Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
721/12.5TBGRD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 189.º DO DECRETO-LEI N.º 314/78, DE 27 DE OUTUBRO
Sumário: I. Ao legitimar a intervenção do FGADM quando “a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro”, o legislador disse quanto queria, bastando-se com a demonstração da impossibilidade -prática ou de facto- do credor obter o pagamento das prestações por uma das formas previstas no transcrito n.º 1 do art.º 189.º, não exigindo portando que seja feita prova da frustração da cobrança do crédito de alimentos no âmbito de eventual execução para tanto movida.

II. Trata-se afinal de, reconhecida a inviabilidade da cobrança efectiva e célere da prestação alimentar, garantir que a criança em dificuldades dela não fica privada, assegurando o Estado o pagamento de uma prestação substitutiva.

III. Neste contexto, mal se compreenderia que se exigisse ao credor de alimentos que encetasse previamente pela via da sua cobrança no estrangeiro e só na hipótese de esta se frustrar se encontrasse em condições de beneficiar da prestação substitutiva.

IV. A despeito da existência de instrumentos de direito internacional que visam facilitar a cobrança de alimentos no estrangeiro, inexiste processo de o fazer em termos que, atendendo à simplicidade e celeridade de que se revestem, se equiparem aos previstos no art.º 189.º da OTM.

V. Deste modo, se se apurou apenas que o progenitor inadimplente reside em França, país onde trabalha na construção civil, deverá considerar-se demonstrada a inviabilidade do credor de alimentos obter a prestação pela via de algum dos mecanismos do art.º 189.º da OTM e, consequentemente, legitimada a intervenção do FGADM.

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

A..., divorciada, a residir na Rua (... ) , na Guarda, veio, em representação da filha menor B... , consigo residente, instaurar contra C... o presente incidente de incumprimento, que cumulou com pedido de alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais em vigor relativo à referida menor.

Para o que aqui releva alegou, em síntese, que a menor B... é filha de requerente e requerido, os quais se encontram divorciados.

No âmbito do processo de divórcio foi acordado em 6 de Junho de 2012 -acordo homologado por decisão transitada- que o requerido pai contribuiria a título de alimentos para a filha menor com a quantia de €80,00, a depositar no dia 10 de cada mês em conta bancária para o efeito indicada. Todavia, nunca o requerido cumpriu o acordo celebrado.

Face ao incumprimento por banda do progenitor da menor, foi proferida sentença no apenso C dos presentes autos, na qual foi o faltoso condenado no pagamento da quantia de €887,50 referente às prestações vencidas desde Julho de 2012 a Maio de 2013, ambos inclusive, na sequência do que a requerente instaurou execução para cobrança coerciva do montante apurado.

Sucede que o requerido não pagou nenhuma das prestações que se venceram posteriormente ao referido mês de Maio de 2013, as quais ascendem já ao montante de €733,50 (setecentos e trinta e três euros e cinquenta cêntimos).

Mais alegou ter vindo a suportar em exclusivo os encargos com a saúde da menor, o que se tornou incomportável, sendo certo que não ficou contemplado no acordo celebrado a necessária comparticipação do requerido nestas despesas extraordinárias. Tal omissão constitui fundamento para a alteração dos termos do acordo em vigor, devendo ser aumentada a prestação fixada e o requerido obrigado a comparticipar também naquelas despesas da menor sua filha.

Concluiu requerendo fosse o progenitor remisso condenado em multa, conforme prevê o art.º 189.º, n.º 1 da OTM, no montante de € 249,40 (50.000$) e em indemnização não inferior a € 2.500,00, devendo ser desencadeada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, a fim de se substituir ao devedor.

Mais requereu alteração da prestação fixada, pretendendo o seu aumento para o montante de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros), devendo ficar consignada a necessária comparticipação do requerido pai nas despesas extraordinárias com saúde e educação da menor.

    *

Por despacho de 3/3/2014 (Ref: 3161006), caracterizado o incidente como de natureza mista de incumprimento e de alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor B... , foi determinado que o mesmo prosseguisse a tramitação processual referente ao incidente de alteração, “por se revelar mais abrangente e mais garantística dos interesses das partes e do contraditório”, tendo sido ordenada em conformidade a citação do requerido nos termos e para os efeitos previstos no art.º artigo 182º, n.º 3, da OTM.

O requerido foi citado na morada indicada no requerimento, localizada em França (cf. a/r de fls. 17) e nada disse.

