste direito (mais amplo) se os actos praticados – embora integrem uma parte do conteúdo desse direito – correspondem apenas àquele que é o conteúdo normal de um direito de servidão (mais limitado).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A...e marido B..., residentes na (...), Oeiras, intentaram a presente acção, com processo sumário, contra C... e mulher D..., residentes em (...), França, alegando, em suma:

A Autora é dona de um prédio (que identifica) composto por uma parte urbana e uma parte rústica que são separadas entre si por uma servidão de passagem que serve vários prédios urbanos; a parte rústica do aludido prédio confronta a nascente com um prédio rústico pertencente aos Réus; este prédio rústico dos Réus e a parte rústica do prédio da Autora foram, em tempos, uma única unidade predial pertencente aos avós maternos da Autora e, em partilhas verbais realizadas há mais de trinta anos, foi dividida em duas partes iguais no sentido norte/sul, sendo que a parte mais a poente pertence actualmente à Autora e a parte mais a nascente foi posteriormente adquirida pelos Réus; sucede que as áreas do prédio dos Réus e do quintal da Autora estão erradas nas respectivas descrições; há cerca de um ano, os Réus solicitaram os Autores para a colocação de marcos nos extremos norte e sul dos prédios e, existindo um marco a sul (que os Autores aceitam), aceitaram os Autores a colocação de um outro marco a norte na convicção de que os prédios ficaram assim com áreas iguais; posteriormente, a Autora constatou que este marco poderia não coincidir com a divisória original, solicitando aos Réus nova medição, o que estes não aceitaram; tendo mandado executar levantamento topográfico – no qual gastou 200,00€ - conclui que a linha divisória dos prédios é a que está configurada no aludido levantamento. Por outro lado, alegam, na aludida propriedade existia um poço que, após a divisão das unidades prediais, sempre foi de utilização conjunta, tendo ficado decidido na partilha que esse poço seria propriedade comum dos dois lotes e, desde essa partilha – realizada há mais de trinta anos – os Autores e seus antepossuidores sempre utilizaram a água do poço à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercerem um direito próprio associado à propriedade do seu quintal, sendo certo, porém, que os Réus taparam esse poço.

Com estes fundamentos, pedem que se declare:

- Que as áreas do quintal do prédio dos Autores identificado no art.1.º da PI e do terreno dos Réus identificado no art.6.º da PI estão erradas;

- Que ambos os prédios referidos são o resultado da divisão a meio da unidade predial que outrora foi constituída pelos dois terrenos e que possuía a área total de 598,22 m2;

- Que a divisão a meio da propriedade originária determinará para cada um dos prédios uma área de 299,11 m2;

- Que a actual divisória existente nos prédios, resultante dos marcos ali colocados, não respeita a divisão feita aquando da partilha efectuada por morte dos avós da Autora mulher, pois o terreno dos Réus tem 339,55 m2 e o quintal dos Autores tem 258,66 m2;

- Que a linha divisória dos prédios, de modo a respeitar a divisão a meio, é constituída por uma linha que nasce a sul no marco de pedra aí existente e segue para um ponto que se situa, encostado à parede do patamar sobrelevado ao terreno construído pelos Réus, a 2,40 metros para nascente da projecção, na parede norte dos prédios, da actual linha que une os marcos existentes a sul e a meio dos prédios, tal como configurado no levantamento topográfico (doc.7);

- Que a quantia gasta pelos Autores na execução do levantamento topográfico no montante de 200,00 € é de utilidade para Autores e Réus,

- Que o poço existente na parte norte do terreno dos Réus com cerca de 1,00 metro de diâmetro e 4 metros de profundidade é compropriedade de Autores e Réus na proporção de metade indivisa para cada um, por assim se ter determinado na divisão operada na unidade predial que originou o prédio dos Autores e o prédio dos Réus e, desde então até hoje, tanto Autores como Réus o terem utilizado por si e interpostas pessoas para dele extraírem água para a rega dos respectivos prédios, há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem direito próprio associado à propriedade do quintal do seu prédio, na convicção de não prejudicarem ninguém.

Mais pedem que os Réus sejam condenados:

- No reconhecimento das situações supra referidas;

- A contribuir para a colocação de marcos na linha divisória dos prédios na forma e modo supra referido;

- A não perturbar a utilização, pelos Autores ou pelas pessoas a quem os mesmos entregarem o cultivo do quintal, do poço existente na parte norte do prédio dos Réus;

- A pagarem aos Autores a quantia de 100,00 € correspondente a metade do custo do levantamento topográfico mandado executar pelos Autores.

Os Réus contestaram, impugnando, no essencial, os factos alegados pelos Autores, seja no que toca à linha divisória dos prédios, seja no que toca ao poço. Alegam que o poço é sua propriedade exclusiva, tendo sido construído pelo anterior proprietário do seu prédio já depois da divisão da unidade predial que outrora era formada por esse prédio e pelo quintal da Autora, mais alegando que esse poço nunca serviu para regar o quintal dos Autores. Mais alegam que a linha divisória dos prédios é a que existe actualmente sendo que foi com essa configuração que sempre o utilizaram sem oposição de ninguém, mas alegando que a área do seu prédio é de 339,55m2, sendo que, por razões que desconhecem, é efectivamente maior do que o quintal da Autora.

Com estes fundamentos, concluem pela improcedência da acção e pedem, em reconvenção, que os Autores sejam condenados a reconhecer:

- Que os Réus são donos e legítimos possuidores do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da freguesia da (...) sob o artigo 2153, a confrontar a norte com C..., a sul com F..., a nascente com G...e outros e a poente com A..., com área total de 339,55 m2, e

- Que o poço sito no terreno dos Réus é propriedade exclusiva dos mesmos, abstendo-se de a perturbar.

Os Autores replicaram, sustentando a procedência da acção e a improcedência da reconvenção.

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu:

“a) Declarar que:

- As áreas do quintal do prédio dos autores identificado no art.1.º da PI e do terreno dos réus identificado no art.6.º da PI estão erradas,

- Os referidos prédios são o resultado da divisão a meio da unidade predial que outrora foi constituída pelos dois terrenos e que possuía a área total de 598,22 m2,

- A divisão a meio da propriedade originária determina para cada um dos prédios uma área de 299,11 m2,

- A actual divisória existente nos prédios, resultante dos marcos ali colocados, não respeita a divisão feita aquando da partilha efectuada por morte dos avós da autora mulher,

- A linha divisória dos prédios, de modo a respeitar a divisão a meio, é constituída por uma linha que nasce a sul no marco de pedra aí existente e segue para um ponto que se situa na parede norte dos prédios, tal como configurado no levantamento topográfico (doc.7) – fls.111 e 112.

- A quantia gasta pelos autores na execução do levantamento topográfico no montante de 200,00 € é de utilidade para autores e réus,

b) Condenar os Réus a contribuírem para a colocação de marcos na linha divisória dos prédios do modo referido no levantamento topográfico e a não perturbarem a utilização, pelos autores ou pelas pessoas a quem os mesmos entregarem o cultivo do mesmo.

c) Condenar os Réus no pagamento aos Autores da quantia de 100,00 €, correspondente a metade do valor do levantamento topográfico mandado executar pelos autores”.

Mais se decidiu julgar a reconvenção improcedente, absolvendo os Autores dos pedidos contra eles formulados.

Discordando dessa sentença, os Autores vieram interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1 – Os AA peticionaram no nº 7 do pedido deduzido na P.I. se declarasse que: O poço existente na parte norte do terreno dos RR com cerca de 1,00 metro de diâmetro e 4 metros de profundidade é compropriedade de AA e RR na proporção de metade indivisa para cada um, por assim ter sido determinado na divisão operada na unidade predial que originou o prédio de AA e prédio dos RR e desde então até hoje tanto AA como RR o terem utilizado por si e interpostas pessoas para dele extrair água para rega dos respectivos prédios na forma e modo referidos.

2- O que os AA pedem é a declaração da formação de compropriedade sobre o poço existente no prédio dos RR, por AA e RR, na proporção de metade indivisa para cada e em consequência no direito à água nascente no mesmo prédio na mesma proporção, como consequência da divisão de um prédio maior em duas partes cujos proprietários continuaram a utilizar o poço existente para rega dos mesmos.

3- A matéria dada como provada constante dos factos números 8. 10. e 27 a 37 dos factos provados do relatório da sentença, contém matéria suficiente para tal declaração , uma vez que a posse tanto do poço como da utilização da água ao longo de mais de 20 anos a partir da divisão em duas unidades prediais só pode levar à conclusão de que tendo-se constituído inicialmente a compropriedade sobre o poço e água nele nascente por destinação de pai de família, foi posteriormente consolidado pela posse continua, publica, pacifica e de boa fé ao longo de mais de 20 anos nos termos do disposto nos artigos 1.302º, 1.305º, 1.389º 1.390º nºs 1, 2 e 3 e 1251º e ss, 1258 e ss, 1263e ss, 1268, 1287ºa 1291º, 1316 e 1317 nº c) e 1340º e ss todos do C.Civil .

4-Não obvia a essa conclusão a fundamentação referida na sentença recorrida de que os AA não alegaram, nem demostraram posse de obras, visíveis e permanentes no prédio dos Réus reveladoras da captação e condução de água para o seu prédio.

