Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1214/08.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE
REIVINDICAÇÃO
LEITO
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1305º, 1311º E 1387º DO CC
Sumário: I - O leito do ribeiro ou regato que atravessa um prédio particular, pertence ao prédio, e tem, por isso, também essa natureza; se a corrente passar entre dois prédios particulares pertence a cada um dos respectivos proprietários a porção do leito compreendida entre a linha marginal correspondente e a linha média do leito ou álveo, limitada superior e inferiormente pelas perpendiculares tiradas do extremo do prédio sobre essa linha média.

II - A acção de reivindicação é adequada a fazer valer o direito de propriedade sobre a porção do troço do ribeiro ou regato indevidamente ocupada por proprietário marginal.

Decisão Texto Integral:                 Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 


     I. J (…) e mulher M (…), intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra A (…) e mulher D (…), todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação dos RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio rústico identificado no item 1º da petição inicial (p. i.) [inscrito na matriz predial sob o art.º 9933 e descrito na C. R. Predial sob o n.º 02710 da freguesia de S. Simão de Litém], e, ainda, a demolirem o muro aludido nos itens 11º a 13º da p. i., repondo o ribeiro referido no item 8º da p. i. na situação em que se encontrava, como elemento divisório natural entre o seu prédio e o dos RR., assim restituindo a porção de terreno ocupada, bem como a metade indivisa do leito do ribeiro na parte em que é divisório daqueles dois prédios, para além do pagamento da quantia de € 1 600 a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

            Para fundamentar o pedido alegaram, em resumo, serem donos e legítimos possuidores do mencionado prédio rústico, que confronta a nascente com um ribeiro [que vem de prédios superiores aos dos AA. e RR., onde nasce, e vai desaguar ao rio Arunca] e com o prédio dos RR., os quais, há cerca de 7 anos, construíram um muro em blocos, rede e chapas, implantando-o sobre a margem do terreno dos AA., ocupando-a parcialmente e fazendo seu todo o ribeiro, ao qual os AA. deixaram de ter, por ali, qualquer acesso, advindo-lhes ainda dessa actuação diversos prejuízos.

            Os RR. contestaram invocando a prescrição do direito à pretendida indemnização, reconhecendo o direito de propriedade dos AA. sobre o dito prédio mas tendo por desconformes à realidade as confrontações indicadas, aduzindo ainda que o muro foi por eles edificado na linha da estrema do prédio, respeitando os marcos existentes, limitando-se a seguir o enfiamento de um outro muro construído pelos anteriores proprietários do prédio dos AA..

            Reconvindo, alegaram que os AA. fizeram uma canalização clandestina que suporta os esgotos domésticos provindos da habitação implantada no seu prédio e que são vazados numa fossa séptica que, quando cheia, debita no designado “ribeiro”, causando um cheiro nauseabundo e insuportável, obrigando os RR. a ficarem fechados em casa e impedindo-os de conviver com amigos e familiares, situação que lhes tem causado prejuízos.

            Terminaram concluindo pela procedência da excepção de prescrição, pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, pedindo a condenação dos AA. no pagamento de € 4 100 a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

            Em resposta, os AA. consideraram não verificado o prazo de prescrição do direito à indemnização e legalmente inadmissível, e improcedente, o pedido reconvencional, impugnando a respectiva factualidade e pedindo ainda a condenação dos RR. como litigantes de má fé.

            Foi proferido despacho saneador, que julgou procedente a invocada excepção peremptória de prescrição do direito à indemnização por parte dos AA., absolvendo os RR. do respectivo pedido. A reconvenção não foi admitida em virtude da inexistência do necessário laço substantivo de conexão entre os pedidos principal e reconvencional.

            Afirmou-se a validade e a regularidade da instância e seleccionou-se a matéria de facto considerada assente e controvertida, não reclamada.

                Realizada a audiência de discussão e julgamento, decidiu-se a matéria de facto por despacho de fls. 147.
     Na sentença, o tribunal recorrido julgou a acção procedente, condenando os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores (…) sobre o prédio rústico sito em (…) composto por terra de vinha com árvores de fruto, confrontando a norte com estrada, nascente com (…) e ribeiro, sul com (…) e (…) e poente com estrada e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o n.º 02710 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 9933 [a)], bem como a demolirem o muro por si edificado, em toda a sua extensão, repondo, assim, o ribeiro na situação que antes tinha, como elemento divisório entre o prédio identificado em a) e o dos Réus, restituindo também aos Autores toda a porção de terreno do seu prédio ocupada pelo referido muro, bem como a metade do leito do mencionado ribeiro em toda a extensão em que é divisório daqueles prédios [b)].