Dispensada a realização de uma conferência de pais, atendendo a que o requerido se encontrava a residir em país estrangeiro, não sendo por isso expectável que comparecesse, foi solicitada à Segurança Social a realização de inquérito social relativo à progenitora requerente e sua filha menor, nos termos do disposto no artigo 177º, n.º 2, da OTM, e determinada a notificação do progenitor para informar nos autos, em 10 dias, “a sua actual actividade profissional, qual seja a respectiva e eventual entidade patronal, e quais sejam os respectivos rendimentos e despesas mensais, efectuando prova documental de tais factos na medida do que for possível”.

Foi junto o Relatório Social e, nada tendo dito o requerido, veio a Il. Patrona nomeada (no âmbito de um outro apenso, ao que se presume), informar neste incidente desconhecer o paradeiro do seu patrocinado.

O M.P. teve vista no processo e emitiu parecer no sentido de o requerido dever ser condenado no pagamento das prestações em falta desde Maio de 2013 até à propositura dos presentes autos, no total de €733,50, devendo o regime do exercício das responsabilidade parentais relativo à menor B... ser alterado de modo a consagrar a obrigação do progenitor suportar metade das despesas extraordinárias com a saúde da mesma, desde que devidamente comprovadas pela progenitora, ficando a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores uma prestação a fixar em montante não inferior a €80,00.

Foi de seguida proferida sentença, por cujos termos ficou decidido:

“-fixar em € 100,00 (cem euros) mensais a pensão de alimentos a favor da menor B... , a suportar pelo progenitor, a depositar até ao dia 10 de cada mês na conta com o NIB nº (...) indicado pela progenitora, sendo que igualmente sobre este recairá o encargo de suportar, em partes iguais, as despesas médicas, medicamentosas e escolares da menor, a cumprir concomitantemente com a obrigação alimentar acima referida, no mês seguinte ao da apresentação do(s) competente(s) recibo(s), sendo que o modo de pagamento efectuar-se-á por qualquer forma documentada;

-a quantia devida será anualmente actualizada, em Janeiro de cada ano, no valor de 1,50€.

-julgar verificado o incumprimento da prestação de alimentos devidos à menor pela sua mãe, condenando-se o requerido a proceder ao seu pagamento;

-verificada a impossibilidade da sua execução nos termos do art.º 189º da OTM, determina-se que a pensão de alimentos ao menor seja a prestar pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição do pai”.

Inconformado, apelou o FGA e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª Vem o presente recurso interposto da douta decisão de 20/11/2014, proferida nos autos à margem indicados, em que o Mmo. Juiz condena o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) a assegurar a prestação de alimentos à menor B... , em substituição do progenitor incumpridor, no montante mensal de € 100,00, com início no mês seguinte à notificação da citada decisão.

2.ª Nos termos do preceituado no art.º 1.º da Lei n.º75/98, de 19 de Novembro e no art.º3.º do DL n.º 164/99 de 11 de Maio, os pressupostos para que o FGADM seja chamado a assegurar as prestações de alimentos atribuídas a menores residentes no território nacional são os seguintes:

- que o progenitor esteja judicialmente obrigado a alimentos ;

- a impossibilidade de cobrança das prestações em dívida nos termos do art.º 189.º da OTM;

- que o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;

3.ª Na douta decisão ora recorrida, a título de factos provados, é referido que o progenitor incumpridor (obrigado originário) reside em França e aí trabalha na construção civil.

4.ª Não obstante, conclui-se pela impossibilidade de cobrança das prestações em dívida nos termos do art.º 189.º da OTM.

5.ª Salvo o devido respeito, da decisão proferida não resulta tal impossibilidade, nomeadamente não resulta que a cobrança das prestações de alimentos não possa ser realizada no estrangeiro, em França, onde, conforme citado na douta decisão, reside e trabalha o obrigado originário.

6.ª A impossibilidade de cobrança das prestações nos termos do art.º 189.º da OTM., salvo o devido respeito, não resulta comprovada e fundamentada.

7.ª A lei exige a verificação cumulativa dos pressupostos/requisitos que condicionam a intervenção do FGADM.

8.ª O FGADM considera que não se verifica a impossibilidade de cobrança das prestações em dívida nos termos do art.º 189.º da OTM, porquanto, salvo o devido respeito, tal não resulta da sentença proferida e não lhe foi remetido qualquer documento que lhe sirva de suporte, apesar de solicitado.

9.ª Pelo que, não se encontram preenchidos os requisitos legais para que o FGADM assegure a prestação de alimentos à menor em causa nos autos, em substituição do devedor incumpridor.

