Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/13.0 TBMMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CITAÇÃO EDITAL
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - MONTEMOR-O-VELHO - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 225.º E 236.º DO NCPC
Sumário: I. Momento de inquestionável importância na vida do processo pelos efeitos que lhe estão associados, a lei privilegia claramente a citação pessoal, só estando prevista a citação edital “quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta”, conforme resulta das disposições combinadas dos artigos 225.º e 236.º do nCPC.

II. Prevendo embora a lei que a realização de diligências tendentes a apurar do paradeiro do citando junto das entidades policiais tenha lugar apenas quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital (n.º 1 do art.º 236.º), a exigência legal de que esta tenha lugar apenas quando se revelar impossível a citação pessoal, impõe, ainda que como medida de última ratio, que se não opte por tal modalidade de citação, de duvidosa eficácia, sem se esgotar este último recurso.

III. Tal é decorrência, em última análise, do imperativo constitucional do respeito pelo direito de defesa consagrado no art.º 20.º da nossa lei fundamental.

Decisão Texto Integral:
Recurso próprio, recebido no modo e com o efeito devidos, nada obstando a que seja proferida decisão de mérito.

Atenta a simplicidade da questão suscitada nos autos, passo a proferir decisão sumária, como permite o art.º 656.º do CPC.

Notifique.

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I. Relatório

A..., solteiro, residente em (...) , Vila Nova de Foz Coa, instaurou contra B... , que indicou como residente em (...) , Montemor-o-Velho, e outro, acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação dos RR no pagamento da quantia de €9300,00 a título de rendas vencidas, €4650,00 de indemnização correspondente a 50% do montante em dívida e juros moratórios à taxa supletiva legal vencidos e vincendos.

Em fundamento alegou, em síntese útil, ter celebrado com a 1.ª ré na qualidade de arrendatária contrato de locação tendo por objecto o 1.º andar do prédio sito em (...) , concelho de Montemor-o-Velho, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Meãs sob o artigo 778, nos termos do qual se obrigou a proporcionar àquela o gozo do referido imóvel contra o pagamento da renda mensal de €425,00, tendo o 2.º Réu intervindo na qualidade de fiador.

Mais alegou que a renda fixada veio a sofrer actualização aquando da renovação do contrato e com efeitos a partir de Janeiro de 2008, sendo que nenhum dos RR procedeu a pagamento das rendas que se venceram entre Janeiro de 2010 e Agosto de 2011, último mês em que a 1.ª ré se manteve no locado, e que são assim devidas.

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Tentada a citação da ré para a morada indicada por via postal, frustrou-se a mesma, tendo a carta sido devolvida com a menção de “Não tem caixa de correio”.

Notificado o autor, requereu fossem consultadas as bases de dados disponíveis, em ordem a apurar do paradeiro da ré.

 Pesquisada a base de dados da segurança social e tendo sido apurada uma morada em (...) , foi tentada a citação pessoal, tendo a Sr.ª agente de execução informado que a citanda já ali não residia nem trabalhava há mais de 1 ano, segundo informação que colhera nos correios (cfr. fls. 27 dos autos), na sequência do que veio a ser ordenada a citação edital nos termos do despacho exarado a fls. 31.

Afixados os editais e publicitado o anúncio em conformidade com o disposto no art.º 248.º do CPC em vigor à data da propositura da acção, veio a ré, no prazo de que dispunha para contestar, arguir a nulidade da citação, por uso indevido da citação edital, em conformidade com os artigos 188.º, n.º 1, al. c) e art.º 191.º, n.º 1 do nCPC, porquanto, segundo alegou, não foram esgotadas as diligências previstas na lei e possíveis de realizar tendo em vista apurar da sua actual residência, tanto mais que a mesma constava dos autos que identificou, pendentes no mesmo Tribunal, sendo conhecida da GNR de Montemor-o-Velho, que não deixaria de prestar tal informação, caso a mesma lhe tivesse sido solicitada.

