Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
474/23.1T9GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
COMPETÊNCIA MATERIAL
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PRÉ-CONTRATUAL
CONTRATO DE DIREITO PRIVADO
INCUMPRIMENTO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Data do Acordão: 02/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 4, DO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E 4.º, N.º 1, AL.ª E), DO DO ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Sumário: I – O critério do contrato administrativo não é o único critério utilizado pela al. e), do nº1 do ETAF para delimitar a competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos, prevendo outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação publica – desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação do Direito Administrativo, todas as questões que dele possam emergir devem ser objeto de ação a propor perante os tribunais administrativos.

II – Enquadram-se na categoria de do artigo 4º, nº1, al. e) do ETAF e 37º, nº1, al. l), do CPTA, as pretensões respeitantes ao incumprimento dos contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição administrativa, quer se dirijam a exigir o cumprimento do contrato, quer a fazer valer a responsabilidade contratual decorrente do seu incumprimento.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Paulo Correia

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

AA, veio, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa, que lhe é movida pelo Ministério Público, em representação do Ministério das Finanças – Direção Geral do tesouro e Finanças, deduzir Embargos de Executado,

Invocando, entre outros meios de oposição à execução, a incompetência do tribunal em razão da matéria, alegando, em síntese:

o contrato dado a execução teve origem no despacho conjunto nº 500/99, de 13/05, dos Ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros, sendo que a entidade mutuante, então designada APAD (Agência Portuguesa de Apoio ao Desenvolvimento), era uma entidade pública tutelada pelo Ministério das Finanças, representada, no ato, pelo Secretário Geral desse Ministério.

a quantia mutuada destinou-se a apoiar os empresários portugueses estabelecidos na Guiné-Bissau que tivessem sido atingidos pelo conflito político-militar que eclodiu naquele país em junho de 1998, encontrando-se em causa um contrato que teve subjacente um ato administrativo – uma decisão política do Governo português de manifesto interesse público, por ter como objetivo apoiar a internacionalização dos empresários nacionais e reforçar a nossa economia no estrangeiro;

concluindo que a competência para a presente ação é atribuída aos tribunais administrativos e fiscais, pelo artigo 4.º, nº1 alíneas a) e d) do ETAF.

O Magistrado do Ministério Publico apresenta Contestação, sustentando a improcedência da exceção de incompetência material, com a seguinte alegação:

 os tribunais administrativos e fiscais não intervêm quando estão em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil privada;

quer na celebração do contrato de empréstimo, quer na sua execução, o Estado não atuou revestido do “ius imperium”, mormente administrativo, mas sim sobre as vestes de uma entidade privada, sendo o contrato em tudo semelhante a um contrato celebrado no âmbito do direito privado.

Foi proferido Despacho Saneador a apreciar a invocada exceção, concluindo, com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, e na procedência da exceção invocada pela embargante, declara-se este Tribunal materialmente incompetente para tramitar e decidir quer os presentes embargos, quer a ação executiva à qual os mesmos correm por apenso, com o que se absolve quer a embargante, quer os demais executados da instância executiva – tudo nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º3 do Código do Procedimento Administrativo, no Despacho Conjunto n.º500/99, de 22.06.1999 e Regulamento Anexo a esse mesmo Despacho, no artigo 4.º, n.º1, alínea e) do ETAF e nos artigos 96º, 99.º, n.º1, 576.º, 2, 577.º, a) e 732.º, n.º4 do Código de Processo Civil.”

Inconformado com tal decisão, o Embargado dela interpôs recurso de Apelação, sintetizando os respetivos fundamentos nas seguintes conclusões:

(…).


*

Os Embargantes apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Dispensados os vistos legais nos termos previstos no nº4, in fine, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência se encontrar atribuída aos tribunais administrativos e fiscais
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, por tal competência pertencer aos tribunais administrativos e fiscais

A decisão recorrida veio a decidir que a ação executiva à qual os presentes autos são apensos é da competência dos tribunais administrativos e fiscais, por reporte à alínea e) do artigo 4º do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), apoiando-se na seguinte apreciação da natureza do crédito que o Ministério das Finanças – Direção Geral do Tesouro e Finanças cuja satisfação coativa peticiona:

1. Factos que considera relevantes para a decisão de (in)competência do tribunal

1. O contrato de empréstimo apresentado como título executivo tem na sua génese o Despacho Conjunto nº 500/99, de 13/05, dos Ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros.

