Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2123/19.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE OBRAS NO LOCADO
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
EXIGIBILIDADE DAS RENDAS
INVALIDADE DO CONTRATO
LIQUIDAÇÃO DA RELAÇÃO CONTRATUAL
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 428.º, 1036.º E 289.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A situação de mora no cumprimento da obrigação de proceder a obras no locado não faculta ao arrendatário a invocação da exceção de não cumprimento do contrato para o efeito de devolução das rendas já por si pagas e de isenção de pagamento das rendas futuras até realização das obras.

II – Num contrato de execução duradoura, como o contrato de arrendamento, em que as partes cumpriram as obrigações a que estavam adstritas – o gozo da coisa versus o pagamento das rendas –, na relação de liquidação subsequente à declaração de nulidade ou anulação do contrato, cada uma das partes retém a prestação recebida, equivalendo na prática a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 2123/19.3T8CBR.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Paulo Correia

2º Adjunto: Helena Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra BB,

alegando, em síntese:

autora e ré celebraram um contrato de arrendamento com vista à habitação, relativamente ao imóvel id. no art. 1º da p.i., com início em 1 de setembro de 2018 e termo em 31 de agosto de 2019, com a renda mensal de 280,00 €;

logo passado pouco tempo, o locado começou a apresentar problemas que o tornam impróprio para uma vida diária minimamente condigna;

a autora reclamou de tais defeitos numa carta que remeteu à Ré no dia 3 de janeiro, em que descrevia os defeitos e lhe pedia uma solução que implicaria a realização de obras;

a autora e o seu marido encontram-se totalmente privados do gozo do locado nas devidas condições habitacionais, do qual pretendem sair logo que encontrem um outro local para arrendar;

em virtude das várias deficiências do imóvel, incorreu a autora em prejuízos patrimoniais e morais, tendo ainda que ser reembolsada das quantias já pagas a título de rendas (e caução);

a ré não poderia ter previsto a existência de tais vícios, sendo que se soubesse do real estado do imóvel, a autora jamais teria celebrado o contrato de arrendamento em apreço.

Em consequência, pede a condenação da ré:

a) a reconhecer o direito de a autora deixar de pagar as rendas a partir de 01/03/2019 enquanto

não forem executadas obras no locado;

b) à realização de obras no locado;

c) à restituição de todas as rendas já liquidadas no valor de 2.240 €, bem como as que forem liquidadas até final da presente ação;

d) a pagar à autora o montante de 2.000 € a título de danos patrimoniais;

e) a pagar à autora o montante de 2.500 € a título de danos não patrimoniais.

Em alternativa,

f) seja decretada a invalidade do contrato de arrendamento celebrado entre autora e ré, com fundamento em erro-vício (erro sobre o objeto do negócio), nos termos conjugados dos artºs 251º, 247º, 253º, 254º, 289º, nº 1, 227º e 483º e ss. do Código Civil, com todas as demais legais consequências, nomeadamente, as elencadas sob as alíneas c), d), e e).

A ré apresenta Contestação, alegando, em síntese, que a autora e o marido, antes da celebração do contrato inspecionaram o locado, sendo que, os únicos defeitos existentes são resultantes do mau uso, continuando a autora a usar o locado.

Conclui pela improcedência da ação e pela sua absolvição dos pedidos.

Realizada audiência final, foi proferida Sentença, que culmina com a seguinte decisão:

Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente, termos em que decido absolver a ré dos pedidos contra ela formulados nestes autos pela autora.

Custas pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Notifique.

Registe.


*

Inconformada, a autora interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

 

I. O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos autos supra-referenciados, a qual Julga improcedente a ação de processo comum instaurada pela Autora/Recorrente contra a Ré/Recorrida, não reconhecendo à primeira: o direito de deixar de pagar, à Ré/Recorrida, as rendas a partir de 01/03/2019 enquanto não fossem executadas obras no locado. Mais, estando perante pedidos alternativos, julgou improcedente o decretamento de invalidade do contrato de arrendamento celebrado entre autora e ré, com fundamento em erro-vício (erro sobre o objeto do negócio).

Porém, e neste sentido, não pode a ora apelante conformar-se coma sentença prolatada pelo Tribunal a quo, motivo pelo qual interpõe o presente recurso, com a seguinte motivação:

II.

I. Da Nulidade da Sentença por Omissão de Pronúncia, nos termos dos artigos 615.º/1, al. b) e d) e 608.º/2 do CPC.

A A./Recorrente instaurou contra a R./Recorrida uma ação judicial cuja Petição culminava em dois pedidos alternativos, a saber:

A) a reconhecer o direito de a A. deixar de pagar as rendas a partir de 01/03/2019 enquanto não forem Executadas obras no locado;

B) à realização de obras no locado;

C) à restituição de todas as rendas já liquidadas no Valor de Eur-2240,00€, bem como as que forem Liquidadas até final da presente ação.

D) a pagar à A. o montante de Eur-2000,00€ a título de danos patrimoniais

E) a pagar à A. o montante de Eur-2.500,00€ a título de danos não patrimoniais

EM ALTERNATIVA,

F) decretar a invalidade do contrato de arrendamento celebrado entre A. e R. com fundamento em erro-vício (erro sobre o objeto do negócio), nos termos conjugados dos artigos 251.º, 247.º, 253.º, 254.º, 289.º, n.º 1, 227.º e 483.º e sgs do Código Civil, com todas as demais legais consequências, nomeadamente, as elencadas sob as alíneas c), d), e).

(…)

III. Em sede da sentença proferida, o Tribunal a quo, discorreu vastamente acerca do primeiro pedido formulado, tendo concluído pela sua improcedência e, contrariamente, ao expectável não se pronunciou fundamentadamente acerca do segundo pedido formulado: que fosse decretada a invalidade do contrato de arrendamento em causa, com fundamento em erro-vício sobre o objecto do negócio, antes tendo, ao assim peticionado, respondido com um simples e lacónico parágrafo, que se resume na conclusão de que “Não logrou a autora provar o invocado erro-vício (erro sobre o objeto do negócio) ,”.

IV. Violou, assim, o seu dever de fundamentação da Sentença, dever esse que tem assento Constitucional e é causa de nulidade da mesma quando não observado, nos termos do artigo 615.º,/1, b) do CPC.

V. Ademais, é também causa de nulidade da sentença a ausência de análise crítica das provas, a qual está, na verdade, completamente ausente de todo o texto da sentença, limitando-se a Mmª Juiza a quo a informar as partes de que “se provou” ou “não se provou” determinado facto, sem demonstrar, minimamente que fosse, o iter cognoscitivo que presidiu a que considerasse provada/não provada a factualidade assim descrita.

VI. Em suma, ao não fundamentar de facto e de direito a sua decisão de não considerar inválido o contrato de arrendamento celebrado entre a A./Recorrente e a R./Recorrida, feriu, o Tribunal a quo, a sentença, da nulidade prevista no artigo 615.º/1, b) (e artigo 608.º/2 CPC), e também da nulidade prevista no artigo 615.º/1, d), porquanto, o parágrafo que meramente dedicou à questão relativa ao Erro-Vício subjacente ao negócio jurídico de arrendamento, é de tal forma vazio de fundamentação que não poderá senão configurar-se como uma verdadeira omissão de pronúncia, o que, nos termos legais configura também uma autêntica nulidade da sentença.

VII. Tais nulidades deverão, pois, por este Venerando Tribunal ad quem, ser reconhecidas e declaradas com todas as demais legais consequências, o que, desde já, se requer a V.V.ªs Exc.ªs.

VIII.

III. Do Erro Notório na Apreciação da Prova e consequente violação do Princípio da Livre Apreciação desta pelo Tribunal (cf. artigo 607.º, n.º 5 do CPC); Não é de louvar, salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo, desta vez, pelo facto de se assistir a falhas na apreciação da prova e consequente violação do Princípio da Livre Apreciação da Prova pelo Tribunal.