Apreciando o requerido, foi pela Mm.ª juíza proferido o seguinte despacho (que se transcreve):

“Fls. 69 e segs.:

Compulsados os autos resulta que na sequência da devolução da carta para citação da ré B... , foi por despacho de fls. 29 e por despacho de fls. 52 determinado que se procedesse a pesquisas nas bases de dados disponíveis com vista a apurar do paradeiro da ré, sendo que, endereçadas cartas para citação nas moradas localizadas na sequência dessas pesquisas, não se logrou a sua citação pessoal, por não residir a mesma nessas moradas.

O facto de a ré ter tido outro processo (executivo) que pendeu nesta instância local, onde, como pela mesma referido, é conhecida a sua actual residência, não implica, salvo o devido respeito, que o juiz conheça necessariamente tal facto, ou tenha que o conhecer, tanto mais que tal processo executivo nenhuma conexão terá com os presentes autos, e nenhuma morada no estrangeiro foi pesquisada na sequência dos despachos oportunamente proferidos.

É certo que antes da prolação do despacho de fls. 58, que determinou que se procedesse à citação edital da ré, não foi solicitado ao OPC informação sobre o seu paradeiro; mas o art.º 236º, nº 1 do CPC, não impõe obrigatoriamente, mas apenas na situação aí referida.

Como quer que seja, certo é que é ora conhecida a morada da ré.

Assim, atenta a função e efeitos da citação, face ao ora requerido e à falta de pronúncia da parte contrária, tendo ainda em consideração o que se documenta nos autos, determino que se repita a citação da ré, nos termos pela mesma ora requeridos, ou seja, nos termos do nº 5 do art.º 225º do CPC.

Notifique”.
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Inconformado, apelou o autor e, tendo apresentado doutas alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

1-ª- Os fundamentos da decisão levariam necessariamente a considerar que a citação edital efectuada não é nula e que é falha de qualquer fundamento a determinação da citação da ré B... nos termos pela mesma requeridos, ou seja, nos termos do nº 5 do art.º 225.º do CPC.

2.ª- Determinou o despacho recorrido, apelando ao facto de a morada da ré ser agora -após comunicação pelo seu mandatário entretanto constituído- conhecida, “à função e efeitos da citação” e “à falta de pronúncia da parte contrária”, que se repetisse a citação da ré B... nos termos pela mesma requeridos, ou seja, nos termos do n.º 5 do art.º 225.º.

3.ª- O que se verifica é a patente contradição entre os fundamentos e a decisão, geradora de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, devendo em consequência a Mm.ª juíza “a quo” reparar a decisão, suprindo tal nulidade, decidindo ao invés que a citação edital efectuada não é nula, mas válida e de pleno efeito e dar sem efeito a determinação de repetição da ré B... nos termos pela mesma requeridos, ou seja, nos termos do n.º 5 do art.º 225.º; e se não o fizer deverão V.ªs Ex.ªs dar por assente a apontada nulidade (…), revogando o despacho recorrido e substituindo-o por decisão que julgue que a citação edital efectuada não é nula, mas válida e de pleno efeito, dando sem efeito a determinação de repetição da citação da ré nos termos por esta requeridos.

4.ª- O que se documenta nos autos é que a citação postal foi efectuada na morada da ré indicada na petição inicial e frustrou-se, tendo nessa sequência sido pesquisadas as bases de dados da segurança social e da administração tributária e sido dirigida a citação para a morada assim encontrada, a qual veio também a frustrar-se, na sequência do que foi designada agente de execução para proceder à citação por contacto pessoal, a qual também se veio a frustrar, e nessa sequência foi requerida a citação postal nas moradas que as bases de dados da administração tributária e do IMTT viessem a revelar e, em caso de frustração destas, se procedesse então à citação edital da ré, o que foi determinado pro despacho de 11/3/2014 e efectuada por editais afixados em 7/11/2014.

5.ª Foram cumpridas as formalidades com vista à citação da ré B... , sendo que a obtenção de informação sobre o paradeiro do citando através de autoridade policial depende de o juiz o considerar absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital, nos termos do art.º 236-º, n.º 1.

6.ª- Não é o facto da citanda ser parte noutro processo pendente no mesmo tribunal que torna a sua morada conhecida no processo ou do juiz, tanto mais que o tal processo nenhuma conexão tem com os presentes.

