Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
196/06.8TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SUICÍDIO
TRABALHADOR
NEXO DE CAUSALIDADE
MORTE
ACIDENTE
PENSÃO POR MORTE
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
Data do Acordão: 01/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 100/97, DE 13/09; ARTºS 100º, 142º E 152º DO CÓD. PROC. TRABALHO; ARTºS 69º E 71º DA LEI Nº 32/02, DE 20/12; ARTº 690º-A, AL. B), CPC.
Sumário: I – Do disposto no artº 690º-A, nº 1, al. b), do CPC, resulta que não basta dizer que a matéria de facto se encontra mal julgada, que “aquele” quesito não devia ter obtido a resposta que teve – é necessário que o impugnante diga qual a resposta que, em face dos elementos probatórios, no seu entender, esse quesito devia ter tido, pois que, para além do mais, a admissibilidade da impugnação da matéria de facto não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim e apenas remédio jurídico que se destina a despistar e a corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

II – A morte por suicídio não pode ser caracterizada como acidente e muito menos de trabalho.

III – Se, por um lado, não estão reunidos os pressupostos legais constantes do artº 6º da Lei nº 100/97, de 13/09, designadamente que a morte tenha ocorrido no local de trabalho, por outro, no suicídio a morte não ocorre de modo não intencional ou involuntário.

IV – Porém, o Código do Processo de Trabalho, no caso de haver elementos para presumir uma relação de causalidade entre a morte e o acidente, manda que o Mº Pº organize o processo regulado no seu artº 100º.

V – Além de que a caducidade da pensão por morte do sinistrado nunca é declarada antes do Mº Pº ter possibilidade de averiguar sobre a existência de tal nexo (artºs 142º e 152º do referido código).

VI – Embora o artº 9º, nº 2, da Lei nº 100/97, de 13/09, esteja elaborado para os casos em que ocorre incapacidade para o trabalho, não deixa de ser aplicável, por via analógica, aos casos em que ocorre a morte da vítima do evento infortunístico.

VII – Haverá lugar a reparação quando seja possível estabelecer um nexo de causalidade adequada entre o acidente e a morte do sinistrado por suicídio, não colhendo, nesse caso, o argumento de que o contrato de seguro não cobre o risco de suicídio (a morte ocorrida por suicídio é reparável desde que possa ser atribuída a um acidente caracterizável como de trabalho).

VIII – Nos termos dos artºs 69º e 71º da Lei nº 32/02, de 20/12, não são cumuláveis entre si as prestações emergentes do mesmo facto, desde que respeitantes ao mesmo interesse protegido.

IX – Logo, não sendo cumuláveis as prestações, não podem os beneficiários receber simultaneamente as quantias pagas pela Segurança Social a título de subsídio por morte e a pagar pela responsável a esse mesmo título.

X – O mesmo já não acontece com as pensões de sobrevivência pois que, a esse título, nada têm os beneficiários a receber da responsável pela reparação do acidente, não se colocando a questão da acumulação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A..., viúva, ...., residente na ..... B....e C...., com o patrocínio do MºPº, intentaram a presente acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra D.... Companhia de Seguros, S.A., com sede ... e filial ...., pedindo a condenação da Ré a pagar à primeira € 60 de transportes; € 2.997,60 de despesas de funeral; 2.248,20 de subsídio por morte; o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 2.100, com início a 16 de Março de 2006 e, a cada um dos demais AA., € 1.124,10 de subsídio por morte e a pensão anual e temporária de € 1.080, a partir de 16 de Março de 2006, até perfazerem os 18, 22 ou 25 anos enquanto frequentarem o ensino secundário ou equiparado superior ou sem limite de idade se ficarem afectados de doença que os afecte sensivelmente para o trabalho, montantes acrescidos de juros, vencidos e vincendos.

Alegaram, em síntese, que são esposa e filhos, respectivamente, de E...., o qual pôs termo à vida em 15 de Março de 2006, devido ao quadro depressivo de que passou a padecer em virtude de acidente de trabalho sofrido em 19 de Março de 2005.

