Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
503/16.5PBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: DIREITOS DE AUDIÊNCIA E DE PRESENÇA DO ARGUIDO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 61.º, N.ºS 1, ALS. A) E B), E 6.º, AL. A); 332.º, N.º 1; 333.º; 343.º, N.º 1; 113.º, N.º 10; 119.º, N.º 1, AL. C) E 122.º, N.ºS 1 E 2, TODOS DO CPP
Sumário: I. A audiência de julgamento pode iniciar-se, decorrer e terminar na ausência do arguido, mas tudo isto desde que o mesmo esteja notificado das datas de cada uma das sessões, nos termos do n.º 10 do art.º 113.º do CPP, em respeito pelos princípios da audiência e presença, consignados na lei.

II. Em consequência, por não ter sido determinada a notificação do arguido para a última sessão da audiência, verifica-se a nulidade do art.º 119.º, n.º 1, al. c), do CPP, a qual determina a anulação de todos os actos subsequentes, nos termos do art.º 122.º, n.ºs 1 e 2, ainda deste diploma.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Por sentença de 10-10-2018, o arguido NC foi condenado pela prática de um crime de furto e de um crime de extorsão, dos art. 203º, nº 1, e 223º, nº 1, ambos do Código Penal, nas penas, respectivamente, de um ano de prisão e de dois anos de prisão.

Feito o cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de dois anos e quatro meses de prisão.

2.

O arguido recorreu, concluindo que:

- a notificação do arguido para a audiência de leitura da sentença é obrigatória, nos termos dos art. 61º, nº 1, al. a), e 113º, nº 10, do C.P.P.;

- a omissão desta notificação constitui nulidade insanável, do art. 119º, al. c), do C.P.P.;

- no caso não foi feita esta notificação;

- esta nulidade determina a invalidade da audiência de leitura da sentença realizada e da própria sentença, por depender de acto nulo;

- deverá ser ordenada a repetição da audiência de leitura da sentença, depois das diligências de notificação do arguido para comparecimento;

(…)

- a sentença recorrida violou os art.ºs 61º, nº 1, al. a), 113º, nº 10 e 119º, al. c), do C.P.P. (…).

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu defendendo a manutenção do decidido.

Sobre a nulidade da leitura de sentença, derivada da falta de notificação para a respectiva sessão, disse que da conjugação dos art. 332º e 333º do C.P.P. resulta um mecanismo que concilia a salvaguarda dos interesses do arguido com o interesse público da administração célere e eficiente da justiça.

            No caso o arguido foi regularmente notificado da audiência e faltou injustificadamente. Foi proferido despacho considerando a sua presença desnecessária e procedeu-se ao julgamento, em conformidade com o disposto nos nº 1 e 2 do art. 333º do C.P.P.

            O julgamento continuou e foram emitidos mandados com vista à comparência do arguido. Esta decisão foi notificada ao arguido. O arguido faltou, de novo, e não justificou a falta e os mandados não foram cumpridos por desconhecimento do paradeiro.

Marcou-se nova data para a leitura da sentença e para esta o arguido não foi notificado, mas esta situação não se enquadra no art. 119º, al. c), do C.P.P. Do elenco de actos de notificação obrigatória ao arguido, constantes do nº 10 do art. 113º do C.P.P., não consta o de leitura de sentença.

            Mais disse que mesmo que assim se não entendesse nunca esta nulidade abrangeria a sentença proferida.

O acto processual de leitura pública da sentença não visa dar oportunidade

ao arguido para exercer a sua defesa e não existe disposição legal que determine a obrigatoriedade da presença do arguido nem a sua notificação expressa para o efeito. Se se entender que o acto de leitura da sentença deverá ser notificado pessoalmente ao arguido julgado na ausência, então nestes casos o tribunal tem que interromper a audiência para notificar o arguido para a leitura da sentença, solução que manifestamente contraria a própria letra e o espírito da lei.

            (…)

Cumpre decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

(…)

8.

Do processo resultam mais os seguintes factos, relevantes à decisão:

- a primeira sessão do julgamento ocorreu em 18-9-2018, o arguido foi notificado da mesma para a residência constante do TIR e faltou;

- o Ministério Público promoveu que a audiência tivesse início e a defensora do arguido não se opôs e nada requereu;

- sobre a situação foi proferido o seguinte despacho: «Uma vez que o arguido se mostra regularmente notificado, não compareceu nem comunicou a impossibilidade de comparência no prazo legal, vai condenado em multa, pela falta injustificada que se fixa em 3 UC's. Porque se considera útil a presença do mesmo na audiência, e em face da falta injustificada do mesmo, mais se determina a emissão de mandados de detenção do arguido para comparência em data a designar.

Notifique ainda o arguido, por via postal simples na morada constante do TIR prestado, da nova data a designar.