7.º- Ao decidir como decidiu, a Mm.ª juíza “a quo” incorreu em erro de julgamento por violação das normas legais do art.º 236.º, n.º 1 do CPC, já que a citação edital efectuada é plenamente válida e eficaz, pelo que não determinava que se repetisse a citação da ré nos termos pela mesma requeridos, ou seja, nos termos do n.º 5 do art.º 255.º”.

Com tais fundamentos requer que, na procedência do recurso, seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que jugue que a citação edital efectuada é válida e de pleno efeito, dando sem efeito a determinada repetição da citação da ré B... nos termos por esta requeridos.

A apelada não contra alegou.

A Mm.º juíza pronunciou-se sobre a nulidade arguida, concluindo pela sua inexistência.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões suscitadas pelo apelante são as seguintes:
i. Da nulidade do despacho recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão;
ii. Do erro de interpretação e aplicação do disposto no 236.º, n.º 1 do CPC.
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II. Fundamentação
da nulidade do despacho recorrido
Interessando à decisão os factos tal como os deixámos relatados em I., importa antes de mais indagar se o despacho recorrido padece do vício da nulidade que lhe é assacado.
Nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, é nula a sentença -e também os despachos, estes por força da remissão do n.º 3 do art.º 613.º- quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, o que pressupõe um vício na construção lógico-jurídica da decisão, de modo que os fundamentos apontam num sentido e o juiz decide em sentido contrário ou, pelo menos, diferente.
No caso em apreço, a arguente apelada B... arguiu a nulidade do despacho que determinou a sua citação edital com um duplo fundamento que, afinal, se reconduz a um único: não foram esgotadas as diligências tendentes a apurar o seu actual paradeiro, tanto mais que o mesmo era conhecido do Tribunal, no qual pendia contra si processo executivo e onde constava o seu endereço, nem foi pedida informação à entidade policial, sendo certo que aqui era conhecido o seu domicílio.
Na apreciação do requerido reconhece-se ter a Mm.ª juíza refutado os referidos argumentos, tendo explicitado a propósito que a circunstância da morada constar de um processo pendente no Tribunal não faz pressupor que a mesma seja conhecida do juiz noutro processo, acrescentando que a lei não impõe a consulta da entidade policial, salvo na situação contemplada no art.º 236.º. E tendo embora recusado os argumentos invocados pela parte arguente, na ponderação de que era então já conhecido nos autos o paradeiro da ré ausente, a ausência de pronúncia -leia-se oposição- por banda da parte contrária, e as finalidades e efeitos da citação, acabou a Mm.ª juíza por ordenar a repetição do acto, em conformidade com o que pela ré havia sido requerido.
Do que se deixou relatado resulta que, não tendo embora aceite os fundamentos de nulidade invocados pela arguente, a Mm.ª juíza alicerçou o deferimento da pretensão noutros, destacando as finalidades e efeitos da citação e a circunstância de ser então conhecido o endereço da ré, privilegiando a segurança da citação pessoal em detrimento da incerteza da citação edital, não se surpreendendo assim qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão. Pode questionar-se, conforme faz o apelante, a valia dos argumentos expendidos na decisão, segunda questão submetida à apreciação deste tribunal, mas tal não contende com a sua validade formal, termos em que se julga improcedente a arguida nulidade.
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Da errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 236.º, n.º 1 do CPC
A citação, di-lo a lei, é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (cf. art.º 219.º do nCPC, sucedendo sem alterações ao n.º 1 do art.º 228.º do diploma cessante).
Momento de inquestionável importância na vida do processo pelos efeitos que lhe estão associados, a lei privilegia claramente a citação pessoal, só estando prevista a citação edital “quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta”, conforme resulta das disposições combinadas dos artigos 225.º e 236.º do nCPC.
Associando a lei gravosa cominação à falta ou nulidade da citação, importa contudo distinguir claramente entre uma e outra, tratando-se de situações distintas, o que a lei reconhece, associando-lhe diferentes regimes.
A falta de citação prevista no art.º 188.º é certamente diferente da nulidade da citação, que deriva da inobservância, aquando da sua realização, das formalidades prescritas na lei, conforme prevê o art.º 191.º. E enquanto a primeira acarreta a nulidade de todo o processado nos termos prevenidos na al. a) do art.º 187.º, salvando-se apenas a petição inicial, no caso da citação ser nula a arguição só será atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado, consoante estatui o n.º 4 do art.º 191.º.
