Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3815/10.8TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
PENDÊNCIA DA ACÇÃO
NOTIFICAÇÃO
AUTOR
SÓCIOS
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
Data do Acordão: 12/12/2013
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 162.º DO CSC
Sumário: I – Declarada extinta uma sociedade comercial na pendência de uma acção contra ela interposta, deve o tribunal notificar a autora para indicar os sócios que a hão-de substituir e os liquidatários que os representem (art.º 162.º do CSC);

II – Ainda que não haja bens sociais partilhados pelos sócios, deve a acção prosseguir quanto aos pedidos não pecuniários, como de restituição de veículo automóvel locado e extinção do consequente direito potestativo de aquisição e cancelamento registral do ónus de locação financeira.

Decisão Texto Integral: Decide-se singularmente na Relação de Coimbra:

           
1. Relatório
A..., SA” (anteriormente designada “B..., S.A.”) propos contra “C..., Lda.” acção com forma de processo sumário, pedindo a sua condenação na restituição do veículo automóvel locado, de marca FIAT, modelo IDEA 1.3 JTD 70 DINAMYC 5P, de matrícula 17-68-ZH, bem como no pagamento, a título de cláusula penal pelo atraso na sua restituição e por cada mês ou fracção que perdure, uma quantia igual ao dobro da renda mais alta praticada na vigência do contrato, perfazendo até 16 de Dezembro de 2010 a quantia de € 18.501,56 e a reconhecer a extinção do direito potestativo de aquisição daquele veículo, com o consequente cancelamento do registo do ónus de locação financeira. 
Alegou para tanto, em síntese, que em 16 de Dezembro de 2004, no exercício da sua actividade, celebrou com a sociedade “D..., Lda.” - que depois cedeu a sua posição contratual à Ré - um contrato de locação financeira tendo por objecto aquele veículo automóvel, de que é proprietária, pelo prazo de 48 meses e mediante contrapartida pecuniária, que a locatária se obrigou a satisfazer mensalmente, ascendendo o valor de cada renda a 415,80 €, alterado para € 420,49 em 1.7.08, por alteração da taxa do IVA, entregando-lhe o A. o identificado bem, sendo que o contrato caducou em 16 de Dezembro de 2008 sem que a Ré tivesse manifestado intenção de adquirir tal veículo ou procedido à sua restituição, como previa a cláusula 11ª do respectivo contrato, pelo que lhe assiste o direito a haver da Ré, a título de cláusula penal pelo atraso na restituição do bem locado e por cada mês ou fracção por que perdure esse atraso, uma quantia igual ao dobro da renda mais alta praticada na vigência do contrato, ou seja, a quantia de € 420,49.
A Ré foi citada editalmente e não apresentou contestação nem, citado, por si o fez o M.º P.º.
Proferido despacho saneador e dispensada a selecção da matéria de facto, foi realizada a audiência de discussão e julgamento e proferida sentença que, julgando procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da Ré (entretanto extinta), absolveu esta da instância.
Inconformada, recorreu a A. apresentando alegações que rematou com as seguintes conclusões:
1 - A presente acção foi intentada em 18/11/2010, estando, portanto, pendente à data da extinção da sociedade, uma vez que a dissolução e liquidação se encontram devidamente registadas na Conservatória do Registo Comercial desde 28/02/2013.
2 - “A instância suspende-se quando falecer ou se extinguir alguma das partes, sem prejuízo do disposto no art. 162.º do Código das Sociedades” (art. 276.º, n.º 1, alínea a) do CPC).
3 - Os art.ºs 162.º e 163.º do Código das Sociedades Comerciais distinguem e regulam de forma diferente o modo de fazer intervir os sócios em acção instaurada por dívida da sociedade, consoante a acção esteja pendente à data da extinção da sociedade, ou seja instaurada após a extinção da sociedade.
4- Na primeira situação, - que se aplica ao caso em apreço - prescreve o n.º 1 do art.162.º do Código das Sociedades Comerciais que a sociedade “se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5” e o n.º 2 que, “a instância não se suspende nem é necessária habilitação”.