10.ª Conforme resulta da Lei n.º 75/98 de 19 de Novembro e do DL n.º 164/99 de 13 de Maio, a obrigação do Fundo é meramente subsidiária face à obrigação do devedor.

11.ª A prestação a assegurar pelo Fundo não é, pois, incondicional, dependendo da existência e da manutenção dos pressupostos e requisitos exigidos por lei para a sua atribuição (arts. 1.º e 3.º n.º 1 da Lei 75/98; arts. 2.º n.º 2, 3,º n.ºs 1 e 2 e 4.º n.ºs 1 e 2 do DL n.º 164/99).

12. Com efeito, o FGADM apenas pode ser accionado quando aqueles se encontram preenchidos, e, bem assim, quando esgotados todos os meios legais para a obtenção do cumprimento coactivo da prestação pelo devedor, nos termos do disposto no artigo 189.º da OTM (arts. 1.º da Lei 75/98 e 3.º n.º1 al. a) do DL n.º 164/99)”.

Com os aludidos fundamentos, pretende a revogação da decisão recorrida.

Contra alegaram a requerente e a D. Magistrada do M.P., ambas pugnando pela manutenção do julgado.

*

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em confirmar se se encontram reunidos os pressupostos de intervenção do apelante FGA, mais concretamente, se deve considerar-se verificada a impossibilidade da requerente obter o cumprimento coactivo da prestação pelo devedor originário nos termos do disposto no art.º 189.º da OTM.

                                                                           *      

II Fundamentação

De Facto

Não tendo sido impugnada a decisão no que respeita à factualidade tida por pertinente e assente nos autos e inexistindo fundamento para proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a atender:

1. B... nasceu em 29.09.1990, sendo filha de A... e de C... .

2. Por decisão de 6.06.2010 (autos de divórcio – vide acta) e no que à regulação do exercício das responsabilidades parentais da B... concerne, foi determinado que:

a) A menor ficaria a residir com a progenitora.

b) Ambos os progenitores exerceriam em conjunto as responsabilidades parentais relativamente à menor nas questões de particular importância da vida desta.

c) Relativamente às questões da vida corrente da menor, aquele exercício ficou a pertencer em exclusivo à mãe, com quem aquela reside, excepto quando a menor esteja com o pai, competindo então a este durante esses períodos temporais o exercício dessas responsabilidades com a obrigação de não contrariar as orientações educativas definidas pela mãe.

d) A menor passará um fim-de-semana de 15 em 15 dias na companhia do pai, competindo a este ir buscá-la ao sábado a casa da mãe pelas 10:30 horas e entregá-la até às 21:00 horas de domingo, depois de ter jantado com o pai.

e) Em caso de impedimento do pai por motivos profissionais no fim-de-semana que lhe competir ficar com a filha, deverá aquele avisar previamente a mãe logo que disso tenha conhecimento, trocando nessa hipótese com o fim-de-semana seguinte.

f) A menor jantará com o pai às quartas -feiras indo este buscá-la a casa da mãe pelas 19:00 horas, devendo entregá-la pelas 21:30 horas.

g) A menor passará 15 dias das férias de Verão com o progenitor de acordo com a sua disponibilidade e a acordar previamente com a progenitora.

h) Nos aniversários dos progenitores a menor jantará com o progenitor aniversariante.

i) No aniversário da menor, a mesma jantará anualmente de forma alternada alternadamente com mãe e com o pai, iniciando-se este ano com o pai.

j) A menor passará alternadamente os dias 24 e 25 de Dezembro, 31 de Dezembro e 01 de Janeiro com cada um dos progenitores, iniciando-se este ano os dias 24 de Dezembro e o dia 01 de Janeiro com a mãe, e os dias 25 de Dezembro e 31 de Dezembro com o pai.

k) O pai contribuirá mensalmente a título de alimentos com a quantia de 80,00€, a depositar até ao dia 10 de cada mês, na conta com o NIB nº (...) , indicada pela progenitora.

l) O progenitor suportará metade das despesas escolares da menor mediante a apresentação dos respectivos comprovativos pela mãe.

m) A prestação de alimentos acima referida será actualizada anualmente em Janeiro, com início em 2013, no valor de 1,50€.

3. Por sentença já transitada em julgado, o progenitor C... foi condenado a pagar à filha menor B... , o valor de €887,50, referentes às pensões de alimentos relativos aos meses de Julho de 2012 a Maio de 2013 (ambos inclusive), actualmente, objecto de execução, não tendo sido obtido qualquer pagamento.

