Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3156/23.0T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO PARA FIXAÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO
GARANTIA BANCÁRIA
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: U
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 623.º A 626.º E 647.º, 4, DO CPC
Sumário:
I – A prestação de caução para fixação de efeito suspensivo ao recurso, prevista no nº 4, do art. 647º do n.C.P.Civil, opera a possibilidade de ser atribuído efeito suspensivo a qualquer decisão para o qual a lei não o preveja expressamente, mas está dependente, por um lado, da prova, pelo recorrente, dos factos que permitem concluir no sentido de que só a suspensão do processo ou da decisão recorrida evitará o prejuízo considerável que pode emergir da atribuição de efeito meramente devolutivo e, por outro lado, da dedução, pelo mesmo recorrente, do incidente de prestação de caução.

II – Tal caução tem por objetivo assegurar o cumprimento da “obrigação garantida”.

III – Sendo no caso vertente a “obrigação garantida” o accionamento (imediato), por parte da dona de obra, duma “garantia bancária” emitida a seu favor, a pedido da empreiteira, por instituição bancária, destinada a garantir a correção dos putativos defeitos da obra realizada por esta empreiteira, o crédito da dona de obra encontra-se, no essencial e à partida, acautelado por via da existência e do accionamento da garantia bancária ajuizada.

IV – Se existe algo mais a acautelar, tal será o risco da demora na execução da decisão, mormente uma previsível e normal inflação dos valores orçamentados para as reparações dos defeitos, e bem assim dos riscos/imponderáveis do agravamento da situação dos danos, com os custos acrescidos que a tal poderão estar associados, mas para tal, à luz de critérios de adequação e proporcionalidade, mostra-se suficiente um acréscimo de 10% sobre o valor da garantia bancária ajuizada.

Decisão Texto Integral:

Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

A..., SLU”, sociedade comercial de direito espanhol, com sede na ... B, parcela ..., ..., Espanha, propôs procedimento cautelar comum contra “B..., UNIPESSOAL LDA.” e “BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.”, ambas com os demais sinais identificadores constantes dos autos, tendo em vista o decretamento das seguintes providências: a)  proibição da Requerida executar a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Requerente ou, caso a mesma já tenha sido apresentada para pagamento, deve ser ordenado ao Banco Requerido que não proceda ao seu pagamento à Requerida; b) aceitação de depósito autónomo como substituição dessa garantia bancária.

Por sentença proferida nesses autos cautelares, foi julgado o procedimento cautelar procedente e decretada a seguinte providência: proibição da Requerida executar a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. ou, caso a mesma já tenha sido apresentada para pagamento, determinar que o Banco Requerido que não proceda ao seu pagamento à Requerida.

Posteriormente, na sequência da oposição deduzida pela Requerida – dado que não tinha sido ouvida previamente – foi proferida sentença a revogar a providência.

                                                           *

A Requerente interpôs recurso de apelação desta última sentença em 11.01.2024, e requereu a fixação de efeito suspensivo ao recurso, alegando considerar dispensável prestar caução na medida em que já se encontra acautelado o crédito da Requerida por via do acionamento da garantia bancária em referência, mas, ainda assim, ofereceu-se para prestar caução nos autos mediante depósito autónomo à ordem dos mesmos no montante de € 13.800,00 [que corresponde ao montante atribuído no Relatório Pericial realizado a pedido da Requerente para reparações da eventual responsabilidade desta, atentando ainda que a Requerente tem um crédito sobre a Requerida no montante de € 63.047,30], sem prejuízo de outro valor que venha a ser considerado nos termos do disposto no artigo 650.º do CPC, suficiente para acautelar qualquer dano que a Requerida possa alegar e provar poder ser causado pela manutenção da providência cautelar.

Em resposta a este pedido, a Requerida sustenta que não é de concluir pela verificação de um efetivo prejuízo considerável na esfera jurídica da Requerente pela execução da decisão proferida, porquanto não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre o accionamento da garantia bancária e a sua insolvência, afirmando que a suspensão da execução da decisão cautelar representa para si um prejuízo consideravelmente superior, decorrente da paragem das suas linhas de produção, pelo que a prestação de caução não tutelará suficientemente os seus interesses, avançando ainda que a lei não dispensa que uma caução seja prestada, devendo, nesse caso, o seu valor corresponder a uma quantia nunca inferior a € 480.380,45, valor orçamentado para a reparação dos defeitos.

