Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1166/09.0TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 381º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1) Estando em causa a possível existência de uma servidão por destinação de pai de família e perante a omissão do título constitutivo, aquela terá que processar-se de harmonia com a situação existente no momento em que os prédios se separaram.

2) Resultando dos factos provados que a passagem através do prédio serviente da Requerida nunca se processou de carro, tendo-o sido sempre a pé, aquela ao reconstruir um muro no mesmo local onde sempre existiu e não impedindo o exercício da servidão nestas condições, não praticou qualquer esbulho e menos ainda com violência, já que se limitou ao exercício de um direito que era seu.

3) De igual forma limitando-se a Requerida a substituir o portão ali por outro de chapa metálica e com virtualidades idênticas, em nada afectou os direitos dos Requerentes que mantiveram a possibilidade de passar pelo mesmo de forma idêntica à que já antes se verificava.

4) Não se mostrando preenchidos os requisitos da restituição provisória de posse, providência que caberia in casu, não pode pretender-se a subsunção da mesma factualidade no âmbito da providência cautelar não especificada já que esta tem o seu estrito campo de aplicação, não pretendendo constituir a tábua de salvação para um caso que, encontrando na lei a sua sede de previsão e resolução em instituto próprio, naufragou por falta de prova adequada.

Decisão Texto Integral:        1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     A... e B..., solteiros, a residirem na ..., requereram o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra C..., viúva, residente na ....

     Por decisão proferida em 18/08/2009 e junta de fls. 57 a 66 dos presentes autos, foi decretada a providência cautelar requerida, ordenando-se a restituição provisória aos requerentes da posse sobre a servidão de passagem de pessoas e veículos, traduzida na destruição, no prazo de dois dias úteis contados da notificação da decisão, do muro que construiu no leito do caminho à entrada do prédio dos requerentes, e ainda na retirada dos cadeados do portão de maior acesso ao caminho (podendo em alternativa entregar cópia da chave aos requerentes), não devendo ainda a requerida perturbar a passagem dos requerentes pelo caminho com as suas viaturas.

     Notificada, a requerida D...e, inconformada com a decisão proferida, deduziu oposição ao presente procedimento cautelar comum, peticionando a revogação da providência decretada.

     Alegou para tanto e em síntese que a oponente é proprietária quer da casa de habitação quer do logradouro, cuja largura vai desde a casa de habitação até ao muro que sustenta a terra do prédio rústico confinante, tendo o referido imóvel sido adquirido por escritura pública de compra e venda, celebrada em 12.08.1985, a D....

     Tanto os requerentes, como a oponente, para terem acesso às suas casas têm que partilhar um caminho comum, tendo para tal que entrar pelo portão verde, propriedade da requerente, existente há longa data (muito antes dos requerentes serem vizinhos) e que está dividido, fazendo-se a entrada, como sempre se fez, pela parte mais estreita do portão, com cerca de 90 cm. Antes desse portão existia um outro em madeira, embora ligeiramente mais largo, e já nessa altura apenas por aí entravam pessoas e esporadicamente alguns animais, nunca tendo o referido caminho sido destinado a servidão de passagem de carroças e muito menos a viaturas automóveis. Por outro lado, há longa data que existe um muro que fica no fim do caminho, feito em pedra – o qual, pela sua extensão, impedia a passagem de veículos – que foi destruído em Maio de 2009, tendo a oponente procedido à sua reparação, em tijolo, mantendo a abertura que aí existia passado a ser de 1,22 m em vez dos anteriores 90 cm.

     Conclui a oponente pedindo a modificação da decisão judicial, uma vez que, a servidão de passagem sempre foi pedonal (nunca se tendo destinado à passagem de veículos automóveis) pelo que a reconstrução do muro e a colocação de um cadeado no portão não constituem qualquer esbulho da posse dos requerentes e finalmente, a demolição do muro acarreta custos patrimoniais de montante elevado, para além de constituir uma grande injustiça para a oponente.

     Procedeu-se à audiência com observância de formalismo legal.