Acrescentaram que, não obstante constar da apólice ser de mecânica geral a actividade garantida, o sinistrado nunca desempenhou tal actividade, tendo a Ré efectuado a alteração na apólice de seguro, sem que o mesmo a tivesse autorizado.


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Contestou a Ré, sustentando, no essencial, que, para além de o enforcamento não ter sido causa do acidente de trabalho, o suicídio não é um acidente de trabalho, nem facto integrado num processo causal do dever de indemnizar, antes um acto premeditado da própria vítima.

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O ISS, I.P./C.N.P. veio, ao abrigo do disposto no art.º 1º, nº 2 do Dec.-Lei n.º59/89, de 22 de Fev., reclamar da Ré o reembolso dos montantes de € 9.445,65 pagos aos AA. a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, acrescida de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.

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A Ré contestou esse pedido de reembolso, onde, para além da impugnação do crédito, renovou a defesa apresentada relativamente ao pedido formulado pelos AA..

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Saneado o processo, seleccionados os factos relevantes e instruído o processo, procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo (no decurso do qual o I.S.S., I.P./CNP ampliou o pedido de reembolso para € 12.518,43), tendo a matéria de facto sujeita à base instrutória sido decidida nos termos de fls. 173 a 177.

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II –No normal prosseguimento dos autos veio a ser proferida sentença que, julgando a acção procedente e decidiu condenou a Ré D.... Companhia de Seguros, S.A.:

a) a pagar à A. A....:

1. o capital de remição da pensão anual e vitalícia de dois mil e cem euros (€ 2.100), com início a 16 de Março de 2006;

2. o montante de dois mil duzentos e quarenta e oito euros e vinte cêntimos (€ 2.248,20) a título de subsídio por morte;

3. o montante de dois mil novecentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos (€ 2.997,60) a título de despesas de funeral;

4. o montante de sessenta (€ 60) euros a título de despesas de transporte.

b) a pagar ao A. B....:

1. a pensão anual e temporária, com efeitos desde 16 de Março de 2006, de mil e quatrocentos euros (€ 1.400) até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou sem limite de idade se ficar afectado para o trabalho;

2. o montante de mil cento e vinte e quatro euros e dez cêntimos (€ 1.124,10) a título de subsídio por morte.

c) a pagar ao A. C....:

1. a pensão anual e temporária, com efeitos desde 16 de Março de 2006, de mil e quatrocentos euros (€ 1.400) até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou sem limite de idade se ficar afectado para o trabalho;

2. o montante de mil cento e vinte e quatro euros e dez cêntimos (€ 1.124,10) a título de subsídio por morte.

d) Aos montantes referidos em a), b) e c) acrescem os juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações vencidas, nos termos do art. 135º do C. Processo do Trabalho.

e) a pagar ao I.S.S., I.P./C.N.P. a quantia de doze mil quinhentos e dezoito euros e quarenta e três cêntimos (€ 12.518,43) acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 8 de Maio de 2008 (fls. 119) sobre o montante de € 9.945,65 e desde 23 de Março de 2009 sobre o demais (fls. 169 a 171).


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III – Inconformada veio a ré apelar, alegando e concluindo:

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Responderam os autores alegando em resumo útil:

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

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IVDos factos:

Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

1) E...., nascido a 27 de Outubro de 1970, faleceu em Março de 2006, no estado de casado com a A. A.....

2) A.... nasceu a 12 de Agosto de 1972.

3) C...., nascido a 28 de Setembro de 1998, e B...., nascido a 5 de Março de 2004, encontram-se registados como filhos de E.... e A.....

4) A firma F.... é uma empresa que tem por objecto a pintura em construção civil e colocação de janelas.

5) E.... era sócio-gerente da F...., exercendo, predominantemente, funções de pintor da construção civil.