IX. A apreciação da prova deverá ser reconduzível a critérios objetivos para que assim seja suscetível de motivação e controlo, não se podendo consubstanciar num princípio arbitrário. Todavia, tal não se compaginou na sentença ora em crise, impugnando-se o ponto 11 da matéria de facto provada, na parte que refere “na qual não faz menção a vícios / defeitos do locado”, o qual deverá ser considerado como provado nos termos propostos pela A./Recorrente; e os pontos 1 a 11 e 13 da matéria de facto não provada, os quais deverão ser considerados todos eles provados.

X. A D. sentença do Tribunal a quo, no que toca à fundamentação, afirma“(…)

Acresce que a autora visitou o locado antes de celebrar o contrato de arrendamento. Não podia ignorar que o locado era um imóvel com décadas…Tal circunstância seguramente foi tida em consideração na fixação da renda que as partes contrataram…”. Destarte, e salvo o devido respeito, a sentença não pode ser proferida baseada em considerações arbitrárias uma vez que tal viola o princípio da livre apreciação da prova.

XI. Assiste-se, pois, a um dever do julgador, tratando-se de uma obrigação na aplicação da justiça, sendo possível formar uma convicção pessoal da verdade dos factos, desde que assente em regras de lógica e experiência, objetiva e comunicacional. Como verte o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Desembargador António Carvalho Martins, de 05 de Novembro de 2019, “1 - O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, sendo antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem.”.

XII. IV- Da Inexigibilidade da Prestação em virtude da ocorrência da Excepção de Não Cumprimento da Prestação e da Aplicação do art. 428.º do Cód. Civil: A locadora do imóvel, ora recorrida, ao não cumprir a obrigação que, pelo contrato de locação, ficou adstrita – o gozo pleno do imóvel, após reparações de conservação do mesmo – está-se, perfeitamente, perante um claro incumprimento da prestação e, nessa medida, pode, pois, a locatária escusar-se ao cumprimento da sua obrigação, por aplicação do art. 428.º, n.º 1 do CC, até cumprimento cabal da prestação da locadora.

XIII. Em suma, contrariamente ao decidido, a locatária, ora recorrente, pode escusar-se ao cumprimento da sua obrigação, por aplicação do art. 428.º, n.º 1 do CC, até cumprimento cabal da prestação da locadora, podendo, a primeira, recorrer ao instituto da exceção de não cumprimento, pelo que, requer-se, desde já, a VV Exc.ªs que, analisada esta vertente jurídica do caso sub judice, seja declarado válido o “acionamento” da exceção de não cumprimento do contrato de arrendamento por parte da A., bem como o demais peticionado a título indemnizatório por danos patrimoniais e morais.

XIV. Caso este entendimento não seja, por V.V.ªs Exc.ªs considerado procedente, dever-se-á, em alternativa, e tal como peticionado, declarar- se a invalidade do contrato de arrendamento celebrado entre A. e R., com fundamento em erro-vício na formação da vontade contratual da A., porquanto:

XV. V-Da existência do Erro-Vício na modalidade de Erro sobre o Objeto do Negócio subjacente à vontade de contratar da autora, ora recorrente: Da cognição do tribunal a quo resulta que, “Não logrou a autora provar o invocado erro vício (erro sobre o objeto do negócio)”. Não é procedente este entendimento, porquanto, na definição proposta pelo saudoso Prof. Doutor Carlos Mota Pinto, na sua intemporal “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª edição, pp. 504 e ss., o “erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio”.

XVI. Ora, segundo esta doutrina, o erro sobre o objeto do negócio, “pode incidir sobre o objeto mediato (sobre a identidade ou qualidades), ou sobre o objeto imediato (erro sobre a natureza do negócio)”.

XVII. No caso em apreço, há um claro erro sobre o objeto do negócio e, em conformidade com o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, relatado pelo Senhor Conselheiro Óscar Catrola, que parafraseia os Ilustres Professores da Escola de Coimbra, Pires de Lima e Antunes Varela, (in “Código Civil  Anotado, Vol. I, 3ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 234), “Há erro sobre a base do negócio quando a falsa representação incide sobre as circunstâncias (pretéritas, presentes ou futuras) em que as partes fundaram a decisão de contratar”.

XVIII. Como afirma Pedro Pais de Vasconcelos, e bem, na sua Teoria Geral do Direito Civil, para que ocorra esse erro “é necessário que tenha ocorrido uma falsa representação do quadro circunstancial que constitui a base do negócio”, que foi, exatamente, o que se sucedeu.

XIX. Ora, como foi dado como provado pelo Tribunal a quo, “Quando a ré mostrou o locado à autora na visita prévia à celebração do contrato, as paredes encontravam-se em bom estado, não se notando quaisquer infiltrações, as janelas estavam abertas e o local parecia arejado. A autora não viu o estado das infraestruturas da casa, como canalizações e sanitários, sistemas elétricos, de gás ou outros.

XX. O estado da canalização e das tubagens do locado faz com que a água que corre nas torneiras do lavatório e banheira da casa de banho seja escura, imprópria para consumo humano. A torneira de água fria do bidé deita apenas um pequeno fio de água”.

XXI. A autora, ora recorrente, não viu o estado das infraestruturas e, por essa circunstância, não poderia pressupor os vícios de que o imóvel padecia e que se encontram abundantemente demonstrados nos autos, quer por via documental, quer testemunhal, pelas declarações de parte da A., quer, ainda, através do próprio Relatório Pericial, o qual responde positivamente, à grande maioria dos quesitos apresentados pela A, conforme já demonstrado em sede de impugnação da matéria de facto, no presente Recurso.

XXII. Nesta medida, a A. fez fé no que lhe tinha sido mostrado pela ré, ora recorrida que, como dona e legítima proprietária, deveria conhecer o locado e as suas condições para proporcionar o gozo da coisa, a sua verdadeira obrigação que, todavia, não o fez.

XXIII. Assim, se a Autora-Recorrente soubesse do real estado do imóvel jamais teria celebrado o contrato de locação de imóvel com a Ré-Recorrida, todavia,

XXIV. Mediante as circunstâncias que presenciou e que foram representadas, o que lhe foi realmente mostrado, sem saber dos vícios da coisa, celebrou o referido contrato.

XXV. Houve uma clara representação disforme e antagónica das reais circunstâncias  relativas às condições de habitabilidade do imóvel que foram determinantes na decisão de contratar, o que,

XXVI. Por esta razão, e ao abrigo do art. 251.º do CC, com remissão directa ao art. 247.º mesmo Código, a declaração negocial é anulável.

XXVII. Desta forna, andou mal o Tribunal a quo, devendo ele ter reconhecido que houve um erro-vício sobre o objeto do negócio, devendo este ter sido anulado, ao abrigo do art. 251.º do CC, com remissão directa ao art. 247.º do CC, daí extraindo as demais legais consequências, nomeadamente, o reembolso de todas rendas (indevidamente) pagas pela A., o que seria da mais plena e sã justiça, mais a devendo ressarcir de todos os danos patrimoniais e morais decorrentes do transtorno que lhe ocasionou a celebração deste contrato de arrendamento o que, pelo presente Recurso, se requer a V.V.ªs Exc.ªs apelando a que se faça Justiça.

TERMOS EM QUE, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A SENTENÇA A QUO E CONDENANDO-SE A R. /RECORRIDA NO PEDIDO PROCEDENTEMENTE FORMULADO.

*
A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia nos termos dos artigos 615º, nº1, als. b) e d), e 608º, nº2 do CPC.
2. Impugnação da decisão quanto aos pontos 11, da matéria de facto dada como provada, e quanto aos pontos 1 a 11 e 13, da matéria de facto dada como não provada.
3. Inexigibilidade da prestação em virtude da ocorrência da exceção de não cumprimento da prestação e da aplicação do artigo 428ºCC.
4. Existência de Erro vício na formação da vontade contratual, na modalidade de erro sobre o objeto do negócio
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 615º, nº1, als. b) e d), e 608, nº2 do CPC, por o tribunal não se ter pronunciado de modo fundamentado sobre o peticionado em alternativa.

