Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5137/11.8TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CHEQUE
ASSINATURA
SOCIEDADE COMERCIAL
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1, 2, 22, 40 LUCH, 250, 278, 409 CSC, 46 CPC
Sumário: 1. Se a assinatura aposta do local destinado ao subscritor/emitente/sacador do cheque foi efectuada por quem não dispunha de poderes de representação da sociedade executada, tal não constitui um vício de forma mas um vício de substância contendendo com a validade material da própria obrigação, oponível (pela sociedade executada) a qualquer portador do cheque.

2. A obrigação é assim nula por vício de fundo (maxime, ineficácia vinculativa da própria declaração de vontade de se obrigar por banda da sociedade executada), com a consequente ineficácia executiva do aludido título.

3. Porque a executada fez valer em juízo o que se lhe perspectivou como real ou verosímil, conjugando-o com as soluções plausíveis da questão de direito, tal actuação não excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º, do CC).

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada por R (…) contra J. P. (…), S. A., veio esta deduzir oposição à execução, pedindo que fosse liminarmente apreciado o abuso de direito e declarada a ilegitimidade do exequente para o exercício do direito de acção na presente execução ou, improcedendo tal pedido, que fosse declarado o exequente ilegítimo portador do alegado título executivo, ordenando-se a extinção da execução.

Invocou, nomeadamente, que o cheque dado à execução foi objecto de apropriação indevida e abusiva por terceiros em Novembro de 2004, facto do conhecimento do exequente; não é verdade que o cheque tenha sido endossado pela E (…), S. A., ao exequente, uma vez que a E (…), Lda., à data da assinatura de tal cheque pelo legal representante (…), não era credora da executada de qualquer montante como melhor resultará da contabilidade de ambas as sociedades; tal cheque foi abusivamente retido por um colaborador da executada, (…) em Novembro de 2004, o qual, sem conhecimento da executada e contra a sua vontade, lhe apôs ou lhe mandou apor importância diferente daquela que estava autorizado a apor-lhe tendo-o entregue ao exequente que lhe apôs ou mandou apor no local destinado ao beneficiário o nome da empresa E(…), Lda., da qual é sócio gerente, a fim de não se poder discutir o crédito e a sua natureza; o identificado (…) não utilizou o cheque para os fins que lhe foi entregue, tendo-o guardado ou transmitido a terceiros, circunstância que só agora foi conhecida na sociedade executada; o exequente sabe que o cheque de que é portador não foi entregue à E (…) Lda., por nenhum dos legais representantes, colaboradores ou trabalhadores da executada, e que esta nada deve à E (…), Lda., uma vez que “as contas” que existiam entre as sociedades foram recentemente regularizadas com a entrega de diverso material ao exequente; este reuniu várias vezes durante o ano de 2011 com o legal representante da executada, (…), sabendo perfeitamente que o anterior legal representante da executada, (…), já não era em 2011 gerente da executada, e que não detinha quaisquer poderes para obrigar a sociedade, bem sabendo que a sua assinatura já não obrigava a sociedade desde finais de 2010; o exequente sabe que o mencionado cheque tinha sido objecto de apropriação abusiva pelo (…) e que não foi recebido, por si ou por qualquer terceiro em representação da E (…) Lda., de qualquer representante ou colaborador da executada, não tendo qualquer força executiva; além disso, na data da sua apresentação a pagamento já havia decorrido o prazo para tal apresentação; o exequente obteve o identificado cheque em branco e sabia que o (…)não era seu legítimo portador, pelo que a interposição da presente execução configura um manifesto abuso de direito.

O exequente contestou dizendo serem “falsos” os factos articulados na oposição e concluiu pela sua improcedência.

Foi elaborado despacho saneador, tendo-se dispensado a selecção da matéria de facto.

Efectuado o julgamento, o Tribunal julgou a oposição procedente e, em consequência, declarou extinta a execução.

Inconformado, o exequente interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - O cheque dado à execução reúne os requisitos exigidos pelos art.ºs 40º da Lei uniforme relativa ao cheque (LUC) e 46º, do Código de Processo Civil (CPC), para instauração da acção executiva por falta de pagamento.

2ª - A executada não põe em causa que o cheque dado à execução mais não é do que um cheque pré-datado assinado antes da data nele constante como da sua emissão pelo legal representante da executada, (…), e apenas alegou, em resumo, que “o exequente quando recebeu o cheque objecto dos presentes autos do (…)bem sabia que aquele não era o seu legítimo portador e dele se havia apropriado ilegitimamente e criminosamente sem o conhecimento dos legais representantes da sociedade”, o que não logrou provar.