6) Pelas funções que nela desempenhava E.... recebia 7.000 € de remuneração anual (500 €x 14).

7) No dia 19 de Março de 2005 E...., quando queimava lixo tóxico nas instalações da empresa F...., sitas ...., foi atingido por chamas provenientes de uma lata com materiais inflamáveis que explodiu.

8) Essas chamas provocaram-lhe queimaduras dos 2º e 3º graus, com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical inferior, tórax, dorso abdómen, coxa esquerda, num total de aproximadamente de 15% da superfície corporal.

9) Por causa das lesões então sofridas, E.... esteve internado na unidade de queimados dos HUC, durante várias semanas.

10) As queimaduras sofridas em 19 de Março de 2005 tiveram uma forte influência negativa em E...., na sua auto-imagem e na sua avaliação do desempenho pessoal,

11) (…) situação que manifestava no acompanhamento familiar dos filhos, evitando todas as situações de exposição corporal e mesmo da sua intimidade conjugal.

12) A nível profissional deixou de assumir responsabilidades, passou a evitar algumas tarefas, abandonou a vontade de progredir profissional e socialmente,

13) (…) chorava com frequência, passou a não cuidar dos filhos, isolava-se, não falava e passava muito tempo a olhar para as cicatrizes resultantes do acidente tecendo considerações e apreciações negativas sobre si próprio.

14) Por causa desse seu quadro depressivo E.... recebeu apoio e acompanhamento psiquiátrico por parte dos serviços clínicos da seguradora.

15) Em data anterior a 19 de Março de 2005, E.... apresentou um quadro depressivo e foi medicado com benzodiazepinas.

16) A Ré prestou apoio e acompanhamento psiquiátrico a E...., com a 1ª consulta ocorrida a 29 de Abril de 2005.

17) E.... iniciou tratamento psico-farmacológico com anti-depressivos e ansiolíticos prescritos pelo psiquiatra Dr. H......

18) Como resultado da terapia instituída, não obstante manter uma atitude depressiva, E.... passou a mostrar melhor controlo emocional, menos tendência ao isolamento, melhor relacionamento familiar e mais estabilidade pessoal.

19) O tratamento psiquiátrico foi interrompido em Outubro de 2005 por decisão do psiquiatra que o acompanhava que entendeu que o sinistrado tinha melhorado.

20) Em consequência do entendimento do médico psiquiatra da Ré seguradora, no sentido da melhoria do seu quadro clínico face ao acompanhamento por parte daquela, foi atribuída alta a E...., na valência de psiquiatria, em 28 de Outubro de 2005.

21) A partir dessa data E.... e os seus familiares não mais reclamaram assistência clínica à Ré.

22) Nessa data (2005.10.28), E.... mantinha sintomas depressivos ainda que moderados e factores que o predispunham ao risco de recaída - lesão física, alteração da imagem pessoal, perda de competências pessoais.

23) Após tal decisão de cessação de tratamento psiquiátrico, E.... sofreu gradual e progressiva deterioração do seu estado, voltando a exibir todos os sintomas que anteriormente levaram à constatação de necessidade de acompanhamento psiquiátrico como sejam isolamento, negativismo, afastamento da actividade profissional, tristeza, pessimismo e apatia.

24) No dia 11 de Março de 2006 E.... acabou por consultar o Dr. I.... que depois de se inteirar do seu estado depressivo grave lhe prescreveu tratamento farmacológico com os anti-depressivos e ansiolíticos anteriormente receitados pelo Dr. H.....

25) No dia 15 de Março de 2006, após ter deixado os seus empregados numa obra próxima, E.... regressou a casa e, por enforcamento, pôs termo à sua vida.

26) E.... pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005.

27) Com a ressalva do referido em 19 e 20, durante o decurso do tempo entre 19 de Março de 2005 e o suicídio, E... estava medicado com os métodos científicos adequados à cura, tomando Trazadona nas doses apropriadas.

28) Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 202005988, F... havia transferido para a Ré D.... Companhia de Seguros G...., SA, a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho que vitimassem E...., mediante o vencimento mensal deste de € 500 (x14).

29) Devido ao falecimento de E.... o ISS-I.P./CNP pagou aos AA. a título de pensões de sobrevivência o montante de € 9.783,66 (à A. A.... € 6.521,70, € 1.630,98 ao filho C... e € 1.630,98 ao filho B....).

30) Devido ao falecimento de E.... o ISS-I.P./CNP pagou aos AA. a título de subsídios por morte o montante de € 2.734,77 (à A. A.... € 1.349,89, € 692,44 ao filho C... e € 692,44 ao filho B....).

31) O cadáver de E.... foi autopsiado no GML da Figueira da Foz e trasladado para o cemitério do .......

32) Foi a A. A.... que suportou as despesas do funeral.

33) Em deslocações ao Tribunal a A. A.... gastou € 60 (4x15).


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V - Do direito:

Conforme decorre das conclusões da alegação dos recorrentes que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso as questões que importa dilucidar e resolver consistem em saber:

1 Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto decidindo-se previamente se esta impugnação deve ser admitida

2. Saber se, para além da já atribuída, há lugar a outra reparação, ou seja, se os autores, beneficiários do falecido, têm direito à pensão e às demais quantias a que a ré foi condenada a pagar-lhes e, no caso afirmativo, se esta está obrigada a proceder ao seu pagamento.

3. Saber se os autores apenas têm direito à diferença entre os montantes recebidos do ISS e os que lhe são devidos por efeito do acidente.

1. Da alteração da matéria de facto:

Esta questão é desenvolvida pela recorrente no ponto VII das suas alegações (“reapreciação da matéria de facto em 2ª instância”), em cujo ponto 19, parte final, escreveu “face ao exposto, deverão ser alterados os factos assentes constantes dos pontos 10, 11, 12, 13 e 14, face aquele as nítidas contradições e a errónea apreciação do mérito do documento, em face dos depoimentos testemunhais presenciais dos factos”; e no ponto 20 escreve “erro flagrante é o que consta do facto referido no ponto 19 dos factos assentes (..) por conseguinte, face ao depoimento do Drº H...., nunca a resposta ao quesito que deu origem ao ponto 19 da matéria de facto assente, poderia ser como foi (...) é errada a apreciação factual vertida nos pontos 18, 19 e 20 da matéria de facto assente, ex vi pontos, 10, 11, 12, 13 e 14 da matéria dos factos assentes

E nos pontos 35, 36 e 48 das conclusões das alegações escreveu “deverão ser alterados os factos assentes constantes dos pontos 10, 11, 12, 13 e 14, face às nítidas contradições e a errónea apreciação do mérito do documento, em face dos depoimentos testemunhais presenciais dos factos (…) face ao depoimento do Dr. H...., nunca a resposta ao quesito que deu origem ao ponto 19 da matéria assente, poderia ser naqueles termos (…)” e “a matéria assente constante do ponto 24 deverá ser modificado retirando o adjectivo "grave"”.

Em face do modo como a recorrente estruturou a impugnação da matéria de facto que, de forma sucinta, atrás se deixou enunciada, tendo presente que a recorrente, em face da prova produzida, discorda do estabelecimento de um nexo de causalidade entre o acidente e a morte do sinistrado por suicídio, o relator, ponderando ainda que, no alinhamento dos factualidade assente, o tribunal recorrido intercalou factos já assentes com factos que resultaram da resposta aos quesitos, proferiu o seguinte despacho: “A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1ª instância.

Pretende que os pontos 10, 11, 12, 13 e 14 sejam alterados e que a resposta ao quesito que deu origem ao o ponto 19 da matéria de facto assente não podia ser aquela que lhe foi dada.

Em primeiro lugar, depois de lidas as alegações da recorrente, fica o relator com algumas dúvidas sobre se os pontos 10 a 14 se referem à numeração dos factos tal como consta da sentença ou se esses números se referem aos quesitos alinhados na base instrutória.