5-Não só porque existe de facto uma obra que é o próprio poço, como porque em tal caso a lei não exige a existência de sinais reveladores nos termos do disposto no nº 3 do artº 1.390 do C.Civil .

6-Como de resto tais sinais ou obras reveladoras existem : o poço e a zona circundante onde colocavam os motores.

7- Para além de que, tendo-se provado, como ficou demonstrado com toda a prova produzida, que a extracção da água do poço se fazia manualmente com balde e aplicação directa nas plantas, ou abertura de regos na terra que mudavam de ano para ano, de acordo com as sementeiras e plantações, ou posteriormente por recurso a motor e mangueiras, a verdade é que perante tal uso não há hipótese de deixar sinais permanentes da condução de água e uso do poço a não ser a existência do próprio poço e o testemunho das pessoas que foram várias que a viram extrair e aplicar no terreno.

8- Deste modo existe contradição entre a matéria considerada provada e a decisão constante da sentença proferida no que concerne ao ponto 7. Da alínea A , do pedido deduzido pelos AA no seu pedido e, em consequência, erro de julgamento por violação pela merítissima Juiz a quo das normas constantes do disposto nos artigos 1.302º, 1.305º, 1.389º 1.390º nºs 1, 2 e 3 e 1251º e ss, 1258 e ss, 1263 e ss, 1268, 1287ºa 1291º, 1316 e 1317 nº c) todos do C.Civil .

Devendo em consequência revogar-se a douta sentença recorrida na parte em que julgou improcedente por não provado o ponto 7 da alínea A do pedido deduzido pelos AA e ponto 3 da alínea B) do mesmo pedido E produzir-se outra que julgue procedente e provada toda matéria constante do preferido ponto 7 juntamente com a matéria já assim decidida a favor dos AA de modo a que se declare que:

- O poço existente na parte norte do terreno dos RR com cerca de 1,00 metro de diâmetro e 4 metros de profundidade é compropriedade de AA e RR na proporção de metade indivisa para cada um, por assim ter sido determinado na divisão operada na unidade predial que originou o prédio de AA e prédio dos RR e desde então até hoje tanto AA como RR o terem utilizado por si e interpostas pessoas para dele extrair água para rega dos respectivos prédios na forma e modo referidos supra de 44º a 51º da P.I. que aqui dão por reproduzidos e nos seus precisos termos

- E que se condene os RR:

- A reconhecer tal situação e

- A não perturbar a utilização pelos AA., ou pelas pessoas a quem estes entregarem o cultivo do quintal referido no artº 1º da P.I. designadamente a retirar do mesmo a água necessária ao prédio na proporção da quota na compropriedade,

-E em custas e procuradoria

Os Réus vieram também interpor recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1º - Os Réus/Recorrentes não se conformam com a sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo” na medida em que a mesma julgou erroneamente alguns factos, violou algumas normas jurídicas e retirou ilações precipitadas na subsunção dos factos ao direito aplicável.

2º - Nomeadamente, a sentença recorrida viola o disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 607º do C.P.C. na medida em que inclui na matéria de facto dada como provada (nomeadamente no ponto 26) uma afirmação conclusiva e que constitui o verdadeiro “thema decidendum” da causa.

3º - Assim, Mmª Juiz “a quo” deveria ter dado tal facto como não escrito uma vez que é essa a cominação que tem vindo a ser prevista e aplicada a tais casos de forma unânime pela jurisprudência.

4º - Entendem também os Réus/Recorrentes que foram erroneamente julgados alguns factos nos termos que de seguida se explicam.

5º - Quanto ao facto elencado como 21 da matéria de facto provada cremos que, pelas transcrições dos depoimentos de L..., M... e N... atrás mencionados, se terá forçosamente que concluir que a resposta ao mesmo só pode ser a seguinte: “Há cerca de um ano Autores e Réus recolocaram pelo menos um marco situado a meio do terreno a fim de tornarem mais visível a linha divisória entre os dois prédios”.

6º - Já no que diz respeito ao ponto f) da matéria de facto dada como não provada cremos que, ao invés do julgamento efetuado, deveria o mesmo ter sido dado como provado com algumas nuances explicativas, conforme resulta das transcrições dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento por L..., M... e N... devendo constar da matéria de facto provada o seguinte facto: “A Norte do terreno referido em 6 havia uma parede com uma cruz gravada e até há cerca de um ano atrás existiu pelo menos um marco a meio constituído por uma pedra de formato irregular”.

7º - Quanto ao ponto l) da matéria de facto dada como não provada, por sua vez, foi também o mesmo erroneamente julgado como não provado tal como resulta da análise dos depoimentos de L..., M... e N... aqui transcritos devendo passar a constar da matéria de facto dada como provada o seguinte facto: “Entre o poço e o prédio dos Autores, o terreno existente sempre foi cultivado pelos Réus ou por pessoas por eles autorizadas.”

8º - Em resultado da alteração de julgamento da matéria de facto atrás descrita e da retirada da mesma do facto elencado sob o nº 26, terá que improceder a pretensão petitória dos Autores uma vez que da matéria de facto dada como provada nenhum elemento resulta que permita ao Tribunal concluir que o terreno tenha a dimensão e limites alegados pelos mesmos.

9º - Já pelo contrário, quanto aos Réus, mostram a existência de uma primitiva demarcação que foi pacífica desde a compra do terreno ocorrida há cerca de quarenta anos até à interpelação dos Autores para colocar os marcos mais visíveis.

10º - A entender-se a presente ação como de demarcação, o que poderá acontecer considerando que a mesma visa definir os limites da propriedade de Autores e Réus, e entendendo-se que por recurso aos títulos, posse ou outros meios de prova não se chegou à conclusão de qual o específico limite de cada um dos terrenos terá que ser a parcela em discussão (aquela que Autores e Réus alegam pertencer-lhes e que se situa no limite dos dois prédios) ser dividida em partes iguais nos termos do nº 2 do artigo 1354º do C. Civil.

11º - Cremos, contudo, que a matéria de facto dada como provada nos termos supra expostos permite concluir que os Réus têm ocupado a sua parcela com a área de terreno constante da planta topográfica junta aos autos pelos Autores de forma ininterrupta, pacífica, à vista de toda a gente e convictos de estarem a exercer um direito próprio pelo que deve ser julgada procedente a reconvenção, alterando-se a sentença em conformidade.

Concluem pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por uma outra na qual alterando-se a matéria de facto dada como provada e como não provada, deve concluir-se pela improcedência do pedido dos Autores e pela procedência do pedido dos Réus ou, no mínimo, a divisão da parcela de terreno objeto do litígio nos presentes autos em partes iguais de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 1354º do C. Civil.

Os Autores apresentaram contra-alegações, relativamente ao recurso interposto pelos Réus, formulando as seguintes conclusões:

1 – O Tribunal a quo ao decidir como facto provado que : * A linha divisória separadora dos dois prédios deverá unir o marco existente a sul, nas proximidades de uma cruz em pedra existente na parede, a um marco a colocar a norte encostado à actual parede construída pelos Réus a delimitar o patamar sobrelevado ao terreno onde se situa o poço, isto é, aproximadamente a cerca de 2,40m para nascente da projecção na parede da actual linha que une os marcos existentes. *, não incluiu em tal excerto qualquer menção que contenha conceitos de Direito.

2- Em consequência, tal matéria não pode ser considerada como não escrita, mas antes como facto corolário da matéria dada como provada nos pontos 8 a 16 e 22 e 23 dos factos provados constantes do relatório da sentença e do levantamento topográfico junto à P.I. como documentos 6 e 7.

3- Não tendo por isso, com tal decisão, a sentença recorrida, violado o disposto na alínea 4 e 5 do artº 607º do C.P.Civil.

4- Igualmente não houve qualquer erro de julgamento no que concerne ao Tribunal a quo, dar como provados os factos constantes do ponto 26 dos factos provados e como não provados os factos referidos nas alíneas f) e l) dos factos não provados, ambos do relatório da sentença,

5- Com efeito resulta de toda a prova produzida que AA e RR em 2011 decidiram colocar marcos naquilo que consideravam ser a linha divisória primitiva dos prédios, não sendo essencial que tal colocação seja classificada de colocação ou recolocação, porque se AA e RR assim decidiram, foi porque, tanto uns como outros, consideraram que o que lá existia, ou teria existido ( pedras ou paus), não estaria correcto .

6- De igual forma, em relação à matéria constante da alínea l) dos factos não provados, não existe fundamento para declarar tal matéria como provada, atentos os depoimentos prestados por todas as testemunhas e em especial pela testemunha L... e M... e à forma como o poço sempre foi utilizado: extracção de água ao balde e manualmente e com recurso a motor e mangueiras, utilização que exigia necessáriamente espaço em volta do poço para colocar o motor e circular a pé com os baldes, e para abertura de regos para condução da água.

7. Não existindo assim fundamento para alterar a decisão recorrida, na parte em que os RR dela apelaram, por inexistir fundamento factual ou legal para dar como não provado e improcedente o pedido dos AA e dar como provado o pedido dos RR. , e muito menos, para se decidir pelo recurso ao disposto no nº 2 do artº 1354 para proceder à demarcação dos terrenos de AA e RR.

Desta forma, deve ser julgado improcedente por não provado o recurso de Apelação interposto pelos RR e manter-se a sentença recorrida no que diz respeito à decisão sobre a definição da área exacta dos prédios e respectiva linha demarcadora.