Uma vez que a presença do arguido não é imprescindível desde o início da audiência, dar-se-á a início à mesma com a inquirição dos demais presentes»;

- o julgamento continuou em 3-10-2018, o arguido foi notificado deste despacho para a morada constante do TIR e faltou;

- o arguido não foi detido por não ter sido localizado pelos OPC;

- nesta sessão foi proferido o seguinte despacho: «Revelando-se inviável o conhecimento do paradeiro do arguido e assegurar a comparência do mesmo em audiência, dá-se por finda a produção de prova»;

- foi designado o dia 10-10-2018 para a leitura da sentença;

- não se procedeu à notificação do arguido para a sessão de leitura da sentença.

*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a decidir respeitam à verificação da nulidade derivada da não notificação do arguido para a leitura da sentença (…).


*

            O arguido começou por imputar à sentença a nulidade do art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal, por não ter sido notificado para a sessão do julgamento de leitura da sentença, em violação do disposto nos art. 61º, nº 1, al. a) e 113º, nº 10, ambos do Código de Processo Penal.

            O art. 61º do C.P.P. estabelece os direitos e deveres processuais do arguido e diz, no seu nº 1, al. b), que este goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.

Este direito da audiência, genericamente atribuído ao arguido nesta norma, confere a todo o participante processual o direito de, através da sua audição, influir na declaração do direito.

            Audiência deriva de “audire”, ouvir, e o paradigma do direito de ser ouvido é a audiência de discussão e julgamento.

Para além do direito de audiência temos o direito de presença, que também integra o processo justo e equitativo, precisamente por ser, ainda, um direito de defesa. Este direito de presença, previsto na al. a) mesma norma, consubstancia-se na possibilidade de o arguido estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito.

Esta é a perspectiva à luz dos direitos do arguido.

Na perspectiva dos deveres, temos o seu reverso no nº 6, al. a), quando estabelece como dever do arguido o de comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou perante os órgãos de polícia criminal sempre que para tal seja devidamente convocado.

É o direito de presença que dá ao arguido a possibilidade de tomar posição sobre o material probatório que for sendo coligido e que lhe faculta uma relação de imediação com os meios de prova e com a investigação.

Portanto, o arguido tem o direito de estar presente em julgamento e tem o direito, ainda, de falar sobre qualquer questão que lhe diga respeito.

            Na linha do estabelecido no art. 61º, quanto aos direitos e deveres do arguido, dispõe o nº 1 do art. 332º do C.P.P. que «é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos nº 1 e 2 dos artigos 333º …».

            O art. 333º, subordinado à epígrafe “falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência”, determina, nos nº 1 e 2, que se o arguido, regularmente notificado, não estiver presente no início da audiência, esta só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.

            Esta norma pressupõe que o arguido esteja notificado da data da realização da audiência. Se o não estiver esta terá que ser adiada, ao abrigo dos art. 61º e 332º do C.P.P.

E mesmo que o tribunal não adie a audiência com fundamento na falta do arguido, ele mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento e, se a falta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do nº 3 do art. 333º do C.P.P.

            Precisamente por isso a lei determina, no nº 1 do art. 343º do C.P.P., que aquando do início das declarações do arguido em audiência este deve ser informado «de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo …».

            Do exposto resulta, portanto, que o arguido tem o direito, e o dever, de estar presente na audiência e de que tem o direito de prestar declarações em qualquer momento.

            E por isso o nº 10 do art. 113º do C.P.P., que trata das regras gerais sobre notificações, determina que a notificação respeitante à designação de dia para julgamento deve ser feita também ao arguido.

No art. 328º do C.P.P. a lei adoptou o princípio da continuidade da audiência, admitindo, porém, as interrupções julgadas necessárias.

No entanto, a audiência, mesmo que sofra várias interrupções, é uma só.

Ora, se o arguido tem que ser notificado da data da audiência, se tem o direito e o dever de estar presente, se tem o direito de prestar declarações sobre o objecto do processo em qualquer momento da audiência, então terá que ser notificado de todas as datas em que as várias sessões de julgamento tenham lugar.

Terminando o julgamento com a leitura da sentença, então o arguido terá também que ser notificado da sessão de julgamento para leitura da sentença, nos termos do nº 10 do art. 113º do C.P.P., caso esta leitura não ocorra numa das sessões anteriores.

A audiência de julgamento pode iniciar-se, decorrer e terminar na ausência do arguido, mas tudo isto desde que o arguido esteja notificado das datas de cada uma das sessões, nos termos do nº 10 do art. 113º do C.P.P., em respeito pelos princípios da audiência e presença, consignados na lei.

Em consequência, ao não ter sido determinada a notificação do arguido para a última sessão da audiência, verifica-se a nulidade do art. 119º, al. c), do C.P.P., que determina a anulação de todos os actos subsequentes, nos termos do art. 122º, nº 1 e 2, do C.P.P.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na procedência do recurso, declara-se a nulidade de todo o processado desde a designação da sessão para a leitura da sentença, devendo retomar-se o processado com a designação de nova data para leitura da sentença e notificação do arguido da mesma.

Sem custas.

Elaborado em computador, revisto e assinado electronicamente – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 17 de Dezembro de 2020

Olga Maurício (relatora)

Luís Teixeira (adjunto)