     Foi proferida sentença que julgou procedente, por indiciariamente provada, a oposição à providência cautelar e, em consequência, decidiu-se revogar a providência cautelar decretada pelos presentes autos, ordenando o seu levantamento.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pelos requerentes, os quais no termo da sua alegação pediram que se revogue o decidido e se defira a providência.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

    

     Conclusões.

     1) Resultou provada a existência duma servidão de pé e carro constituída por destinação de pai de família a favor do prédio dos ora Recorrentes como prédio dominante e onerando o prédio da Recorrida como prédio serviente.

     2) Os ora Recorrentes tinham assim o direito de passar pelo caminho e, em consequência, a posse com os seus elementos constitutivos do corpus e animus.                   

     3) A construção do muro impedindo a passagem das viaturas dos ora Recorrentes por esse caminho, sem qualquer informação prévia, constitui um acto de esbulho e de privação da posse pela violência.

     4) O prédio dos ora recorrentes não dispõe de qualquer outro acesso às vias públicas nem de condições ou possibilidades que permitam estabelecê-lo por outra forma.       

     5) A Sra. Juiz a quo, ao julgar improcedente por não provada a requerida providência cautelar, violou o disposto nos artigos 393º ss do Código de Processo Civil e artigo 1549º do Código Civil.    

     6) Mesmo que o esbulho não tivesse sido provado, deveria ter-se deferido o pedido da providência como comum com base no encravado prédio: ao não o fazer violou a sentença o disposto no artº l 550º do Código Civil.

     Contra alegaram os apelados pugnando pela confirmação do decidido.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

     2. FUNDAMENTOS.

     Com relevo para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes,

     2.1. Factos.

     2.1.1. A oponente é proprietária do imóvel localizado a nascente do imóvel dos requerentes, o qual foi adquirido por escritura pública de compra e venda celebrada em 12 de Agosto de 1985, na Secretaria Notarial de ..., na qual interveio como vendedora D... e como comprador E...casado com a requerida C... no regime de comunhão geral.

     2.1.2. O referido imóvel, sito no ..., freguesia da ..., concelho de ..., está inscrito na matriz predial e é composto por casa de habitação de R/C, com cinco divisões;

     2.1.3. Para além disso, a oponente é também proprietária de um logradouro cuja largura vai desde a casa de habitação até ao muro que sustenta a terra do prédio rústico confinante, que vem sendo utilizado como tal pela requerida desde a aquisição do imóvel.

     2.1.4. É por esse logradouro que se faz o caminho que dá acesso à casa dos requerentes.

     2.1.5. Os requerentes e a oponente para terem acesso às suas casas têm que partilhar um caminho comum.

     2.1.6. Actualmente, e de forma habitual, tanto os requerentes como a oponente têm de entrar pelo portão verde, propriedade da requerente, existente há longa data – há cerca de 10 anos – muito antes de os requerentes serem vizinhos.

     2.1.7. O referido portão está dividido e a entrada faz-se, e sempre se fez, pela parte mais estreita do portão, isto é pela portada menor, com cerca de 1 metro.

     2.1.8. Antes desse portão existia um outro em madeira, embora ligeiramente mais largo, e já nessa altura apenas por aí entravam pessoas, e, esporadicamente, alguns animais.

     2.1.9. Nunca o referido caminho se destinou a servidão de passagem de carroças e muito menos a viaturas automóveis.

     2.1.10. A oponente limitou-se a substituir o antigo portão de madeira pelo actual.

     2.1.11. Há longa data (há pelo menos 40 ou 50 anos) que existe um muro que fica no fim do caminho, e que divide a propriedade dos requerentes da propriedade da requerida, feito em pedra, que sempre foi conservado pela oponente.

     2.1.12. A extensão do muro impedia a passagem de veículos para a propriedade dos requerentes.

     2.1.13. Em meados de Maio de 2009, a oponente constatou que o referido muro, da sua propriedade, foi destruído por acção de alguém, tendo a oponente se limitado a proceder à sua reparação, em blocos, mantendo a abertura que já existia para passagem, a qual deixou de ser de cerca de 90 cm para passar a ser de 1,20 m.