Os Réus não apresentaram contra-alegações no que toca ao recurso interposto pelos Autores.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o ponto 26 da matéria de facto contém uma afirmação conclusiva e se, como tal, não pode constar da matéria de facto;

• Saber se existiu erro na apreciação da prova relativamente aos pontos de facto impugnados;

• Saber se, em função da matéria de facto, a linha divisória deve ser fixada nos termos que constam da decisão recorrida ou se o terreno em litígio deve ser repartido em partes iguais;

• Saber se, perante a matéria de facto provada, é possível concluir pela aquisição, por partes dos Autores, do direito de propriedade ou compropriedade relativamente ao poço existente no prédio dos Réus e à água nele captada.


/////

III.

APELAÇÃO DOS RÉUS

Começamos por apreciar o recurso interposto pelos Réus, na medida em que vêm impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto e as questões colocadas a propósito dessa matéria têm prioridade lógica sobre a apreciação das questões de direito.

Os Réus vêm recorrer da sentença no que respeita à delimitação dos prédios, sustentando que deve improceder o pedido formulado pelos Autores e proceder o pedido que eles (Réus) formularam ou, pelo menos, que a parcela objecto do litígio seja dividida em partes iguais de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 1354º do CC.

Analisemos, então, as razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida e as questões que estão delimitadas nas conclusões das suas alegações, uma vez que são estas que balizam o objecto do recurso.

Os Apelantes começam por sustentar que a sentença violou o disposto nos nºs 4 e 5 do art. 607º do CPC na medida em que inclui na matéria de facto provada (mais concretamente no ponto 26) uma afirmação conclusiva que constitui o verdadeiro “thema decidendum” da causa, devendo esse facto considerar-se como não escrito.

O citado ponto 26º tem a seguinte redacção:

“A linha divisória separadora dos dois prédios deverá unir o marco existente a sul, nas proximidades de uma cruz em pedra existente na parede, a um marco a colocar a norte encostado à actual parede construída pelos Réus a delimitar o patamar sobrelevado ao terreno onde se situa o poço, isto é, aproximadamente a cerca de 2,40m para nascente da projecção na parede da actual linha que une os marcos existentes”.

É certo – como referem os Apelantes – que esta afirmação constitui o “thema decidendum” da causa, na medida em que determina, só por si e independentemente de outros factos, a sorte e a decisão da causa – ou de alguns dos pedidos formulados –, correspondendo exactamente àquilo que os Autores pretendem ver reconhecido.

Mas, salvo o devido respeito, nada existe na lei que impeça a concentração num único ponto de facto de toda a matéria que é relevante e decisiva para a sorte da acção e a circunstância de essa afirmação corresponder precisamente àquilo cujo reconhecimento é peticionado não equivale a dizer – como sustentam os Apelantes – que tal afirmação não corresponde a um facto mas sim – e apenas – ao pedido formulado. Com efeito, se é certo que tal afirmação corresponde ao pedido formulado, parece-nos de igual modo certo não poder daí inferir-se, necessariamente, que tal afirmação não corresponda a um facto que, como tal, possa e deva ser objecto de prova. Refira-se que nada impede que, como sucede frequentemente, o pedido formulado corresponda apenas ao reconhecimento de certos e determinados factos e não será, evidentemente, a circunstância de a parte formular esse pedido que a irá impedir de fazer prova do facto que pretende ver reconhecido.

Aquilo que releva e importa saber é se tal afirmação corresponde ou não a um facto que, como tal, possa e deva ser objecto de prova e da decisão a proferir sobre a matéria de facto.

Os nºs 4 e 5 do art. 607º do CPC (que os Apelantes sustentam ter sido violados pela decisão recorrida) dispõem nos seguintes termos:

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Ao contrário do que acontecia com o art. 646º, nº 4, do anterior CPC, onde se determinava expressamente que se tinham por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, a norma supra citada do actual CPC não determina expressamente que se deva considerar como não escrita qualquer afirmação que, envolvendo questão de direito, seja inserida na matéria de facto.

É certo, no entanto, que, ao declarar os factos que julga ou não provados em conformidade com a citada disposição legal e em função da análise da prova produzida, o juiz deve restringir-se aos factos (já que é sobre estes que incide a prova em função da qual decide quais os factos que julga ou não provados), abstraindo, nesse momento, das questões de direito e de quaisquer juízos conclusivos que só em momento posterior devem ser objecto de análise.

O “facto” corresponde a qualquer ocorrência da vida real, qualquer evento material e concreto ou qualquer mudança operada no mundo exterior[1], podendo e devendo abranger, pelo menos para efeitos processuais, – como afirma Manuel de Andrade[2] - os factos do mundo exterior (factos externos) ou os da vida psíquica (factos internos); os factos reais ou os hipotéticos e os factos nus e crus ou os juízos de facto.

Embora se mantenham no domínio da matéria de facto (pelo menos quando a sua emissão ou formulação se apoia em critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, do homem comum e não na sensibilidade ou intuição do jurista[3]) os juízos de valor sobre matéria de facto envolvem uma apreciação e valoração de um conjunto de factos e, portanto, não deverão, em princípio, constar da matéria de facto (onde apenas deverão ser incluídos os vários factos sobre os quais poderá alicerçar aquela apreciação e valoração). Tais juízos sobre a matéria de facto correspondem, na prática, ao facto complexo a que alude Alberto dos Reis[4] e que, embora seja facto, é o resultado da averiguação, conjugação e apreciação duma série de factos simples e, portanto, serão estes – e não aquele – que deverão ser incluídos na matéria de facto.

O que se afirma no citado ponto 26º da matéria de facto é o local onde deverá passar a linha divisória dos prédios, importando saber se isso é um facto ou um juízo conclusivo.

A definição do local por onde passa a linha divisória pode ser um facto, na medida em que se configure como mera reprodução de uma realidade ou ocorrência da vida real que possa ser percepcionada, sem necessidade de apelar a quaisquer outros juízos de facto ou de direito.

Não nos parece, no entanto, que seja esse o caso da situação aqui em análise, porquanto a definição da linha divisória – que era pedida ao Tribunal – envolvia a apreciação e a ponderação de um conjunto de factos, implicando também – eventualmente – a ponderação de regras de Direito.

De facto, tendo em conta o pedido formulado, estamos perante uma acção de demarcação que se caracteriza, precisamente, pela incerteza ou controvérsia das estremas ou limites de dois prédios confinantes entre si e é essa incerteza que se pretende ultrapassar solicitando ao tribunal a definição da linha divisória dos prédios.

Mas a definição dessa linha divisória está sujeita a regras legais, dispondo o art. 1354º do CC que ela será feita em conformidade com os títulos (se os houver), de harmonia com a posse em que estejam os confinantes (se não houver títulos ou se estes forem insuficientes), segundo o que resultar de outros meios de prova e, em último caso (se não for possível resolver a situação pelos títulos, pela posse ou por outro meio de prova), distribuindo-se o terreno em litígio em partes iguais.

Significa isto que a fixação da linha divisória pressupõe – ou pode pressupor – a aplicação de regras legais e pode radicar em diversos fundamentos (nos títulos, na posse de cada um dos confinantes, em qualquer outro meio de prova ou na divisão do terreno em litígio em partes iguais), não se resumindo, por isso, à mera constatação e afirmação de uma realidade ou ocorrência da vida real que possa ser percepcionada e que, como tal, deva ser inserida na matéria de facto.

Vejamos o que aconteceu, no caso sub judice.

Os Autores alegavam que a linha delimitadora dos prédios era aquela que veio a ficar vertida no citado ponto 26 em função dos seguintes factos: os prédios aqui em causa faziam parte de uma única unidade predial que, em dado momento, foi dividida em duas partes iguais, no sentido sul/norte; tal unidade predial tinha, antes da divisão – conforme levantamento topográfico que a Autora mandou efectuar e juntou aos autos – a área total de 598,22m2; na parte sul dos prédios, existe um marco ali colocado aquando da divisão da primitiva unidade predial em dois prédios distintos; no extremo norte, havia sido colocado um outro sinal (cruz gravada na pedra) demarcador dos prédios, sinal este que desapareceu do local; a linha delimitadora que indicam (e que veio a ficar vertida no ponto 26º) é a que resulta do levantamento topográfico junto aos autos e que através da ligação do marco existente a sul (colocado aquando da divisão inicial) a um concreto ponto situado a norte (situado a 2,40m para nascente da projecção da linha que une os marcos actualmente existentes) permitiria obter uma área igual para ambos os prédios, conforme se havia pretendido aquando da divisão inicial.

Ao dar como provado (no citado ponto 26) que a linha divisória deve ser essa, a decisão recorrida teve que ponderar e ter como certos todos os factos que haviam sido alegados para fundamentar a correcção dessa linha e teve ainda que considerar que a fixação da linha divisória não poderia ser efectuada de acordo com os títulos (eventualmente, porque estes não existiam), não deveria ser efectuada de acordo com a posse (eventualmente porque esta não se demonstrou) e que deveria ser efectuada de forma a dividir os prédios em partes iguais como havia sido estabelecido aquando da divisão inicial.

É certo, portanto, que a citada afirmação, além de ter envolvido a ponderação de uma série de factos – o que permitiria qualificá-la como um facto complexo – envolveu também a apreciação de questões que deveriam ter sido analisadas em sede de aplicação do Direito, como seja, a questão de saber se, em face da matéria de facto provada, a demarcação deveria ser efectuada de modo a que os prédios ficassem com áreas iguais ou se deveria ser efectuada de qualquer outro modo.