Inconformados com esta decisão, os RR. apelaram, terminando a alegação com as seguintes conclusões[1]:
     1ª - Os factos dados como provados descritos em n) e o) - A confrontação desse ribeiro com o prédio dos Autores faz-se numa extensão de cerca de 50 metros [n)]; Dividindo-o em toda a sua extensão do prédio dos Réus [o)][2] - e o facto dado como não provado - “O ribeiro supra descrito passa no prédio dos RR.?”[3] - foram incorrectamente julgados.        
     2ª - Os meios probatórios constantes no processo, nomeadamente, o registo de gravação e a resposta aos quesitos, nomeadamente no que toca ao apuramento da matéria de facto vertida nos art.ºs 19º, 20º e 28º da base instrutória, impõem decisão sobre os pontos de matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
     3ª - O tribunal a quo deveria dar como provado que o ribeiro vem dos prédios superiores, do lado Sul, atravessando o prédio dos RR. de forma oblíqua, portanto de Sudoeste e conflui junto ao limite do prédio dos AA. do Noroeste; e como não provado, que o ribeiro divide o prédio dos AA. do dos RR..
     4ª - Tendo as partes chegado a acordo na audiência de discussão e julgamento que o litígio em causa prendia-se unicamente com a linha de demarcação entre os prédios, tendo sido dado como assente a factualidade vertida nos quesitos de 1º a 7º, a questão do domínio sobre os prédios não se coloca.     
     5ª - Estando em causa uma questão de domínio sobre uma faixa de terreno que se desconhece se está integrada no prédio dos AA. ou dos RR. e não se questionando o próprio título de aquisição de cada um dos prédios, a pretensão das partes só pode encontrar solução numa acção de demarcação com a fixação das estremas dos prédios confinantes.
     6ª - Não tendo o Tribunal a quo dado como provado a respectiva contiguidade e a delimitação ou fixação das estremas entre os prédios em discussão, o litígio mantém-se.
     7ª - A presunção de que os AA. são proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 02710, atenta a factualidade assente em A) no despacho saneador e o disposto no art. 7º do Cód. do Registo Predial, não abrange os factores descritivos do prédio (áreas, limites ou confrontações), cujo ónus de alegação e prova impende sobre o proprietário que pretende exercer o direito à demarcação.
     8ª - Ponderando os critérios enunciados nos art.ºs 1311º e 1354º do Cód. Civil e a factualidade assente, impunha-se proceder em primeiro lugar à fixação da linha divisória entre o prédio dos AA. e o dos RR..
     9ª - Não tendo sido provados os limites dos prédios dos AA. e dos RR. e por conseguinte não ficando provado o alegado pelos AA. e vertido nos art.ºs 19º (na parte em que se aludia a construção do muro sobre a margem do terreno dos AA., 20º e 28º), a acção deve improceder.
     10ª - Como não se provou que o muro construído pelo RR. foi implantado ao longo de toda a margem do prédio dos AA., ou na linha da estrema do prédio dos RR., ocupando e fazendo seu todo o ribeiro, não se sabe se o muro foi construído na propriedade dos AA. ou dos RR..
     11ª - Não existindo nenhuma violação do direito de propriedade dos AA., não há lugar a qualquer indemnização.
     12ª - O que está a ser discutido é a propriedade dos AA. e RR., nomeadamente quanto à sua extensão, não existe qualquer conflito quanto à propriedade das águas do ribeiro, as obras de armazenamento ou a divisão do seu leito, pelo que o art.º 1387º do CC não é aplicável no caso em apreço, já que apenas regula a propriedade das águas, as obras de armazenamento e o leito das correntes não navegáveis nem flutuáveis.
     13ª - Os ribeiros, rios ou afins não são, por si sós, reveladores das linhas delimitadoras dos prédios mas sim, as demarcações das estremas entre os prédios (os marcos).
     14ª - Aplicando-se porventura o art.º 1387º do CC, ficaríamos sem saber a linha delimitadora dos prédios, já que o ribeiro não os divide na sua total extensão.
     15ª - A sentença do Tribunal a quo violou o disposto nos art.ºs 655º do CPC; 562º, 563º, 566º, 1287º, 1311º, 1354º e 1387º do Código Civil e 7º do Código Registo Predial.

Os AA. contra-alegaram sustentando a improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil[4], com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, aplicável ao caso vertente), colocam-se duas questões fundamentais: por um lado, se existe erro na apreciação da matéria de facto e, por outro lado, assente a factualidade relevante, se os AA. podiam lançar mão da acção de reivindicação e lhes assiste o direito à reclamada porção/metade do troço do ribeiro em causa, com os efeitos legais daí decorrentes.