4. Desde Junho de 2013 até ao presente, o requerido C... não procedeu ao pagamento de qualquer quantia a esse título.

5. O requerido C... reside em França e aí trabalha na construção civil.

6. A menor B... reside com a mãe A... , na Rua (...), Guarda, sendo o respectivo agregado familiar composto pela própria, o companheiro D... , pela filha e por um outro filho, E... , fruto de uma relação anterior.

7. Os rendimentos deste agregado correspondem ao rendimento de reinserção social de que beneficia, no montante de €295,00, e de prestações familiares no montante de €146,17, porquanto, quer a própria, quer o seu companheiro se encontram desempregados.

8. O agregado familiar tem despesas mensais próprias na ordem dos € 625, 00, acrescida das despesas próprias relativas à menor de cerca de €100,00.

         *

De Direito

Da verificação dos pressupostos de intervenção do FGA

Conforme se enunciou supra, a única questão colocada no recurso interposto pelo apelante consiste em indagar da verificação do requisito de intervenção do FGA formulado na al. a) do n.º 1 do art.º 3.º do DL 164/99, de 13 de Maio, alterado pelo DL 70/2010, de 16 de Junho, e pela Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro[1].

A questão suscitada não é nova e, de modo igualmente não inovador, vem merecendo respostas desencontradas por banda dos nossos Tribunais.

O art.º 69.º/1 da CRP reconhece às crianças o direito “à protecção da sociedade e do Estado”.

A Lei de Garantia de Alimentos -Lei 75/98, de 19 de Novembro-, regulamentada pelo DL. 164/99, de 13 de Maio, visou precisamente assegurar, conforme expresso no Preâmbulo deste último diploma, “o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral, direito este constitucionalmente consagrado (artigo 69.º).

Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação, a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais, e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24º).

Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade, e, em última instância, ao próprio Estado, as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.

Depois de afirmar que o diploma cria uma nova prestação social, o legislador veio expressamente atribuir ao Fundo de Garantia a função de “assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor”, assim instituindo um mecanismo de garantia de alimentos a suportar pelo Estado, sendo os pagamentos assegurados pelo fundo criado.

Dispondo sobre os pressupostos de intervenção do FGADM, e para o que aqui releva, o art.º 1.º da referida Lei n.º 75/98 (na redacção da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro) preceitua que:

Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

Consoante o n.º 1 do art.º 2.º deste mesmo diploma, as prestações atribuídas são fixadas pelo Tribunal, não podendo exceder, mensalmente e por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores. Para a determinação do montante, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor (vide n.º 2).

Harmonicamente com tais disposições, sob a epígrafe “Pressupostos e requisitos de atribuição”, o dito diploma regulamentar (DL 164/99, de 13 de Maio, alterado pelo DL 70/2010, de 16 de Junho, e pela Lei n.º 64/2012, de 20 de Dezembro[2]) reitera, no seu artigo 3.º, que:

“1. O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:

a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; e

b) O menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre” (vide n.º 1 do preceito)[3].

Resultando claramente da lei que os aludidos pressupostos de atribuição são cumulativos, o que aqui não se discute, questiona a apelante a verificação do consagrado na al. a) do agora transcrito n.º 1 do referido art.º 3.º porquanto, em seu entender, não está demonstrada nos autos a impossibilidade de tornar efectiva a prestação fixada por algum dos meios previstos no art.º 189.º, e isto porque, diz, resultou apurado e consta como facto assente na sentença apelada que o progenitor incumpridor reside em França e aí trabalha na construção civil.

“Prima facie”, cumpre assinalar que o facto posto em destaque pelo recorrente se encontra efectivamente consignado na sentença, sem que tenha sido questionada a sua inclusão no elenco factual a atender. E por assim ser, não encontra suporte na factualidade apurada a argumentação desenvolvida nas contra-alegações oferecidas, quer pela requerente, quer pela D.ª Curadora, assente no pressuposto de facto, contrariado, de que é desconhecido o paradeiro do progenitor obrigado (antes resultando dos autos que o mesmo foi citado em França, na morada indicada no requerimento inicial como sendo a sua). Por outro lado, se é verdade que, conforme sublinham as contra-alegantes, não são conhecidas as concretas circunstâncias pessoais, sociais, profissionais e económicas em que vive, sabendo-se apenas que trabalha na construção civil, não é menos certo que nenhuma diligência foi feita -ou pelo menos os autos não o documentam- no sentido de apurar tais elementos, informações que, de resto, nem sequer se afigura que fossem particularmente difíceis de obter.