2. A APAD (Agência Portuguesa de Apoio ao Desenvolvimento) era, à data, uma entidade pública tutelada pelo Ministério das Finanças e representada, no ato, pelo Secretário Geral desse Ministério.

3. A quantia mutuada destinou-se a apoiar os empresários portugueses estabelecidos na Guiné-Bissau que tivessem sido atingidos pelo conflito político-militar que eclodiu naquele país em junho de 1998.

4. O aludido contrato teve na sua base uma decisão política do Governo português, envolvendo dinheiros públicos.

Pela sua relevância, e em ordem a melhor compreender a decisão que será proferida a final, afigura-se absolutamente relevante transcrever parte dos despachos publicados no Diário da República, II Série, n.º143, 22.06.1999, páginas 8925 e 8926 e subjacentes ao dito contrato.

Vejamos então.

Despacho conjunto n.o 498/99. — Ao abrigo do n.o 2 do artigo 4.o do Decreto-Lei n.o 48/94, de 24 de Fevereiro, e com o objectivo de garantir o normal funcionamento do Fundo para a Cooperação Económica (FCE): 1 —É fixado para o ano de 1999 o montante de 3 milhões e 500 mil contos para os apoios a fundo perdido a conceder pelo FCE, nomeadamente os relativos aos «Incentivos FCE» e «Bonificações de taxas de juro», com o cabimento orçamental no capítulo 60 do Orçamento do Estado («Despesas excepcionais»), divisão 02 («Direcção-Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais»), subdivisão 01 («Despesas de cooperação»), classificação funcional 1.01.3 e classificação económica 04.01.03A. 2 — Os apoios solicitados até final de 1998 que caibam nas verbas a que se refere o artigo 69.o da Lei n.o 87-B/98, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1998), reger-se-ão pelos regulamentos aprovados pelo despacho conjunto dos Secretários de Estado


*

Despacho conjunto n.o 499/99. — Verificando-se a necessidade de habilitar o Fundo para a Cooperação Económica a praticar os actos previstos na alínea a) do n.o 1 do artigo 4.o do Decreto-Lei n.o 162/91, de 4 de Maio, com a redação que lhe foi dada pelo artigo 1.o do Decreto-Lei n.o 307/98, de 12 de Outubro, designadamente conceder empréstimos em condições financeiras especiais, importa disponibilizar as dotações orçamentais adequadas para tal efeito. Assim, autoriza-se a transferência da verba de 1 milhão de contos, inscrita na rubrica «Transferências correntes — ICP/FCE», capítulo 60 («Despesas excepcionais»), divisão 02 («Direcção-Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais»), subdivisão 01 («Despesas de cooperação»), classificação funcional 1.01.3, classificação económica 04.01.03-A, para a rubrica «Activos financeiros — FCE» (empréstimos de médio e longo prazos), capítulo 60 («Despesas excepcionais»), divisão 02 («Direcção-Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais»), subdivisão 01 («Despesas de cooperação»), classificação funcional 1.01.3 e classificação económica 09.06.02-A. 8 de Abril de 1999. — Pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Filipe Marques Amado, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. — O Ministro das Finanças, António Luciano Pacheco de Sousa Franco.

*

Despacho conjunto n.o 500/99. — O deflagrar do conflito armado na República da Guiné-Bissau, em Julho de 1998, gerou uma série de fatores de perturbação do quotidiano vivido naquele país e traduziu-se em evidentes danos, de dimensão individual variável e ainda não perfeitamente quantificada, que afectaram vários agentes económicos portugueses que aí exerciam actividade. Tais prejuízos constituem razão de justificada preocupação dos lesados e motivo para a procura de soluções. Independentemente da definição de um quadro mais geral de apoios do Governo Português aos seus cidadãos negativamente afectados pelo conflito na Guiné-Bissau, considera-se indispensável e urgente apoiar aqueles que estejam em condições de assegurar a continuidade da sua actividade naquele país ou de a retomar a curto prazo, contribuindo para o esforço de reconstrução da normalidade da vida económica. Assim, fica o Fundo para a Cooperação Económica autorizado, nos termos do disposto na alínea a) do n.o 1 e no n.o 5 do artigo 4.o do Decreto-Lei n.o 162/91, de 4 de Maio, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.o do Decreto-Lei n.o 307/98, de 12 de Outubro, a conceder empréstimos até perfazer o montante global equivalente a 500 000 000$, com observância do regulamento que consta em anexo ao presente despacho conjunto e que dele faz parte integrante. A linha de crédito agora criada poderá ser reforçada, no futuro, se tal se vier a revelar útil e necessário. 13 de Maio de 1999. — Pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Filipe Marques Amado, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. — O Ministro das Finanças, António Luciano Pacheco de Sousa Franco.  