Segundo a Apelante o tribunal não se pronunciou fundamentadamente acerca do segundo pedido formulado – que fosse decretada a invalidade do contrato de arrendamento em causa com fundamento em erro vício sobre o objeto do negócio –, respondendo com um simples e lacónico parágrafo, que se resume na conclusão de que “Não logrou a autora provar o invocado erro-vício (erro sobre o objeto de negócio)”.

Ou seja, a Apelante aponta os seguintes vícios à sentença recorrida, relativamente à apreciação que é feita relativamente à segunda pretensão da autora, formulada a título alternativo:

- nulidade da sentença por o juiz ter deixado de apreciar questões de que devesse conhecer (al. d));

- falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).

Vejamos, assim, o que na decisão recorrida é exposto, em sede de subsunção dos factos ao direito, relativamente ao pedido de declaração de invalidade do contrato por erro-vício:

A autora funda a sua pretensão em alegados vícios/defeitos de que o imóvel arrendado padecia.

Ora, a autora não logrou provar a grande maioria dos vícios por si alegados. Acresce que a autora visitou o locado antes de celebrar o contrato de arrendamento. Não podia ignorar que o locado era um imóvel com décadas…Tal circunstância seguramente foi tida em consideração na fixação da renda que as partes contrataram… Não logrou a autora provar o invocado erro-vício (erro sobre o objecto do negócio).”

   A nulidade cominada para a sentença que “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, e a que se reporta a 1ª parte da al. d) do nº1 do artigo 615º do CPC, encontra-se conexionada com a obrigação do juiz “de conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 608º-2). O não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constituiu nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado[1]”.

As questões a resolver são as questões de direito correspondentes aos pedidos, causa de pedir e exceções, tanto perentórias como dilatórias[2].

Já quanto às questões de facto, em cuja decisão assenta a resolução daquelas, “o juiz não tem o dever de pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor[3]” ou as exceções do réu.

Quanto à nulidade da sentença por inexistência de fundamentação, prevista na al. b), seja ao nível de direito seja ao nível de facto, só ocorrerá quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial[4].

Depois de dar como provados ou não provados os factos alegados como fundamentadores de tal pedido, a decisão recorrida aprecia a pretensão da autora a ver declarado inválido o contrato de arrendamento com base em erro sobre o objeto do negócio, julgando-o improcedente.

Relativamente à ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que sustentam tal decisão, temos que o tribunal deu vários factos como provados e outros como não provados, sem que a Apelante alegue que haja algum facto que pudesse ter relevância para a apreciação de tal pretensão e que o tribunal não tenha apreciado.

E, embora de um modo sintético (provavelmente porque a maior parte dos factos em que assentava tal pretensão foram dados como não provados), a decisão recorrida explicou por que motivo julgava improcedente tal pretensão.


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Sustenta a Apelante ser também causa de nulidade da sentença “a ausência de análise crítica das provas, a qual está, na verdade, completamente ausente de todo o texto da sentença, limitando-se a Mmª Juiza a quo a informar as partes de que “se provou” ou “não se provou” determinado facto, sem demonstrar, minimamente que fosse, o iter cognoscitivo que presidiu a que considerasse provada/não provada a factualidade assim descrita”.

Também aqui não podemos dar razão à Apelante.

Ainda que se aceite o entendimento de Rui Pinto[5], de que a nulidade por falta de fundamentação do artigo 615º, nº1, al. b), “diz respeito tanto ao(s) julgamento(s) de provado/não provado (cfr. artigo 607º nº3, 1ª parte e 4 1ª parte), como à motivação ou convicção (cf. Artigo 607º nº4, 2ª parte) que os sustenta”, sempre haveria que atender a que tal nulidade só se verifica quando a sentença ou o despacho não se encontrem fundamentados, no todo ou em parte e já não quando a fundamentação está presente mas é inadequada - não apresentar o mérito demonstrativo – a para a parte dispositiva, havendo que tratar-se de um vício grosseiro, grave e manifesto.

No caso em apreço, a decisão recorrida, depois de efetuar uma súmula do que de relevante foi afirmado em audiência pela autora e por cada uma das testemunhas ouvidas, explicitou que o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pela perita foram fundamentais para a sua convicção, fazendo alusão ao que por esta foi afirmado relativamente a cada um dos apontados vícios do local, ao estado de conservação do locado e à sua conformidade com o RGEU. Mais refere que a carta datada de 7 de janeiro de 2019 não faz menção aos defeitos do locado alegados pela autora.

Não podemos falar aqui em qualquer ausência de fundamentação que importe a nulidade da decisão ao abrigo do disposto na al. b), nº1, art. 615º.

Concluindo, não se reconhece assim a verificação de qualquer uma das invocadas “nulidades”.


*

II. Matéria de facto

É a seguinte a matéria dada como provada na sentença recorrida:

 1. “A ré é proprietária de um imóvel sito na Rua ..., ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo nº ...12.

2. A autora habita o 2º andar do dito prédio.

3. Autora e ré, no dia 23/08/2018, celebraram um contrato de arrendamento com vista a habitação, relativamente ao 1º andar do dito imóvel, pelo período de 1 ano, com início em 1 de Setembro de 2018 e termo em 31 de Agosto de 2019, com a renda mensal de 280 €.

4. Antes de celebrar o dito contrato de arrendamento, a autora deslocou-se ao local a fim de conhecer o local a arrendar.

5. O marido da autora padece de graves problemas de saúde, quer físicos (aneurisma, colite ulcerosa, problemas pulmonares e respiratórios, nomeadamente bronquite crónica e enfisema pulmonar, hepatite B, HTA, entre outros), quer também do foro psiquiátrico (sofre há vários anos de grave síndrome depressivo), que o impedem de fazer uma vida normal e o obrigam a permanecer a maior parte do tempo dentro de casa.

6. A autora também sofre de diversos problemas de saúde, tais como fibromialgia, patologia osteoarticular, HTA, arritmia e síndrome depressivo.

7. A autora procurava uma habitação em que tanto ela como o seu marido se pudessem instalar com o mínimo de condições indispensáveis a uma vida condigna. A autora e o marido viviam em ..., mas decidiram arrendar casa em ... a fim de estarem mais próximos do Hospital da Universidade, onde são seguidos e recebem os respetivos tratamentos médicos.

8. Quando a ré mostrou o locado à autora na visita prévia à celebração do contrato, as paredes encontravam-se em bom estado, não se notando quaisquer infiltrações, as janelas estavam abertas e o local parecia arejado. A autora não viu o estado das infraestruturas da casa, como canalizações e sanitários, sistemas elétricos, de gás ou outros.

9. O estado da canalização e das tubagens do locado faz com que a água que corre nas torneiras do lavatório e banheira da casa de banho seja escura, imprópria para consumo humano. A torneira de água fria do bidé deita apenas um pequeno fio de água.

10. Aquando da perícia realizada no âmbito dos presentes autos a campainha do locado não funcionava e as portas interiores da habitação não possuíam as respetivas chaves.

11. A autora remeteu à ré uma carta datada de 7 de janeiro de 2019, na qual não faz menção a vícios/defeitos do locado.

12. Por carta datada de 30 de janeiro de 2019 e recebida pela ré a 1/02/2019, a autora comunicou à ré a sua decisão de se opor à renovação do contrato de arrendamento, pelo que o mesmo cessaria os seus efeitos a partir de 31/08/2019, devendo a ré [autora] proceder à sua entrega devoluto de pessoas e bens.

13. Em 06/02/2019 a patrona nomeada à autora remeteu à ré uma carta registada instando-a a realizar obras e a indemnizar a autora de prejuízos (alegadamente) sofridos.”.