Afigura-se-nos, assim, que o citado ponto não poderá manter-se nos termos em que se encontra.

Isso não significa, porém, que – como pretendem os Apelantes – o pedido formulado pelos Autores tenha que improceder ou que a faixa em litígio seja dividida em partes iguais, já que aquilo que importaria era substituir aquela afirmação conclusiva pelos factos que lhe servem de suporte, anulando a decisão – se tal fosse necessário – ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 2, alínea c), do CPC, com vista à ampliação da matéria de facto e de forma a incluir eventuais factos que, tendo sido alegados, não foram incluídos na matéria de facto (apesar de estarem implícitos na afirmação que veio a ficar incluída na matéria de facto).

Não nos parece, no entanto, que tal seja necessário.

Com efeito, os factos alegados pelos Autores (no sentido de justificar aquela linha divisória) e implicitamente considerados na afirmação constante do ponto 26 constam, na sua maioria, de outros pontos da matéria de facto.

Está provado (pontos 8, 10 e 13) que existia uma única unidade predial com a área de 598,22m2 e que esta foi dividida em duas partes iguais, no sentido norte/sul, correspondendo cada uma delas aos prédios de Autores e Réus aqui em causa (daqui resultando que cada um dos prédios teria ficado com a área de 299,11m2); está provado (ponto 16) que, a sul, existe um marco que foi colocado aquando da divisão inicial (sendo, portanto indiscutível que a divisão dos prédios seria feita através da ligação desse marco a outros que existiriam para o lado norte) e está provado (ponto 17) que, no extremo norte dos prédios, havia na parede uma cruz em baixo relevo que até hoje não foi possível localizar, importando referir que os Réus não impugnam a decisão proferida no que toca a estes pontos de facto.

Perante esses factos e de acordo com o critério propugnado pelos Autores (divisão dos prédios em partes iguais), a linha delimitadora dos prédios haveria de corresponder a uma linha que ligasse o marco existente a sul a um qualquer ponto existente a norte e que permitisse obter uma área igual para cada um dos prédios, já que, a admitir-se que ambos os prédios deverão ter uma área igual e sabendo-se qual é o ponto concreto que, a sul, delimita os prédios, faltaria apenas definir o ponto que, a norte e pela ligação ao marco existente a sul, faria essa delimitação.

No entanto, se for desconsiderado o ponto 26, nenhum outro ponto da matéria de facto nos permite identificar qual será o ponto, a norte que, ligado ao marco a sul, permitirá obter uma área igual para ambos os prédios.

E é nessa parte que o ponto 26 poderá ser aproveitado, na medida em que dele resulta (ainda que de forma pouco explícita) que esse ponto se situa a 2,40 m para nascente da projecção da actual linha que une os marcos existentes.

Esse facto resulta, aliás, do levantamento topográfico que está junto aos autos – e que os Apelantes nunca impugnaram – já que, nos termos desse levantamento, é através da linha ali indicada – que parte do marco existente a sul até um local situado na extrema norte dos prédios a 2,40m (atendendo à escala a que está elaborado) para nascente da projecção da linha que une os actuais marcos existentes e que ali também se encontra desenhada – que se obtém uma área igual para ambos os prédios.

E, portanto, será este facto que deverá ficar incluído no ponto 26 e que, em conjunto com os demais factos, permitirá estabelecer a linha divisória proposta pelos Apelantes, caso seja de considerar que essa linha deverá ser estabelecida de forma a que os prédios fiquem com áreas iguais, conforme pretendem os Autores e conforme se considerou (implicitamente) na decisão de 1ª instância que levou à inclusão do ponto 26 na matéria de facto.

Assim, o ponto 26 da matéria de facto passará a ter a seguinte redacção:

A linha que, considerando o marco existente a sul (referido no ponto 16), permite operar a divisão dos prédios de Autores e Réus de modo a que fiquem com áreas idênticas, é a linha indicada a tracejado no levantamento tipográfico junto aos autos a fls. 112 (doc. 7), que, partindo do marco existente a sul, se projecta até um local situado na extrema norte dos prédios a 2,40m para nascente da projecção da linha que une os actuais marcos existentes e que ali também se encontra desenhada.    

Sustentam ainda os Apelantes que o ponto 21º da matéria de facto foi incorrectamente julgado, já que, tendo em conta os depoimentos das testemunhas, L..., M... e N..., deveria ter sido considerado provado que “Há cerca de um ano Autores e Réus recolocaram pelo menos um marco situado a meio do terreno a fim de tornarem mais visível a linha divisória entre os dois prédios”.

O ponto 21º da matéria de facto tem a seguinte redacção: “Há cerca de um ano os Réus e os Autores colocaram marcos nos extremos norte e sul dos prédios a fim de assinalarem a linha divisória entre os dois prédios”.

Tendo em conta a redacção proposta, parece que, na perspectiva dos Apelantes, não teria ficado provado que, naquela ocasião, tivessem colocado marcos nos extremos norte e sul dos prédios; apenas teriam recolocado um marco a meio do terreno.

A verdade é que os Réus não alegaram, oportunamente, a colocação ou recolocação de qualquer marco a meio do terreno e, se é certo terem alegado na contestação que não colocaram marcos e apenas alinharam os existentes, a verdade é que também alegaram que o marco que existia a Norte havia desaparecido e, portanto, não se compreende como se poderiam ter limitado a alinhar os marcos já existentes. Os próprios Réus/Apelantes confessaram que não existia (por ter desaparecido) qualquer marco a Norte e, portanto, é evidente que terão colocado um marco a Norte, como resulta, aliás, clara e expressamente, do ponto 22 da matéria de facto que os Réus não impugnam.

É certo que – e parece-nos que isso está assente por acordo das partes – não terá sido, então, colocado qualquer marco a sul, porquanto este já lá existia e foi considerado, mas foi colocado – como resulta do ponto 22 (não impugnado) – um marco ou pedra a norte dos prédios.

Assim, embora se imponha uma rectificação da redacção dada ao ponto 21, não poderá ser considerado provado – como pretendem os Apelantes – que “Há cerca de um ano Autores e Réus recolocaram pelo menos um marco situado a meio do terreno a fim de tornarem mais visível a linha divisória entre os dois prédios”. Em primeiro lugar, porque esse facto não foi alegado oportunamente e não constava do ponto da base instrutória cuja resposta corresponde ao citado ponto 21 e, em segundo lugar, porque está provado (e, nesse ponto, os Apelantes não impugnam a decisão proferida) ter sido colocado um marco ou pedra a Norte (como era natural, já que ambas as partes estão de acordo quanto ao desaparecimento do marco que aí existia).

Em face do exposto, tendo em conta os demais factos provados e tendo em conta a posição assumida pelas partes, o ponto 21 passará a ter a seguinte redacção (facto que se considera admitido por acordo das partes):

“Há cerca de um ano, os Réus e os Autores colocaram um marco (pedra) no extremo norte dos referidos prédios – conforme referido no ponto 22 – a fim de assinalarem a linha divisória entre os dois prédios com referência ao marco referido no ponto 16 que já existia a sul”.

Pretendem ainda os Apelantes que se considere provada a matéria constante dos ponto f) e l) da matéria de facto dada como não provada, ou seja, que “A Norte do terreno referido em 6 havia uma parede com uma cruz gravada e até há cerca de um ano atrás existiu pelo menos um marco a meio constituído por uma pedra de formato irregular” e que “Entre o poço e o prédio dos Autores, o terreno existente sempre foi cultivado pelos Réus ou por pessoas por eles autorizadas”, tendo em conta os depoimentos prestados pelas testemunhas, L..., M...a e N....

Que a Norte do terreno existia uma parede com uma cruz gravada já resulta do ponto 17.

Quanto aos demais factos, não conseguimos compreender a sua relevância, já que esses factos, só por si, são inócuos e irrelevantes, até porque nada nos dizem acerca da exacta localização da pedra de formato irregular e acerca da linha que delimita os prédios.

Pretendem os Apelantes que se considere provado que o terreno existente entre o poço e o prédio dos Autores sempre foi por eles cultivado ou por pessoas por eles autorizadas.

Mas, ainda que esse facto se considerasse provado, que utilidade teria para a decisão da questão – que constitui objecto da acção – de saber qual é a linha delimitadora dos prédios aqui em causa? Nenhuma, porque apenas ficaríamos a saber que os Apelantes cultivavam uma determinada faixa de terreno que existia entre o poço e o prédio dos Autores, sem que se soubesse sequer qual a largura dessa faixa e sem que daí resultasse qual era, afinal, o concreto ponto que constituía o limite dos prédios e até ao qual os Réus cultivavam o terreno.

Tal afirmação não tem, portanto, qualquer relevo para a decisão da questão que constitui o objecto da presente acção e que consiste precisamente em saber onde começa o prédio dos Autores e acaba o prédio dos Réus.