Em segundo lugar, embora a recorrente indique os pontos de facto que entende terem sido mal julgados e os concretos meios probatórios que, também da sua óptica, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, limita-se vaga ou genericamente a dizer que a matéria impugnada não devia ter sido decidida do modo como o foi, não sugerindo ou dizendo se tal matéria devia ter sido considerada não provada ou provada em parte, ou seja, omite o sentido que, na sua opinião, a decisão sobre a matéria de facto em causa devia ter tido.

Assim, tendo presente o que dispõe o artigo 690-A do Cód. Proc. Civil notifique a recorrente para esclarecer as dúvidas que se deixaram assinaladas”.

A recorrente nada disse, continuando a subsistir as dúvidas subjacentes à prolação do dito despacho.

Dispõe o artigo 690-A nº 1 alínea b) do Cód. Proc. Civil que “quando se impugne a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Deste preceito resulta, no nosso entender, que não basta dizer que a matéria de facto se encontra mal julgada, que aquele quesito não devia ter obtido a resposta que teve.

É necessário que o impugnante diga qual a resposta que, em face dos elementos probatórios, no seu entender, determinado quesito devia ter tido pois que, para além do mais, a admissibilidade da impugnação da matéria de facto não pode nem deve constituir um segundo julgamento do objecto do processo[1], como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, a indicar expressamente pelo recorrente.

Ora, a recorrente, apesar de ter sido notificada para dar cumprimento ao disposto no citado normativo nada disse, razão pela qual se considera não ter dado cumprimento ao preceituado no referido normativo o que implica a rejeição da impugnação no que tange à reapreciação a matéria de facto, cingindo-se a questão a decidir à questão de direito, o que se decide.

2. Da reparação em consequência da morte do sinistrado por suicídio:

Por todos é aceite que o sinistrado se suicidou por enforcamento.

A ré, na defesa da tese de que não há lugar à reparabilidade em consequência da morte do sinistrado, diz que o suicídio não é um acidente.

E tem inteira razão. A morte por suicídio não pode ser caracterizada como acidente e muito menos como de trabalho.

Se, por um lado, não estão reunidos os pressupostos legais constantes do artigo 6º da Lei 100/97 de 13/09, designadamente, que a morte tenha ocorrido no local de trabalho, por outro, no suicídio a morte não ocorre de modo não intencional ou involuntário.

Conforme se dá conta em nota de rodapé, o acidente a que se referem os presentes autos consistiu em, no dia 19.03.05, a vítima[2] ter sido apanhado por uma explosão de materiais inflamáveis, da qual lhe resultaram as lesões descritas na documentação clínica junta aos autos[3].

Na tentativa de conciliação, quer a recorrente quer os recorridos aceitaram a existência e a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões físicas verificadas e bem assim o coeficiente de incapacidade e a data da alta que seguradora havia atribuído.

Por isso mesmo conciliaram-se tendo, inclusivamente, os ora recorridos recebido o capital da pensão obrigatoriamente remida.

Não há, assim, que falar em descaracterização do acidente, sendo despropositado chamar colação o que dispõem as alíneas a) ou c) do nº 1 do artigo 7º da Lei 100/97 de 13/09.

A questão a decidir, conforme referem os recorridos na sua resposta, tem a ver com a possibilidade do estabelecimento de um nexo de causalidade – adequada - entre o acidente e a morte por suicídio do sinistrado.

Como se sabe, e é meridiadamente compreensível, as consequências de um acidente nem sempre são perceptíveis ou se revelam de forma imediata.

A par das lesões e sequelas imediatamente verificáveis muitas outras apenas podem vir a revelar-se a médio e até a longo prazo.