Seguidamente, aí se afirma que “Nada mais se provou com relevância para a decisão, designadamente não se provou:”

1. que no dia da visita ao locado prévia à celebração do contrato, a autora explicou à ré a sua situação e a do seu marido, bem como os seus problemas de saúde, dizendo-lhe, nomeadamente, que a casa não poderia ser muito húmida, nem muito fria, pelo que a ré ficou bem ciente dos problemas de saúde dos potenciais inquilinos;

2. que as janelas do locado se encontravam estragadas, sendo necessário colocar uma cadeira para que as mesmas não se abrissem;

3. que o quadro elétrico estava sempre a disparar, dando origem ao rebentamento das lâmpadas e danificação dos candeeiros, tendo ocorrido também a danificação de um microondas, de um termo-ventilador e de uma torradeira;

4. que a luz da entrada não funcionava;

5. que o canhão da porta de entrada na habitação não funcionava;

6. que as portas interiores da habitação só fechavam com esforço;

7. que o esquentador não funcionava, obrigando a tomar banho de água fria ou a não poder tomar banho sequer;

8. que no chão se acumulavam poças de água, que tinham de ser diariamente limpas, por vezes mais do que uma vez ao dia;

9. que as janelas acumulavam água nos vidros que escorria até aos parapeitos e pelas paredes, enchendo-os de água e também tinham que ser limpas diariamente, por vezes mais do que uma vez.

10. que as borrachas de vedar as janelas se encontravam podres, a soltar-se, algumas sendo mesmo inexistentes, o que fazia entrar muito mais frio no interior da habitação, além de águas e humidades;

11. que a humidade e as infiltrações de água dentro do locado contribuíram para agravar os problemas de saúde da autora e seu marido.

12. que a autora remeteu à ré uma carta no dia 3 de janeiro de 2019, em que descrevia os defeitos com que se tinha deparado no imóvel e lhe pedia uma solução, que implicaria a realização de obras e melhorias que colmatassem as deficiências;

13. que logo em outubro, perante o desagrado que foi manifestado pela autora à ré acerca das condições do imóvel, esta, aproveitando-se de uma altura em que a autora e o seu marido não se encontravam em casa, retirou do interior desta a maior parte dos pertences da autora, incluindo móveis, deixando-os na rua, tendo-se estes em parte danificado devido à chuva que caía nesse dia.


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1. Impugnação da matéria de facto.

(…)


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Sustenta ainda a Apelante que os factos constantes dos pontos 1. a 11. e 13. dos factos dados como “não provados”, deverão ser dados como “provados”.

Quanto aos factos constantes do ponto 1.

1. que no dia da visita ao locado prévia à celebração do contrato, a autora explicou à ré a sua situação e a do seu marido, bem como os seus problemas de saúde, dizendo-lhe, nomeadamente, que a casa não poderia ser muito húmida, nem muito fria, pelo que a ré ficou bem ciente dos problemas de saúde dos potenciais inquilinos;

a Apelante faz assentar a sua pretensão a vê-los dados como “provados”, nos seguintes meios de prova:

- nas declarações da própria autora, que relativamente à matéria em questão terá afirmado m que a mesma é perguntada: “Então diga-me lá: sobre o que é que vocês falaram além da casa e da renda…”, respondendo “Oh, falamos da nossa vida, falamos disso de…tive-lhe a a dizer toda a minha vida. (…) Assim como ela também… Que o meu marido era uma pessoa doente: tinha metido uma corda ao pescoço, tinha tido um aneurisma, tinha um enfisema pulmonar, colite ulcerosa, que tinha que ter muito cuidado com ele e só lhe perguntava se a casa era húmida. E ela perguntou porque é que tinha saído e eu disse que tinha saído porque a casa era muito húmida e que não podia lá estar porque também tenho duas hérnias na coluna, prontos… E não podia estar numa casa… (…) Repeti várias vezes à D. CC se a casa não era húmida. Ela disse que não…” );

- conjugado com o depoimento da testemunha DD, “que referiu que a A., antes de celebrar o contrato, veio ver a casa com o marido e com ele próprio e que era visível que o marido da autora tinha uma doença (apesar de não ter presenciado qualquer conversa entre A. e R. acerca de problemas de saúde, uma vez que apenas fez as apresentações e depois veio-se embora pois tinha de trabalhar);

- e com o testemunha da R., EE, sua sobrinha e que, segundo ela, vai semanalmente a casa da tia, afirmou que aquando do contrato, a A. disse que o marido era doente.

Contudo, de tais elementos de prova não podemos retirar a convicção necessária a dar tais factos como provados: para além das declarações de parte da própria autora, que afirma que falaram ambas “da vida”, e que a autora falou à Ré nas doenças do seu marido e nas suas e que não podia estar numa casa muito húmida, tais factos não são confirmados pela testemunha DD que, como a própria Apelante reconhece, não esteve presente nessa alegada conversa.

Quanto à testemunha EE, o que ela afirma no seu depoimento é que nesse dia a autora contou a sua vida e falou nos problemas de saúde do seu marido, mas que não colocou qualquer questão relativamente à casa.

Como tal, o único facto que podemos dar por provado, é que “No dia da visita ao locado prévia à celebração do contrato, a autora falou à Ré nos problemas de saúde do seu marido.

Quanto ao facto constante do ponto 2que as janelas do locado se encontravam estragadas, sendo necessária uma cadeira para que as mesmas não se abrissem não poderá ser dado como provado quando, efetuada uma peritagem ao locado, aí se escreveu que “A perita não detetou janelas estragadas e com dificuldade de manuseamento”. Contra tal observação de alguém externo ao conflito em causa e, como tal imparcial, não poderão valer fotografias de uma cadeira encostada a uma janela, para tentar demostrar que a mesma não fechava, ou o depoimento de uma testemunha que afirma que uma janela não fechava ou que deixavam entrar frio. Quanto ao depoimento da perita de que se socorre, quando confrontada com tal fotografia, o que ela afirma é que as janelas têm realmente entrada de ar, daí o uso da fita cola. Ou seja, quando interrogada em audiência, a perita mantém não ter encontrado janelas “estragadas”, sendo que, a autora também não demostra (e nem sequer alega) que tais janelas possam ter sido objeto de qualquer reparação após a saída do locado pela autora.

Quanto aos factos constantes dos pontos 3. e 4. e 6.

3. que o quadro elétrico estava sempre a disparar, dando origem ao rebentamento das lâmpadas e danificação dos candeeiros, tendo ocorrido também a danificação de um microondas, de um termo-ventilador e de uma torradeira;

4. que a luz da entrada não funcionava;

6. que as portas interiores da habitação só fechavam com esforço;

a Apelante faz assentar a sua pretensão a vê-los dados como provados, invocando a tal respeito, única e exclusivamente, o afirmado pela própria autora, quando ouvida em declarações de parte, o que, desacompanhado de qualquer outro elemento de prova que o confirme se afigura claramente insuficiente para convencer o tribunal da sua veracidade.

Quanto ao facto constante do ponto 5:

5. que o canhão da porta de entrada na habitação não funcionava;

segundo a Apelante, o mesmo deve ser dado como provado, porquanto:

- a recorrente afirma no manuscrito remetido à R., datado de 07.01.2019, que “nem a porta e o canhão estão em bom estado”,

- “algo que DD afirmou também no seu testemunho;

- a prova cabal de que não funcionava é o facto de a Senhora Perita, no seu Relatório, ter feito menção de que “a Ré informou que não realizou obras, à exceção de pintura interior e substituição do canhão da porta de entrada.” Ora, segundo as regras do “normal acontecer”, algo só é substituído quando não está funcional… ou não haveria necessidade de ser substituído.

É certo que, na referida carta, a autora refere que “nem a porta nem o canhão estão em bom estado”. De qualquer modo, “o não estar em bom estado” não significa necessariamente que o mesmo não funcionasse – podia significar que estava largo ou que fosse necessária alguma técnica especial para a abrir…

Quanto à alegação de que tal afirmação foi confirmada pela testemunha DD, mostra-se insuficiente para fundamentar a sua impugnação: confirmou como? O que é que ele afirmou a tal respeito, em que parte do seu depoimento e da gravação? Como tal, não cumprindo aqui o ónus de alegação previsto no artigo 640º, nº2, al. a), do CPC, não poderemos ter em conta, nesta parte, o depoimento de tal testemunha.

Por fim, o facto de a Ré ter substituído o canhão para os novos arrendatários (cf. Resposta ao quesito 9, do relatório pericial), também não implica necessariamente que o anterior estivesse avariado, sendo uma medida compatível com o dever normal de cuidado que se deve ter quando determinada casa muda de inquilinos.