     2.1.14. Os requerentes são possuidores de vários veículos e costumam estacionar os veículos na estrada.

     2.1.15. Os requerentes por diversas vezes utilizaram um caminho de terra batida, pelo meio do pinhal situado nas traseiras da sua casa, para irem com um dos seus veículos – jipe – até sua casa.

     2.1.16. Actualmente não existe qualquer cadeado no portão.

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     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - A restituição provisória de posse. Seus requisitos.

     - Estão preenchidos in casu os requisitos de que depende o decretamento da aludida providência?

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     2.2.1. A restituição provisória de posse. Seus requisitos.

     Através desta providência pretendiam os requerentes que se ordenasse a notificação da requerida para demolir imediatamente, no prazo de dois dias úteis, o muro que construiu no leito do caminho à entrada do prédio dos requerentes e para retirar o cadeado do portão maior de acesso ao caminho ou para dele entregar a chave aos requerentes.

     Os impetrantes fundamentam o seu pedido no facto de ambos os prédios terem em tempos pertencido ao mesmo dono e quando se separaram ficaram sinais bem visíveis da passagem de um prédio para outro traduzida num caminho de terreno calcado e bem definido que serve de acesso aos requerentes e requerido para as respectivas habitações. De salientar ainda a existência de um portão de duas folhas que dá acesso à casa dos requerentes. Estaria assim configurada in casu uma servidão por destinação de pai de família.

     Sucede que a Requerida substituiu o portão existente por outro de ferro com duas chapas de diferentes dimensões, colocando ainda no leito do caminho um muro que veda o acesso de veículos à habitação dos requerentes, contrariando assim um direito adquirido que remontava aos tempos em que a passagem era feita por veículos de tracção animal para além de pessoas.

     A restituição provisória de posse é um procedimento cautelar previsto no artigo 1279º do Código Civil que estatui que "Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador". São pois seus requisitos a) a existência de posse; um acto de esbulho da coisa e b) a violência do esbulho. A sua tramitação processual encontra-se regulada nos artigos 393º a 395º do Código de Processo Civil.

     A providência cautelar surge como um meio expedito de tutela de uma situação de facto enquanto a questão não possa ser apreciada definitivamente. Assim, para além da existência da posse, é necessário que a mesma tenha sido retirada ao possuidor usando a violência, já que não é qualquer esbulho que fundamenta a restituição; contudo, essa violência - artigo 1261º do Código civil - só existe quando o esbulhador utilize a coacção física ou moral sobre o possuidor[1].  

     Mas como toda a providência cautelar a restituição provisória de posse pressupõe que se constate, ainda que de forma perfunctória, a existência dos pressupostos da situação possessória e restantes requisitos; numa segunda fase, de oposição, terá o requerido a possibilidade de infirmar os fundamentos em que assentou a providência decidindo destarte pelo seu indeferimento.

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     2.2.2. Estão preenchidos in casu os requisitos de que depende o decretamento da aludida providência?

     Cabe agora indagar se à luz dos factos provados e da lei aplicável se encontram preenchidos os requisitos a que aludem os artigos 1279º ss do Código Civil.

     A prova produzida subsequentemente à oposição da requerida evidenciou que ambos os prédios dominante e serviente haviam constituído em tempos um todo único e quando se separaram permaneceu o local onde se encontra o portão indiciador sem qualquer dúvida da passagem de um para outro (servidão por destinação de pai de família).

     Todavia quanto à extensão da servidão e na falta de título constitutivo, aquela terá que processar-se de harmonia com a situação existente no momento em que os prédios se separaram[2]. Ora resulta dos factos provados que a passagem através do prédio da requerida nunca se processou de carro, tendo sido sempre exercida apenas a pé e esporadicamente por animais. Nesta conformidade teria que improceder o pedido, porque, tal como foi formulado, pretendia-se a declaração da servidão com a extensão que acima se referiu. Do exposto também se pode concluir que ao reconstruir o muro no mesmo local onde sempre existiu e não impedindo o exercício da servidão a pé, também a Requerida não praticou qualquer esbulho e menos ainda com violência, já que se limitou ao exercício de um direito que era seu. No que toca ao portão a Requerida limitou-se a substituí-lo por outro de chapa metálica, sendo certo todavia que em nada foram afectados os direitos dos requerentes que mantiveram a possibilidade de passar pelo mesmo de forma idêntica à que já antes se verificava.