                                                           *

De referir que, neste entretanto, o “Banco Comercial Português, S.A.” havia endereçado à Requerente no dia 10/11/2023 uma carta, onde refere que, uma vez levantado o impedimento (se isso ocorrer), ficará aquele Banco obrigado a proceder ao pagamento dos valores requeridos, honrando a garantia bancária, a saber:

                                                           *

Na sequência, o Tribunal de 1ª instância proferiu a seguinte decisão:

«(…)

Cumpre decidir.

O artigo 647.º, n.º 4 do Código de Processo Civil estatui que fora dos casos previstos no número anterior, o recorrente pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efectiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal.[2]

A lei deferiu ao julgador a tarefa de apreciar quando é que a execução da decisão terá os efeitos previstos na norma e a jurisprudência tem esclarecido que o deverá fazer mediante critérios rígidos.

Devemos, pois, ter em conta o âmbito da decisão recorrida para avaliarmos se a execução da decisão causa, à Recorrente, prejuízo considerável.

Nestes autos cautelares, a pretensão da Requerente/Recorrente, manifestada no requerimento inicial, foi a de ver proibida a execução da garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Recorrente, mediante a aceitação de depósito autónomo como substituição dessa garantia bancária.

Por douta sentença cautelar foi julgado o presente procedimento cautelar procedente e decretada a seguinte providência: proibição da Requerida executar a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. ou, caso a mesma já tenha sido apresentada para pagamento, determinar que o Banco Requerido que não proceda ao seu pagamento à Requerida.

Posteriormente, na sequência da oposição deduzida pela Requerida – dado que não tinha sido ouvida previamente – foi proferida sentença a revogar a providência, decisão essa que, naturalmente, com a fixação de efeito meramente devolutivo ao recurso interposto, permitirá que a Requerida seja paga pelo montante de €806.000,00 (correspondente a 10% do valor da obra).

Ora, ressalvando melhor juízo, a factualidade alegada pela Requerente – na medida em que está indiciariamente provada em 71 a 73 da decisão ora sindicada (a Requerente tem presentemente 87 funcionários; em função da pandemia a Requerente vive ainda um período difícil e mantém um elevado financiamento bancário; a execução da garantia bancária pode provocar a denúncia das linhas de crédito e convocar a insolvência da Requerente) – é susceptível de consubstanciar um prejuízo significativo na sua esfera jurídica.

Neste conspecto, entende-se que a Requerente demonstra, como lhe competia, o primeiro pressuposto exigido para a suspensão da execução da decisão.

Mas a norma exige, cumulativamente, que seja prestada caução idónea para compensar a paralisação dos efeitos que se extraem imediatamente da decisão, impondo-se que o Recorrente, que convenceu da necessidade de se evitar um prejuízo considerável, requeira a prestação de caução e indique o valor que oferece e o modo de o efectivar.

No vertente caso, ajuizamos que a quantia a caucionar deve corresponder, efectivamente, ao maior dos valores orçamentados para as reparações necessárias para corrigir os defeitos da obra (facto 67. da decisão final), ou seja, € 480.380,45, deduzida da quantia de € 63.047,30 (que a Requerida tem em dívida para com a Requerente tal como provado em 16.), sem desconsiderar a prova indiciaria feita no sentido de que a Requerida poderá ter prejuízos consideráveis com uma eventual paragem de produção exigida para essa reparação (facto 68), mas cientes de que a sua responsabilidade global (em função do pedido cautelar) se fixa no valor da garantia bancária constituída (de € 806.000,00).

Destarte, decide-se deferir o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto condicionando-o, todavia à efectiva prestação de caução, no montante de € 417.333,15 (quatrocentos e dezassete mil, trezentos e trinta e três euros e quinze cêntimos), através de depósito autónomo à ordem dos autos, a realizar no prazo de 10 dias.

Notifique.»

                                                           *

Inconformada com uma tal decisão, apresentou a Requerente/recorrente recurso de apelação contra a mesma [cf. «(…) não se conformando com a parte da decisão contida naquele Despacho que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia ou, no limite, a sua prestação por € 13.800,00 (e apenas quanto a esta parte)»], cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

«A. O Tribunal a quo ao indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia ou, no limite, a sua prestação por € 13.800,00 para a atribuição de efeito suspensivo ao Recurso da Douta Sentença que revogou a providência cautelar decretada e ao obrigar à prestação de caução no montante de € 417.333,15, a realizar, através de depósito autónomo à ordem dos autos, no prazo de 10 dias, fez, com a merecida consideração e o devido respeito, errada interpretação dos factos e incorrecta aplicação do Direito.