Relativamente à matéria contida no ponto 7:

7. que o esquentador não funcionava, obrigando a tomar banho de água fria ou a não poder tomar banho sequer;

invoca a apelante a seu favor as declarações da autora e ainda os esclarecimentos da Sr. Perita que afirmou que o esquentador não era de origem pelo que, segundo a apelante, seria plausível que o mesmo tivesse sido trocado após a instauração da presente ação.

É verdade que a Sr. Perita, à questão se lhe pareceu ter sido trocado recentemente, respondeu, “não é de origem da construção, deve ter sido trocado”. Contudo, se a Apelante se quer socorrer da opinião da Sra. Perita, não se pode socorrer unicamente desta frase, descontextuada e omitindo as demais declarações por esta proferida relativamente a tal matéria. Com efeito, no final do seu depoimento, quando lhe é perguntado se o esquentador tem mais de um ano, dois, ela responde sem hesitações: “Sim. Tem mais de um ano ou dois”. Datando o relatório de 30 de junho de 2020, e alegando a autora ter-se mudado do locado em finais de maio de 2019, excluída fica a hipótese de o mesmo ter sido mudado depois da autora ter saído.

Assim sendo, mais uma vez, no sentido de que o esquentador não funcionava, temos apenas as declarações da autora, sendo que a perita afirmou que o mesmo funcionava normalmente, ativando a água quente quando abria a torneira e desligando quando fechava a torneira.

Relativamente aos pontos 8., 9. e 10., com o seguinte teor:

8. que no chão se acumulavam poças de água, que tinham de ser diariamente limpas, por vezes mais do que uma vez ao dia;

9. que as janelas acumulavam água nos vidros que escorria até aos parapeitos e pelas paredes, enchendo-os de água e também tinham que ser limpas diariamente, por vezes mais do que uma vez;

10. que as borrachas de vedar as janelas se encontravam podres, a soltar-se, algumas sendo mesmo inexistentes, o que fazia entrar muito mais frio no interior da habitação, além de águas e humidades;

sustenta a apelante que:

- tal matéria pode ser comprovada por via de prova documental, v.g., nos docs. 27, 28, 31, 32, 35, 35, 36, 40-46, 54-57, 68, 69, através de imagens que mostram claramente a existência de acumulação de água no chão, nos vidros e caixilharias das janelas,

- bem como por prova testemunhal, pela testemunha DD o qual afirmou “Havia, havia muita condensação… cheguei a constatar isso. Havia muita humidade, havia (…)” (quando interrogado pela patrona da ré, ora recorrente, gravação de 23-11-2021, minuto 00:18:00 – 00:18:15).

- Também a A., nas suas declarações de parte, do min. 22:39 a 24:09, quando questionada sobre as infiltrações das janelas, refere: “Pois, eu isso eu não sei de onde as infiltrações vinham. Eu sei que começa a aparecer muita água no chão. Mas eu primeiro que… eu sentia o chão a escorregar. E um dia tinha lá um sofá ao canto e um dia estava a fazer a limpeza e vejo a meter água (…) Começou a aparecer água debaixo da cama (…) Eu agarrei, chamei a D. CC, ela veio, era dez horas da noite, chamei-a e… ela sentou-se na minha cama, meteu a mão [no chão] e viu. (…) Chamou lá um homem e disse que não era nada. (…) Tudo continuou sempre. O que me obrigou mais a sair dali. (…) Foi horrível aquele inverno”. Também referiu que “por vezes, as janelas abriam de noite” (min. 24:11 a 24:32).

- Ademais, quanto à prova pericial, no quesito 15 do relatório pericial, foi afirmado pela Senhora Perita que “existem janelas que deixam entrar frio e água no interior da habitação”, motivado pela caixilharia instalada, que permite a existência de frestas, uma destas de “dimensão significativa”, como se pode ver nas imagens 4 a 6 do relatório pericial, para além da inexistência de borrachas isoladoras.

- Quanto a formarem-se poças de água o chão, a Sra Perita, nas suas declarações, do minuto 31:43 a 33:50 gravação digital de 23-11-2021, quando perguntada “há aqui algumas fotografias que mostram uma espécie de poças de água no chão…o chão vidrado…a Sra Perita, que explicação encontra para esta situação?” Respondendo esta: “(…) é assim, pode entrar realmente a água nessa “frecha”, nessa janela, nas janelas dos quartos, é possível que entre a água, sim. Quando chove muito, é possível e que realmente caia no chão…sim, essas poças podem ser derivadas disso, sim.”. Mais foi perguntada: “e as janelas com gotículas?”, respondendo: “ tem a ver com a humidade em si, não é? Entra humidade e pode criar o vapor dentro e faz criar as gotículas.” Perguntada “E a humidade tem a ver com o quê?”, respondendo “com a entrada de água, não é? (…) [a humidade] é quando há condensações…não havendo ventilação, não me parece ali, porque como tem as “frechas”, há ventilação. Provavelmente, o choque térmico entre o frio de fora e o calor, que faz ali criar as gotículas.”

De tais elementos de prova, e dentro do que foi afirmado pela testemunha DD e as declarações da Sra. Perita, nomeadamente da análise que fez às fotografias juntas aos autos, o que podemos dar por confirmado é a existência de condensação (as gotículas são derivadas de choque térmico, como é explicado pela Sra. Perita,  nas janelas e nas paredes, e ainda que as janelas não vedam completamente, tendo uma folga significativa, deixando entrar água e frio. Confirma o teor do relatório de que não há borrachas apodrecidas.

E aqui haverá que reproduzir o teor do relatório pericial, relativamente a tais factos:

12. Se existem infiltrações nas janelas, nas paredes e no chão do imóvel?

- A perita não verificou qualquer infiltração, no entanto a visita foi efetuada num dia sem pluviosidade

13. Se se acumulam fortes humidades em toda a casa, nomeadamente no respetivo piso, podendo ocorrer “poças de água”?

- A perita não verificou qualquer humidade, no entanto a visita foi efetuada em dia sem pluviosidade.

14. Se as janelas acumulam água nos vidros que vão escorrendo até aos parapeitos e pelas paredes enchendo-os de água?

- A perita não verificou qualquer acumulação de águas, no entanto a visita foi efetuada em dia sem pluviosidade.

15. Se as próprias borrachas de vedar as janelas se encontram podres, a soltar-se, e algumas sendo mesmo inexistentes i que faz entrar muito frio no interior da habitação, além de águas e humidades?

- A perita não verificou a falta e/ou o apodrecimento das borrachas de vedar as janelas, estas já têm alguma idade e desgaste, no entanto não considera ser esta a causa dos problemas descritos no quesito. A perita constatou efetivamente que existem janelas que deixam entrar frio e água no interior da habitação. Este facto deve-se à caixilharia ali instalada, esta não possui qualquer batente e/ou perfil entre a folha que abre e a pedra do peitoril, facto que origina a existência de uma fresta (foto 4, 5 e 6) entre esses dois elementos que permite a entrada de frio e água no interior

Ou seja, do seu depoimento resulta não ter constatado a existência de quaisquer humidades (e se é certo que nesse dia não estava a chover, a haver humidades numa casa, deixam vestígios visíveis, independentemente de se tratar de dias de chuva ou secos), apontando, tão só, o facto de as janelas não vedarem bem deixando entrar frio e água.

Como tal, será de julgar parcialmente procedente a impugnação da autora, dando-se como provados os seguintes factos:

10. As janelas não vedam bem, deixando entrar frio no interior da habitação, além de águas.


*

Pretende a Apelante que a matéria constante do ponto 11:

11. que a humidade e as infiltrações de água dentro do locado contribuíram para agravar os problemas de saúde da autora e seu marido.

seja dada como provada, com base nas declarações da autora, que afirmou “Deteriorou-se muito e muito e muito (…) Muito, muito… aliás, temos várias entradas no hospital da universidade, de urgência…e ainda no depoimento da testemunha DD, que afirmou “Ah, sim, era visível que ele tinha alguma doença … sim, tanto que parece que tem vindo a agravar (…).