Objecto — facultar recursos financeiros às empresas de direito guineense, qualquer que seja a forma jurídica que revistam, sob a forma de empréstimos a conceder aos seus sócios portugueses, com a finalidade de criar condições de continuidade ou de retoma do normal funcionamento da sua actividade.

Beneficiários — agentes económicos portugueses que, isoladamente ou em associação com terceiros, exploravam empresas de direito guineense, sediadas e a operar na República da Guiné-Bissau à data de 7 de Junho de 1998, qualquer que seja a forma jurídica de que se revistam, desde que detenham o controlo de direito ou de gestão dessas empresas.

Sectores elegíveis — todos com excepção do financeiro.

Condições dos empréstimos: Montante — a definir casuisticamente não podendo, em geral, exceder 100 000 000$; Moeda — escudo português ou euro; Taxa de juro — 0,5 % ao ano, fixa durante o prazo da operação, com contagem de juros dia a dia, na base de 365 dias por ano, liquidados e pagos postecipadamente, de acordo com plano a estabelecer casuisticamente; Prazo — até cinco anos, contados a partir da primeira utilização;

Reembolso — a definir casuisticamente, em função do período de recuperação previsto;

Garantias — para garantir o regular cumprimento das obrigações pecuniárias decorrentes do empréstimo o beneficiário deve apresentar: Aval do Estado; ou Qualquer outra garantia aceite pelo Fundo para a Cooperação Económica (FCE);

Forma — contrato de empréstimo a celebrar entre o Estado Português, representado pelo FCE, na qualidade de mutuante, e o beneficiário, na qualidade de mutuário.

Apresentação e aprovação de candidaturasa apresentação das candidaturas é feita ao FCE, mediante a entrega de um dossier, do qual devem, pelo menos, constar os seguintes elementos: Memória descritiva; Indicação, fundamentada, do montante de financiamento pretendido, nomeadamente pela apresentação do plano financeiro de exploração, integrando o empréstimo solicitado e o seu serviço, que demonstre o equilíbrio financeiro susceptível de ser alcançado a curto prazo; Outros elementos considerados relevantes para uma correcta avaliação do pedido, designadamente os relativos a autorizações para importação e exportação de capitais associados ao empréstimo e ao seu serviço. A decisão sobre as candidaturas apresentadas é tomada pelo conselho directivo do FCE, em reunião ordinária ou especialmente convocada para o efeito, após obtenção de parecer prévio da Direcção- -Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais do Ministério das Finanças, devendo a mesma ser ratificada pelas tutelas do FCE quando o montante do empréstimo exceder os 100 000 000$.

Acompanhamento e fiscalizaçãoconstitui obrigação do mutuário prestar informação sobre a actividade da empresa, nas datas de vencimento acordadas para o serviço da dívida, justificando eventuais desvios ocorridos em relação ao plano financeiro previsional de exploração. O FCE promoverá as diligências que considere necessárias para garantir a aplicação do empréstimo de acordo com as suas características e objectivos iniciais, o que, a não se verificar, determina a exigência de reembolso imediato da totalidade da dívida, sem prejuízo de outros procedimentos que possa desencadear, de acordo com a situação em apreço e a legislação em vigor. O FCE poderá exigir, também, o reembolso imediato da totalidade da dívida, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, se o mutuário deixar de satisfazer qualquer obrigação ou compromisso decorrente do contrato celebrado.

Despesas — serão por conta do mutuário todos os encargos inerentes à celebração do contrato de empréstimo, assim como todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o FCE haja que efectuar para garantir a boa cobrança de tudo quanto constitua crédito do Estado Português por força da celebração do contrato.