B. A providência cautelar, do qual os presentes constituem incidente processado por apenso, visa a proibição da Recorrida de executar a garantia bancária nº ...75 emitida a seu favor, a pedido da Recorrente, pelo Banco Comercial Português, S.A. que garante o custeio da correcção dos putativos defeitos de obra realizada pela Recorrente para a Recorrida ou, caso a mesma já tenha sido apresentada para pagamento, como foi, que o Banco Comercial Português, S.A não proceda ao seu pagamento à Recorrida;

C. A responsabilidade global da Recorrente (em função do pedido cautelar) fixa-se no valor da garantia bancária constituída e pretendida inibir (de € 808.600,00) – conforme resulta, e bem, do Despacho Recorrido.

D. A função da caução - para efeitos de atribuição de efeito suspensivo à Apelação - consiste em assegurar o cumprimento pela Recorrente das suas obrigações perante a Recorrida nos limites em que a garantia bancária os assegura e em nenhuns outros. Essa função subsiste até que a obrigação se mostre cumprida ou assegurada por outra garantia igualmente idónea.

E. A Recorrida dispõe de garantia bancária emitida a seu favor pelo Banco Comercial Português para assegurar o custeio da correcção dos putativos defeitos da obra executada pela Recorrente para a Recorrida. Esta, como a outra que o Tribunal a quo erradamente ordenou prestar, destinam-se exactamente ao mesmo – ressarcir a Recorrida dos custos que a correcção daqueles defeitos lhe possam acarretar. Até ao limite garantido.

F. Não se cuida no processo cautelar, de que este incidente de prestação de caução é apenso, de quaisquer putativos danos de montante superior. Em nenhum momento, nesta sede, seriam concedidos à Recorrida que, aliás, não os peticionou, pugnando apenas para que a garantia bancária, naquele exacto montante de € 808.600,00 (e nenhum outro), lhe fosse paga de imediato.

G. Se o Recurso da Douta Sentença que revogou a providência cautelar decretada vier a ser julgado improcedente, a Recorrida receberá do Banco garante o exacto montante que pretende lhe seja pago (€ 808.600,00). E nenhum outro.

H. A função da caução que o Tribunal a quo erradamente ordenou prestar já se encontra pois assegurada pela garantia bancária, manifestamente idónea, de que a Recorrida é beneficiária. O valor já garantido (€ 808.600,00) corresponde, na realidade quase duplica, o quantitativo provável do crédito que o Tribunal a quo indiciariamente reconheceu à Recorrida (€ 480.380,45).

I. Por carta datada de 10/11/2023 e junta aos autos cautelares, o Banco Comercial Português, S.A. afirmou já que, se e quando levantado o impedimento decorrente do inicial decretamento da providência, ficará aquele Banco obrigado a proceder ao pagamento dos valores requeridos pela Recorrida, honrando a garantia bancária.

J. Prestar nova caução em cima da garantia já disponível redundaria num acto inútil para a Recorrida pois, a obter vencimento a final, nos autos cautelares, e apenas destes cuidamos, então já receberá do Banco Comercial Português o valor que entende, porque já apresentou a garantia a pagamento, ser-lhe devido.

K. Ao invés, se a Recorrente fosse obrigada à prestação de caução nos termos decididos, passaria a estar a Recorrida garantida num valor em que nunca esteve, € 1.225.933,15 (€ 808.600,00 + € 417.333,15), e que jamais poderia reclamar nesta providência, como nunca reclamou, o que significa que a caução determinada prestar de nada lhe aproveitaria.

L. A garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Recorrida no valor de € 808.600,00, além de idónea, mostra-se qualitativa e quantitativamente ajustada à tutela efectiva dos interesses que foram provisoriamente reconhecidos à Recorrida.

M. Nenhum direito da Recorrida há a acautelar que não esteja já acautelado pela garantia bancária de que a Recorrida é beneficiária, não exigindo o nº 4 do art. 647º do CPC que perante uma garantia idónea e suficiente, outra haja de ser prestada para obter o efeito suspensivo do Recurso interposto.

N. Não se compreende como, no caso presente, a caução tivesse a virtualidade de “compensar a paralisação dos efeitos que se extraem imediatamente da decisão”, sendo, também por isso, inútil.