Contudo, de tais declarações e depoimentos não podemos estabelecer qualquer ligação entre o agravamento do seu estado de saúde e o do seu marido e a situação de humidade dentro da casa.

Por fim, apoia a apelante a sua pretensão a ver dado como provado o teor do ponto 13:

13. que logo em Outubro, perante o desagrado que foi manifestado pela autora à ré acerca das condições do imóvel, esta, aproveitando-se de uma altura em que a autora e o seu marido não se encontravam em casa, retirou do interior desta a maior parte dos pertences da autora, incluindo móveis, deixando-os na rua, tendo-se estes em parte danificado devido à chuva que caía nesse dia.

          no por si afirmado em declarações de parte e ainda no depoimento de FF que afirmou ter ajudado a Autora a levar as mobílias para a casa da Ré e posteriormente, desta para a casa onde habita este momento e que viu que algumas madeiras tinham humidade, havia algumas diferenças.

Ora, quer das citadas declarações da testemunha FF – que alude apenas ao transporte das mobílias da autora da antiga casa para o arrendado e quando a autora sai deste, para a casa onde atualmente habita, sem qualquer referência a este alegado episódio em que a Ré lhe teria posto a mobília no meio da rua  –, quer de todas as demais afirmações por si efetuadas em audiência, nenhum elemento de prova conseguimos retirar no sentido de confirmar a matéria de facto que aqui se encontra sob impugnação: i) que, pouco depois da celebração do contrato de arrendamento, a Ré tenha retirado a maior parte dos pertences da autora, incluindo mobílias, e as tenha posto na rua; ii) que os móveis se tenham danificado devido à chuva que caía nesse dia.

Como tal, as declarações da autora a tal respeito, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova que as confirme, não são suficientes para dar tais factos como provados.

Também, nesta parte, a impugnação deduzida pela Apelante é de improceder.

Concluindo, julga-se parcialmente procedente a impugnação deduzida pela Apelante à decisão quanto à matéria de facto, introduzindo unicamente as alterações acima descritas quanto aos pontos 1 e 9 e 10, da matéria dada como não provada, aditando-se os seguintes factos à matéria dada como provada:

1. No dia da visita ao locado prévia à celebração do contrato, a autora falou à Ré nos problemas de saúde do seu marido.

10. As janelas não vedam bem, deixando entrar frio e água no interior da habitação


*

Subsunção do direito aos factos.

A autora intenta a presente ação, alegando que, passado pouco tempo após se ter instalado no locado, se constataram vícios e defeitos no imóvel que o tornam impróprio para uma vida minimamente condigna, defeitos estes que a Ré, apesar de interpelada para o efeito, não corrigiu, encontrando-se impossibilitado o gozo do imóvel.

Em consequência, ao abrigo da exceção de não cumprimento do contrato, invoca o direito ao não pagamento das rendas do locado desde o mês de fevereiro em diante, solicitando ainda o reembolso do valor das rendas já pagas (e caução), bem como o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Em alternativa, requer que o contrato de arrendamento seja declarado nulo com base em erro vício, porquanto ter sido celebrado pela autora em situação de erro quanto ao objeto do negócio: o locado em si.

A decisão recorrida veio a julgar a ação totalmente improcedente, com a seguinte motivação:

- não reconheceu a verificação dos pressupostos da invocação da exceção de não cumprimento do contrato porquanto, não se encontrando demonstrado que a autora tivesse sido privada do uso do locado – e esta é a obrigação correspetiva do pagamento da renda –, a simples mora do senhorio na realização de obras no locado não lhe dá o direito de recusa do pagamento das rendas;

- considerando que a autora não provou a maior parte dos vícios por si alegados, que visitou previamente o local, não podia ignorar tratar-se de um imóvel com décadas e que tal circunstância foi com certeza considerada na fixação da renda contratada, não considerou provada a existência de erro vício.

Vejamos agora, se a decisão recorrida se encontra ferida de erro de julgamento nos termos sustentados pela Apelante nas suas alegações de recurso.


*

1. Se a autora pode invocar a exceção de incumprimento do contrato para o efeito de não pagamento das rendas até à realização de obras no locado, bem como para o reembolso das rendas por si pagas desde o início do arrendamento.

A decisão recorrida negou a pretensão da autora – mediante a invocação da exceção de não cumprimento do contrato – a deixar de pagar as rendas a partir de 01.03.2019, enquanto não forem executadas obras no locado, bem como à devolução do montante das rendas já liquidadas desde o início do contrato, com os seguintes fundamentos que aqui se sintetizam:

- Se o cumprimento inexato ou defeituoso pode, em abstrato, justificar a exceção de não cumprimento do contrato, impõe-se a conclusão de que a boa fé constitui um limite à alegação dessa exceção, podendo levar à sua negação ou redução, sob pena de se pôr em causa o equilíbrio sinalagmático que caracteriza a relação contratual;

- no caso sub judice não se verificam os pressupostos que legitimam a exceptio: obrigações correspetivas são o dever do senhorio de proporcionar o gozo da coisa e o dever do inquilino de pagar a renda; não já o dever do inquilino de pagar a renda e o puro e simples dever do senhorio de realizar obras.

- em princípio, a mora do senhorio na realização das obras não justifica a invocação da excepção de não cumprimento do contrato; mantendo-se o arrendatário no gozo do arrendado, o dever que o senhorio tem de proceder a reparações não é correspetivo do dever de o arrendatário pagar, pontualmente, as rendas convencionadas, pois à obrigação de pagar a renda contrapõe-se o dever de o senhorio proporcionar ao arrendatário o gozo do arrendado.

- não se provou qualquer privação do gozo ou utilização, total ou parcial, do locado, por parte da arrendatária, pelo que falece um qualquer nexo sinalagmático ou de correspetividade entre a dita conduta imputável à senhoria (omissão de obras) e a falta de pagamento das rendas…

 - para além do já exposto, uma tal conduta da inquilina afronta ainda claramente os ditames da boa-fé. Invocar falta de obras no locado a cargo da senhoria – onde, apesar disso, se manteve a residir é procedimento que as regras de correção e lealdade não sancionam como conduta de bem. Ora, se assim é, inexiste qualquer desequilíbrio contratual que justifique, de um ponto de vista de proporcionalidade e boa-fé, a exceptio.

Insurge-se a Apelante contra o decidido, insistindo na “inexigibilidade da prestação em virtude da ocorrência da exceção de não cumprimento da prestação por aplicação do artigo 428º do CC”:

- como evidenciam as fotografias e os testemunhos que constituem prova no processo, o locado comportava vícios que impediam a locatária de obter um uso cabal do apartamento;

- da relação contratual, emerge uma obrigação positiva de manutenção do gozo, na qual se insere a incumbência de fazer as reparações necessárias para que o gozo do arrendatário não seja diminuído significativamente;

- a locadora do imóvel, ao não cumprir a obrigação a que pelo contrato ficou adstrita – o gozo pleno do imóvel, após reparações de conservação do mesmo – está-se perante um incumprimento da prestação nos termos do artigo 1032º, podendo a locatária escusar-se ao cumprimento da sua obrigação, por aplicação do artigo 428º, nº1 do CC, até cumprimento cabal da prestação da locadora, com direito ainda ao peticionado a título indemnizatório por danos patrimoniais e morais.

Não é de dar razão à autora/Apelante.

Em primeiro lugar, e como é afirmado na sentença recorrida e se mantém verdadeiro após a decisão sobre a impugnação à matéria de facto deduzida pela Apelante, esta não logrou provar grande parte dos defeitos por si alegados, apenas se encontrando demonstrado, relativamente ao estado do locado que:

9. O estado da canalização e das tubagens do locado faz com que a água que corre nas torneiras do lavatório e banheira da casa de banho seja escura, imprópria para consumo humano. A torneira de água fria do bidé deita apenas um pequeno fio de água.

10. Aquando da perícia realizada no âmbito dos presentes autos a campainha do locado não funcionava e as portas interiores da habitação não possuíam as respetivas chaves.

10.a. As janelas não vedam bem, deixando entrar frio no interior da habitação, além de águas.

