Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2279/07.8TBOVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: EMPREITADA
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
DESISTÊNCIA
DONO DA OBRA
DIREITOS
EMPREITEIRO
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 227º, 1027º E 1229º DO C. CIV.
Sumário: I – O contrato de empreitada é um negócio jurídico bilateral que pressupõe o acordo de vontades entre o dono da obra e o empreiteiro.

II – A conclusão do contrato dá-se segundo o modelo da proposta/aceitação (artºs 224º e segs. do C. Civ.).

III – Na fase negociatória do contrato quanto maior for o investimento da confiança maior será a intensidade dos deveres pré-contratuais, cuja violação implica responsabilidade civil pré-contratual (artº 227º do C. Civ.).

IV – A responsabilidade pré-contratual exige a culpa (in contrahendo), prevalecendo a orientação no sentido de ser aplicável a presunção estabelecida no artº 799º CC.

V – Tendo a obrigação por objecto a prestação de facto, a lei não faculta ao devedor mecanismo de se libertar do respectivo vínculo (não é admissível depósito de prestação de facto) quando o credor não dê a sua cooperação necessária ao cumprimento.

VI – Nesta situação, ao devedor resta apenas a possibilidade de notificar o credor para receber a prestação, com todas as consequências que daí derivam e que são: se, em consequência da recusa do credor em receber a prestação, se tornar impossível o cumprimento da prestação, esta extingue-se (artº 790º C.Civ.); não se extinguindo a obrigação, serão aplicáveis as disposições dos artºs 813º e segs. do C.Civ., respeitantes à mora do credor.

VII – Estando o devedor em mora, a lei permite que o credor fixe um prazo razoável para cumprir, sob pena de se considerar não cumprida a obrigação, através da interpelação admonitória (artº 808º, nº 1, C. Civ.).

VIII – A extinção do contrato, por desistência do dono da obra (artº 1229º C. Civ.), constituindo uma excepção à regra “pacta sunt servanda”, é uma faculdade discricionária que pode ser tácita, sem forma especial, não carece de fundamento nem de pré-aviso e assume eficácia ex nunc.

IX – Tal forma de extinção do contrato de empreitada confere ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, por variadas razões, interrompendo a sua execução para o futuro, e bem assim o direito a uma indemnização pelos “gastos e trabalho” e, ainda, pelo “proveito que poderia tirar da obra”.

X - Como facto constitutivo do direito (artº 342º, nº 1, CC), compete ao empreiteiro alegar e provar o custo dos trabalhos e despesas com a execução parcial da obra, bem assim o seu custo global.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

         1.1. - A Autora – A... Lda – instaurou ( 6/12/2007 ) na Comarca de Ovar ( Baixo Vouga ) acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – B... e mulher C....

         Alegou, em resumo:

         Em Abril de 2007, a Autora apresentou ao Réu marido, a solicitação deste, um orçamento para a construção de uma moradia unifamiliar, referente à execução de trabalhos de pedreiro, no valor de € 83.187,50, sendo o pagamento do preço faseado em três prestações.

         O Réu aceitou o orçamento e, em 5 de Junho de 2007, adjudicou a obra à Autora, entregando os seus elementos de identificação e todos os elementos técnicos com vista à execução dos trabalhos.

         Na segunda semana de Julho iniciou a execução da obra, procedendo à demarcação e limpeza do terreno, construção de um muro, ficando o Réu de requerer junto das entidades competentes a instalação da electricidade e água e comunicação à Autora de tal facto, fixando um prazo de 3 meses para a conclusão após essa comunicação.

         No final do mês de Julho, o sócio gerente da Autora deslocou-se ao local e verificou que um outro empreiteiro efectuava trabalhos de fundação, o qual procedeu ao levantamento da licença de construção, que a Autora havia requerido.

         Isto significa que os Réus desistiram da empreitada, ficando obrigados a ressarcir a Autora dos prejuízos sofrido, ou seja, pelos gastos, trabalho e proveito que retirara da obra.

         Pediu a condenação dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 14.990,00, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

         Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:

         Muito embora houvessem iniciado negociações com a Autora, jamais acordaram com ela a empreitada, sendo que nunca apresentou orçamento.