Partindo de tais factos (que não foram objeto de impugnação), o tribunal a quo faz a seguinte apreciação, à qual aderimos e que, a fim de evitar a repetição do já a tal respeito escrito, aqui reproduzimos:

“Pois bem, aquilo que emerge dos extratados despachos e do Regulamento anexo ao Despacho n.º500/99 é que o contrato de empréstimo em execução foi precedido de um procedimento administrativo (porquanto a concessão ou não do empréstimo estava dependente de uma decisão administrativa, não arbitrária, sujeita às regras pré-definidas pela administração pública) e deve a sua concretização a um ato administrativo (consubstanciado, neste concreto caso, na decisão proferida pelo Conselho Diretivo do FCE, em reunião ordinária ou especialmente convocada para o efeito, após obtenção de parecer prévio da Direção-Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais do Ministério das Finanças) e obedeceu, quer na fase que antecedeu a sua aprovação, quer na fase da sua celebração, quer ainda na fase da sua execução, às regras fixadas no dito Regulamento.

A título de exemplo, note-se que no extratado Regulamento regista-se expressamente, no campo intitulado de “acompanhamento e fiscalização” que “constitui obrigação do mutuário prestar informação sobre a actividade da empresa, nas datas de vencimento acordadas para o serviço da dívida, justificando eventuais desvios ocorridos em relação ao plano financeiro previsional de exploração”.

Isto é, o contrato exequendo não constitui um simples contrato de mútuo, mas ao invés um contrato sujeito a determinadas regras fixadas pela própria Administração.

Na realidade, e em ordem a melhor exemplificar a natureza do procedimento administrativo subjacente ao contrato, basta para tanto imaginar que um qualquer candidato via a sua pretensão de aceder àqueles fundos indeferida. Poderia esse mesmo candidato insurgir-se contra essa decisão e, em último caso, pedir a condenação do Estado a conceder-lhe o empréstimo? A resposta afigura-se-nos afirmativa, porquanto o Estado Português, pela assinalada via, obrigou-se a conceder empréstimos aos candidatos que reunissem os critérios que previamente estabeleceu no dito Regulamento. Daí se entender que um qualquer candidato naquela situação poderia, querendo, impugnar administrativamente aquela decisão.

Pela sua relevância, veja-se, na doutrina, a posição MARIA JOÃO ESTORNINHO – in Curso de Direito dos Contratos Públicos, Almedina, Reimpressão 2013, p. 52 e 53 – ao registar que “a posição tradicional da doutrina e da jurisprudência em Portugal ia no sentido de considerar os atos preparatórios de um contrato de direito privado da Administração Pública pura e simplesmente como atos de direito privado e não como atos administrativos, devido ao seu caráter instrumental em relação ao tipo de contrato que preparam. Sérvulo Correia, pelo contrário, ao arrepio dessa doutrina tradicional, defende a natureza administrativa dos atos do procedimento administrativo que conduza à celebração dos contratos de direito privado da Administração Pública”, alertando a citada autora que, embora seja igualmente tradicional o silêncio da lei em relação a esta matéria, “à luz da tendência de pura e simples remissão em bloco de toda a questão de atividade jurídico-privada da administração para o âmbito do direito privado”, a realidade é que “não se pode ignorar o artigo 2.º, n.º4 do Código do Procedimento Administrativo que, de forma inovadora, manda aplicar os princípios gerais da atividade administrativa a toda a atuação administrativa, ainda que de «gestão privada», fazendo-se eco, ainda que de uma forma muito ténue, das vozes que, como vimos a propósito do direito comparado, um pouco por todo o lado se fazem ouvir no sentido da procedimentalização e publicização da atividade jurídico-privada da Administração” – itálico, sublinhado e destacado nosso.

Acrescenta ainda que “no Decreto-Lei n.º55/95, de 29 de março, de forma discreta, quase sub-reptícia, o legislador acaba por causar uma verdadeira revolução nesta matéria de atividade contratual da Administração Pública. Na verdade, neste diploma há uma verdadeira uniformização do regime jurídico aplicável a uma série de contratos tradicionalmente considerados «administrativos» ou de «de direito privado»”, passando-se “a exigir, mesmo nos contratos jurídico-privados da Administração Pública, o cumprimento de uma série de requisitos procedimentais jurídico-administrativos” – itálico, sublinhado e destacado nosso.

Debruçando-se já relativamente à parte processual, sustenta Mário Aroso de Almeida – in O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, revista e atualizada, p. 104 - sobre a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, e que se nos afigura ser a aplicável a este caso, que com este normativo “(…) por impulso do direito comunitário, levaram o nosso ordenamento jurídico a fazer depender a celebração de certos tipos de contratos, por certas entidades (públicas ou equiparadas), da prévia realização de um procedimento especificamente regulado por normas de direito público …” e daí que o “… legislador não quis, (…), estender a jurisdição administrativa a todos os contratos celebrados pela Administração Pública, mas apenas aos tipos contratuais em relação aos quais há leis específicas que submetem a respectiva celebração, por certas entidades (públicas ou equiparadas), à observância de determinados procedimentos pré-contratuais (…)”.