*
     II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
     a) Encontra-se registada a favor dos AA. a aquisição, por óbito de (…) (…), do prédio rústico sito em (…), composto por terra de vinha com árvores de fruto, confrontando a norte com estrada, nascente com (…), (…) e ribeiro, sul com (…) e (…)e poente com estrada e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal, freguesia de São Simão de Litém, sob o n.º 02710, inscrito na matriz sob o artigo 9933. (A)
     b) Os AA., por si e anteproprietários, têm vindo a ocupar o prédio descrito em II. 1. a) há mais de 15, 20 e 30 anos. (1º)
     c) Plantando árvores e colhendo os seus frutos. (2º)
     d) Nele fazendo construções urbanas e habitando-o. (3º)
     e) À vista e com o conhecimento de toda a gente. (4º)
     f) Sem oposição de ninguém. (5º)
     g) E sem qualquer interrupção. (6º)
     h) Sempre com a consciência de que esse prédio lhes pertence. (7º)
     i) E de que não lesam interesses e direitos de outrem. (8º)
     j) O prédio descrito em II. 1. a) confronta a nascente com o prédio dos RR. e também com um ribeiro. (9º e resposta aos art.ºs 10º e 29º)
     k) Esse ribeiro vem de prédios superiores aos dos AA. e RR.. (11º)
     l) E vai desaguar ao rio Arunca. (12º)
     m) A confrontação desse ribeiro com o prédio dos AA. faz-se numa extensão de cerca de 50 metros. (resposta ao art.º 13º)
     n) Dividindo-o em toda a sua extensão do prédio dos RR.. (14º)
     o) O qual também confronta, pelo poente, com aquele curso de água. (15º)
     p) O ribeiro tem uma largura média de 50 centímetros. (16º)
     q) Há cerca de sete anos, os RR. construíram um muro em blocos, com rede e chapas sobre a margem, deixando os AA. de ter, por ali, acesso ao ribeiro. (resposta aos art.ºs 19º e 21º)
     r) A largura do referido muro é de cerca de 15 centímetros. (22º)
     s) Com uma altura variável entre 1,25 metros e 2,5 metros. (23º)
     t) E uma extensão de cerca de 35,50 metros. (resposta ao art.º 24º)
     u) Este muro prossegue ainda até à estrada municipal. (26º)
     v) Aí se prolongando em mais 10,5 metros. (27º)
     w) O muro foi construído com o conhecimento dos AA.. (resposta ao art.º 35º)
     x) Os RR. limitaram-se a seguir o enfiamento de um muro construído pelos anteproprietários do prédio dos AA. há mais de 30 anos. (36º e 37º)
2. (…)

4. O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art.º 1305º do CC) e pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (art.º 1311º, n.º 1, do CC).
O art.º 1387º do CC, que tem por objecto as “obras para armazenamento ou derivações de águas” e o “leito das correntes não navegáveis nem flutuáveis”, estabelece que é particular o leito ou álveo das correntes não navegáveis nem flutuáveis que atravessam terrenos particulares (n.º 1, alínea b)), que se entende por leito ou álveo a porção do terreno que a água cobre sem transbordar para o solo natural, habitualmente enxuto (n.º 2) e que quando a corrente passa entre dois prédios, pertence a cada proprietário o tracto compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito ou álveo, sem prejuízo do disposto nos artigos 1328º e seguintes (n.º 3).[5]
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art.º 7º do C. R. Predial).
Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, sendo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (art.º 342º, n.ºs 1 e 2).

                5. O direito do proprietário é exclusivo (jus excludendi omnes allios), na medida em que pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu exercício.

            São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro, sendo que sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou na detenção do réu, e este, por sua vez, tem o ónus da prova de que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitima a recusa da restituição.[6]

            A inscrição registral do direito de propriedade faz presumir que o direito existe sobre o bem descrito e nos termos em que o registo o define[7]; porém, quanto à composição física ou factores descritivos/identificadores do prédio, designadamente em termos de áreas, limites e confrontações, o registo não faz operar tal presunção, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência.[8]

            Tendo em consideração a materialidade provada, designadamente, a incluída em II. 1. alínea a) e em face da presunção do art.º 7º do C. R. Predial, deve ser reconhecido o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal, freguesia de São Simão de Litém, sob o n.º 02710, inscrito na matriz sob o artigo 9933.
     Acresce, por um lado, que os RR. não questionaram a titularidade do direito de propriedade dos AA. mas apenas a respectiva extensão ou conteúdo (o seu “licere”/conjunto de faculdades inerentes ao respectivo exercício), tal como ficou configurado na petição inicial (cf., v.g., art.º 4º da contestação e acta de fls. 142) e, por outro lado, encontra-se demonstrada a aquisição desse direito pela via originária da usucapião [cf. II. 1. alíneas b) a i), supra, e, designadamente, art.ºs 1287º, 1316º e 1317º, alínea c), do CC].