Se bem percebemos a posição que os Réus adoptaram nos presentes autos, os limites do seu prédio seriam determinados pelo alinhamento do marco existente a sul, com a cruz gravada que existia a norte e com o marco alegadamente existente a meio e a que se reporta o citado ponto f) e cuja existência os Apelantes pretendem ver demonstrada. Embora não aleguem factos concretos no sentido de identificar o exacto local da cruz e do aludido marco, parece depreender-se da sua contestação que a linha formada pelo alinhamento desses pontos coincidiria com a linha que corresponderia à delimitação efectuada pelos Autores e Réus há algum tempo e que está definida no levantamento topográfico junto aos autos e segundo a qual o seu prédio ficaria com uma área de 339,55m2. E tanto é assim que pedem, em reconvenção, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio com a área de 339,55m2, sendo certo que seria essa a área – delimitada pela linha actualmente existente e desenhada no aludido levantamento topográfico, onde se incluiria o marco que dizem estar a meio da propriedade – que sempre teriam cultivado.

Sucede que considerou-se como “não provado” – cfr. alínea i) dos factos não provados – que os Réus cultivassem, amanhassem e semeassem a aludida área de 339,55m2 e os Apelantes não impugnam a decisão que considerou este facto como não provado.

Não tendo impugnado a decisão proferida no que respeita a esse ponto de facto, os Apelantes aceitam não ter ficado provado que cultivassem a área de 339,55m2 que era precisamente a área que estava definida pela linha resultante da colocação ou recolocação de marcos que as partes efectuaram há algum tempo atrás e onde se incluía o aludido marco que, alegadamente, existiria a meio.

Mas, se é assim, qual é a relevância de considerar provada a mera existência de um marco sem a concreta identificação do local onde se encontra e que os Réus sempre cultivaram o terreno existente entre o poço e o prédio dos Autores? Sabendo nós que esse terreno não poderá ser aquele que se situava entre o poço e o limite dos prédios que sustentavam – na medida em que, como se referiu, se atendêssemos a esses limites, os Réus cultivariam uma área total de 339,55m2, facto que foi, expressamente, considerado não provado sem que os Apelantes impugnem essa decisão – aquele facto seria totalmente irrelevante por não fornecer qualquer elemento que permitisse identificar o espaço cultivado e que poderia ser de 50 cm ou de 4, 5 ou mais metros.

Assim, nesta parte, improcede a pretensão dos Réus/Apelantes.


***

Em face do exposto, a matéria de facto provada (com as alterações agora efectuadas) é a seguinte:

1. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial do Sabugal, sob o n.º309, a favor de A..., o prédio urbano sito na (...), freguesia de (...), Sabugal, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 193.

2. Da respectiva certidão de registo predial consta que tal prédio é constituído por uma casa de dois andares e um quintal, sendo a superfície coberta de 48m2 e área descoberta de 250m2.

3. Tal prédio foi adquirido pela Autora por legado testamentário, o qual foi outorgado pelo seu tio H... em 03/11/1989.

4. A casa de habitação e o quintal do prédio referido em 1 encontram-se separados por uma servidão de passagem que serve vários prédios urbanos.

5. A parte rústica confina de norte com a servidão e parta urbana, a sul com F..., a nascente com os Réus e a poente com L....

6. Os Réus são proprietários do prédio inscrito na matriz rústica da freguesia da (...) sob o n.º2153, constituído por terreno de cultura, sito no (...), freguesia da (...), Sabugal.

7. Da respectiva caderneta predial consta que a área de tal prédio é de 200 m2 e que o mesmo confronta a norte com herdeiros de E..., a sul com F..., a nascente com G...e outros e a poente com H....

8. O prédio referido em 1 e o 6 constituíram, em tempos, uma única unidade predial pertencente aos avós maternos da Autora: I... e Mulher J...a.

9. Os avós maternos da Autora tiveram três filhos: P..., que foi casada com H... (tendo ambos falecido sem descendentes), Q... (mãe da Autora) e R....

10. Por partilhas verbais, em resultado da morte dos avós da Autora, ocorridas há mais de 30 anos, a referida unidade predial foi dividida em duas partes iguais, divisão que foi feita no sentido norte-sul, tendo a parte mais a nascente sido adjudicada à tia da Autora, R..., e a parte mais a poente à outra tia da Autora, P....

11. A parte que ficou a pertencer a R... foi adquirida por compra verbal pelos Réus.

12. A parte mais a poente passou por aquisição acessória, por óbito de P..., para o marido H..., que a legou em 1995 à Autora.

13. A área total do terreno que outrora abrangia o prédio referido em 6 e o quintal do prédio referido em 1 é de 598,22 m2.

14. A área descoberta do prédio referido em 1) que consta da certidão do registo predial e da caderneta predial não se encontra correcta e não corresponde à realidade.

15. A área global do prédio referido em 6 que consta da caderneta predial não se encontra correcta e não corresponde à realidade.

16. A sul, na actual divisória dos prédios, existe um marco antigo em pedra embutido na parede divisória ali existente e ali colocado aquando da divisão da primitiva unidade predial em dois prédios distintos.

17. No extremo norte dessa divisória havia na parede ali existente uma cruz em baixo relevo numa das pedras, não tendo sido possível aos Autores descobri-la e localizá-la até hoje.

18. Há cerca de um ano, os Réus construíram um anexo incluindo um patamar sobrelevado ao terreno com cerca de 60 cm acima do nível do solo guarnecido de muro que engloba o poço, que taparam com placa metálica e que aparafusaram à tampa em cimento do poço.

19. Impedindo os Autores e as pessoas a quem eles confiem o terreno para cultivo de retirarem do mesmo poço a água que necessitam para as culturas que fazem no quintal do prédio referido em 1.

20. A sul do terreno referido em 6 encontra-se uma pedra com uma cruz gravada.

21. Há cerca de um ano, os Réus e os Autores colocaram um marco (pedra) no extremo norte dos referidos prédios – conforme referido no ponto 22 – a fim de assinalarem a linha divisória entre os dois prédios com referência ao marco referido no ponto 16 que já existia a sul.

22. Os Autores aceitaram a colocação pelo Réu de uma pedra na parte mais a norte da linha divisória, na convicção de que a colocação da mesma seria para dividir os prédios com igual área para cada um.

23. Após, a Autora constatou que a colocação da referida pedra poderia não coincidir com a divisória original, pelo facto de o seu prédio lhe parecer manifestamente inferior ao prédio dos Réus.

24. A colocação de tal pedra não respeita a divisão a meio da antiga unidade predial.

25. A Autora mandou efectuar um levantamento topográfico, tendo despendido a quantia de 200,00 euros.

26. A linha que, considerando o marco existente a sul (referido no ponto 16), permite operar a divisão dos prédios de Autores e Réus de modo a que fiquem com áreas idênticas, é a linha indicada a tracejado no levantamento tipográfico junto aos autos a fls. 112 (doc. 7), que, partindo do marco existente a sul, se projecta até um local situado na extrema norte dos prédios a 2,40m para nascente da projecção da linha que une os actuais marcos existentes e que ali também se encontra desenhada.    

27. A unidade predial que em tempos abrangia o quintal do prédio referido em 1 e o prédio referido em 6 sempre teve um poço.

28. Tal poço sempre foi de utilização conjunta após a divisão da referida unidade predial.

29. Os avós da Autora retiravam do poço água para regar as produções agrícolas que mantinham na referida unidade predial.

30. O tio da Autora, os Autores e as pessoas a quem eles entregaram o prédio para cultivo retiravam água do poço para regar hortícolas e plantas que cultivavam no quintal do prédio referido em 1.

31. Tal poço sempre foi, e é, a única fonte de água para rega dos prédios referidos em 1 e 6.

32. Na partilha operada entre os herdeiros de I... e mulher J..., ou seja entre P..., Q... e R... foi acordado que o poço seria comum aos dois prédios divididos.

33. Desde a data de tal partilha, operada há mais de 30 anos, vêm os Autores, e antes deles os seus tios, e antes destes os seus avós maternos, por si e por interpostas pessoas, retirando do poço a água necessária para a rega das suas culturas.

34. Fazendo-o à vista de toda a gente.

35. Sem qualquer interrupção desde então até hoje.

36. Sem oposição de quem quer que seja.

37. Na convicção de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem terceiros.

38. O prédio referido em 6 antes de ser adquirido pelos Réus já era por eles tratado.

39. A irmã da Ré sempre cultivou, com a devida autorização dos Réus, durante mais de 30 anos, o prédio referido em 6, nunca tendo sido chamada à atenção pelos anteriores proprietários do prédio dos Autores.

40. Os Réus realizaram obras de conservação no poço, incluindo a tapagem do mesmo.


*

E foram declarados como não provados os seguintes factos:

a) O prédio referido em 6 foi adquirido por compra verbal no ano de 1973 a O....

b) O poço apenas foi construído depois de se pôr fim à unidade predial referida.

c) Quem construiu o poço foi O....

d) Na parte que agora pertence aos Autores existia uma presa que dava água para aquele terreno.

e) O prédio referido em 6 sempre apresentou a mesma configuração,

f) A norte do terreno referido em 6 havia uma parede com uma cruz gravada e hoje existem dois marcos a meio, sendo um deles constituído por uma pedra de formato irregular.

g) Na ponta norte, mais a nascente, no local onde os Réus fizeram agora um pequeno logradouro anexo à casa de habitação, existia um muro.

h) A área total do prédio referido em 6 é de 339,55m2.

i) Os Réus têm vindo a cultivar, amanhar e semear, por si ou por interposta pessoa, desde 1973, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de alguém, convictos de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem ninguém, a área de 339,55 m2 do prédio referido em 6.

j) Os Réus e pessoas por eles autorizadas utilizam exclusivamente o poço para rega desde pelo menos 1973.

k) À vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, convictos de que o poço lhes pertence por inteiro.

l) Entre o poço e o prédio dos Autores, o terreno existente sempre foi cultivado pelos Réus ou por pessoas por eles autorizadas.