Também José Carlos Vieira de Andrade – in "A Justiça Administrativa”, Almedina, 2014, 13.ª Edição, p. 103 - assinala que “… se atribui à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a interpretação, validade e execução de contratos, mesmo que puramente privados, desde que estejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Por mais rigoroso que se seja quanto à «especificidade» desse procedimento pré-contratual, uma vez mais se está a estender a competência dos tribunais administrativos a litígios que podem referir-se a contratos puramente privados”.

Igualmente M. Esteves de Oliveira e outros - in “Código de Processo dos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Anotados”, vol. I, p. 48 e seguintes – quanto ao entendimento do âmbito da mesma alínea que nela se atribui “(…) aos tribunais administrativos o conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc). (…) pertence à jurisdição administrativa o conhecimento dos litígios relativos à: i) Validade de actos pré-contratuais (ou seja, de actos de celebração) de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; ii) Interpretação, validade e execução dos contratos referidos alínea i). (…) existindo uma lei específica dessas, todos os litígios sobre a validade de actos que hajam sido praticados ou omitidos como precedentes da atribuição ou adjudicação e da celebração de um contrato pertencem sempre à jurisdição administrativa, independentemente de: - Se ter adoptado uma via procedimental pré-contratual ou se ter prescindido dela; - A entidade que os pratica ou omite ser uma entidade de direito público ou de direito privado; - A prática ou omissão de tais actos pré-contratuais ser reportada, pelo seu autor, a regimes (procedimentais ou não) de direito público ou de direito privado (…); - O contrato de que eles são precedentes ser um contrato administrativo ou não” – todos os identificados autores, à exceção da Sra. Professora Dra. Maria João Estorninho, citados no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-12-2009.

Outrossim, e tal como se refere no identificado aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 03-12-2009, “(…) se a Administração estiver obrigada a recorrer a um procedimento administrativo pré-contratual e, em vez disso, recorrer ilegalmente (ou não) a uma forma de pré-contratação privada, as questões que se suscitem sobre as pronúncias que aí profira, sobre os actos que aí pratique - incluindo a questão da falta do procedimento legalmente exigido –, são do foro administrativo, não do foro civil …” e socorrendo-se novamente de todos os referidos autores assinala que “(…) se se trata de um procedimento administrativo, a jurisdição competente para conhecer da interpretação, validade e execução (incluindo a modificação, responsabilidade e extinção) do próprio contrato celebrado na sua sequência – independentemente de ele ser um contrato administrativo ou de direito privado - é a jurisdição administrativa.” – itálico, sublinhado e destacado nosso.

De modo que, aqui chegados e ante tudo quanto se deixou exposto e porque, como bem assinala a embargante, a decisão política do Ministério das Finanças de emprestar dinheiro destinado à manutenção das atividades económicas portuguesas na Guiné-Bissau consubstanciada no referido despacho 500/99 mais não é do que um ato/uma decisão administrativa que teve como parte uma entidade investida de poder público (a APAD / Ministério das Finanças) e que mobilizou recursos financeiros do Estado, sendo que a sua concessão, a sua celebração, a sua execução e acompanhamento durante a sua vigência obedecia, por expressa vontade do Estado, a um conjunto de regras e critérios predefinidos num Regulamento (que o próprio criou para os assinalados efeitos) e porque a decisão a proferir nesta ação implicaria sempre a valoração da atuação do exequente (por se considerar, em sintonia com Maria João Estorninho, que o artigo 2.º, n.º3 do Código do Procedimento Administrativo manda aplicar os princípios gerais da atividade administrativa a toda a atuação administrativa, ainda que de «gestão privada), entende-se, pois, que a ação executiva à qual os presentes autos se encontram apensos é da competência dos tribunais administrativos nos termos da alínea e) do n° 1 do artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”

Insurge-se a Autora/Apelante contra o decidido, apoiando as suas discordâncias nas seguintes ordens de razões:

- a situação em apreço não se integra na al. e) do art. 4º do ETAF, porquanto, não nos encontramos em fase contratual liminar, nem perante a validade e execução de contratos administrativos, nem de quaisquer outros contratos celebrados nos termos de legislação sobre contratação pública, oriundos de pessoas coletivas de direito público ou de outras entidades adjudicantes, mas perante um contrato de mútuo, de natureza civilística, celebrado por uma entidade pública, mas despida da sua veste de “ius imperium”, como resulta do documento intitulado “contrato de empréstimo” e da clausula 12ª do mesmo;

- ao contrário do decidido, não são os procedimentos administrativos que o precedem que definem a natureza do negócio e consequentemente a jurisdição para o decidir;

- ultrapassada a fase adjetiva, encontramo-nos na fase seguinte em que já se encontrava a vigorar um contrato de mútuo, outorgado segundo as regras de direito privado;

- cita ainda o Ac. do tribunal de Conflitos de 26-10-2017, onde se afirma que do contrato anexo ao requerimento, “as partes convencionaram livremente os termos e as condições do contrato sem qualquer imposição legal no que respeita ao respetivo regime substantivo do mesmo, assumindo a relação material controvertida uma natureza jurídico privada.

Passemos à análise dos fundamentos de discordância com o decidido.

1. Se a circunstancia de o contrato sob execução ser de direito privado obsta à atribuição de competência aos tribunais Administrativos e fiscais

Antes de mais, o facto o Despacho Conjunto nº 500/99 – que, por razões de ordem pública, autorizou o Fundo para a Cooperação Económica, a conceder empréstimos aos cidadãos negativamente afetados pelo conflito na Guiné-Bissau – , ter definido que a forma a adotar seria a de “contrato de empréstimo a celebrar entre o Estado Português, representado pelo FCE, na qualidade de mutuante, e o beneficiário, na qualidade de mutuário”, e de o mesmo ser celebrado mediante escritura pública, não lhe atribui, por si só, a qualificação de contrato de direito privado, ou que o mesmo se encontre sujeito, nesta fase, a normas de direito privado.

Com efeito, os diplomas legais ao abrigo do qual este (e outros contratos) foram concedidos, não só sujeitavam a concessão de tais empréstimos a um prévio procedimento administrativo – sujeito a prévia candidatura e a decisão a proferir pelo Conselho Diretivo do FCE, após obtenção de parecer prévio da Direção-Geral dos Assuntos Europeus e Relações internacionais do Ministério das Finanças –, como a sua regulamentação, execução e extinção, se encontravam sujeitos a normas especificas – prevendo um acompanhamento e fiscalização por parte do mutuário durante a sua execução e o reembolso imediato em caso de incumprimento –, afastando-o das normas comuns de direito privado.

 De qualquer modo, atentar-se-á em que a decisão recorrida não baseou a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais na qualificação do contrato de empréstimo como um contrato administrativo. Com efeito, aí se afirma, claramente, que, desde que a Administração esteja obrigada a recorrer a um procedimento administrativo pré-contratual, a jurisdição competente para conhecer da interpretação, validade e execução do contrato celebrado na sua sequência, independentemente de ele ser um contrato de direito administrativo ou de direito privado é a jurisdição administrativa.

Vejamos, então, em que condições um contrato de direito privado se encontra submetido à jurisdição administrativa.

Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e artigo 66º do CPC) – averiguemos se as invocadas normas atribuem a competência para julgar a presente ação aos tribunais administrativos.

Segundo o disposto no artigo 212º, nº3 da Constituição da Republica Portuguesa compete aos tribunais administrativos o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação da Lei nº 4-A/2003, de 19.02, redefinindo os critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, começava por definir a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, reportando-a aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, aproximando-a, assim, da função jurídico-constitucional que lhe é atribuída pelo artigo 212º nº3 da Constituição.

A delimitação substantiva da justiça administrativa então feita por recurso à utilização de uma cláusula geral[1], foi abandonada com a redação dada ao artigo 1º pelo DL nº214-D/2015, de 2 de outubro, optando por remeter a matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal para o artigo 4º do ETAF.

No nº1 do artigo 4º, do ETAF procede-se à enumeração exemplificativa dos litígios sujeitos à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais, indicando nos ns. 2 e 3, situações em que mostra excluída tal competência.

É o seguinte o teor da alínea e), ao abrigo da qual o tribunal recorrido veio a atribuir a competência para o presente conflito ao tribunal administrativo:

1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas a:

(…)

e) Questões relativas à validade dos atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação publica, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

(…)”.