Tais vícios, embora relevantes e dando à autora o direito a exigir a respetiva reparação, não impediam o uso parcial ou total do locado, ou sequer, envolviam uma diminuição significativa das utilidades esperadas de um locado, de tal modo, que a autora continuou a habitar o locado.

Enquanto a arrendatário permanecer no locado, usufruindo-o, mantém-se a correspetiva obrigação de pagamento da renda, não se podendo o arrendatário socorrer da exceção de não cumprimento do contrato como fundamento para a restituição das rendas pagas e isenção de pagamento das rendas vincendas, como passamos a explicar.

Antes de mais, cumpre esclarecer que o mecanismo de exceção de cumprimento do contrato não produz os efeitos pretendidos pela autora: o que o artigo 428º do Código Civil faculta ao devedor, quando nos encontramos perante obrigações sinalagmáticas, é o retardamento da sua prestação até que a outra parte cumpra a sua, e não, propriamente, a isenção total de cumprimento da sua prestação.

Por outro lado, a excepcio non adimplecti contratus, apresenta-se como uma decorrência da relação que se estabelece entre prestações emergentes de contrato bilateral e entre as quais exista uma relação de interdependência, ou mais precisamente, um laço de signalagmaticidade do qual resulte que cada uma delas constituiu a causa da outra[6].

Como, bem, defendido, na decisão recorrida, a excepcio só pode ser invocada entre obrigações que sejam correspetivas, que no caso, seriam a obrigação de assegurar o gozo da coisa, pelo lado do senhorio, e a obrigação de pagamento da renda, por parte do arrendatário.

Já quanto à obrigação de proceder a obras no locado, em caso de urgência, pode o locatário efetuá-las com direito a reembolso nos termos do artigo 1036º, sendo que, se não forem tão urgentes que ainda possam esperar algum tempo, deverá o locatário interpelar o locador para as realizar.

Não as realizando, o locador entra em mora, e caso se verifique o incumprimento (definitivo) do contrato, por “a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada”, nos termos do artigo 1036º, o locatário pode resolver o contrato e tem direito a indemnização nos termos da responsabilidade civil obrigacional, pelos danos que eventualmente tenha sofrido, podendo ainda o locatário, no caso de vício originário da coisa, anular o contrato por erro ou dolo.

Contudo, mesmo na hipótese mais gravosa de resolução, reportando-se a um contrato de execução duradoura continuada, a extinção do contrato não teria efeitos retroativos[7], não abrangendo as prestações já efetuadas (artigo 434º, nº2 do Código Civil), pelo que não dariam direito à restituição das prestações já pagas.

Ou seja, em princípio, enquanto o arrendatário se mantiver no gozo do locado, e ainda que o mesmo padeça de vícios que por lei lhe facultassem a resolução do contrato nos termos do art. 1032º, mantém-se a obrigação de pagamento de renda.

É certo que a obrigação de assegurar o gozo da coisa, não se resume à prestação negativa de não perturbar o aproveitamento exercido pelo arrendatário, envolvendo ainda comportamentos positivos, como a realização de reparações ou outras despesas necessárias ao gozo da coisa (artigo 1036º).

E o gozo proporcionado da coisa locada deve ser conforme aos fins a que a coisa se destina: “Isto significa que se a coisa é, por exemplo, imóvel destinado à habitação e o arrendatário celebra contrato com vista a habitar o dito imóvel, então o senhorio garante que o imóvel está em condições próprias para a habitação durante todo o tempo de duração do contrato[8]”.

No entanto, no caso em apreço, os alegados defeitos, embora tivessem reflexos na qualidade do locado, não impediam o respetivo uso para a habitação, de tal modo, que a autora ainda nele residia aquando da propositura da presente ação (onde permaneceu até finais de maio de 2019).

Como tal, mantém-se a obrigação de pagamento da renda, improcedendo as pretensões da autora a tal respeito.


*

2. Se as pretensões da autora deveriam ter obtido provimento pela anulação do contrato por erro ou dolo, nos termos do artigo 1035º do CC.

A decisão recorrida negou tal pretensão da autora, com a seguinte fundamentação, que aqui se reproduz, na íntegra:

A autora funda a sua pretensão em alegados vícios/defeitos de que o imóvel arrendado padecia.

Ora, a autora não logrou provar a grande maioria dos vícios por si alegados. Acresce que a autora visitou o locado antes de celebrar o contrato de arrendamento. Não podia ignorar que o locado era um imóvel com décadas…Tal circunstância seguramente foi tida em consideração na fixação da renda que as partes contrataram… Não logrou a autora provar o invocado erro-vício (erro sobre o objecto do negócio)”.

Insurge-se a Apelante contra o decidido, com a seguinte argumentação:

- para que ocorra esse erro “é necessário que tenha ocorrido uma falsa representação do quadro circunstancial que constitui a base do negócio”, que foi, exatamente, o que se sucedeu.

- Ora, como foi dado como provado pelo Tribunal a quo, “Quando a ré mostrou o locado à autora na visita prévia à celebração do contrato as paredes encontravam-se em bom estado, não se notando quaisquer infiltrações, as janelas estavam abertas e o local parecia arejado. A autora não viu o estado das infraestruturas da casa, como canalizações e sanitários, sistemas elétricos, de gás ou outros.

O estado da canalização e das tubagens do locado faz com que a água que corre nas torneiras do lavatório e banheira da casa de banho seja escura, imprópria para consumo humano. A torneira de água fria do bidé deita apenas um pequeno fio de água”.

- a autora, ora recorrente, não viu o estado das infraestruturas e, por essa circunstância, não poderia pressupor os vícios de que o imóvel padecia e que se encontram abundantemente demonstrados nos autos, quer por via documental, quer testemunhal, pelas declarações de parte da A., quer, ainda, através do próprio Relatório Pericial, o qual responde positivamente, à grande maioria dos quesitos apresentados pela A, conforme já demonstrado em sede de impugnação da matéria de facto, no presente Recurso.

- nesta medida, a A. fez fé no que lhe tinha sido mostrado pela ré, ora recorrida que, como dona e legítima proprietária, deveria conhecer o locado e as suas condições para proporcionar o gozo da coisa, a sua verdadeira obrigação que, todavia, não o fez.

- assim, se a Autora-Recorrente soubesse do real estado do imóvel jamais teria celebrado o contrato de locação de imóvel com a Ré-Recorrida.

Vejamos quais os factos que vieram a ser dados como provados, relativamente ao estado das infraestruturas do locado:

“8. Quando a ré mostrou o locado à autora na visita prévia à celebração do contrato, as paredes encontravam-se em bom estado, não se notando quaisquer infiltrações, as janelas estavam abertas e o local parecia arejado. A autora não viu o estado das infraestruturas da casa, como canalizações e sanitários, sistemas elétricos, de gás ou outros.

9. O estado da canalização e das tubagens do locado faz com que a água que corre nas torneiras do lavatório e banheira da casa de banho seja escura, imprópria para consumo humano. A torneira de água fria do bidé deita apenas um pequeno fio de água.

Quanto às alegadas anomalias respeitantes ao quadro elétrico estava sempre a disparar, e de que o esquentador não funcionava, foram dadas como “não provadas”.

As anomalias dadas como provadas – água impropria para consumo em duas torneiras da casa de banho e insuficiência de caudal na torneira do bidé – podem, na realidade ser consideradas como “defeitos” – por corresponderem a falta de qualidades de um locado destinado a habitação própria. Como tal, poderiam facultar à autora o direito de exigir a sua reparação, à resolução do contrato ou, até eventualmente, à anulação do contrato por erro vício (caso se verificassem os restantes pressupostos exigidos para cada um destes institutos).

Contudo, da materialidade dada como provada inexistem quaisquer factos dos quais possamos concluir ou presumir sequer que, se a autora tivesse tido conhecimento de tais defeitos – que a água que saía das torneiras do lavatório e da banheira ser imprópria para o consumo, que as janelas não vedavam bem, deixando entrar frio e água e que não havia chaves para as portas interiores da habitação –, não teria celebrado o contrato e que o senhorio não pudesse deixar de ignorar a essencialidade, para a autora, dos elementos sobre que incidiu o erro,  a fim de configurar a sua anulabilidade nos termos das disposições conjugadas dos artigos 251º e 247º, do CC.