3ª - E apenas na sessão de audiência de julgamento requereu a junção da matrícula da executada comprovativa de que à data constante da emissão do cheque a administração da executada pertencia a (…), actuando assim a executada em nítido e autêntico abuso de direito.

4ª - A decisão recorrida foi proferida em “excesso de pronúncia” dado a executada não ter alegado quaisquer factos que demonstrem existir ineficácia vinculativa da própria declaração de vontade da sociedade em se obrigar, antes pelo contrário, tão-somente alegou factos (não provados) de que o exequente em conluio com um funcionário da executada se apropriou abusivamente do cheque dos autos que tinha sido assinado em branco pelo na altura seu administrador, (…).

5ª - Deverá revogar-se a sentença recorrida, julgando-se a oposição improcedente por não provada, sob pena de se violar o disposto nos art.ºs 22º e 40º, da LUC, e 334º, do Código Civil (CC).

A executada não respondeu à alegação do recorrente.

Na sequência do despacho do relator de fls. 128, foi junta aos autos certidão do requerimento executivo e do cheque dado à execução.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente: a) se foi alegada e provada a invalidade/ineficácia da vinculação da sociedade executada; b) se esta actuou respeitando o ordenamento jurídico vigente.

*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) O exequente deu à execução o cheque n.º 7318371197, da conta n.º 00002649230, pertencente à executada, com data de emissão de 23.8.2011, que tem aposto no local destinado à assinatura a de (…), à ordem de E(…)Lda., no valor de € 289 000, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos.[1]

b) No verso do cheque consta no local destinado ao endosso um carimbo da sociedade E (…), Lda., e por baixo consta manuscrito “ R (…)”.

c) No verso do cheque e logo a seguir ao carimbo consta novamente manuscrito “R (…)”.

d) O cheque foi devolvido, a 25.8.2011, nos serviços de Compensação, por motivo de “saque irregular”.

e) Da certidão permanente da sociedade executada consta, para além do mais, que:

- “Forma de obrigar”: “pela assinatura do administrador ou pela assinatura de um ou mais mandatários nos precisos termos dos respectivos instrumentos de mandato”.

f) Consta ainda averbado pela Ap. 23/20110108 – Cessação de funções de Membro do órgão social.

Administrador único[2]:

(…)

Causa: destituição

Data: 30.12.2010.

g) Está ainda inscrito pela Ap. 24/20110108 – Designação de Membro de Órgão Social

Administrador único:

(…)

Prazo de duração do mandato: Triénio: 2011/2013

Data da deliberação: 30.12.2010.

h) (…) intentou uma acção no Tribunal do Trabalho de Coimbra com o n.º 843/06.1TTCBR contra a executada, a qual foi julgada improcedente por sentença datada de 14.11.2007.

i) A referida acção foi contestada pela executada.

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

No requerimento executivo, o exequente afirmou ser “dono e legítimo portador do seguinte título executivo”: “- cheque n.º 7318371197, emitido pela executada em 23.08.2011[3], sobre a agência da Caixa Geral de Depósitos, no montante de 289 000,00 €” (1º); “- o qual veio à sua posse por via de endosso que lhe foi feito pela beneficiária E (…) Lda.” (2º); “apresentado tal cheque a pagamento, o mesmo não foi pago pelo banco sacado, conforme nota nele exarada datada de 25.08.2011” (3º).

Estes os factos constitutivos da execução, alegados pelo exequente no requerimento executivo, que, aparentemente, justificam a detenção do pretenso título de crédito (cheque)[4] e o direito de acção em análise (art.º 40º, da LUC).

Na oposição à execução, a executada afastou, rotundamente, aquela perspectiva do exequente - alegou/invocou, sobretudo, o seu (pretenso) desconhecimento das circunstâncias da constituição do mencionado “título executivo” e aventou determinadas ocorrências porventura subjacentes à sua existência[5], não deixando, também, de aduzir, nomeadamente, que “o exequente reuniu várias vezes durante o ano de 2011 com o legal representante da executada, (…) [(…)], sabendo perfeitamente que o anterior legal representante da executada, (…) [(…)], já não era em 2011 gerente da executada, e que não detinha quaisquer poderes para obrigar a sociedade, bem sabendo que a sua assinatura já não obrigava a sociedade desde finais de 2010” (cf. ponto I., supra e, por exemplo, os art.ºs 31º, 41º, 42º, 43º, 49º, 52º e 55º da oposição à execução).