         A Autora disponibilizou o seu alvará para que os Réus pudessem levantar a licença de construção necessária ao abastecimento de água e instalação eléctrica, bem assim a proceder à demarcação da área de implantação, tendo erigido um muro.

         Sem que nada o justificasse, a Autora abandonou as negociações não chegando a celebrar o contrato de empreitada, apesar das insistências dos Réus, e, por esse motivo, os Réus contrataram com outro empreiteiro.

         Em consequência do abandono das negociações e dada a violação das expectativas criadas, os Réus sofreram danos não patrimoniais.

         Concluíram pela improcedência da acção e em reconvenção pediram a condenação da Autora a pagar-lhes, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 2.000,00, bem como a condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização.

         Replicou a Autora contraditando a reconvenção e requereram a condenação dos Réus como litigantes de má fé.

         No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

         1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença ( fls. 150 e segs. ) que decidiu:

a) - Julgar procedente a acção e condenar os Réus a pagarem à Autora a quantia de € 12.420,00, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação e até integral pagamento, bem como no que se liquidar posteriormente quanto ao valor despendido pela Autora com a factualidade supra descrita em 28.

b) – Julgar improcedente a reconvenção e absolver a Autora reonvinda.

         1.3. - Inconformados, os Réus recorreram de apelação ( fls. 182 e segs. ) com as seguintes conclusões:

[…]

         Não foram apresentadas contra-alegações.


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O objecto do recurso:

         As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são fundamentalmente as seguintes:

         (1ª) Impugnação de facto ( quesitos 5º, 10º, 11º, 13º, 15º, 19º, 25º e 27º da base instrutória );

         (2ª) A pretensão das partes no âmbito da responsabilidade civil ( responsabilidade contratual ou responsabilidade pré-contratual ).

2.2. – 1ª QUESTÃO

[…]

2.4. – 2ª QUESTÃO

A sentença recorrida, ponderando a factualidade apurada, concluiu que, por haver já um acordo de vontades firmado, ultrapassando a fase das negociações preliminares, as partes celebraram um contrato de empreitada, tendo por objecto a obra de pedreiro da moradia dos Réus ( donos da obra ), cuja execução a Autora ( empreiteira) chegou a iniciar, apesar de não ter sido ainda reduzido a escrito. Houve incumprimento por parte dos Réus, na medida em que contrataram com outro empreiteiro, com a consequente obrigação de indemnização ( arts.798, 662 e 564 CC ).

A solução será a mesma - diz a sentença -caso se perspective como uma situação de responsabilidade civil pré-contratual ( art.227 CC ), cuja indemnização deve assentar no interesse contratual positivo, discorrendo, em síntese:

 “ Destarte, quer do ponto de vista da culpa in contrahendo ( que não consideramos, por já haver sido ultrapassada a fase das negociações, como vimos ), quer do ponto de vista do desvio ao programa contratual negociado, a A. demonstrou um facto ilícito por parte dos RR. . a contratação pura e simples de um novo construtor que a substitui – sendo que os RR. não lograram demonstrar qualquer incumprimento por banda da A., nem, em contrapartida, o cumprimento da sua própria parte (…)”.

Objectam os Réus/apelantes dizendo que não chegou a consumar-se o contrato de empreitada, estando ainda na fase das negociações preliminares, que a Autora rompeu injustificadamente.

A impostação do problema situa-se no âmbito da responsabilidade civil, divergindo-se quanto a saber se deve qualificar-se como contratual ou pré-contratual, o que nos remete para a teoria da formação do negócio jurídico.

Com efeito, sendo o contrato de empreitada ( art.1027 CC ) um negócio jurídico bilateral, pressupõe o acordo de vontades entre o dono da obra e o empreiteiro.

Como elemento essencial do negócio jurídico, desde logo a declaração de vontade, enquanto declaração negocial ( arts.217 e segs. CC ), assumindo uma dupla função: como acto de comunicação e como acto determinativo ou normativo.