Daí que o Cód. Proc. Trabalho, no caso de haver elementos para presumir uma relação de causalidade entre a morte e o acidente, mande que o Mº Pº organize o processo regulado no seu artigo 100º; e também a caducidade da pensão por morte do sinistrado nunca é declarada antes do MºPº ter possibilidade de averiguar sobre a existência de tal nexo (artigos 142º e 152º do referido código).

No que à causalidade concerne o nosso ordenamento jurídico consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa[4], sendo necessário demonstrar, no caso, que se não tivesse sido o acidente e as lesões que imediatamente lhe advieram a morte do sinistrado não teria ocorrido[5].

Conforme se lê no AC. STJ de 28-03-2007, procº 06S3956 “inwww.dgsi.pt/jstj, o artº 563º do Cód.Civil “consagra a vertente mais ampla da causalidade adequada, ou seja, a sua formulação negativa, não exigindo a exclusividade do facto condicionante do dano.

Neste contexto, é configurável a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, do mesmo passo que se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeia um outro que suscite directamente o dano.

Apesar disso, o facto condicionante já não deve ser havido como causa adequada do efeito danoso, sempre que o mesmo, pela sua natureza, se mostre de todo inadequado para a sua produção. É o que sucede quando o dano só tenha ocorrido por virtude circunstâncias anómalas ou excepcionais de todo imprevisíveis no contexto do trajecto causal”.

E a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu a este, pressupondo que o facto cuja causalidade se discute tenha sido uma das condições do dano, ou seja, que esse facto integre o processo causal que conduziu ao dano.

Ora, no que toca ao estabelecimento do nexo causal entre o acidente e a morte do sinistrado, a matéria de facto dada por assente é, segundo cremos, clara e isenta de dúvidas.

Na verdade, encontra-se provado (ponto 26 da matéria de facto provada) que o “ E.... pôs termo à própria vida em consequência do quadro depressivo resultante do acidente sofrido a 19.03.2005

Mais claro não se podia ser; sublinhando-se que a recorrente na impugnação da decisão da matéria de facto nem sequer pôs em causa a matéria constante deste ponto que corresponde à matéria do quesito 11º da base instrutória.

O facto condicionante traduzido nas queimaduras no corpo provocadas pela explosão desencadeou, por seu turno, outro facto condicionante consubstanciado no desenvolvimento de um quadro depressivo (narrado, mormente, nos pontos 10º a 14º da matéria de facto provada) que levou a que o sinistrado pusesse termo à vida por enforcamento.

E a natureza dos assinalados factos condicionantes não se mostra, a nosso ver, de todo inadequada para a produção do dano, ou seja para a morte do sinistrado pois que esta não ocorreu em virtude de circunstâncias anómalas ou excepcionais de todo imprevisíveis ou improváveis.

Argumentar-se-á, conforme argumenta a recorrente, que anteriormente ao acidente já o sinistrado tinha apresentado um quadro depressivo (ponto 15 da matéria de facto), o que não terá sido levado em devida conta pelo tribunal “a quo”.

Em primeiro lugar, como acima ficou dito, a causalidade adequada a sua formulação negativa não exige a exclusividade do facto condicionante do dano.

Em segundo lugar há que atentar nas especificidades do regime legal sobre acidentes de trabalho.

Assim, haverá que ter em conta o disposto no nº 2 do atº 9º da Lei 100/97 de 13/09 segundo o qual “quando a lesão ou doença consecutiva ao acidente for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente, a incapacidade avaliar-se-á como tudo dele resultasse, a não ser que pela lesão ou doença anterior o sinistrado já esteja a receber pensão ou tenha recebido um capital nos termos da alínea d) do artigo 17º”.

Embora o citado preceito esteja elaborado para os casos em que ocorre incapacidade para o trabalho, não deixa de ser aplicável, por via analógica (artigo 10º do Cód. Civil), aos casos em que ocorre a morte da vítima do evento infortunístico.

Aplicando o regime previsto no citado normativo logo se alcança ser irrelevante para o caso ter o falecido padecido anteriormente ao acidente de uma patologia depressiva pois toda a avaliação deve ser feita como se toda essa patologia tivesse resultado do acidente.