No despacho de 09.02.2012, o Tribunal recorrido consignou que a prova do alegado em 41º e 42º e 47º da oposição à execução[6]apenas pode ser provado por documento, nomeadamente a certidão da matrícula das referidas sociedades” e ordenou a notificação das partes “nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 512º do CPC”.

Foi no decurso (“início”) da audiência de discussão e julgamento (com as vicissitudes mencionadas na respectiva acta) que a executada/oponente juntou aos autos a certidão permanente de fls. 69 e seguintes, a coberto do seguinte requerimento do seu Exmo. Mandatário: “Requer a junção de um documento, certidão de matrícula da executada, datada de hoje de onde consta que a assinatura aposta no cheque objecto da presente execução é a do administrador da sociedade que cessou as suas funções a 8 de Janeiro de 2011, conforme consta da apresentação 23 da mesma data, tendo sido designado como novo administrador da sociedade (…), conforme consta da apresentação 24 de 08/01/2011, donde se conclui que à data da emissão do cheque e nele aposta no local destinado à data de emissão, a administração da sociedade era efectuada pelo administrador (…) concluindo-se assim que o cheque dos autos não se encontra assinado” (cf. fls. 73).

De seguida, o Exmo. Mandatário do exequente disse: “Nada a opor à junção, prescindido do prazo de vista e prescindindo igualmente da prova testemunhal apresentada” (idem).

Não tendo sido produzidas outras provas, a Mm.ª Juíza a quo proferiu a decisão sobre a matéria de facto, referindo, na respectiva fundamentação, que “Para formar a sua convicção no que concerne à matéria dada como provada o tribunal valeu-se essencialmente do cheque junto aos autos principais, [d]a certidão permanente da sociedade executada junta aos autos em sede de audiência de discussão e julgamento e da decisão constante de fls. 42 e ss.”.

3. Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos (art.º 45º, n.º 1, do CPC).

É o n.º 1 do art.º 46º que enumera os títulos executivos que podem servir de base à execução; na sua alínea c) menciona os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético [de acordo com as cláusulas dele constantes], ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.[7]

Estes títulos executivos negociais particulares - entre os quais se incluem as letras, as livranças e os cheques - têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, a saber: estarem assinados pelo devedor e referirem-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.

Porém, o fundamento substantivo da acção executiva é a própria obrigação exequenda, constituindo o título executivo o seu instrumento documental legal de demonstração.[8]

4. O cheque é um título de crédito que enuncia uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague determinada quantia por conta de fundos lá depositados (art.ºs 1º e 2º, da LUC).

É pacífica na doutrina e na jurisprudência a definição do cheque como um meio de pagamento pelo qual uma pessoa (sacador) ordena a um banco (sacado), onde tenha fundos disponíveis (provisão), o pagamento à vista, de determinada importância a seu favor ou de um terceiro (tomador ou beneficiário)[9].

5. A executada é uma sociedade anónima.

A sociedade anónima é representada pelo respectivo conselho de administração (art.º 278º, n.º 1, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais/CSC), podendo ter um só administrador (art.º 390º, n.º 2, do CSC) e podendo o conselho encarregar especialmente um certo administrador para se ocupar de certas matérias da administração: administrador delegado (art.º 407º, do CSC), ficando a sociedade obrigada pelos negócios jurídicos que, nestas condições, sejam concluídos pelo administrador (único ou delegado) (art.ºs 408º n.ºs 1 e 2, do CSC).

Os actos praticados pelos administradores em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas (art.º 409º, n.º 1, do CSC/”vinculação da sociedade”); os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade (n.º 4, do mesmo art.º).

O regime estabelecido no art.º 409º, n.º 4, do CSC, para as sociedades anónimas, não é substancialmente diferente do estabelecido no art.º 260º, n.º 4, do mesmo Código, para as sociedades por quotas: as sociedades ficam vinculadas com a assinatura do representante, com indicação dessa qualidade.[10]

E o STJ uniformizou jurisprudência, quanto à vinculação das sociedades por quotas, através do acórdão de 06.12.2001 (acórdão n.º 1/2002), no sentido de que “A indicação da qualidade de gerente prescrita no n.º 4 do art.º 260º do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do art.º 217º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem”.[11]

6. Um indivíduo, que possui a qualidade de gerente ou de administrador de uma sociedade comercial, ao subscrever um documento, tanto pode estar a fazê-lo a título pessoal como enquanto representante da sociedade e membro de um órgão societário.

