Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/16.7PTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: CRIME E CONTRAORDENAÇÃO
SANÇÃO ACESSÓRIA DE INIBIÇÃO DE CONDUZIR
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JL CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 134.º DO CE
Sumário: Um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo do crime aqui em causa, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do CP, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no CE se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta.
Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal

No processo acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu:
1. Condenar o arguido A... , pela prática de um crime de Homicídio Negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete) euros.
2. Condenar o arguido A... , pela prática da contra-ordenação, previsto e punido pelo artigo 103.º n.º 2 e 4 do Código da Estrada na coima de €200,00 (duzentos euros.)
3. Condenar o arguido A... na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no art.69.º, n.º1 a) do Código Penal.
4. Condenar o arguido A... na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 2 (dois) meses, nos termos dos art.s 145.º i) do Código da Estrada.
5. Condenou-se o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC reduzida a metade - cfr. art. 344.º n.º 2 c), 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1 do Código de Processo Penal e art. 8.º n.º5 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.


*

Ordenou-se o arguido a entregar a respectiva carta de condução, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de, não o fazendo, ser determinada a apreensão da carta/licença – art. 500.º n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, com a cominação de que a não entrega no prazo fixado fará o arguido incorrer na prática de crime de desobediência do art. 348.º n.º 1 b) do Código Penal – cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 2/2013.

Desta sentença interpôs recurso o arguido, A... , sendo do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso:

1.ª A douta sentença não poderá manter-se, dado que subsumiu incorretamente os factos ao direito, fazendo, neste ponto em concreto, uso de má hermenêutica, no que respeita à condenação do arguido/recorrente na pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, bem como, na sanção acessória p. p. pelo artigo 147.º, do Código da Estrada.

Com efeito,

2.ª Dispõe o artigo 134.º, n.º 1 do Código da Estrada, sob a epígrafe “concurso de infracções” que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contra-ordenação.

Todavia,

3.ª Tal disposição não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção como ocorreu in casu.

É que,

4.º Estabelece o princípio ne bis in idem - artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa - que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, razão pela qual o supra citado artigo 134.º do Código da Estrada tenha necessariamente de ser interpretado atento o núcleo fundamental daquele direito, ou seja,

o de que ninguém poder ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.

5.ª É precisamente o entendimento defendido no Ac. do TRC de 07-11-2012, P. 30/11.7GAMIR.C1, Relator CORREIA PINTO, confirmado mais recentemente no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-03-2017, P. 232/13.1GBTCS.C1, Relator JOSÉ EDUARDO MARTINS: Perante um comportamento que configura uma contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de qualquer um dos crimes referidos no já citado artigo 69.º do Código Penal, terá de concluir-se que a prática do crime esgota o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, pelo que a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada exclusivamente com base no artigo 69.º, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada resultaria numa dupla sanção pela mesma conduta. – ambos disponíveis in www.dgsi.pt;

Razão pela qual,

6.ª A douta sentença terá de ser revogada na parte em que condenou o ora arguido/recorrente na sanção acessória pela prática de contraordenação grave.

Sem conceder,

7.ª Negou o tribunal a quo a possibilidade ao arguido de que tal sanção acessória fosse suspensa, em virtude de, alegadamente, não estarem verificados os pressupostos do disposto no n.º 1 do art. 141.º do Código da Estrada.

8.ª Cumpre, ainda assim, ressalvar que, o recorrente nunca foi interpelado, quer por autoridade administrativa, quer pelo douto Tribunal a quo, para liquidar qualquer coima, pelo que o não pagamento da mesma, até à presente data, não lhe pode ser imputado.

9.ª Atendendo a que o recorrente foi condenado à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses, uma suspensão da execução da sanção acessória, salvo melhor opinião, realiza de forma adequada e suficiente os objetivos de prevenção geral e especial, bastando ao apelante a ameaça da revogação da suspensão se, durante o período da mesma, praticar qualquer outra contra ordenação grave ou muito grave.