Como acto de comunicação interpessoal, “representa um facto em face da ordem objectiva envolvente que rege a interacção comunicativa: o declarante é “responsabilizado” pelo sentido que razoavelmente deva ser imputado à sua conduta declarativa, pela confiança”. Enquanto acto determinativo, “a declaração negocial ergue-se acima dessa ordem de condutas envolvente para ter um papel constitutivamente normativo ou regulador (…), sendo este o verdadeiro efeito-negocial, cujo momento mais alto se manifesta no “sim”, que conclui o contrato” ( BAPTISTA MACHADO, Obra Dispersa, I, pág. 522 ).

Ora, como se verá, mais do que o rigor dogmático da qualificação, até porque em termos práticos a solução acaba por ser idêntica ( conforme se observou na sentença ), o fundamental está em saber se, face aos elementos factuais disponíveis, foram ou não os Réus quem violaram ( ilicitamente ) o contrato ou o dever da boa fé pré-contratual.

A Autora, partindo já da existência do contrato, imputa o incumprimento aos Réus ( donos da obra ) porque, ao contratarem com outro empreiteiro, desistiram da empreitada. Já para os Réus foi a Autora quem violou o dever de contratar porque, ao recusar as sucessivas tentativas de contacto, quis romper com as negociações.

A “história” pode resumir-se, assim:

Os Réus, após obterem a aprovação camarária do projecto de construção de uma moradia unifamiliar, fizeram contactos com vários construtores com vista a saberem quanto lhes custava a obra de pedreiro.

Em finais de Abril de 2007, pediram orçamento à Autora para execução da obra de pedreiro da moradia ( fundações e estrutura do edifício, e todos os trabalhos inerentes e complementares, muros de vedação, fossas, passeios ), tendo o Réu entregue, para o efeito, os elementos de identificação e elementos técnicos ( levantamento topográfico, projecto de arquitectura, planta de implantação e de estabilidade ).

A Autora propôs-lhes o valor de, pelo menos, € 60.000,00 com IVA, mas acabaram por acordar no valor de € 60.000,00, com IVA incluído, tendo ainda acordado que os materiais e utensílios seriam fornecidos pela Autora e que o negócio seria reduzido a escrito.

Após este acordo, a Autora disponibilizou o seu alvará para que os Réus obtivessem a licença de construção, bem como a água e electricidade, e, após a apresentação do alvará, proceder à demarcação da área de implantação no terreno, tendo a Autora efectuado tais trabalhos, a movimentação de terrenas e construção de um muro ( foi necessário quatro homens durante três dias ).

Os Réus ficaram de requer a instalação da água e electricidade, imprescindível ao início dos trabalhos, tendo o Réu assumido o compromisso de avisar a Autora da existência da respectiva instalação no terreno, para que ela iniciasse a obra.

Depois de obterem a água e electricidade, os Réus tentaram contactar (por telefone e pessoalmente em casa) com o legal representante ( D...) da Autora para o informarem da referida instalação e a fim se ser efectuado contrato escrito, mas não conseguiram.

Uma vez que não conseguiram contactá-lo e porque estavam ansiosos, os Réus contrataram com outro empreiteiro, procedendo à substituição do alvará que constava do processo de licenciamento.

Contrato de empreitada ou acordo pré-contratual final?

A conclusão do contrato dá-se segundo o modelo da proposta/aceitação ( arts.224 e segs. CC ). Mas até se chegar a esse momento ocorre, por vezes, um diálogo entre os contraentes, como caminho para atingir o consenso, designado como de “formação progressiva do contrato”, que a doutrina civilista decompõe analiticamente (fase preliminar, acordo pré-contratual final e subscrição), ou também qualificada como “fase negociatória”, por contraposição à “fase decisória”, geradora de uma “relação de confiança com carácter quase contratual”.

É seguro que, nesta fase, quanto maior for o investimento da confiança, maior será a intensidade dos deveres pré-contratuais, cuja violação implica responsabilidade civil pré-contratual ( art.227 CC ), porque o que constitui o dever pré-contratual de boa é a “relação de confiança” estabelecida entre as partes.