O objectivo das normas supra indicadas – art.ºs 260º, n.º 4, e 409º, n.º 4, do CSC – é, assim, o de conseguir uma distinção clara entre os actos escritos que vinculem as pessoas a título individual e aqueles que vinculem a sociedade em nome de quem porventura essas pessoas intervenham, permitindo destrinçar as esferas jurídicas dos sujeitos em que os efeitos jurídicos dos actos praticados se vão repercutir.

Sempre que a intervenção da pessoa em concreto permita percepcionar, com segurança bastante, que o acto praticado é da sociedade, e não da pessoa singular, esse acto efectivamente repercutir-se-á naquela, vinculando-a, não exigindo a lei um procedimento estandardizado para se concluir por essa vinculação, a qual, aliás, se pode inferir tacitamente.[12]

7. Cabendo aos administradores representar a sociedade anónima, esta fica vinculada pelos actos realizados por aqueles perante terceiros, quando se verificar essa representação da sociedade.

A vinculação significa que o poder representativo funciona plenamente e os efeitos jurídicos dos actos praticados pelos administradores nascem directamente na esfera jurídica da sociedade, sendo que os administradores vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com a indicação dessa qualidade, que, como vimos, pode ser expressa ou tácita.

8. Retomando o expendido em II. 2., supra, é irrecusável que a executada, partindo, além do mais, da perspectiva delineada pelo próprio exequente no tocante à data inscrita no cheque como sendo a data em que foi passado (art.º 1.º - 5º, da LUC), sempre pugnou que o exequente/recorrente fosse declarado “ilegítimo portador do alegado título executivo”, com a consequente “extinção da execução”, afirmando, designadamente, que quem apôs a assinatura no cheque em causa em representação da sociedade executada ((…)), na qualidade de sacador, não era seu administrador - daí, não podia vincular a sociedade com a aposição da sua assinatura no cheque, pois não tinha poderes para esse acto.

 Decorre da materialidade provada que a assinatura constante do local destinado ao emitente do cheque foi lavrada por quem não dispunha de poderes de representação [cf. II. 1. alíneas a), e), f) e g), supra], verificando-se, dessa forma, um vício substancial ou de fundo, ferindo de invalidade intrínseca ou material a própria obrigação da executada, pois não vincula a sociedade comercial executada a assinatura de quem não é seu administrador, aposta num cheque, quando consta do registo comercial que a mesma se obriga “pela assinatura do administrador (…)”.

O facto de a assinatura constante do local destinado ao subscritor ter sido efectuada por quem não dispunha de poderes não constitui um vício de forma mas um vício de substância, um vício de fundo que tem a ver com a validade material da própria obrigação[13], oponível pela sociedade executada a qualquer portador.

Como bem se refere na decisão sob censura, trata-se de uma excepção in rem que pode ser oposta a qualquer possuidor do título.

A inoponibilidade ao portador mediato na previsão do art.º 22º da LUC[14] respeita a excepções causais, i. é, decorrentes de vícios da convenção executiva, sendo que a aludida invalidade/ineficácia da vinculação da sociedade executada não se inclui nesse tipo de excepções.[15]

9. Ademais, não ficaram provados quaisquer factos apontando para a existência de um cheque em branco[16], subscrito pelo anterior administrador da executada e quando desempenhava tais funções, sendo que o exequente limitou-se a negar a generalidade dos factos alegados pela executada, propondo-se demonstrar, sobretudo, o aduzido no requerimento executivo através do documento que então juntou (como “título executivo”) e as testemunhas que veio a arrolar (cf. parte final da contestação de fls. 54).

10. Resta dizer que a executada não deixou de trazer aos autos tudo quanto em seu entender poderia estar na origem do cheque apresentado à execução, sem enjeitar, inclusive, a eventual e mera comprovação do teor (literal) do documento que o corporiza, extraindo daí todas as consequências.

Verificando-se que o exequente ter-se-á escudado, apenas, na pretensa suficiência do título executivo…[17] - e atento o âmbito da oposição deduzida à execução -, afigura-se que nada justifica lançar mão da “válvula de segurança” consubstanciada no instituto do abuso do direito, na medida em que a executada limitou-se a exercitar o seu direito ponderando o que se lhe perspectivou como real ou verosímil e as soluções plausíveis da questão de direito, pelo que não se poderá concluir que tenha excedido os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º, do CC).

De resto, a sua actuação processual não padece de quaisquer dos “vícios” invocados pelo recorrente, conforme melhor se explicitou em II., 2., supra.