Por outro lado,

10.ª O condicionamento da suspensão à frequência de ações de formação e/ou a cooperação em campanhas de prevenção rodoviária, e/ou, à prestação de caução de boa conduta, nos termos previstos no art. 141.º do Código da Estrada, seria o suficiente para assegurar a realização das finalidades da punição.

        Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida conforme supra exposto, pois só assim será feita  a tão curial

JUSTIÇA!

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito sem prejuízo do conhecimento dos vícios constantes do art 410º, nº 2 do CPP.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

Da acusação pública:
1. No dia 08 de janeiro de 2016, cerca das 07.42 horas, o arguido A... circulava pela Av. 1º de maio, em Castelo Branco, sentido norte-sul em direção à Praça Rainha D Leonor, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca Toyota, modelo Hilux, com a matrícula (...) , propriedade da sociedade C... , Unipessoal, Lda.
2. O arguido ao se aproximar da Praça Rainha D. Leonor passou para a faixa de rodagem da esquerda e prosseguiu a marcha em direção à EN 18, por o sinal luminoso se encontrar verde.
3. O arguido A... atravessou a Praça Rainha D. Leonor e seguiu em direção à E.N. 18, circulando no seu sentido de trânsito, na faixa de rodagem do lado esquerdo.
4. A EN 18 é uma estrada com duas vias de trânsito em cada sentido, sem separador central e com uma passagem para peões sinalizada com o sinal H7 (passagem para peões) e M11 (marcada no pavimento).
5. Naquele mesmo dia e há mesma hora, na EN 18 B... iniciou a travessia da passadeira para peões e no sentido da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido A... .
6. Após ter percorrido o primeiro lanço da passadeira e no momento em que já tinha atravessado cerca de um terço do segundo lanço da passadeira, no sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, B... foi embatida com a parte da frente do lado esquerdo do veículo.
7. Em consequência da colisão B... foi projetada para fora da passadeira cerca de vinte e cinco metros, ficando caída do lado esquerdo e com os pés junto da linha descontínua separadora do sentido de trânsito em que o arguido circulava.
8. No momento do atropelamento B... levava o guarda-chuva aberto tendo o pano do guarda-chuva, sido projetado e ficado caído a cerca de dois metros do local do embate e as varetas do guarda-chuva ficaram caídas a cerca de dezoito metros do local do embate.
9. A mala em pele, uma luva e os óculos que B... transportava ficaram caídos a cerca de treze metros e meio do local do embate e a mala em napa que esta levava ficou caída a cerca de dezanove metros e meio do local do embate.
10. O veículo conduzido pelo arguido desde que passou no semáforo existente na Av. 1º de Maio com a Praça Rainha D. Leonor e até ao local do atropelamento percorreu cerca de cem metros e após este imobilizou-se a cerca de trinta e um metros do lado direito da faixa de rodagem sem que tivesse travado ou efetuado qualquer manobra para evitar o acidente.
11. Efetuado ao arguido o teste de pesquisa de álcool e de psicotrópicos o mesmo deu resultado negativo.
12. Em consequência do embate e da gravidade do estado de saúde B... deu entrada no serviço de urgência do Hospital (...) onde veio a falecer.
13. Em consequência do atropelamento sofreu B... as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 54 a 56 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente lesões traumático crânio vertebro-medulares, torácicas e da bacia, as quais foram causa direta e necessária da sua morte ocorrida nesse dia, cerca 08.13 horas.
14. A estrada no loca do embate é uma reta com boa visibilidade, com quatro vias de trânsito, duas em cada sentido, sem separador central com pavimento betuminoso em bom estado de conservação, tendo a faixa de rodagem em cada sentido a largura de 5,20 metros.
15. O tempo encontrava-se chuvoso, com o piso molhado e na altura em que ocorreu o acidente chovia.
16. O arguido A... conduzia o veículo de forma desatenta e descuidada, não cedendo a passagem e embatendo no peão que se encontrava a efetuar a travessia da passadeira.
17. Ao agir como o descrito o arguido não observou, no exercício da condução, as precauções exigidas pela mais elementar prudência, não procedendo com o cuidado devido e que lhe era exigível para impedir a verificação de um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, assim, causa àquelas lesões para a vítima, que foram causa adequada da sua morte.
18. Sabia o arguido que tal conduta que se tornou condição do acidente, lhe era proibida e punida pela lei penal.