5 - Tendo a presente execução dado entrada em Juízo antes da liquidação da sociedade ter sido levada a registo, trata-se de uma “acção pendente” à data do encerramento da liquidação, havendo, por isso, lugar à aplicação da previsão do referido preceito (art.º 162.º, n.º 1, do CSC).
6 - O art. 162º, nº 1, do CSC consagra uma das possibilidades legais de modificação subjectiva da instância, ao dispor que as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163º, nºs 2, 4 e 5 e 164º, nºs 2 e 5 do CSC.
7 - Sobrevindo à instauração da presente acção o encerramento da liquidação e a extinção da Ré, tais factos supervenientes não podem ter como efeito a absolvição da instância da mesma por manifesta falta de personalidade judiciária.
8 - Não pode ser aplicada no caso a alínea a) do nº 1 do artigo 276º do CPC, por força do disposto no apontado nº 1 e nº 2 do seu artigo 162º, pelo que também não tem qualquer sentido invocar como causa da extinção da acção a alínea c) do artigo 494º do mesmo código.
9 - O que está efectivamente em causa nos autos é o pedido de restituição do veículo, matrícula 17-68-ZH e tal circunstância significa, desde logo, que a Autora não necessitará, sequer, de ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 163º chamar os sócios da sociedade dissolvida para efeitos de vir executar no património destes os bens que hajam recebido em liquidação da sociedade extinta.
10 - Antes de absolver a Ré da instância e em nome da prevalência da justiça material sobre a justiça formal, a Ex.ma Juíza a quo teria que, em primeiro lugar, ter confrontado a Autora com a questão da extinção da Ré e, em segundo lugar, ter-lhe dado oportunidade para se pronunciar sobre se pretendia a substituição daquela pelos seus sócios e, caso afirmativo, se quanto a todos os pedidos, atenta a inexistência de activo da sociedade (arts. 265.º, n.º 2, e 508.º, n.º 3, do CPC).
11 - A Autora não requereu a substituição da Ré pelos seus sócios, uma vez que não foi notificada da dissolução e liquidação da mesma, caso contrário, teria desistido da al. b) do pedido, pois o que a ora recorrente pretende é tão só a condenação da Recorrida na restituição do veículo em apreço, para depois poder instaurar execução para entrega de coisa certa e, no âmbito da mesma, apreender a viatura em causa (a qual se encontra segura, desde 04/05/2011, na Companhia de Seguros Fidelidade, com a apólice n.º 752711415).
12 - A absolvição da Ré da instância comporta como consequência que a Autora não consiga promover a execução para entrega da viatura em causa, ficando, a mesma, prejudicada irremediavelmente no seu património.
13 - A Autora não reclamou os respectivos créditos na acção de insolvência da sociedade Ré, e concretamente quanto ao veículo sub judice estava vedada à aqui apelante a possibilidade de requerer, nessa acção, o cumprimento ou a resolução do contrato em apreço (cfr art.ºs 46.º, 102.º, 104.º, n.º 3 e 128.º, do CIRE).
14 - O veículo em apreço, à data da declaração da insolvência – 01/09/2010 – não integrava a massa insolvente, nem a Ré adquiriu ou podia vir a adquirir quaisquer direitos sobre tal bem, uma vez que se operou a caducidade do contrato em 15/12/2008.
15 - Tal viatura, embora utilizada pela Ré, não é sua propriedade, mas sim da ora recorrente, querendo a Autora apenas a restituição do veículo em causa, o qual não foi obviamente objecto de partilha, tratando-se de uma mera questão de representação e de fazer intervir na presente acção os possuidores de tal bem.
16 - Segundo o nº2 do art. 160º do CSC, “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos arts. 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação” e segundo o nº 8 do art. 151º, do CSC, “as funções dos liquidatários terminam com a extinção da sociedade, sem prejuízo, contudo, do disposto no artigo 162º, 163º e 164º, disposição essa que ressalva as situações em que à data da extinção da sociedade estejam contra ela pendentes acções em tribunal – caso em que o liquidatário fica encarregado de representar, em juízo, a generalidade dos sócios (art. 162º).
17 - Nada obstava a que a Autora, confrontada com a extinção da Ré, pura e simplesmente requeresse o prosseguimento dos presentes autos – hipótese que lhe foi coarctada - contra a generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários - em nada colidindo com o princípio da estabilidade da instância consagrado no art. 268º do CPC.