11. Demonstrada a existência, in casu, de uma obrigação nula por vício de fundo, por ineficácia vinculativa da própria declaração de vontade de se obrigar por banda da sociedade executada, ou, dito doutra maneira, tendo a executada/oponente logrado anular a eficácia executiva do mencionado cheque[18], impõe-se concluir pela procedência oposição.

Soçobram, assim, todas as “conclusões” da alegação de recurso.

*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo exequente/apelante.

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26.11.2013

Fonte Ramos ( Relator)

Inês Moura

Fernando Monteiro


[1] Redacção simplificada e corrigida.
[2] Consta da mesma “certidão” que a “Estrutura da administração é composta por um só administrador, o qual é eleito trienalmente, sendo reelegível por uma ou mais vezes, podendo ser ou não accionista”.
[3] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[4] Cf, entre outros, os acórdãos do STJ de 09.12.1993 e de 01.10.2002-processo 02A1831, in CJ-STJ, 1, 3, 178 e “site” da dgsi, respectivamente.
[5] Para comprovar alguma dessa factualidade juntou com a oposição os documentos de fls. 16 e seguintes [diga-se, no entanto, que o documento de fls. 31 a 41 nada tem a ver com o alegado nos autos…].

[6] Com a seguinte redacção:

   - “Porque o exequente reuniu várias vezes durante o ano de 2011 com o legal representante da sociedade ora executada, o Sr. (…) sabia o exequente perfeitamente que o anterior legal representante da executada o Sr. (…) já não era em 2011 gerente da executada,” (41º)

   - “E que não detinha quaisquer poderes para obrigar a sociedade,” (42º)

   -“ Apesar disso o exequente inscreveu nele ou fez inscrever como sua beneficiária uma sociedade de que é sócio gerente tendo-lhe aposto ou mandado apor a seguinte expressão: “E (…). LDA” “ (47º).

[7] Esta a redacção conferida pelo DL n.º 226/2008, de 20.11, sendo que o texto anterior, na redacção introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3, não continha o segmento incluído no parêntesis recto.
   Com a reforma do Código de Processo Civil (CPC) de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12.12), o correspondente normativo [art.º 46º, alínea c)] tivera a seguinte redacção: “À execução apenas podem servir de base…os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
[8] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 08.7.2003-processo 03B2084, publicado no “site” da dgsi.
[9] Vide José Maria Pires, O Cheque, Editora Rei dos Livros, 1999, pág. 25.
[10] Vide sobre esta matéria, entre outros, Raul Ventura, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais – Sociedade por quotas, Vol. III, 1991, págs. 157 e seguintes; Nogueira Serens, Notas Sobre a Sociedade Anónima, 1995, págs. 77 e seguintes e Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 3ª edição, 2007, págs. 666 e 713 e seguintes.
[11] Cf. Diário da República, I Série -A , n.º 20, de 24.01.2002.
[12] Cf. o acórdão do STJ de 06.9.2011-processo 4537/04.4TVPRT-A.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[13] Cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 24.10.2006-processo 06A2458, publicado no “site” da dgsi.

[14] Estabelece o referido art.º: “As pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor”.
[15] Cf., ainda, o acórdão do STJ de 04.7.2002-processo 02B1808, publicado no “site” da dgsi.
   Defende-se, neste aresto, designadamente, que “Se o pacto social (…) estabelece que é necessária a intervenção de dois gerentes para obrigar a sociedade, esta não fica vinculada se só um deles intervém. O negócio assim concluído é ineficaz em relação à sociedade por falta de poderes de representação se ela o não ratificar - art.º 268º do CC (…). É o que ocorre neste caso, a sociedade só se obriga pela assinatura de dois gerentes e, no entanto, só um deles assinou os saques dos cheques sobre a conta do depósito bancário da sociedade”.
[16] “ (…) o cheque em branco enquanto não for completado não tem valor como cheque, pelo que quando a lei fala de cheque incompleto no momento de ser passado está referir-se não à emissão em sentido técnico-jurídico, mas à entrega material ao tomador” -  José Maria Pires, ob. cit.,, pág. 68.
   Ou seja, só depois de efectuado o preenchimento de harmonia com o clausulado no respectivo acordo (necessariamente celebrado com o sacador), é que o cheque passa a ter eficácia.
   Mais refere o autor citado, que “no cheque em branco o acordo entre o sacador e o tomador (contrato de preenchimento) exprime a intenção de o sacador contrair uma obrigação cambiária”.


[17] Vide Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 1º, 3ª edição (Reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 174.
[18] Vide Alberto dos Reis, ob. e vol. cits., págs. 118 e seguintes.