***

Definida a matéria de facto a considerar, importa agora analisar as demais questões suscitadas pelos Réus.

Além das questões suscitadas a propósito da matéria de facto – questões que já foram apreciadas – os Réus/Apelantes fundamentam o seu recurso nas seguintes considerações:

• Em resultado da alteração de julgamento da matéria de facto atrás descrita e da retirada da mesma do facto elencado sob o nº 26, terá que improceder a pretensão dos Autores uma vez que da matéria de facto dada como provada nenhum elemento resulta que permita ao Tribunal concluir que o terreno tenha a dimensão e limites alegados pelos mesmos, tendo ficado demonstrada a existência de uma primitiva demarcação que foi pacífica desde a compra do terreno ocorrida há cerca de quarenta anos até à interpelação dos Autores para colocar os marcos mais visíveis;

• Atendendo à matéria de facto provada, por força das alterações propostas, os Réus têm ocupado a sua parcela com a área de terreno constante da planta topográfica junta aos autos pelos Autores de forma ininterrupta, pacífica, à vista de toda a gente e convictos de estarem a exercer um direito próprio pelo que deve ser julgada procedente a reconvenção e, caso não seja possível concluir qual o pacifico limite de cada um dos terrenos terá que ser a parcela em discussão ser dividida em partes iguais nos termos do nº 2 do artigo 1354º do C. Civil.

Conforme dispõe o art. 1353º do Código Civil[5], “o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles”.

É esse o direito que os Autores vêm exercer, na presente acção, sustentando – como é pressuposto do exercício da faculdade a que alude a citada disposição legal e da acção de demarcação por via da qual esse direito é exercido – que são proprietários de um prédio que confina com um prédio pertencente aos Réus e que é incerta, duvidosa e controvertida a linha divisória (estrema) dos aludidos prédios, na medida em que, apesar de estar determinado – através de um marco que ambas as partes aceitam – o ponto que delimita os prédios a sul, o marco que outrora existia a norte e que, pelo alinhamento com o marco a sul, definia a linha divisória, desapareceu do local e até hoje não foi possível localizá-lo.

Discordando da decisão que fixou a linha divisória dos prédios nos termos em que ela era indicada pelos Autores, sustentam os Apelantes que nada resulta da matéria de facto que permita ao Tribunal concluir que o terreno tenha aquela dimensão e aqueles limites, sendo certo que ficou demonstrada a existência de uma primitiva demarcação que foi pacífica desde a compra do terreno ocorrida há cerca de quarenta anos.

Não é verdade, no entanto, que tenha ficado demonstrada a existência de uma primitiva demarcação que tenha sido pacífica ao longo dos anos.

Sabemos, na verdade, que essa demarcação existiu e era efectuada através de um marco que existia a sul e através de uma cruz em baixo relevo que estava numa pedra no extremo norte dos prédios.

Mas ainda que a demarcação assim efectuada tenha sido pacífica durante muitos anos – como alegam os Réus – a verdade é que a cruz existente a norte terá desaparecido do local, sendo que, até hoje, não foi possível localizá-la e daí decorre a incerteza ou dúvida acerca da linha divisória dos prédios, já que a matéria de facto provada não fornece quaisquer elementos que permitam identificar o concreto local onde se encontrava essa cruz.

Importa notar que os Réus, não obstante sustentarem que a demarcação é feita através da aludida cruz, nada alegaram de concreto no que respeita ao exacto local onde se encontrava essa cruz (refira-se que, não obstante terem impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto no sentido de aí ser incluída a existência de um marco a meio da propriedade, também nada alegaram a propósito da sua exacta localização, além de que esse marco não era, só por si, suficiente para estabelecer os limites dos prédios, porquanto sempre faltaria definir a localização do marco que se encontrava a norte).

É certo, portanto, que a linha divisória dos prédios é incerta ou duvidosa, porquanto, apesar de ser conhecido o ponto (marco) que está colocado a sul, não é conhecido o ponto que, a norte, faz essa divisão e que, pelo seu alinhamento com o marco existente a sul, permitiria configurar a linha divisória.

Nestas circunstâncias, importa atender ao art. 1354º que, regulando o modo de proceder à demarcação, dispõe nos seguintes termos.

1. A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

2. Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

3. (…)”.

Sendo indiscutível a inexistência de títulos suficientes para proceder à demarcação, é certo também não poder a questão ser decidida de harmonia com a posse em que se encontra cada um dos confinantes, já que nada de concreto e relevante se provou a esse respeito.

Com efeito, ao contrário do que pretendem os Réus, a matéria de facto provada não permite concluir que os mesmos tenham ocupado a parcela de terreno aqui em questão.

De facto, não obstante ter ficado provado que a irmã da Ré sempre cultivou, com autorização dos Réus e durante mais de trinta anos, o prédio referido em 6., nada sabemos sobre os limites do terreno que cultivava e, ainda que considerasse provado – como pretendiam os Apelantes – que o terreno existente entre o poço e o prédio dos Autores sempre foi cultivado pelos Réus ou por pessoas por eles autorizadas, tal facto também nada nos diria de relevante no que toca aos limites da área que assim era cultivada, importando notar que se considerou “não provado” – decisão que os Apelantes não impugnaram – que os Réus cultivassem, amanhassem ou semeassem, por si ou por interposta pessoa e desde 1973, uma área de 339,55m2 (área que corresponderia aos limites que são sustentados pelos Apelantes).

Mas, ainda que não seja possível proceder á demarcação em função dos títulos ou em função da posse dos confinantes, tal não significa, necessariamente, que a parcela tenha que ser dividida em partes iguais, ao abrigo do disposto no art. 1354º, nº 2.

De facto, a distribuição do terreno em litígio em partes iguais apenas pode e deve ter lugar, quando a prova produzida não forneça quaisquer elementos acerca daqueles que eram ou devem ser os limites dos prédios. Tal solução impõe-se, naturalmente, pela necessidade de resolver e definir, em termos definitivos, a incerteza ou controvérsia no que toca à linha divisória dos prédios e que, enquanto persistir, será fonte de litígio entre os respectivos proprietários; daí que, sendo impossível definir essa linha, por falta de qualquer elemento que permita estabelecê-la, tal incerteza ou controvérsia será resolvida pela fixação de uma linha divisória que divida o terreno em litígio pelos confinantes em partes iguais.

Não é isso, no entanto, o que acontece no caso sub judice, porquanto dispomos de elementos bastantes para estabelecer uma linha divisória em conformidade com aquela que foi a intenção das partes quando procederam à divisão e que permite repor – ainda que de forma aproximada – o marco que haviam colocado e que, entretanto, desapareceu do local.

De facto, resulta da matéria de facto provada que, aquando da divisão da antiga unidade predial (por ocasião de partilhas verbais realizadas há mais de 30 anos), esta foi dividida em duas partes iguais e provou-se que, nessa ocasião, foi colocado um marco a sul dos prédios (que ainda se encontra no local), existindo, no extremo norte, uma cruz numa pedra. Ora, tendo existido a intenção de dividir a unidade predial em duas partes iguais, é de supor que os marcos ali colocados tenham materializado – em termos exactos ou aproximados – a divisão igualitária que se pretendia efectuar. Assim, existindo ainda o marco que foi colocado a sul, o que importa agora é repor o marco que se encontrava a norte e, não tendo sido possível descobrir a sua exacta localização, o mesmo deverá ser colocado no local que, tendo como referência o marco ainda existente a sul, melhor permita concretizar a repartição igualitária que esteve subjacente à divisão inicial.

Ora, esse local é o que está definido no levantamento topográfico junto aos autos e no ponto 26 da matéria de facto (ou seja, o local situado na extrema norte dos prédios a 2,40m para nascente da projecção da linha que une os actuais marcos existentes) já que é o alinhamento desse local com o marco existente a sul que permite operar a divisão dos prédios de modo a que fiquem com áreas idênticas.

Assim, porque foi nesses termos que se decidiu em 1ª instância, impõe-se confirmar essa decisão.    


/////

IV.

APELAÇÃO DOS AUTORES

O recurso interposto pelos Autores reporta-se apenas à parte da decisão que julgou improcedente o pedido que haviam formulado no sentido de que se declarasse que “o poço existente na parte norte do terreno dos RR com cerca de 1,00 metro de diâmetro e 4 metros de profundidade é compropriedade de AA e RR na proporção de metade indivisa para cada um, por assim se ter determinado na divisão operada na unidade predial que originou o prédio dos AA e o prédio dos RR e desde então até hoje tanto AA como RR o terem utilizado por si e interpostas pessoas para dele extraírem água para a rega dos respectivos prédios na forma e modo referidos supra de 44º a 51º da P.I.”.

Refira-se, desde já, que, não obstante aludirem ao teor de diversos depoimentos que foram prestados, os Autores não impugnaram a decisão proferida sobre a matéria de facto, sendo certo que, além de não afirmarem sequer – de modo expresso – pretender impugnar essa decisão, também não indicam os concretos pontos de facto que teriam sido incorrectamente julgados. E, não obstante referirem, nas conclusões das suas alegações, que deve ser considerada provada toda a matéria constante do ponto 7. do pedido, é evidente que tal não configura uma impugnação da decisão da matéria de facto, na medida em que esta decisão apenas incide sobre os factos que são alegados para fundamentar os pedidos ou pretensões formuladas e não sobre o teor destes pedidos ou pretensões.