O. A dispensa da prestação de nova caução não causa quaisquer prejuízos à Recorrida, que, nas suas contra-alegações, não pugna por qualquer valor superior. Pugna tão só porque o Recurso tenha efeito meramente devolutivo o que vale por dizer que pretende que o valor já garantido - € 808.600 – lhe seja entregue de imediato, o que nunca sucederia fosse ou não prestada a caução, atento o efeito suspensivo decretado.

P. A atribuição de efeito meramente devolutivo ao Recurso da Douta Sentença que revogou a providência cautelar decretada corresponderia a negar o direito à Apelação pois, paga que seja a garantia bancária, prejudicada ficaria, desde logo, a pretensão da Recorrente passando a a Sentença da 1ª Instância a ser insindicável.

Q. A previsão de prestação de caução do nº 4 do art. 647º do Código de Processo Civil, tem de ser entendida como forma de garantir a Recorrida de que, enquanto é julgado o Recurso, não poder vir a sofrer da deterioração da condição financeira ou outra da Recorrente para a ressarcir do montante em que esta indiciariamente teve vencimento. Não serve, naturalmente, para penalizar a Recorrente nem para oferecer em excesso à Recorrida quantia ou valor a que a mesma não tem direito, não reclamou e não lhe poderia ser pago por aquele depósito autónomo.

R. O Douto Despacho Recorrido, ao indeferir a dispensa de prestação de garantia, violou os princípios da adequação e da proporcionalidade e o disposto nos arts. 130º e 647º, nº 4 ambos do Código de Processo Civil, devendo ser revogado da ordem jurídica e substituído por Douto Acórdão que considere que a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Recorrida no valor de € 808.600,00 corresponde a caução idóneia e suficiente para a atribuição de efeito suspensivo à Apelação da Douta Sentença que revogou a providência cautelar decretada.

               Termos em que julgando o presente Recurso procedente e revogando o Despacho Recorrido, substituindo-o por Acórdão reconheça que a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Recorrida no valor de € 806.000,00, se mostra idónea e qualitativa e quantitativamente ajustada à tutela efectiva dos interesses que foram provisoriamente reconhecidos à Recorrida, servindo esta como caução, para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 647º do CPC, e dispensando-se a Recorrente da prestação de nova caução, Vossas Excelências farão recta e sã

               Justiça!»

                                                                 *

Por sua vez, apresentou a Requerida/recorrida “B..., UNIPESSOAL LDA.” contra-alegações a tal recurso, nas quais concluiu, para o que ora diretamente releva, no sentido de que «(…) caso proceda a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, a caução a prestar sempre deverá corresponder a um valor nunca inferior a €480.380,45.»

                                                           *

            Cumprida a formalidade dos vistos nesta instância de recurso e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

(des)acerto da decisão que deferindo o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao Recurso interposto pela Requerente da Sentença que revogou a providência cautelar decretada, o condicionou, todavia, à efectiva prestação de caução através de depósito autónomo no montante de € 417.333,15.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede.

                                                                       *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso aferir e decidir do (des)acerto da decisão que deferindo o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao Recurso interposto pela Requerente da Sentença que revogou a providência cautelar decretada, o condicionou, todavia, à efectiva prestação de caução através de depósito autónomo no montante de € 417.333,15.

Vejamos, antes de mais, algumas ideias base concernentes ao critério de apreciação e decisão da questão recursiva.

Nos termos do art. 647º, nº 4 do n.C.P.Civil, «Fora dos casos previstos no número anterior, o recorrente pode requerer, ao interpor recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal.» [com sublinhados da nossa autoria]

Assim, no caso vertente, a caução surge como pressuposto da atribuição ao recurso de efeito suspensivo.

Não se discute neste recurso o primeiro pressuposto exigido para a suspensão da execução da decisão, a saber, que a execução da decisão causava prejuízo considerável à Requerente/recorrente.

Antes e apenas está em causa no mesmo a prestação de caução pela Requerente/recorrente, posto que, recorde-se, a mesma começa por sustentar que a prestação de caução mediante depósito autónomo é dispensável, na medida em que já encontra acautelado o crédito da Requerida por via do accionamento da garantia bancária nº ...75 emitida pelo “Banco Comercial Português, S.A.” [o qual declarou que honrará essa garantia].