No entanto, sabe-se que o espectro do instituto da culpa in contrahendo é hoje mais abrangente, na medida em que se aplica quer haja ou não contrato, seja válido ou inválido, desde que com a negociação ou celebração se haja violado o princípio da boa fé e com isso causado danos à contraparte.

Por isso, tem vindo a ser concebido como apoio juspositivo à chamada “responsabilidade pela confiança”, como uma terceira via da responsabilidade civil, pois é precisamente a tutela da confiança que justifica a regra do art.227 CC, onde se configura uma relação obrigacional sem dever primário de prestação, e que serve de arquétipo para a resolução de outros casos problemáticos.

A sentença recorrida argumentou que as partes ultrapassaram o limiar da vinculação contratual, havendo concluído o contrato de empreitada ( art.1207 CC ), cuja execução a Autora ( empreiteira ) iniciou, apesar de ainda não ter sido reduzido a escrito.

Na verdade, comprovou-se que as partes acordam sobre os elementos essenciais do contrato de empreitada ( a realização da obra e o preço ).

O principal direito do dono da obra traduz-se no direito de exigir do empreiteiro a obtenção do resultado a que este se obrigou e como contrapolo a sua obrigação principal consubstancia-se na prestação do preço acordado, já que a retribuição é um elemento essencial do contrato, sendo que na falta de convenção ou uso em contrário, o preço deve ser pago no acto da aceitação da obra (art.1211 nº2 CC).

Parece, portanto, que tendo as partes acordado sobre os elementos essenciais, tanto assim que a Autora chegou a iniciar a execução de trabalhos, com a preparação do terreno (desaterro, demarcação, construção do muro ), houve conclusão do negócio, de natureza consensual.

Muito embora a conclusão do contrato se distinga da determinação do seu conteúdo, não pode dissociar-se ambos os aspectos, por força do art. 232 do CC ao estatuir que – “O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado sobre todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo”.

Relevando através dele a dimensão negativa da liberdade contratual, resulta que “ a falta de acordo sobre uma cláusula acessória ( mas subjectivamente essencial ) obsta à conclusão do contrato “ e as cláusulas acessórias subjectivamente essenciais são “ os pontos a regular tematizados por qualquer das partes com conhecimento da outra, de cuja regulação a primeira não abdique” ( cf. BAPTISTA MACHADO, Obra Dispersa, I, pág.536 ).

A este propósito, não se demonstrou que a conclusão do contrato ficasse dependente ou condicionado ao acordo sobre determinadas cláusulas acessórias acidentais e que fossem do conhecimento da Autora.

É certo haverem acordado na redução a escrito, mas tratando-se de uma “obrigação acessória de documentar”, a forma convencionada não assume valor constitutivo, tendo antes uma função basicamente probatória ( cf. BAPTISTA MACHADO, Obra Dispersa, I, pág.244 ), ou, noutra formulação, reconduz-se a “contrato preparatório instrumental”, não visando regular directamente o conteúdo do contrato, presumindo-se ( art.223 nº2 CC ), neste caso, que tinha em vista a consolidação do negócio (cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I ( 1999 ), pág.327 ).

Neste contexto e partindo do princípio da existência ( conclusão ) do contrato de empreitada, coloca-se a questão de saber se houve ou não incumprimento.

Está provado que o Réu se obrigou a comunicar à Autora a instalação da água e electricidade, a fim de ela iniciar a obra, e que ao longo de vários dias os Réus tentaram contactar o legal representante, mas não conseguiram.

Significa isto o abandono por parte da Autora ( empreiteira )?

A circunstância de os Réus não lograrem contactar o legal representante da Autora de modo algum pode significar uma renúncia tácita dela ao cumprimento integral da obrigação, ou seja, uma recusa de cumprimento ou incumprimento definitivo ipso facto.

Não está demonstrado, contrariamente ao alegado no recurso ( fls. 273 ), que a Autora rejeitasse os contactos, mas sim que os Réus não conseguiram falar com o legal representante, através dos telefonemas ou pessoalmente, em casa ( cf. respostas aos quesitos 25º e 26º).