18 - A sentença recorrida violou, assim, o disposto nos art.ºs 151.º, n.º 8, 160º nº 2, 162º nºs 1 e 3 e 163º nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, os art.ºs 342.º, n.º 1 do Código Civil, e os art.ºs 5º, 264º, 265.º, n.º 2, 268º, 508º, n.º 3, 494, al. c), do Código de Processo Civil pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos e a citação da Ré na pessoa dos seus sócios, identificados no registo comercial.
Não foi apresentada resposta.
Dada a simplicidade da questão optou-se por conhecer sumariamente do recurso ao abrigo do disposto no art.º 705.º do CPC aplicável.
Questão que é somente esta:
- Saber se a presente acção, após extinção da Ré, haveria que prosseguir seus termos contra os sócios representados pelos liquidatários ou ser-lhe posto fim, absolvendo-se a Ré da instância por falta de personalidade judiciária.
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2. Fundamentação
2.1. De facto
 A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Em 16 de Dezembro de 2004 Autora e a sociedade “ D..., Lda.” Ré celebraram um contrato de nominado de “Contrato de Locação Financeira n.º 3347” tendo por objecto um veículo automóvel da marca FIAT, modelo IDEA 1.3 JTD 70 DINAMYC 5P, de matrícula 17-68-ZH, propriedade da primeira, pelo prazo de 48 meses e mediante contrapartida pecuniária que a segunda se obrigou a satisfazer em quarenta e oito rendas mensais, no valor unitário de 415,80 €;
2. A Autora entregou àquela sociedade o identificado veículo;
3. Em 5.Julho.2006 a locatária cedeu a sua posição contratual a “ D..., Lda.”, declarando esta assumir a qualidade de locatária no contrato referido no ponto 1., “cujos termos e condições aceita e a que fica expressamente obrigado”;
4. A “ D..., Lda.” alterou a sua denominação social para “ C..., Lda.”;
5. No contrato referido no ponto 1. ficou convencionado o seguinte:
- No termo do contrato o locatário pode adquirir o bem mediante o pagamento ao locador do valor residual constante das “Condições Particulares”, acrescido do imposto que for devido, desde que comunique por carta registada o exercício daquela sua opção ao locador até três meses antes do termo do contrato (n.º 1 da cláusula 11ª das “Condições Gerais do Contrato”);
- Não exercendo o locatário a faculdade de compra deverá, no termo do contrato, restituir imediatamente o bem e a respectiva documentação ao locador (n.º 2 da cláusula das “Condições Gerais do Contrato”);
- Se o locatário, não tendo exercido a faculdade de compra não devolver o bem ao locador este terá direito, a título de cláusula penal e por cada mês de mora ou fracção de mês por que esta perdure, uma quantia igual ao dobro da renda mais alta praticada na vigência do contrato (cláusula 14ª das “Condições Gerais do Contrato”);
6. O termo do contrato ocorreu em 16 de Dezembro de 2008 sem que a Ré tenha exercido a opção de aquisição do veículo de matrícula 17-68-ZH nos termos referidos no ponto 5. ou restituído à Autora o bem identificado no ponto 1., apesar de interpelada nesse sentido pela Autora através de cartas datadas de 4 de Dezembro de 2008 e 26 de Outubro de 2009;
7. Sobre o veículo de matrícula 17-68-ZH recai o registo do encargo de locação financeira, com início em 16 de Dezembro de 2004 e termo em 15 de Dezembro de 2008;
8. A Ré foi declarada em situação de insolvência por sentença proferida no Processo n.º 2598/10.6TJCBR, do 5º Juízo Cível deste Tribunal, processo que, por despacho de 2 de Março de 2011, foi declarado encerrado por insuficiência da massa insolvente;
9. Na sequência do cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 234º do CIRE foi instaurado procedimento administrativo de liquidação de sociedade comercial que culminou com o encerramento da liquidação e cancelamento da matrícula da Ré.
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            2. 2. De direito
            Recortada a questão à continuidade ou não da acção, começa por dizer a alín. a) do n.º 1 do art.º 276.º do CPC aplicável que a instância se suspende nomeadamente quando se extinguir alguma das partes, mas sem prejuízo do disposto no art.º 162.º do Cód. Sociedades Comerciais (CSC).