É certo que resulta efetivamente apurado estar no presente momento salvaguardado o perigo do prazo de vigência da garantia.[3]

Por outro lado, sendo atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto, daí decorre o não pagamento da “garantia bancária” durante o período de apreciação do recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Assim sendo, s.m.j., tendo a caução a prestar como finalidade obter esse efeito suspensivo, do que se trata nesta sede recursiva é avaliar se a caução é necessária e/ou cumpre a sua função específica, a saber, a de garantir a Requerida ora recorrida quanto aos riscos da dilação da decisão, mormente os que eventualmente decorreriam da possível dissipação do património da Requerente ora recorrente.

Na verdade, constituindo a caução um meio de garantia especial das obrigações, deve a mesma, até em termos meramente semânticos, mas também e sobretudo técnicos, assegurar o cumprimento da “obrigação garantida”.

Consabidamente, a prestação de caução figura entre as garantias especiais de obrigações que o Código Civil prevê, concretamente na secção I do Capítulo VI, encontrando-se regulada nos artigos 623º a 626º, dos quais resulta que a caução consiste «em toda e qualquer garantia que, por lei, decisão judicial ou negócio jurídico, é imposta ou autorizada para assegurar o cumprimento de obrigações eventuais ou de amplitude indeterminada»[4], servindo «normalmente, para tutelar a posição de uma pessoa a quem vão ser exigidos determinados sacrifícios, numa altura em que não seja possível ajuizar da sua justeza e dimensão. O beneficiário deve, pois, garantir a posição do sacrificado, para a eventualidade de o sacrifício se afirmar inútil ou de haver excesso da sua parte»[5].

Ora, a “obrigação garantida” no caso vertente é precisamente o accionamento (imediato) da garantia bancária, isto é, a Requerida ora recorrida ser paga desde já pelo montante de € 806.000,00 (correspondente a 10% do valor da obra).

Será então que existe necessidade/justificação para ser prestada uma caução no caso vertente, que o mesmo é dizer, de ser assegurado o cumprimento da garantia bancária em causa?

Temos presente que de um ponto de vista jurídico, e em tese geral, a garantia bancária em causa constitui meio idóneo para acautelar os direitos da Requerida ora recorrida, tanto mais que tratando-se de garantia autónoma o garante [leia-se, o “Banco Comercial Português, S.A.”] não pode opor ao beneficiário [leia-se, à Requerida ora recorrida] os meios de defesa ou exceções decorrentes das suas relações com o devedor [leia-se, com a Requerente ora recorrente]…

Na decisão recorrida entendeu-se, em síntese, que devia ser prestada a caução «para compensar a paralisação dos efeitos que se extraem imediatamente da decisão», sendo que a mesma «(…) deve corresponder, efectivamente, ao maior dos valores orçamentados para as reparações necessárias para corrigir os defeitos da obra (facto 67. da decisão final), ou seja, €480.380,45, deduzida da quantia de € 63.047,30 (que a Requerida tem em dívida para com a Requerente tal como provado em 16.) (…)».

Também se poderia argumentar que, no caso presente, a prestação de caução é naturalmente justificada pela circunstância de a possibilidade de ser atribuído efeito suspensivo a qualquer decisão para o qual a lei não o preveja expressamente, está dependente, por um lado, da prova, pelo recorrente, dos factos que permitem concluir no sentido de que só a suspensão do processo ou da decisão recorrida evitará o prejuízo considerável que pode emergir da atribuição de efeito meramente devolutivo [aspeto relativamente ao qual não há litígio entre as partes!], e, por outro lado, da dedução, pelo mesmo recorrente, do incidente de prestação de caução – nisso se traduzindo aquilo que já foi designado por “exigência cumulativa de duplo componente[6].

Em contraposição, sustentou-se nas alegações recorridas pela seguinte forma:

«(…) Da Apelação interposta da Sentença que revogou a providência cautelar decretada podem advir um de dois resultados:

a) A Sentença que ordenou o levantamento da providência é revogada, como se espera, e então o Banco garante não pagará a garantia bancária pois a Recorrida não tem o direito a tal pagamento por não ter qualquer dano indemnizável, ou;

b) A Sentença é confirmada e então o Banco garante, como já afirmou que faria, pagará o montante já garantido à Recorrida, ficando esta ressarcida dos danos sofridos pelo exacto montante cuja garantia assegurava.

Perante os dois resultados possíveis, forçoso é concluir que a garantia bancária nº ...75 emitida pelo Banco Comercial Português, S.A. a favor da Recorrida no valor de € 808.600,00, se mostra qualitativa e quantitativamente ajustada à tutela efectiva dos interesses que foram provisoriamente reconhecidos à Recorrida e que nenhum outro direito lhe assiste nesta sede.»