Também não se pode inferir daqui, sem mais, que houvesse por parte da Autora recusa em cooperar com o cumprimento e que violasse esse dever jurídico de cooperação, dada a natureza do contrato e o princípio da boa fé. Na verdade, polarizando-se a relação jurídica obrigacional em torno de uma ou mais prestações típicas ( deveres principais ou primários da prestação ), o seu âmbito alarga-se aos deveres acessórios de conduta, secundários ou complementares, de conteúdo diversificado, sujeitando ainda as partes à “ordem envolvente da interacção negocial”, ou seja, a critérios normativos de razoabilidade e de boa fé, com uma função reguladora da conduta dos contraentes, de tal forma que o direito positivo assevera que todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido e  no cumprimento das obrigações como no exercício do direito correspondente  devem as partes procederem de boa fé ( arts.406 nº1 e 762 nº2 CC ).

Interrogam-se os apelantes se teriam de esperar ad aeternum que a Autora os atendesse. Naturalmente que não. Mas também não estamos perante uma situação de “impossibilidade da prestação por impossibilidade de cumprimento.”

Quando o objecto da obrigação é uma prestação de coisa, o devedor pode libertar-se da obrigação através do depósito da coisa devida ( arts.841 e segs. CC ).

Tendo a obrigação por objecto a prestação de facto ( no caso concreto, a comunicação à Autora da instalação da água e electricidade ) a lei não faculta ao devedor mecanismo de se liberar do respectivo vínculo ( não é admissível depósito de prestação de facto ) quando o credor não dê a sua cooperação necessária ao cumprimento. Nesta situação, “ao devedor resta apenas a possibilidade de notificar o credor para receber a prestação, com todas as consequências que daí derivam e que são estas: se, em consequência da recusa do credor em receber a prestação, se torne impossível o cumprimento da prestação, esta extingue-se ( art.790º); não se extinguindo a obrigação, serão aplicáveis as disposições dos arts.813 e segs., respeitantes à mora do credor” ( P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, II, 2ª ed., pág.111 e 112 ).

Estando o devedor em mora, a lei permite que o credor fixe um prazo razoável para cumprir, sob pena de se considerar não cumprida a obrigação, através da interpelação admonitória ( art.808 nº1 CC ).

Não havendo procedimento similar em caso de mora do credor ( em cooperar com o cumprimento ), uma solução possível seria a aplicação analógica do art.808 nº1 CC à mora do credor, logo teria o devedor de fixar um prazo razoável para que ele realize a cooperação indispensável ao cumprimento da prestação devida, tal como expressamente o consente a lei suíça ( art.95 do Código das Obrigações).

Outra solução, para quem entenda inexistir similitude entre a falta de cooperação do credor, geradora da mora credendi, e o incumprimento do devedor ( mora debendi ), será a integração da lacuna com a criação de uma norma dentro do “espírito do sistema” ( art.10 nº3 CC ) que defira ao tribunal a fixação de prazo razoável. É esta a posição de CALVÃO DA SILVA ao escrever - “ Por isso, para proteger o legítimo interesse do devedor em não permanecer indefinidamente amarrado à obrigação, à mercê dos caprichos ou até dos arbítrios do credor, parece-nos mais acertado, nestas situações, deferir ao tribunal a fixação de prazo razoável, compatível com a observância da obrigação de correcção e de boa fé, para que o credor realize a cooperação necessária ao cumprimento da prestação devida, seguindo-se os tramites dos arts.1456 e 1457 do Cod. Proc. Civil. Esta solução que nos parece razoável e adequada dentro do espírito do nosso sistema ( art.10 nº3)” ( Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág.130 ).

Por conseguinte, a circunstância de os Réus não terem conseguido contactar, durante vários dias, o legal representante da Autora, não os legitimava a desvincularem-se do contrato, sem primeiro interpelarem directamente e por escrito a Autora, ou recorrendo ao tribunal para fixação de prazo razoável.