Com efeito, não é essa a realidade que sobressai do circunstancialismo fáctico respeitante a tais defeitos:

1. A. e ré celebram um contrato de arrendamento com início a 1 de setembro de 2018 e termo em 31 de agosto de 2019;

2. em 7 de janeiro de 2019 (cerca de 4 meses após o início do contrato), é pela autora enviada a referida carta, na qual, ao contrário do afirmado pela Apelante, não é feita a reclamação de qualquer defeito, nem é pedida a respetiva reparação: nela é comunicado que “após várias tentativas de chegarmos a um acordo de resolução do contrato foram em vão. Como tal, passo a informar que a partir desta data as rendas serão depositadas numa instituição Bancária, CGD, à ordem do tribunal, a partir do dia 11 de cada mês. Informo ainda que tal decisão foi devido à falta de diálogo e intromissão de terceiras pessoas (…). 

4. por carta datada de 30 de janeiro de 2019 e recebida pela ré a 01.02.2019, a ré comunicou à autora a sua decisão de opor à renovação do contrato de arrendamento, pelo que o mesmo cessaria os seus efeitos a partir de 31.08.2019;

5. por carta datada de 06.02.2019 (cfr., doc. junto aos autos a 08.06.2019), elaborada pela advogada da autora, a autora comunica à Ré a existência dos referidos vícios (e de outros não dados como provados), e comunica que:

Antes de mais, são essas obras que a inquilina vem exigir que sejam imediatamente realizadas, sob pena de as não fazendo incumprir Vssa. Exc.ª definitivamente o contrato, o que confere à inquilina o direito a deixar de proceder ao pagamento das rendas.

Mais incorre Vª. Exc.ª no dever de indemnizar a Sra. Inquilina de todos os danos materiais provocados pelas deficientes condições habitacionais, bem como também pelos danos morais decorrentes do drama pessoal que têm vivido, ela e o seu marido, em virtude de tudo o que se acaba de descrever, danos esses que não se poderão contabilizar em menos de 4.900,00 €, sendo cerca de 1.500,00 €, devidos pelos danos materiais causados (eletrodomésticos, móveis, vestuário, etc.), cerca de 2.000,00 €, devidos a título de danos morais e 1.400 € respeitantes ao reembolso das rendas já pagas por um imóvel que nunca puderam habitar com as mínimas condições a que tinham direito”.   

6.  a autora dá entrada da presente ação a 22 de março de 2019.

Atentar-se-á ainda em que, aquando do incidente entre a arrendatária e a senhoria que antecedeu e motivou o envio da carta datada de 3 de janeiro de 2019 pela autora à Ré, ao qual foi chamada a GNR, que elaborou participação junta aos autos a 23.11.2021, é aí resumida a posição da autora, em que se queixa das humidades, da falta de tomadas, das portas inferiores não fecharem e dificuldades em abrir as janelas – omitindo qualquer alusão ao facto de por causa do estado dos canos a água sair terrosa –, e afirmando que “propôs à senhoria um acordo de rescisão do contrato de arrendamento, onde a senhoria teria de lhe pagar o valor igual das rendas até final do contrato”.

Ou seja, tais anomalias apenas são referidas na carta subscrita pela advogada da autora, datada de 06.02.2019, pelo qual exige que as obras sejam “imediatamente” realizadas, sob pena de deixar de pagas as rendas, sem que daí ou de qualquer outro elemento nos autos se possa extrair a essencialidade de tais características do locado para a autora que se a autora tivesse sabido destas anomalias não teria celebrado o contrato de arrendamento (este facto foi alegado, mas sobre ele não foi proferida qualquer decisão para o efeito de o dar como provado ou não provado, mas a autora também não formula qualquer pretensão a tal respeito em sede de recurso).

De qualquer modo, ainda que reconhecesse que a autora, caso conhecesse estes vícios ocultos respeitantes à canalização da casa de banho não teria celebrado o contrato, não lhe daria o direito à devolução dos montantes já pagos ou à dispensa de pagamento das rendas vincendas, uma vez que a autora optou por permanecer no locado, de onde só saiu na pendência da presente ação, em finais de maio de 2019.

Como sustenta Clara Sottomayor quanto à liquidação do contato inválido, o princípio da retroatividade consagrado no artigo 289º, nº1, do CC, pode colidir com a realidade prática, pois há efeitos do contrato inválido que não podem ser apagados: “Pense-se num contrato de execução duradoura, como um contrato de arrendamento ou um contrato de prestação de serviços, em que as partes cumpriram as obrigações a que estavam adstritas: o gozo da coisa versus o pagamento das rendas; a prestação do serviço versus a remuneração. Como se procede à restituição do valor do gozo da coisa ou do valor do serviço? Em regra, o critério para calcular o valor do gozo da coisa e o valor do serviço prestado será aquele que foi adotado no próprio contrato inválido que fixou o valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes retém a prestação recebida, equivalendo na prática a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo[9]”.

Ou seja, também por esta via seria de improceder a sua pretensão à devolução das rendas pagas e isenção de pagamento das rendas futuras.

3. Pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais

Por fim, peticionou a autora a fixação de uma indemnização:

a) por danos materiais, estimados em 2.000,00 €, em virtude dos estragos provocados nos eletrodomésticos como micro-ondas, torradeira, termo ventilador, em móveis, como cama, mesas de cabeceira, sofás e outros e também algum vestuário;

b) por danos não patrimoniais, em valor não inferior a 2.500,00 €, atendendo a que a autora tem tido um grande desgosto com toda esta situação, vivendo um drama pessoal desde o momento em que em que constatou as péssimas condições de vida em que estava a viver, em virtude dos graves problemas que se revelavam no interior do locado.

Contudo, e ainda que se houvessem por demonstrados os demais pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigo 483º do Código Civil, sempre tal pretensão haveria de improceder, uma vez que os alegados danos não foram dados por provados (cfr., nomeadamente, o teor do 13 dos factos dados como “Não Provados”, cuja impugnação foi julgada improcedente).

A apelação é de improceder, na sua totalidade.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas da Apelação a suportar pela Apelante.

Notifique.

                                                                   Coimbra, 13 de junho de 2023                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).




[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º Vol., 3ª ed., Almedina, p. 737.
[2] Rui Pinto, “Manual do Recurso Civil”, Vol. I, AAFDL Editora, p. 85.
[3] Ac. TCAS de 15-05-2014, relatado por Joaquim Codesso, citado por Rui Pinto, in “Manual do Recurso Civil”, p.85.
[4] Cfr., a tal respeito, Rui Pinto, obra citada, pp. 81-82.
[5] “Manual do Recurso Civil” – Vol. I, AADFL Editora, p. 81.
[6] Ana Taveira da Fonseca, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, Coord. José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, pp. 123-124.
[7] Segundo Pedro Romano Martinez, por via de regra, a extinção do contrato de locação não implica a destruição in radicem dos efeitos negociais, não é posta em causa a execução de prestações contratuais verificada anteriormente à dissolução do vínculo. “Da Cessação do Contrato”, Almedina 2015, pp. 182 e 329. Compreende-se que assim seja, uma vez que estes contratos fazem nascer uma relação contratual que se prolonga no tempo e onde a retroatividade da extinção dos seus efeitos jurídicos seria impraticável e não corresponderia nem aos interesses dos sujeitos envolvidos nem ao fim da própria resolução (pense-se como seria possível restituir o gozo da coisa locada num contrato de locação ou a prestação realizada pelo trabalhador num contrato de trabalho) -  Daniela Farto Baptista, “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações Em Geral”, Universidade Católica Portuguesa, p.143-144.
[8] Assunção Cristas, “Regime de obras e sua repercussão na renda e na manutenção do contrato de arrendamento”, in THEMIS, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano VIII – Nº15 – 2008, p. 30.
[9] “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Coord. De Luís Carvalho Fernandes e outros, Universidade Católica Editora, p. 718.