De todo o modo, à luz da referida factualidade, e assente que o requerido pai, progenitor inadimplente, reside e trabalha em país comunitário, na circunstância a França, encontra-se evidenciada, pergunta-se, a impossibilidade de cobrar coercivamente a prestação de alimentos por algum dos meios previstos no art.º 189.º da OTM?

Nos termos deste preceito, “1. Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, observar-se-á o seguinte:

a) Se for funcionário público, ser-lhe-ão deduzidas as respectivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade competente;

b) Se for empregado ou assalariado, ser-lhe-ão deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respectiva entidade patronal, que ficará na situação de fiel depositária;

c) Se for pessoa que receba pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução será feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.”

Dispõe o n.º 2 que “As quantias deduzidas abrangerão também os alimentos que se forem vencendo e serão directamente entregues a quem deva recebê-las”.

Ora, da análise do preceito ressalta que estamos perante um expediente, que podemos denominar de pré-executivo, cujo regime é caracterizado pela grande simplicidade, tendendo a garantir com a maior celeridade possível, atenta a natureza da prestação omitida, a sua efectivação, ficando ainda assegurada a cobrança das prestações vincendas. Não foi assim por acaso, cremos, que o legislador, quando instituiu o FGA e definiu os pressupostos da sua intervenção, se bastou com a demonstração da impossibilidade -prática, dizemos nós- do credor obter o pagamento das prestações por uma das formas previstas no transcrito n.º 1 do art.º 189.º, não exigindo portando que seja feita prova da frustração da cobrança do crédito de alimentos no âmbito de eventual execução para tanto movida. Trata-se afinal de, reconhecida a inviabilidade da cobrança efectiva e célere da prestação alimentar, garantir que a criança em dificuldades dela não fica privada, assegurando o Estado o pagamento de uma prestação substitutiva. E outra não poderia ser a solução se atentarmos na circunstância do FGADM ter sido criado com vocação para acorrer a situações de particular, concreta e manifesta carência, que se não compadecem com procedimentos previsivelmente morosos e de eficácia duvidosa, entendimento que não contraria o papel subsidiário do Estado, atenta a sub-rogação legal consagrada em favor do Fundo.

Já se entendeu que “Residindo o devedor fora de Portugal e tendo ele aí rendimentos, o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores só responderá depois de se ter tentado, sem sucesso, cobrar os alimentos no estrangeiro, a não ser que, atendendo ao país em que ele se encontra, se possa dizer, logo à partida, que isso não é de todo possível”.[4] Partindo da consideração de que existem vários instrumentos jurídicos visando a cobrança de alimentos nos estrangeiro, como é o caso da Convenção para a Cobrança de Alimentos no Estrangeiro de Nova Iorque (1956), da Convenção Relativa ao Reconhecimento e Execução de Decisões em Matéria de Prestação de Alimentos a Menores de Haia (1958) ou do Regulamento (CE) 4/2009 (2008), considerou-se então que “Nada se encontra na letra dos artigos artigo 3.º n.º 1 a) do Decreto-Lei 164/99 e 189.º da OTM que aponte no sentido de que a cobrança coerciva de alimentos tem, necessariamente, que se restringir aos que são obtidos no nosso país. E, tendo em vista "a unidade do sistema jurídico", sabendo-se que o legislador do Decreto-Lei 164/99 e da OTM conhecia a existência de mecanismos para cobrar alimentos no estrangeiro [12], imaginando "que ele entendeu a lei tal como a teria entendido um bom legislador", só se pode concluir que, para os efeitos do citado artigo 3.º n.º 1 a), o referido artigo 189.º tem que se conjugar com os instrumentos jurídicos que visam obrigar a que se concretize o pagamento de alimentos quando o devedor não se encontra em Portugal”. E nestas precisas águas navega o apelante. Todavia, fazendo apelo precisamente ao critério de interpretação das leis consagrado no art.º 9.º do Código Civil, e tendo presente que na reconstituição do pensamento legislativo a letra da lei é, para o intérprete, o ponto de partida e o limite (cf. n.º 2 do preceito), cremos que o legislador criador do Fundo, quando aludiu aos mecanismos de cobrança previstos no art.º 189.º da OTM e apenas a estes, disse precisamente quanto quis, afigurando-se ainda que a razão de ser da solução legal apoia uma interpretação literal/restritiva do preceito. Vejamos:

Conforme se deixou já referido, o FGADM visa acudir a situações de emergência. Por isso mesmo, o legislador quis que, frustrada a cobrança da prestação alimentar por algum dos modos previstos no art.º 189.º da OTM -os mais ágeis de que o sistema dispõe- interviesse de pronto o Fundo para acudir à situação de carência, que é, também ela, pressuposto da sua intervenção. Mal se compreenderia, pois, neste contexto, que se exigisse ao credor de alimentos que encetasse previamente pela via da sua cobrança no estrangeiro e só na hipótese de esta se frustrar se encontrasse em condições de beneficiar da prestação substitutiva.