Foi este, de resto, o argumento aduzido na sentença - “Não estando demonstrado que à A. tivesse sido apontado pelos RR. um termo inicial para recomeço dos trabalhos (….), na ausência de um comportamento expresso, exigiria que os RR tivessem efectuado algo semelhante à interpelação admonitória, contactando a Ré, designadamente, por escrito, informando-a que estavam reunidas as condições para ser efectuado o serviço e fixando-se um prazo para o efeito, findo o qual se considerariam desvinculados de quaisquer negociações ou obrigações contratuais que fossem”.

Em resumo, os elementos factuais disponíveis não permitem concluir sequer pela mora ou pelo incumprimento definitivo da Autora.

Comprovando-se que os Réus contrataram com outro empreiteiro, impedindo a Autora de prosseguir os trabalhos e de realizar a obra, desistiram tacitamente da empreitada.
A extinção do contrato, por desistência do dono da obra (art.1229 CC), constituindo uma excepção à regra "pacta sunt servanda", é uma faculdade discricionária que pode ser tácita, sem forma especial, não carece de fundamento, nem de pré-aviso e assume eficácia ex nunc.
Por não se enquadrar nas figuras da resolução, revogação ou denúncia, trata-se de uma situação "sui generis" de extinção do contrato de empreitada, conferindo ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, por variadas razões, interrompendo a sua execução para o futuro ( cf. P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., pag.745, VAZ SERRA, BMJ 146 ).
         A desistência da empreitada pelo dono da obra confere ao empreiteiro o direito a uma indemnização pelos "gastos e trabalho" e ainda pelo "proveito que poderia tirar da obra".
         Em primeiro lugar, a indemnização incide sobre as despesas que teve, considerando-se todos os danos emergentes, acrescidas do valor do trabalho incorporado na obra, e que não estão relacionados com o preço da empreitada.
         Os gastos são todas as despesas feitas com a obra, nomeadamente, as despesas feitas com a aquisição de materiais de construção, ainda que não incorporados ( a menos que o empreiteiro fique com eles ), com salários pagos devidos aos operários durante o período de tempo em curso. Isto significa que a indemnização pelos “gastos e trabalho” não corresponde necessariamente ao valor da parte da obra executada. Pode ser superior se incluir despesas não incorporadas na obra, ou inferior, se, por exemplo, algum dos materiais tiver sido fornecido pelo dono da obra.
Em segundo lugar, reporta-se ao proveito que poderia tirar da obra, tendo por base a obra completa e não apenas o que foi executado, sendo determinado pela subtracção ao preço total fixado do custo global da obra. Mas se o empreiteiro já tiver recebido parte do preço terá de ser descontada no valor global da indemnização.
         Trata-se, assim, de uma indemnização pelo "quantum meruit" como consequência de uma responsabilidade por factos lícitos danosos, sendo o empreiteiro indemnizado pelo interesse contratual positivo, ou seja, a indemnização visa colocá-lo na situação que teria se o contrato fosse pontualmente cumprido (cf. VAZ SERRA, R.L.J. ano 104, pág.204 a 207, em anotação ao Ac.STJ de 30/6/70, PEDRO MARTINEZ, Direito das Obrigações, 2ª ed., pág.455 ).
         Como facto constitutivo do direito ( art.342 nº1 do CC ), compete ao autor alegar e provar o custo dos trabalhos e despesas com a execução parcial da obra, bem assim o seu custo global.
         Quanto aos “gastos e trabalho”, provou-se que a Autora limpou o terreno, construiu um muro, para o que utilizou materiais ( designadamente cimento e blocos), deslocação e trabalho de uma máquina, e o trabalho de quatro homens durante três dias, despendendo um valor global não apurado  ( cf. respostas aos quesitos 15º, 32º e 33º ). Impõe-se relegar a quantificação do dano patrimonial posterior incidente de liquidação ( art.661 nº2 do CPC ).
Em relação do “proveito que poderia tirar da obra", como estimava obter um lucro de cerca de 20% do valor orçamentado ( cf. resposta ao quesito 16º), ascende a € 12.000,00.