Isto é, será que efetivamente a responsabilidade da Requerente ora recorrente (ainda que indiciária), já se encontra in casu caucionada, e o crédito da Recorrida (também indiciariamente reconhecido, não obstante o recurso interposto), já se encontra acautelado por via da existência e do accionamento da garantia bancária ajuizada?

Salvo o devido respeito, no caso vertente, se é certo que a argumentação da Requerente ora recorrente se mostra com insofismável pertinência, a resposta à nossa interrogação de base [saber se existe necessidade/justificação para ser prestada uma caução no caso vertente, que o mesmo é dizer, de ser assegurado o cumprimento da garantia bancária em causa] é-nos decisivamente dada pela incontornável e necessária demora na decisão do recurso.

Isso tendo presente os objetivos garantísticos da caução.

Na verdade, é factual e objetivo que, por via da interposição do recurso da decisão sobre a sentença final do procedimento cautelar comum, conjugada com a suspensão da execução da decisão [que foi requerida, e em caso de ser deferida!], haverá uma paralisação dos efeitos decorrentes da mesma, in casu, permitir que a Requerida ora recorrida fosse paga no imediato pelo montante de € 806.000,00.

Esta paralisação, com a correspondente dilação na execução da decisão, prolongar-se-á por todo o tempo em que esse recurso estiver pendente.

A qual terá uma duração a esta data imprevisível.   

Contudo, não entendemos que a compensação pela paralisação dos efeitos da decisão da qual foi interposto recurso tenha ou deva ser calculada em função do maior dos valores orçamentados para as reparações necessárias para corrigir os defeitos da obra.

É que o crédito da Requerida ora recorrida encontra-se, no essencial e à partida, acautelado por via da existência e do accionamento da garantia bancária ajuizada.

Se existe algo mais a acautelar, tal será o risco da demora na execução da decisão, mormente uma previsível e normal inflação dos valores orçamentados para as reparações dos defeitos, e bem assim dos riscos/imponderáveis do agravamento da situação dos danos, com os custos acrescidos que a tal poderão estar associados.

Mas para tal, à luz de critérios de adequação e proporcionalidade, mostra-se suficiente um acréscimo de 10% sobre o valor da garantia bancária ajuizada, isto é, de € 80.600,00 [= € 806.000,00 x 10%].

O que determina a revogação da decisão recorrida, através da redução da prestação de caução a ter lugar ao montante aludido de € 80.600,00, a qual será prestada através de depósito autónomo à ordem dos autos, a realizar no prazo de 10 dias.

Nestes termos procedendo as alegações recursivas e o recurso.

(…)

                                                           *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, reduzindo a prestação de caução a ter lugar ao montante aludido de € 80.600,00 (oitenta mil e seiscentos euros), a qual será prestada através de depósito autónomo à ordem dos autos, a realizar no prazo de 10 dias.

Custas do recurso pela Recorrente e Recorrida, na proporção de ¾ e ¼, respetivamente.

                                  Coimbra, 9 de Abril 2024

                                                         Luís Filipe Cravo

                                                           Alberto Ruço

                                                       Fernando Monteiro





[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Alberto Ruço
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
[2] Como anota Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição Almedina,  pág. 232-233 e nota 356, o artigo 647.º, n.º 3 alínea d) do CPC reporta-se apenas ao despacho que não ordena a providência excluindo a decisão que, nos termos do artigo 372.º, n.º 3, determine o   levantamento ou a redução de providência anteriormente decretada sem contraditório prévio, pelo que o recurso interposto terá efeito meramente devolutivo nos termos do n.º 1 do artigo 647.º, ficando o eventual efeito suspensivo dependente da alegação e demonstração da ocorrência de prejuízo considerável e da prestação de caução, afirmando ainda que pretendendo o requerente manter de pé a providência cautelar, deva caucionar a sua responsabilidade

[3] Por apesar de ter um prazo limitado a 31 de Julho de 2023, ter sido accionada a garantia dentro do mesmo, como sublinhou o Banco Comercial Português, S.A. na carta supra reproduzida…
[4] Assim LUIS MENEZES LEITÃO, in “Garantias das Obrigações”, 4.ª edição, Livª Almedina, 2012, a págs. 91, nota de rodapé 253.
[5] Citámos agora MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, Tomo IV.


[6] Assim no acórdão do TRG de 13.07.2021, proferido no proc. nº 6874/16.6T8VNF-D.G1, acessível em www.gdsi.ptjtrg.