É certo, reconhece-se, que o Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008, em vigor desde. 18 de Junho de 2011, “relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares” constitui um assinalável passo em frente na prossecução do objectivo de permitir ao credor de alimentos que obtenha facilmente num Estado Membro uma decisão que terá, automaticamente e sem quaisquer formalidades, força executória num outro Estado membro (cfr. o art.º 17.º). Todavia, basta atentar na tramitação aqui prevista, ainda que com o benefício da intermediação da autoridade central, no caso português a DGAJ, para concluir que estamos longe da agilidade de qualquer um dos meios previstos no art.º 189.º da OTM -à distância de um mero despacho- assumindo aqui plena pertinência quanto se expendeu no acórdão desta mesma Relação de Coimbra[5] a propósito justamente de um devedor residente em França. Aí se referiu que “mesmo com o recurso ao Regulamento (CE) nº 4/2009 de 18-12-2008 (…) apenas um tribunal francês pode decidir adjudicar os rendimentos ou bens do devedor de alimentos auferidos naquele país ao menor, por via de um requerimento executivo dirigido às respectivas autoridades: o que, além de estar nos antípodas da celeridade e simplicidade processual visadas pelo dito artigo 189º, mostra a impossibilidade de cobrança dos alimentos pelos meios previstos pelo artigo 189.° da O.T.M…”, considerandos que têm pleno cabimento no caso que nos ocupa.

Reconhece-se ainda que o conforto da intervenção do Fundo pode desmotivar o credor a procurar obter do obrigado originário o pagamento coercivo da prestação a que se encontra obrigado. Todavia, por isso mesmo vem previsto no invocado Regulamento que o termo credor inclui, quer a entidade pública que actua em vez do indivíduo a quem seja devida a prestação de alimentos, quer aquela a quem seja devido o reembolso das prestações fornecidas a título de alimentos (cfr. art.º 64.º), pelo que sempre poderá o Fundo exercitar a cobrança dos alimentos no estrangeiro atenta a sub-rogação legal de que beneficia.

Em suma, tendo-se apurado nos autos apenas e só que o progenitor inadimplente reside e trabalha no estrangeiro, mostra-se verificado o pressuposto da inviabilidade -prática, de facto- da menor credora de alimentos obter a satisfação das prestações por algum dos meios previstos no art.º 189º.º da OTM, encontrando-se assim legitimada a intervenção do FGADM.

        *

III Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo FGDAM, mantendo a sentença apelada.

Sem custas, atenta a isenção subjectiva de que beneficia o Apelante – cfr. art.º 4.º n.º 1, alínea v) do Regulamento das Custas Processuais.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Cf. art.º 17.º da aludida Lei nº 64/2012 de 20/12, que aprovou um conjunto de rectificações ao Orçamento do Estado para 2012.

[2] Cf. art.º 17.º da aludida Lei nº 64/2012 de 20/12, que aprovou um conjunto de rectificações ao Orçamento do Estado para 2012.

[3] Nos termos do n.º 2 “Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do rendimento do respectivo agregado familiar não seja superior àquele valor”, sendo que “O agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação dos rendimentos referidos no número anterior, são aferidos nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho, alterado pela Lei n.º 15/2011, de 3 de Maio, e pelos Decretos-Lei n.ºs 113/2011, de 29 de Novembro, e 133/2012, de 27 de Junho”(vide n.º 3). Finalmente, resolvendo anterior polémica doutrinária e jurisprudencial, esclarece o n.º 4 que “Para efeitos da capitação do rendimento do agregado familiar do menor, considera-se como requerente o representante legal do menor ou a pessoa a cuja guarda este se encontre”.

[4] Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 4360/08.7TBGMR-A.G2, acessível em www.dgsi.pt.

[5] Proferido em 11/12/2012, no âmbito do processo 46/09.3 TBNLS-A.C1, também acessível em www.dgsi.pt.