A delimitação da competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos, que resultava das alíneas b), segunda parte, e) e f), do anterior ETAF[2], foi concentrada numa única norma, a atual alínea e).

Nas palavras de Mário Aroso de Almeida, tal como sucedia antes da revisão de 2015, o critério do contrato administrativo (nas cinco categorias elencadas no nº1 do art. 280º do Código dos Contratos Públicos) não é o único critério utilizado pela a. e), para delimitar o âmbito da jurisdição em matéria de contratos: “a alínea continua a estender o âmbito da jurisdição administrativa a quaisquer outros contratos celebrados nos termos da contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Por conseguinte, o âmbito da jurisdição administrativa é mais amplo do que a categoria dos contratos administrativos: o critério do contrato administrativo é um dos critérios adotados pelo artigo 4º, nº1, do ETAF, mas não é o único critério do qual a lei faz depender a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos, pois há um outro critério, o da submissão do contrato a regras de contratação publica. (…) desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam emergir devem ser objeto de uma ação a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais – e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.[3]

Tal autor salienta que a relevância desta solução normativa se encontra fortemente limitada desde o momento em que o CCP optou por qualificar todos os contratos de aquisição e locação de bens móveis e de aquisição de serviços públicos como contratos administrativos, contratos estes que, por não serem, anteriormente, contratos administrativos, mas estarem submetidos a regras de contratação publica, eram o objeto prioritário da aplicação da previsão da al. e) do nº1 do art. 4º do ETAF.

Semelhante interpretação é dada por José Carlos Vieira de Andrade, segundo o qual, a alínea e), tal como confere aos tribunais administrativos competência para julgar os litígios que tenham por objeto a validade de atos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos, também no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito publico ou outras entidades adjudicantes. (…) a legislação referida, em especial o Código dos Contratos Públicos (CPC), ao regular os procedimentos pré-contratuais, também se aplica aos contratos de direito privado celebrados pela administração, bem como alguns contratos celebrados por entidades privadas que sejam entidades adjudicantes[4]”.

Como tal, ainda que o contrato de empréstimo celebrado entre a Agência Portuguesa de Apoio ao Desenvolvimento, e os executados, possa ser considerado como um contrato de direito privado, tal qualificação não constituiu fator de exclusão da competência do tribunal administrativo.

Quanto à solução a que chegou o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 26-10-2017, citado pelo Apelante – respeitante a um contrato de mútuo concedido por uma entidade bancária e uma região autónoma e em que “as partes convencionaram livremente os termos e as condições do contrato sem qualquer imposição legal no que respeita ao respetivo regime substantivo, assumindo a relação material controvertida uma natureza-jurídico privada” – não tem aplicação ao caso em apreço.


*

2. Se a execução judicial do contrato celebrado por entidade administrativa se encontra excluída da competência dos tribunais administrativos

Quanto ao argumento do Apelante de que não nos encontramos perante fase contratual liminar, nem perante a “validade e execução de contratos”, mas perante uma fase posterior, também não colhe.

A fase da “execução dos contratos” tanto abrange a execução voluntária como a execução coerciva da prestação, na sequência de incumprimento do devedor.

Como afirma a tal respeito, Mário Aroso de Almeida, enquadram-se na categoria de do artigo 4º, nº1, al. e) do ETAF e 37º, nº1, al. l), do CPTA, “as pretensões respeitantes ao incumprimento dos contratos cuja apreciação se encontra submetida à jurisdição administrativa. Estas pretensões podem dirigir-se, tanto a exigir o cumprimento do contrato, como a fazer valer a responsabilidade contratual decorrente do seu incumprimento e tento podem ser propostas por contraentes privados, como por contraentes públicos: pelo menos, no âmbito das relações constituídas por contratos que a lei não qualifique como contratos administrativos[5]”.

A Apelação é, assim, de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.                   

                Coimbra, 11 de fevereiro de 2025                                                                                   


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).


[1] Cfr., Jonatas E. M. Machado, “Breves considerações em torno do âmbito da justiça administrativa”, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da F.D.U.C., Coimbra Editora 2005, pág. 86.
[2] Era o seguinte o teor de tais normas:
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;”
[3] Manual de Processo Administrativo”, 5ª ed., 2021, Almedina, pp.174 e 177-178.
[4] A Justiça Administrativa, Lições, 19º ed., 2022, Almedina, pp.109-110.
[5] “Manual de Processo Administrativo, 5ª ed., 2021, Almedina, p. 126.