Partindo da ideia que o suicídio é um acto intencional do suicida ou é cometido estando este privado do uso da razão (o que não dá lugar à reparação por o acidente se encontrar descaracterizado – alíneas a)e c) do artigo 7º da Lei 100/97) alega a recorrente que, também por maioria de razão, não haverá lugar a reparação quando a acção do sinistrado intervenha intencionalmente como causa de agravamento das consequências de um acidente de trabalho.

O argumento impressiona.

Todavia, como acima ficou ditou não se trata aqui de uma questão de descaracterização mas sim de uma questão de nexo de causalidade entre o acidente e a ocorrência da morte e, no caso, essa causalidade como acima ficou dito encontra-se demonstrada.

Não se contesta que o acto de suicídio radica num comportamento voluntário e intencional do suicida.

No entanto esta vontade encontra-se, no caso em análise, condicionada pelo quadro reactivo/ depressivo originado pelo acidente e pelas lesões físicas dele resultantes que limitou a auto determinação e a racionalidade do sinistrado, que não se suicidaria se não se tivesse verificado o acidente.

Reconhecendo o melindre e o ineditismo da questão, pelas razões atrás expostas, ressalvando sempre melhor e mais autorizada opinião, entendemos que a morte do sinistrado dá lugar à reparação pois a razão do suicídio teve a sua origem ou foi consequência do acidente.

Em suma, há lugar a reparação por ser possível estabelecer um nexo de causalidade adequada entre o acidente e a morte do sinistrado por suicídio, não colhendo o argumento da recorrente quando afirma que o contrato de seguro não cobre o risco de suicídio.

Com efeito, nas conclusões 17ª a 23ª a recorrente esgrime vários argumentos no sentido de demonstrar que no âmbito dos acidentes de trabalho, o risco de morte provocada (enforcamento) não é um risco segurável pois não é concreto, não é fortuito e não é lícito, sendo insusceptível, como acto premeditado inerente à própria vítima, de estar coberto pelos riscos normais de acidentes de trabalho.

Nos termos do nº 1 do artigo 2º da a apólice uniforme para trabalhadores por conta de outrem (Norma 12/99-R de 30/11e posteriores alterações), a seguradora “nos termos da legislação aplicável e desta apólice garante a responsabilidade do tomador de seguro pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho (....)”, ou seja, o contrato de seguro cobre as prestações por morte desde que esta resulte ou tenha causa num acidente que deva ser caracterizado como de trabalho e, portanto, indemnizável como é o caso dos autos.

Obviamente que o contrato de seguro não cobre o risco de suicídio, melhor fosse.

Mas a morte ocorrida por suicídio já é reparável desde que possa ser atribuída, como o é no caso, a um acidente caracterizável como de trabalho.

3. Da diferença entre os montantes recebidos do ISS e os que lhe são devidos aos autores por efeito do acidente:

Encontra-se provado (pontos 29 e 30) que devido ao falecimento do E.... o ISS-I.P./CNP pagou aos AA a título de pensões de sobrevivência o montante global de € 9.783,66 (sendo à € 6.521,70 à A...., € 1.630,98 ao filho C.... e € 1.630,98 ao filho B....) e a título de subsídios por morte o montante global de € 2.734,77 (sendo € 1.349,89 à A...., € 692,44 ao filho C.... e € 692,44 ao filho B....).

Na sentença recorrida a ré foi condenada a pagar ao I.S.S., I.P./C.N.P. a quantia de doze mil quinhentos e dezoito euros e quarenta e três cêntimos (€ 12.518,43) acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 8 de Maio de 2008 (fls. 119) sobre o montante de € 9.945,65 e desde 23 de Março de 2009 sobre o demais, justificando-se esta condenação do seguinte modo: “estatui-se no artigo 66º, da Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto, que "no caso de concorrência, pelo mesmo facto de direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder".