Não obstante algumas referências ou alegações incorrectas – como sejam a de que se deveria considerar provada a matéria constante do ponto 7. do pedido ou a de que existe contradição entre a matéria provada e a decisão de improcedência do referido pedido – o que os Autores pretendem dizer – e é nisso que se baseia o seu recurso – é que os factos enunciados sob os nºs 8. 10. e 27 a 37 são suficientes para a procedência daquele pedido, porquanto tais factos apenas poderiam levar à conclusão de que, tendo-se constituído inicialmente a compropriedade sobre o poço e a água nele nascente por destinação de pai de família, a posse da água e do poço consolidou-se depois ao longo de mais de vinte anos pela sua utilização contínua, de forma pública, pacífica e de boa fé, mais sustentando que, ao contrário do que se considerou na sentença recorrida, a tal não obsta a circunstância de os Autores não terem alegado e provado a posse de obras, visíveis e permanentes reveladoras da captação e condução da água para o seu prédio, não só porque existe uma obra que é o próprio poço, mas também porque, neste caso, a lei não exige a existência de sinais reveladores nos termos do disposto no nº 3 do art. 1390º do CC.

Analisemos, portanto, a questão.

O poço aqui em questão é particular – tendo em conta o disposto no art. 1387º - e, segundo alegam os próprios Autores, situa-se em prédio que pertence aos Réus.
É certo, portanto, que, em conformidade com o disposto no art. 1389º, os Réus poderão captar a água, servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo.

Não obstante esse facto, os Autores arrogam-se comproprietários do aludido poço e da água nele captada e, portanto, importa saber se adquiriram ou não, por justo título, algum direito àquele poço e à água nele captada.
De acordo com o disposto no art. 1390º nº 1, “considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões”.
Contrariando a doutrina que, então, era defendida por Guilherme Moreira e segundo a qual o direito a uma água que nasce em prédio alheio é sempre um direito de propriedade e nunca um direito de servidão, o citado art. 1390º veio consagrar, de forma inequívoca, que o direito a uma água que nasce em prédio alheio pode ser um direito de propriedade ou um direito de servidão.
Refira-se – citando Antunes Varela[6] –, que “…existe entre os dois direitos reais uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”. Ainda a propósito da distinção entre esses dois direitos, Tavarela Lobo[7] refere que: “se o terceiro adquirente pode fruir ou dispor livremente da água nascida em prédio alheio e desintegrada da propriedade superficiária, aliená-la ou captá-la subterraneamente, usá-la neste ou naquele prédio, para este ou aquele fim, constitui-se um direito de propriedade…Constituir-se-á um direito de servidão se o aproveitamento de uma nascente existente num prédio (serviente) é concedido a terceiro em benefício de um seu prédio (dominante) e para as necessidades deste”.

A distinção entre o direito de propriedade e o direito de servidão reside, pois, na existência ou não do poder de disposição sobre a água em causa e na amplitude do poder de utilização da mesma água.

É assim que o titular de um direito de propriedade sobre a água pode dispor dela livremente, transmitindo a outrem a respectiva propriedade ou constituindo servidões e pode utilizá-la livremente em qualquer prédio ou para qualquer finalidade, sem quaisquer restrições além das que são impostas por lei e das que resultam de direitos legitimamente adquiridos por terceiros; o titular de um direito de servidão não tem qualquer poder de disposição sobre a água (não pode aliená-la ou cedê-la a terceiro nem constituir sobre ela qualquer ónus) e o direito à sua utilização é restrito e limitado, na medida em que não pode utilizar a água em prédio diverso daquele em benefício do qual foi constituída a servidão (prédio dominante) nem pode utilizá-la para finalidade diversa ou em termos diferentes daqueles que estão abrangidos pelo respectivo título ou conteúdo.
Estão em causa, portanto, direitos diferentes e que, como se referiu, poderão ser adquiridos pelos meios que a lei considera legítimos para a aquisição do direito de propriedade referente a coisas imóveis ou para a constituição de servidões.
A propósito da aquisição por usucapião – meio legítimo de adquirir o direito de propriedade sobre coisas imóveis e meio legítimo de constituição de servidões –, dispõe o nº 2, que ela só será atendida “…quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio; sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova”.
Mas, dispõe o nº 3 da mesma disposição, que “em caso de divisão ou partilha de prédios sem intervenção de terceiro, a aquisição do direito de servidão nos termos do artigo 1549º não depende da existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário”.
Como decorre da respectiva redacção, o nº 2 da norma citada reporta-se à aquisição por usucapião, seja do direito de propriedade, seja de um direito de servidão, determinando que ela apenas constitui um modo legítimo de adquirir esses direitos quando acompanhada das obras ou sinais ali descritos. Ao contrário do que sucede com o nº 2 – que se reporta à aquisição do direito de propriedade e à aquisição do direito de servidão – o nº 3 da citada norma reporta-se apenas à aquisição do direito de servidão e apenas quando constituída por destinação do pai de família.

Sublinhe-se, no entanto, que aquilo que os Autores peticionam (tal como, aliás, reafirmam, de modo claro e expresso nas suas alegações de recurso) não é o reconhecimento de uma servidão de água, mas sim o reconhecimento do seu direito de propriedade ou compropriedade sobre metade do poço e da água que nele nasce.

Ora, não estando aqui em causa – porque tal não é peticionado – o reconhecimento de uma servidão, não faz sentido aludir – como aludem aos Autores – ao disposto no art. 1390º, nº 3, (que apenas se reporta a servidões) e à constituição por destinação de pai de família (instituto que, como resulta do disposto nos arts. 1547º e 1549º, não se reporta à aquisição do direito de propriedade, mas apenas à constituição de servidões).

Os Autores invocam, como se referiu, o seu direito de compropriedade sobre o aludido poço e sobre a água que nele nasce, na proporção de metade.

 Ora, como decorre do disposto no art. 1390º, nº 1, apenas se considera justo título de aquisição da propriedade sobre a água das fontes e nascentes qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis e, como decorre do disposto no art. 1316º e segs., o direito de propriedade sobre imóveis adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião ou acessão.

Vejamos o que acontece no caso sub judice.

Consta da matéria de facto, sob os nºs 8, 10 e 27 a 37 (factos que, segundo os Apelantes, seriam suficientes para a procedência daquele pedido), o seguinte:

“8. O prédio referido em 1 e o 6 constituíram, em tempos, uma única unidade predial pertencente aos avós maternos da Autora: I... e Mulher J....

10. Por partilhas verbais, em resultado da morte dos avós da Autora, ocorridas há mais de 30 anos, a referida unidade predial foi dividida em duas partes iguais, divisão que foi feita no sentido norte-sul, tendo a parte mais à nascente sido adjudicada à tia da Autora, R..., e a parte mais a poente à outra tia da Autora, P....

27. A unidade predial que em tempos abrangia o quintal do prédio referido em 1 e o prédio referido em 6 sempre teve um poço.

28. Tal poço sempre foi de utilização conjunta após a divisão da referida unidade predial.

29. Os avós da Autora retiravam do poço água para regar as produções agrícolas que mantinham na referida unidade predial.

30. O tio da Autora, os Autores e as pessoas a quem eles entregaram o prédio para cultivo retiravam água do poço para regar hortícolas e plantas que cultivavam no quintal do prédio referido em 1.

31. Tal poço sempre foi, e é, a única fonte de água para rega dos prédios referidos em 1 e 6.

32. Na partilha operada entre os herdeiros de I... e mulher J..., ou seja entre P..., Q... e R... foi acordado que o poço seria comum aos dois prédios divididos.

33. Desde a data de tal partilha, operada há mais de 30 anos, vêm os Autores, e antes deles os seus tios, e antes destes os seus avós maternos, por si e por interpostas pessoas, retirando do poço a água necessária para a rega das suas culturas.

34. Fazendo-o à vista de toda a gente.

35. Sem qualquer interrupção desde então até hoje.

36. Sem oposição de quem quer que seja.

37. Na convicção de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem terceiros”.

Se bem entendemos a posição dos Apelantes, a sua compropriedade relativamente ao poço e à agua que nele nasce teria resultado do acordo efectuado aquando da partilha que foi realizada, por via da qual a unidade predial outrora existente foi dividida em duas partes iguais (uma das quais pertence actualmente à Autora) e onde ficou estabelecido que o poço seria comum aos dois prédios resultantes da sua divisão.

A verdade, porém, é que esse acordo – meramente verbal – não constitui título legítimo para aquisição do direito de propriedade sobre coisas imóveis, porquanto não observou a forma imposta por lei.

Assim sendo e não tendo sido invocado qualquer outro meio ou título legítimo de aquisição do direito de propriedade, os Autores apenas poderiam ter adquirido o aludido direito de compropriedade por usucapião e por força da posse exercida após aquela partilha verbal (sendo certo que, como se referiu, a constituição por destinação do pai de família – a que os Apelantes se reportam – não constitui modo legítimo de aquisição do direito de propriedade, podendo apenas determinar a aquisição de uma servidão e – reafirma-se – o direito a que os Autores se arrogam é um direito de propriedade e não um direito de servidão).