                Assim, em face da matéria de facto apurada e do objecto do presente recurso, resta apreciar o segundo segmento do pedido deduzido na acção[9], sendo que os AA. consideraram que os RR., ao construírem tal muro, ocuparam e apoderaram-se, não só da parte da margem do terreno do aludido prédio dos AA.. como se apoderaram em toda a extensão e largura referidas desse muro, de metade indivisa do leito do ribeiro em questão que, como corrente de água não navegável nem flutuável que divide este prédio do prédio daqueles, constitui parte integrante do mesmo prédio dos AA.[10], nos termos do art.º 1387° do CC.
     Daí que os AA. tenham lançado mão da presente acção de reivindicação (art.º 1311º do CC), a mais importante das acções reais, dirigindo-a contra quem possui a (parte da) coisa cuja restituição se requer e incumbindo-lhes demonstrar os factos constitutivos do direito alegado (art.º 342º, n.º 1, do CC)[11].
     6. Sabendo-se que nem sempre é fácil distinguir a acção de demarcação, com o conteúdo que lhe atribui a nossa lei (art.º 1353º do CC), da acção de reivindicação, dado que, afinal, em qualquer dos casos se discute uma questão de domínio relativamente a uma faixa de terra[12], dúvidas não restam de que, no caso em análise, nenhuma das partes se arroga propriamente o direito de ver demarcados os respectivos terrenos na parte em que são contíguos[13], antes se coloca a questão de saber se a porção de terra que constitui o leito e as margens do curso de água em questão [que se poderá designar como um ribeiro, regato, riacho, torrente, fio de água, córrego (de caudal descontínuo)[14]], segundo o apontado enquadramento normativo, e no tocante à extensão ou ao troço supra referidos, é propriedade exclusiva dos RR., por o ribeiro/curso de água atravessar apenas o respectivo prédio ou, então, pertence aos AA. e aos RR. [pertencendo a cada proprietário marginal o trato compreendido entre a linha marginal e a linha média do leito ou álveo], pela simples razão de tal ribeiro/corrente passar entre os prédios dos litigantes (proprietários marginais), dividindo-os, e não existir qualquer título legítimo contrário.[15]
     7. Como se concluiu na sentença sob censura, decorre claramente da factualidade provada que os recorrentes se apropriaram de parte do prédio dos AA., retirando-o, nessa medida, da posse e da fruição dos AA..
     Com a construção do muro em questão, os recorrentes retiraram aos AA. a fruição e a possibilidade de ocupação do seu prédio em toda a extensão ocupada pelo referido muro e de todo o espaço que se estende desde o ponto onde esse muro está implantado até á linha média do leito ou álveo do referido ribeiro, como corrente de água que é, não navegável nem flutuável, e que passa entre o prédio dos AA. e o dos RR., porquanto pertence a cada proprietário confrontante, como é o caso do prédio dos AA., todo o tracto de terreno situado entre a linha marginal do ribeiro e a linha média do seu leito - além da margem do ribeiro, adjacente ao prédio dos AA., pertence-lhes ainda a metade indivisa do leito do mesmo ribeiro, que está na sua continuidade, sem prejuízo do disposto sobre acessão natural nos art.ºs 1328º a 1331º do CC e que, in casu, não releva (art.º 1387°, n.° 3 do CC).
     Ao realizarem a obra da construção do muro referido, os AA. violaram o direito de propriedade dos AA. sobre o seu identificado prédio, privando-os de toda a porção desse prédio ocupado pela implantação do mesmo muro e de todo o tracto do terreno do seu prédio que se estende até à linha média do leito do ribeiro, ao qual os AA. deixaram de ter acesso, pelo que nada se poderá apontar à consequência ditada pela sentença em apreciação, com a reposição da situação dos AA., quanto ao ribeiro e quanto ao seu prédio, no estado em que se encontravam antes da descrita actuação dos RR. - consequência da violação do direito absoluto de propriedade dos AA. e que consistiu na edificação, por parte dos Réus, de um muro com uma extensão de cerca de 35,50 metros, há cerca de 7 anos, sobre a margem do ribeiro que divide os prédios das partes, e que impede os Autores de por ali acederem ao ribeiro [cf., sobretudo, II. 1. alíneas j), m), n), o), q) e t), supra].
     Uma vez que o ribeiro, no troço que aqui interessa, divide em toda a sua extensão os prédios de AA. e RR., não podiam estes realizar a obra atrás descrita, pois com ela, na mencionada extensão, impediram o acesso dos AA. ao ribeiro, violando o direito de propriedade destes sobre o respectivo prédio e ribeiro, direito que só será plenamente reafirmado com a demolição do muro indevidamente edificado, assim lhes sendo restituída a porção de terreno ocupada e a parte que lhes é devida do leito do ribeiro.
     Dir-se-á, por último, que é inteiramente correcta a perspectiva explanada pelos AA./recorridos, na medida em que, se o que ficou provado fundamenta o decidido pelo tribunal a quo, a matéria de facto que foi julgada como não provada mostra-se irrelevante para a sorte do litígio[16] - por exemplo, não tem interesse para a decisão que não se tenha provado que os RR. tivessem ou não ocupado e feito seu todo o ribeiro, que o muro tenha ou não sido construído ao longo de toda a margem do prédio dos AA. ou na linha da estrema do prédio dos RR..
     Ademais, se é certo que os RR., ao edificarem o muro, seguiram o enfiamento de um outro muro construído pelos anteriores proprietários do prédio dos AA., há mais de 30 anos [II. 1. alínea x) e nota 13, supra], este facto, de per si [a que acrescem as circunstâncias e a finalidade aludidas pela principal testemunha ouvida em audiência e que temos por verosímeis – cf., supra, II. 3.], em nada contraria os fundamentos e a razão de ser da solução encontrada.
     8. Soçobram, assim, todas as “conclusões” da alegação de recurso.
                                                                   *
     III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