Assim, assiste ao I.S.S., I.P./C.N.P. o direito ao recebimento dos valores pagos aos AA. no montante global € 12.518,43”.<

De acordo com os artigos 3º, 4º e 5º do Dec. Lei 322/90 de 18/10 (diploma que define e regulamenta a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social) “A protecção por morte dos beneficiários activos ou pensionistas é realizada mediante a atribuição das prestações pecuniárias denominadas pensões de sobrevivência e subsídio por morte; as pensões de sobrevivência são prestações pecuniárias que têm por objectivo compensar os familiares de beneficiário da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte deste; o subsídio por morte destina-se a compensar o acréscimo dos encargos decorrentes da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar a reorganização da vida familiar; as pensões de sobrevivência são de concessão continuada e o subsídio por morte é de concessão única”.

Nos termos do disposto no artº 69º da Lei 32/02 de 20/12[6]salvo disposição legal em contrário, não são cumuláveis[7] entre si as prestações emergentes do mesmo facto, desde que respeitantes ao mesmo interesse protegido”.

E o artº 71º do mesmo diploma prescreve que “no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”.

Não sendo cumuláveis as prestações, não podem os beneficiários receber simultaneamente as quantias pagas pela Segurança Social a título de subsídio por morte e a pagar pela responsável a esse mesmo título.

O mesmo já não acontece com as pensões de sobrevivência pois que, a esse título, nada têm os beneficiários a receber da responsável pela reparação do acidente não se colocando a questão da acumulação.

Assim, na quantia a pagar pela responsável ao ISS a título de reembolso, haverá que descontar o já pago por aquele ISS aos beneficiários a título de subsídio por morte, assim se dando cumprimento ao disposto no acima citado artigo 69º.


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Embora não suscitada nas alegações outra questão se suscita, questão esta que o tribunal deverá tomar conhecimento dado estar-se perante um processo onde se discutem direitos indisponíveis.

Tal questão refere-se à possibilidade dos beneficiários receberem por duas vezes o capital de remição.

Conforme se dá conta na nota 1) em rodapé os beneficiários, em razão do acidente dos autos, receberam já a quantia de € 9.230,71 referente ao capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 566,44.

Como agora a A. A.... irá receber o capital de remição da pensão anual e vitalícia de dois mil e cem euros (€ 2.100), é evidente que existe uma duplicação no pagamento do capital de remição.

Por isso, ao pagamento do novo capital de remição haverá que descontar o já recebido.


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VI Termos em que se delibera julgar a apelação apenas parcialmente procedente em função do que se decide que no reembolso a efectuar ao ISS seja descontado o já recebido deste pelos beneficiários a título de subsídio por morte e que no pagamento do capital de remição seja descontado o já pago anteriormente a esse título, no mais se confirmando a sentença impugnada.

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Custas pela apelante de acordo com a sucumbência.


[1] Isso mesmo resulta do preâmbulo do DL 39/95 de 15/02.
[2] Que, posteriormente, em Março de 2007, veio a pôr termo à vida por enforcamento.
[3] Queimadura dos 2º e 3º graus com envolvimento da face, couro cabeludo, região cervical inferior, tórax, dorso abdómen, coxa esquerda, num total aproximadamente de15% da superfície corporal.
[4] O artº 563º do Cód. Civil segundo P. de Lima e A. Varela “in” Cód. Civil anotado, Vol. I, 4º edição, págº 579 “ a fórmula usada no artº 563º deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como que quem diz adequada desse efeito”.
[5]A averiguação no nexo causal, conquanto se ponha ex post do evento lesivo, deve demandar ao julgador a efectivação de um juízo de prognose, embora póstuma” – Ac STJ de 21/06/2007, procº 07S534 “in” www.dgsi.pt/jstj
[6] Bases Gerais da Segurança Social em vigor à data do acidente, revogada pela Lei nº 4/2007 de 16/01.
[7] Sublinhado nosso