No caso em apreço, tendo a ré invocado o emprego indevido da citação edital, a situação configurada é a de falta de citação prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 198.º, a qual, enquanto não deva considerar-se sanada, poderá ser arguida a todo o tempo (cf. n.º 2 do art.º 198.º).
Afigurando-se que alguma razão assiste ao apelante quando defende que a falta de oposição ao requerido e o apelo aos efeitos e finalidades da citação não são fundamento bastante para ordenar a repetição do acto -o que, em todo o caso, pressupõe o reconhecimento de que alguma irregularidade foi cometida e que a mesma influenciou a decisão- a verdadeira questão colocada pela ré, e que aqui cumpre apreciar, é indagar se foi indevidamente empregada a citação edital, conforme arguiu e sustentou.
Conforme resulta claramente da lei, estando em causa citação de pessoa certa, só depois de esgotadas as hipóteses de concretizar a citação pessoal e de se concluir pela respectiva impossibilidade, por não ser comprovadamente possível apurar o paradeiro do citando, poderá avançar-se com a realização das diligências tendentes à citação edital, assim reconhecendo o legislador o carácter precário desta modalidade de citação, que nenhuma garantia oferece de que chegará ao efectivo conhecimento do destinatário.
Ao tempo em que foi ordenada a citação edital, dispunha o art.º 244.º do CPC (normativo a que sucedeu sem alteração relevante o actual artigo 236.º) que “Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da direcção geral dos impostos e da Direcção geral de Viação e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da realização da citação edital, junto das autoridades policiais.
No caso que nos ocupa, cumpre assinalar que, face à devolução da carta enviada para citação, e ao que resulta dos elementos juntos a este apenso, apenas a base de dados da segurança social foi consultada. E se é facto que na sequência da deslocação da Sr.ª agente de execução nomeada à nova morada assim apurada, tendo em vista a realização da citação através de contacto pessoal, apurou esta junto dos correios que a citanda se ausentara daquela morada há mais de dois anos, tendo também deixado de frequentar um outro local, no qual, ao que resultou da informação colhida, explorara uma casa de “alterne”, certo é que nenhuma outra diligência foi efectuada na sequência de tal informação, nem qualquer outra base de dados foi consultada.
Por outro lado, se é correcto afirmar, tal como a Mm.ª juíza destacou no despacho proferido, que a realização de diligências junto da entidade policial depende da formulação de um juízo prévio de absoluta indispensabilidade, tendo em vista decidir se é caso de ordenar ou não a realização da citação edital, afigura-se que a exigência de que esta modalidade tenha lugar apenas quando se revelar impossível, para utilizar as palavras da lei, a citação pessoal, impõe, ainda que como medida de última ratio, que se não opte por tal modelo de citação, de duvidosa eficácia, sem se esgotar este último recurso. Tal é decorrência, em última análise, do imperativo constitucional do respeito pelo direito de defesa consagrado no art.º 20.º da nossa lei fundamental.
Por outro lado, estando em causa um meio relativamente pequeno, aliado à circunstância da citanda ser referencida como tendo explorado uma casa “de alterne”, não custa aceitar, antes surgindo como plausível, que a entidade policial, pela atenção que merecem normalmente os estabelecimentos desta natureza, pudesse estar de posse de informação sobre o paradeiro daquela, o que reforça o juízo da necessidade de realização desta última diligência.
Atento o exposto, e em conclusão, não tendo sido esgotadas as diligências com pertinência para averiguar do paradeiro da ré citanda, incluindo a medida última de solicitar informação à entidade policial, prematuro e, nessa medida, indevido, se revelou o recurso à modalidade de citação edital, o que consubstancia uma situação de falta de citação, nos termos da previsão da  al. c) do n.º 1 do art.º 188.º, oportuna e tempestivamente arguida pela ré.
Nestes termos, e ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, não merece censura a decisão recorrida.
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III Decisão
Em face a todo o exposto, e na improcedência do recurso, mantenho a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
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Maria Domingas Simões