         Vejamos agora na perspectiva da responsabilidade pré-contratual:
         Como já se observou, à mesma solução se chegará caso se configure a situação no âmbito da responsabilidade pré-contratual e se entenda que, em vez da conclusão do contrato de empreitada, se está ainda na “fase negociatória” ou preambular do contrato.
         Na verdade, tendo já havido acordo sobre as obras a executar e o valor do preço ( elementos essenciais ), mas faltando a convencionada redução a escrito ( forma convencional ), existirá seguramente “acordo pré-contratual final”.

            A ser assim, há uma clara “situação objectiva de confiança”, cuja conduta dos Réus deve ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura ( a conclusão do contrato ), um “investimento na confiança” e a boa fé da Autora, tanto mais que, depois do acordo verbal, logo disponibilizou o alvará para que os Réus obtivessem a licença de construção e procedessem à requisição da água e electricidade, e chegou a executar os trabalhos iniciais ( limpeza, demarcação e construção de um muro ).
         A obrigação de contratar decorrente da boa fé na fase negociatória é “particularmente nítida nos casos em que todo o conteúdo contratual se encontra já acordado, restando apenas a sua formação em obediência às regras legalmente impostas” ( ANA PRATA, Notas Sobre Responsabilidade Pré-Contratual, pág.74 ).
É que sendo, em princípio, lícita a interrupção das negociações, já se torna ilícita “ se criada por uma das partes durante o diálogo contratual a expectativa justificada de conclusão, prorrogação ou renovação de um contrato, a outra parte frustrar essa expectativa em circunstâncias que devam ser consideradas desleais. A deslealdade torna-se mais evidente se a ruptura das negociações envolver a violação de algum acordo pré-contratual intermédio ou final (…)” ( FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, pág.217 ).
         Pois bem, tendo os Réus, depois da situação de confiança, objectivamente criada, rompido as negociações, ao contratar com outro empreiteiro, há violação do dever de boa fé pré-contratual ( dever de contratar com a Autora ) e, por isso, mesmo, ruptura das negociações.
Segundo os elementos disponíveis, para este rompimento não contribuiu a Autora, pelas razões já explicitadas, e daí que a circunstância dos Réus não contactarem telefonicamente com o legal representante da Autora ou mesmo não o localizarem em casa, não legitimava a ruptura, que aparece como injustificada. E como elucida ALMEIDA COSTA, “ o problema da legitimidade da ruptura não se reconduz, com efeito, à indagação sobre se o seu motivo determinante é ou não justificado do ponto de vista da parte que a efectuou, mas, antes, importa averiguar se, independentemente dessa valoração pessoal, ele pode assumir uma relevância objectiva e de per si prevalente sobre a parte contrária” ( RLJ ano 126, pág.174 ).
         A responsabilidade pré-contratual exige a culpa ( in contrahendo ), prevalecendo maioritariamente, tanto doutrinária, como jurisprudencialmente, a orientação no sentido de ser aplicável a presunção estabelecida no art.799 CC, que aqui não foi ilidida ( cf., por ex., FERREIRA DE ALMEIDA, loc. cit., pág. 223, Ac STJ de 21/12/2005, em www dgsi.pt ).
         E como sobre a indemnização, é de acolher a tese do interesse contratual positivo, conforme se justificou proficuamente na sentença ( cf., ainda, por ex., Ac STJ de 26/1/2006, proc. nº 05B4063, de 16/12/2010, proc. nº 44/07, em www dgsi.pt ), temos como ressarcíveis os mesmos danos.
         Em suma, procede parcialmente o recurso, alterando-se, em conformidade, a bem elaborada sentença recorrida.

III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar parcialmente procedente a apelação e, revogando-se, em parte, a sentença:
1.1.) Condenar os Réus a pagarem à Autora:
a) - A quantia de € 12.000,00 ( doze mil euros ), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação;
         b) - A quantia a liquidar posteriormente correspondente aos danos provados nas respostas aos quesitos 15º, 32º e 33º.
         1.2.) – Confirmar o demais decidido.



2)
         Condenar Autora e Réus nas custas da apelação e da acção, provisoriamente na proporção de 30% e 70%, respectivamente, deixando-se o rateio definitivo para depois da liquidação.


Jorge Arcanjo (Relator)
Isaías Pádua
Teles Pereira