            Reza este, no seu n.º 1, que “as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos art.ºs 163.º, n.ºs 2, 4 e 5 e 164.º, n.ºs 2 e 5” e o n.º 2 que “a instância não se suspende nem é necessária habilitação”.
            Também o art.º 160.º, n.º 2, do CSC ressalva que “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos art.ºs 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação”.
            Daí que o n.º 8 do art.º 151.º do mesmo diploma legal disponha que “as funções dos liquidatários terminam com a extinção da sociedade, sem prejuízo, contudo, do disposto nos art.ºs 162.º a 164.º”.
            A sentença recorrida, não obstante a data de entrada em Juízo da acção, em 18.11.10, considerando que na sua pendência a Ré se extinguiu, com o consequente registo do encerramento da liquidação, entendeu não poder a mesma prosseguir contra a pessoa colectiva por ter perdido a sua personalidade jurídica e judiciária, nem prosseguir também contra os sócios, à luz do citado art.º 162.º, por um lado por a A. não ter requerido a substituição da Ré pelos sócios e, por outro, ainda que o tivesse feito, tal seria inútil (“estava votada ao insucesso”), mercê da inexistência de bens sociais.
            Carece de razão, a sentença, salvo o devido respeito.
            Em 1.º lugar, não consta dos autos qualquer notificação à A. que a onerasse com o impulso processual tendente à substituição da Ré pelos sócios a representar pelos liquidatários, isto é, não foi notificada da sua dissolução e liquidação ou do encerramento desta ou seu registo.
            Se é certo que as acções pendentes contra a sociedade extinta continuam sem necessidade de suspensão da instância ou habilitação, antes de ter sido proferida sentença impunha-se que a A. fosse notificada para o efeito.
            Ao menos que e em cumprimento do preceituado no art.º 593.º do CPC, fosse notificada da junção oficiosamente determinada dos documentos que tal comprovam e fundamentaram a decisão! 
            Em 2.º lugar e sendo certo que os sócios só respondem na medida dos bens partilhados (e nenhuns existem, conforme apurado no processo de insolvência da Ré), a inexistência de bens sociais não torna inútil a instância.
            A par do pedido de condenação pecuniária, a A. formulou também pedido de restituição do veículo automóvel locado e ilicitamente detido pela Ré (agora pelos sócios), bem como a condenação no reconhecimento da extinção do direito potestativo da sua aquisição e cancelamento do ónus de locação financeira.
            Tais pedidos não contendem com a partilha, dado o bem locado jamais ter sido pertença da Ré e a utilidade na respectiva e eventual condenação é manifesta para a A. recorrente, já que é a sentença de condenação (agora dos sócios representados pelos liquidatários) que lhe permitirá instaurar execução para entrega de coisa certa (veículo) e, assim, proceder à sua apreensão.
            A absolvição da Ré da instância configura na prática verdadeira denegação de justiça.
            Assim é que, na procedência da apelação, se impõe seja revogada a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com a notificação da A. para proceder ao seu impulso, com a indicação dos sócios que substituem a Ré na causa e dos liquidatários que os representam, com vista à prolação de nova sentença quanto àqueles pedidos, já que, além do mais, a A. fez questão de dizer, nas alegações de recurso, desistir do pedido pecuniário.
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3. Resumindo e concluindo:
I – Declarada extinta uma sociedade comercial na pendência de uma acção contra ela interposta, deve o tribunal notificar a autora para indicar os sócios que a hão-de substituir e os liquidatários que os representem (art.º 162.º do CSC);
II – Ainda que não haja bens sociais partilhados pelos sócios, deve a acção prosseguir quanto aos pedidos não pecuniários, como de restituição de veículo automóvel locado e extinção do consequente direito potestativo de aquisição e cancelamento registral do ónus de locação financeira.
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            4. Decisão
            Face ao exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos com a notificação da A. para proceder ao seu impulso nos termos acabados de assinalar.
            Sem custas (alín. u), do n.º 1 do art.º 4.º do RCP).
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Coimbra, 12 de Dezembro de 2013


(Francisco M. Caetano)