  Custas pelos RR./apelantes


                [1] Que se sintetizam, corrigindo-se ainda diversos lapsos ostensivos de forma a torná-las inteligíveis.
                [2]  Matéria incluída nos art.ºs 13º e 14º da base instrutória, respectivamente.
                [3] Incluído no art.º 30º da base instrutória.
                [4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
                [5] Idêntico regime era estabelecido no Código Civil de 1867 (art.º 381º, parágrafos 3º, 4º e 5º).
                [6] Vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 93, 113 e 116 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966/1967, Coimbra, 1967, págs. 177 e seguintes e acórdãos da RE de 18.02.1988 e 26.01.1989, in BMJ, 374º, 555 e 383º, 632, respectivamente.
                [7] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 24.4.2007-processo 07A853, publicado no “site” da dgsi.

                [8] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 29.10.1992, 23.9.2004- processo 04B2324 e de 28.6.2007-Proc. 07B1097, publicados, o primeiro, no BMJ, 420º, 590 e, os demais, no “site” da dgsi.
                [9]Que consiste em “serem os RR. condenados a demolir o muro por si edificado (…), em toda a sua extensão, repondo, assim, o ribeiro (…) na situação que antes tinha, como elemento divisório natural entre o (…) prédio dos AA. e o prédio dos RR., e assim restituindo também aos AA. toda a porção de terreno do seu prédio ocupada pelo referido muro, bem como a metade indivisa do leito do referido ribeiro na parte em que é divisório daqueles dois prédios”.
                [10] Vide, entre outros, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. V, 1997, Rei dos Livros, 1997, pág. 148, que refere, designadamente: “O leito da corrente que atravessa um prédio particular, pertence ao prédio, e tem, por isso, também essa natureza; se a corrente passar entre dois prédios particulares pertence a cada um dos respectivos proprietários a porção do leito compreendida entre a linha marginal correspondente e a linha média do leito ou álveo, limitada superior e inferiormente pelas perpendiculares tiradas do extremo do prédio sobre essa linha média.”
                [11] Cf., a propósito, o cit. acórdão do STJ de 29.10.1992.
                [12] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 199.
                [13] Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra Editora, 1982, págs. 13 e 36 e seguintes, a propósito das situações abrangidas no direito de demarcação/a que se destina o processo de demarcação.
                [14] Vide Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Vol. I, Coimbra Editora, 1989, págs. 70, 96 e 97 e nota 13, supra.
                [15] Ibidem, págs. 160 e 161.
                [16] Cf., sobretudo, as respostas restritiva ao quesito 19º e negativa aos quesitos 20º e 28º (sendo que a perspectiva dos Réus, sobre a mesma realidade, integrou os quesitos 32º, 33º e 34º, também não provados).