Sucede que, como determina o art. 1390º, nº 2, a usucapião, enquanto título legítimo de aquisição do direito sobre águas, só é atendida “…quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio…”.

Ora, conforme se considerou na sentença recorrida, os Autores não alegaram – e, como tal, não provaram – a existência de qualquer obra que revele a captação e a sua posse da água.

E não se diga – como dizem os Apelantes – que o poço e a zona circundante onde se colocavam os motores correspondem a uma obra relevante para os efeitos da citada disposição legal. No que toca à zona circundante nada resulta da matéria de facto provada e, ainda que o poço ali existente seja, efectivamente, uma obra que revela a captação da água, a verdade é que ela não revela a captação e posse da água por parte dos Autores e seus antepossuidores, na medida em que tal poço não constitui, só por si, qualquer sinal ou indício de que a água seja ali captada e possuída por qualquer outra pessoa que não seja o proprietário do prédio onde o mesmo se situa.

Mas, ainda que esse poço fosse relevante para efeitos do disposto no citado art. 1390º, nº 2, e para efeitos de usucapião, sempre faltariam elementos que nos permitissem concluir que a posse do poço e da água por parte dos Autores era correspondente ao exercício do direito de propriedade ou compropriedade cuja reconhecimento vêm peticionar.

Importa notar que a actuação dos Autores e antepossuidores relativamente ao poço e à água nele captada – tal como emerge da matéria de facto provada – não é uma actuação que corresponda inequivocamente ao exercício de um direito de propriedade ou compropriedade. Com efeito, apenas sabemos que os Autores e antepossuidores têm, ao longo dos anos, retirado do poço a água necessária para a rega das suas culturas, o que fazem à vista de toda a gente, sem qualquer interrupção, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de estarem a exercer um direito próprio e de não prejudicarem terceiros. No entanto, esta actuação tanto poderá corresponder ao exercício de um direito de propriedade ou compropriedade como ao exercício de um mero direito de servidão e, portanto, nada nos permitiria concluir pela existência de uma posse correspondente ao exercício do concreto direito que os Autores vêm invocar (compropriedade) e que, como tal, fosse relevante para efeitos de aquisição desse direito por usucapião.

Tal como referimos supra, a distinção entre o direito de propriedade e o direito de servidão reside na existência ou não do poder de disposição sobre a água em causa e na amplitude do poder de utilização da mesma água e a verdade é que os actos praticados pelos Autores nunca envolveram qualquer poder de livre disposição e utilização da água, sendo certo que nunca a utilizaram (pelo menos, tal não se provou) para quaisquer outros fins que não a rega das culturas existentes no seu prédio e, portanto, tais actos integram apenas aquele que é o conteúdo normal de um direito de servidão.

É certo, no entanto, que tais actos não assumem quaisquer características que, pela sua especificidade, os tornem exclusivos de um direito de servidão, já que seriam praticados do mesmo modo pelo titular do direito de propriedade das águas e pelo titular do respectivo direito de servidão; tais actos estão, portanto, abrangidos no conjunto de direitos e faculdades que assistem ao proprietário e ainda que o proprietário tenha poderes mais amplos, isso não significa, necessariamente, que tenha que os exercer, não estando o proprietário impedido de usufruir e utilizar a água de sua propriedade nos mesmos termos em que a mesma seria utilizada pelo titular de uma servidão.

Nestes casos, em que a posse é equívoca, dada a circunstância de os actos materiais de posse serem susceptíveis de integrar o conteúdo de dois ou mais direitos, só o animus do possuidor poderá determinar o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação[8].

E não sendo feita a prova do animus da posse, a presunção estabelecia no art. 1252º, nº 2, apenas poderá operar em exacta correspondência com o poder de facto que é exercido sobre a coisa, não podendo ser presumida a posse de um direito mais amplo se os actos praticados – embora integrem uma parte do conteúdo desse direito – correspondem apenas àquele que é o conteúdo normal de um direito mais limitado.

Assim, não estando provado que os Autores e seus antepossuidores actuassem com o animus correspondente ao direito de propriedade ou compropriedade, apenas se poderia presumir a existência de posse correspondente a um direito de servidão.

É certo, portanto, em face do exposto, que não pode ser reconhecido aos Autores/Apelantes o concreto direito que vêm invocar: o direito de propriedade ou compropriedade sobre o poço e água nele captada, na medida em que:

• O acordo invocado pelos Autores por via do qual se teria constituído essa compropriedade é um acordo verbal que, não tendo respeitado a forma legalmente exigida para a constituição de direitos sobre imóveis, não corresponde a um meio legítimo de adquirir a propriedade;

• A aquisição desse direito por usucapião pressupunha, ao abrigo do disposto no art. 1390º, nº 2, a existência de obras que revelassem a captação e a posse da água por parte dos Autores/Apelantes;

• Ao contrário do que pretendem os Apelantes, o nº 3 da norma citada (que dispensa a existência de sinais) apenas tem aplicação à aquisição do direito de servidão por destinação do pai de família, não tendo qualquer aplicação à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou compropriedade, cujo reconhecimento os Apelantes vêm peticionar;

• O poço existente não configura, pelas razões mencionadas, uma obra relevante para efeitos da norma citada e nenhuma outra obra se demonstrou existir;

• De qualquer modo, a actuação dos Autores/Apelantes e antepossuidores relativamente ao poço e à água nele captada não corresponde ao exercício inequívoco de um direito de propriedade ou compropriedade, já que tal actuação é igualmente compatível com o exercício de um direito de servidão;

 • Nessas circunstâncias e não tendo sido feita a prova de que tal actuação é exercida com animus correspondente ao direito de propriedade, não pode ser presumida a posse deste direito (mais amplo) na medida em que os actos praticados – embora integrem uma parte do conteúdo desse direito – correspondem apenas àquele que é o conteúdo normal de um direito mais limitado, como seja o direito de servidão.

Embora pudesse ser equacionada a possibilidade de existir um direito de servidão relativamente ao poço e água nele captada, eventualmente constituído por destinação do pai de família (sendo certo que, para a constituição desse direito, o citado art. 1390º, nº 3, dispensa a existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário), a verdade é que, como afirmam de modo claro e expresso, não é esse o direito que os Apelantes reclamam e cujo reconhecimento peticionam.

Os Autores alegam ser comproprietários do poço e da água nele captada, na proporção de metade, e é esse o direito cujo reconhecimento vêm reclamar.

Mas, pelas razões mencionadas, tal direito não lhes pode ser reconhecido e, como tal, terá que improceder o recurso, confirmando-se a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente esse pedido.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – No âmbito de uma acção de demarcação – que tem como objectivo a fixação da linha divisória entre dois prédios – é conclusiva e não deve ser inserida na matéria de facto a afirmação – resultante da ponderação de uma série de factos e da apreciação (implícita) de questões de direito relacionadas com os critérios legais de operar a demarcação – de que a linha divisória dos prédios deve passar por determinado local.

II – A distribuição do terreno em litígio em partes iguais, a que alude o art. 1354º, nº 2, do CC apenas se impõe como critério de definição da linha divisória dos prédios quando não exista qualquer elemento que permita estabelecer essa linha em função dos títulos, em função da posse dos confinantes ou em função de qualquer outro elemento que seja relevante.

III – Tendo ficado provado que os prédios em causa resultaram da divisão de uma única unidade predial e que, à data, se pretendeu efectuar essa divisão em duas partes iguais, a fixação da linha divisória (que se tornou necessária em virtude do desaparecimento de um dos marcos que procedia a tal divisão) deverá respeitar aquela intenção e como tal deverá ser estabelecida de modo a que ambos os prédios fiquem com áreas idênticas.

 IV – Como decorre do disposto no art. 1390º, nº 2, do CC, a usucapião apenas poderá ser considerada como meio legítimo de aquisição do direito de propriedade das águas ou de constituição de uma servidão com vista à sua utilização e aproveitamento se for acompanhada de obras que, além da demais características ali mencionadas, revelem a captação e a posse da água por parte de quem se arroga seu possuidor.

V – Um poço existente em determinado prédio não constitui obra, sinal ou indício de que a água seja ali captada e possuída por qualquer outra pessoa que não seja o proprietário do prédio onde se situa e, como tal, não constitui obra relevante para efeitos de aquisição, por usucapião, de qualquer direito sobre as águas (seja um direito de propriedade, seja uma servidão) por parte de qualquer outra pessoa.

VI – Nos casos em que a posse é equívoca – em virtude de a actuação exercida sobre a coisa ser susceptível de integrar um direito de propriedade ou um direito de servidão – só a prova do animus do possuidor permitirá determinar qual é o concreto direito a que se reporta a sua actuação; não sendo feita a prova de que tal actuação é exercida com animus correspondente ao direito de propriedade, não poderá ser presumida a posse deste direito (mais amplo) se os actos praticados – embora integrem uma parte do conteúdo desse direito – correspondem apenas àquele que é o conteúdo normal de um direito de servidão (mais limitado).


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento aos recursos e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
As custas de cada uma das apelações serão suportadas pelos respectivos recorrentes.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3ª ed., Reimpressão, pág.206.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 194.
[3] Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 122º, pág. 220.
[4] Ob. cit., págs. 214 e 215.
[5] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[6] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115º, pág. 220.
[7] Manual do Direito de Águas, Vol. II, 1990, págs. 35 e 36.
[8] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 66