Mais se apurou que:
19. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos imputados tendo demonstrado arrependimento.
20. O arguido aufere cerca de €700 vivendo em casa dos pais com a sua companheira e a sua filha mais nova com 7 meses.
21. Tem mais duas filhas, pagando de pensão de alimentos €200 no total.
22. Suporta créditos no valor de €200 mensais.
23. Estudou até ao 8.º ano.
24. Não tem antecedentes criminais ou contra-ordenacionais.


*

II.2. – Factos não provados:

Não existem.


*

Motivação:

O Tribunal fundou a sua convicção, desde logo, na confissão integral e sem reservas do arguido, bem como nos documentos constantes dos autos, designadamente nas perícias médico-legais de fl.s 54 a 58 e 92.

Para prova da ausência de antecedentes criminais e contra-ordenacionais do arguido foi tido em consideração o certificado de registo criminal junto a fls. 281 e o RIC junto a fl.s que antecedem.

            As condições pessoais do arguido foram pelo próprio relatadas, de forma precisa, clara e espontânea, que logrou convencer o tribunal, tendo o mesmo demonstrado arrependimento,


***

Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:

- Concurso de infracções.

O arguido A... , foi condenado pela prática de um crime de Homicídio Negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete) euros. Mais foi condenado pela prática da contra-ordenação, previsto e punido pelo artigo 103.º n.º 2 e 4 do Código da Estrada na coima de €200,00 (duzentos euros.)

Foi, ainda, condenado na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no art.69.º, n.º1 a) do Código Penal e, também, foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de dois meses nos termos dos art.s 145.º i) do Código da Estrada.

Sustenta, o recorrente que a sentença não pode manter-se dado que subsumiu incorrectamente os factos ao direito ao condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. e p. pelo artº 69º, nº 1, al. a) do CodPenal, bem como na sanção acessória p. e p. pelo artº 147º do Cod. Estrada, porque o artº 134º do mesmo diploma não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção, além de que tal decisão viola o princípio do ne bis in idem, previsto no artº 29º, nº 5 da CRP.

Dispõe o artº 69º nº1 al a) do CodPenal que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º.
Esta pena acessória não se confunde e é distinta da sanção acessória que visa sancionar acessoriamente, a prática de contraordenações graves e muito graves (no caso vertente a não cedência de passagem aos peões pelo condutor que mudou de direção dentro das localidades, bem como o desrespeito pelo trânsito dos mesmos nas passagens para o efeito assinaladas – artº 145, al i)).
A actuação do arguido configura a prática de uma contraordenação e tal prática é sancionada com coima e com sanção acessória que consiste na inibição de conduzir – artº 147 do CodEstrada.
Por sua vez o artº 134º, nº 1 do mesmo diploma, sob a epígrafe “concurso de infrações”, estatui que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.
E tal como já foi referido em outros acórdãos desta Relação, nomeadamente, no rec. 232/13.1GBTCS.C1 de 8/01/2017 a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.
Na verdade, há situações, como a que está agora em causa, em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contraordenação, por violação de regras de condução e normas que definem o respetivo quadro legal.
Ora, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo do crime aqui em causa, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta (ac. cit).
Desta forma, deve o arguido ser condenado na respetiva pena acessória em vez de sofrer a mencionada sanção acessória.

Decisão:
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo recorrente, A... e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, p. e p. nos termos do artigo 145.º al i), do Código da Estrada, da qual vai absolvido, indo o recorrente condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, p. e p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelo período de quatro meses.
Encontram-se prejudicadas as restantes questões.

Sem custas.

Coimbra, 10 de janeiro de 2018

Alice Santos (relatora)

Abílio Ramalho (adjunto)