     No entanto os apelantes pretendem agora ver convolada a providência cautelar de restituição provisória de posse noutra prevista no artigo 381º do Código de Processo Civil – providência cautelar não especificada.

     Estatui o citado normativo legal que "1 – Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.

     2 – O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.

     3 – Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte.

     4 – Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado".

     Ora um dos requisitos essenciais para o decretamento da providência seria a lesão grave e dificilmente reparável do direito; trata-se "do facto constitutivo da situação jurídica invocada pela parte enquanto facto interior à própria previsão normativa do artigo 381º nº 1 do Código de Processo Civil[3]. Mas em nenhum momento dos factos alegados e provados se evidencia tal requisito. Os AA. pretenderam fazer-se restituir à posse de uma servidão que não se provou existir com a extensão que pretenderam conferir-lhe. Acresce que, tendo natureza supletiva, os artigos 381º ss do Código de Processo Civil apenas admitem a sua aplicação, atenta a sua natureza precária, em casos muito ponderosos e após preenchido um exigente condicionalismo. A providência cautelar não especificada tem também o seu estrito campo de aplicação não pretendendo constituir a tábua de salvação para um caso que encontrando na lei a sua sede de previsão e resolução em instituto específico, naufragou por não conseguir preencher os requisitos exigidos para tanto.

     Nesta conformidade sempre a apelação teria que improceder.

                          

     Poderá então assentar-se no seguinte à guisa de sumário e conclusões:

     1) Estando em causa a possível existência de uma servidão por destinação de pai de família e perante a omissão do título constitutivo, aquela terá que processar-se de harmonia com a situação existente no momento em que os prédios se separaram.

     2) Resultando dos factos provados que a passagem através do prédio serviente da Requerida nunca se processou de carro, tendo-o sido sempre a pé, aquela ao reconstruir um muro no mesmo local onde sempre existiu e não impedindo o exercício da servidão nestas condições, não praticou qualquer esbulho e menos ainda com violência, já que se limitou ao exercício de um direito que era seu.

     3) De igual forma limitando-se a Requerida a substituir o portão ali por outro de chapa metálica e com virtualidades idênticas, em nada afectou os direitos dos Requerentes que mantiveram a possibilidade de passar pelo mesmo de forma idêntica à que já antes se verificava.

     4) Não se mostrando preenchidos os requisitos da restituição provisória de posse, providência que caberia in casu, não pode pretender-se a subsunção da mesma factualidade no âmbito da providência cautelar não especificada já que esta tem o seu estrito campo de aplicação, não pretendendo constituir a tábua de salvação para um caso que, encontrando na lei a sua sede de previsão e resolução em instituto próprio, naufragou por falta de prova adequada.

                           *

     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.

     Custas pelo Apelante.


Relator: Paulo Távora Vítor
Exmos. Desemb. Adjuntos:
Drs. Nunes Ribeiro e Hélder Almeida

      [1] Cfr. v.g. José Alberto C. Vieira "Direitos Reais" Coimbra Editora, 2008, pags. 622 ss; Menezes Leitão, Almedina, Coimbra, 2009, pags 624 ss. Rui Pinto Duarte "Curso de Direitos Reais" 2ª Edição Principia, 2007, pags. 289. Na Jurisprudência cfr. Ac. do S.T.J. de 13-11-1984 (P. 72 245) in Bol. do Min. da Just., 341, 401; de 14-11-1994 (P. 86 270) in Bol. do Min. da Just., 441, 202.

      [2] Esta doutrina vem aliás expressa in Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" III, 2ª Edição, pags. 662. Cfr. na Jurisprudência Ac. desta Relação de 17-5-1983 in Col. de Jur., 1983, III, 53;

      [3] Cfr. Rui Pinto "A Questão de Mérito na Tutela Cautelar" Coimbra Editora, 2009, pags. 587.