Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | ALEXANDRA GUINÉ | ||
| Descritores: | APREENSÃO DE BENS NO DECURSO DO INQUÉRITO LIMITAÇÃO À PROPRIEDADE PRIVADA PRINCÍPIOS DA NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE PERDA DE INSTRUMENTOS E PRODUTOS DO CRIME A FAVOR DO ESTADO PERDA DE VANTAGENS DO CRIME PERIGOSIDADE DO BEM AUDIÇÃO DO TERCEIRO SEM QUALQUER CONEXÃO COM A ACTIVIDADE CRIMINOSA PROPRIETÁRIO DO BEM APREENDIDO IRREGULARIDADE | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 1 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 17.º, N.º 2, 18.º, N.º 2, 62.º, N.º 1 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ARTIGOS 109.º E 111.º DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 178.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
| Sumário: | I - A apreensão de bens é uma medida que retira provisoriamente os bens da esfera de disponibilidade dos seus titulares, constitui restrição grave do direito de propriedade privada, tendo que obedecer, como qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias, a critérios de necessidade e proporcionalidade, e pode visar, além do mais, a obtenção e a conservação das provas e a garantia da perda a favor do Estado dos objectos que as encarnam.
II - Na formulação do juízo de proporcionalidade, a apreensão deve ser necessária e adequada para prossecução dos desígnios que serve e cingir-se ao estritamente exigido quanto à sua extensão, à forma de execução, à duração da indisponibilidade sobre o bem e deve, ainda, proporcional à gravidade dos ilícitos indiciados. III - A perda de instrumentos e produtos do crime, de que a apreensão é, ou pode ser, uma providência antecipatória, não é automática, e radica nas exigências, individuais e colectivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos. IV - A perda tem natureza análoga a medida de segurança e tem por pressuposto formal que os instrumentos ou produtos do crime tenham sido ou estivessem destinados a ser utilizados numa actividade criminosa ou que por esta tenham sido produzidos. V - A declaração de perda a favor do Estado depende da demonstração de que o crime não teria sido praticado, ou tê-lo-ia sido de forma diferente, sendo a diferença penalmente relevante, sem o objecto em causa, e que o mal representado pela perda é uma medida justa e proporcional à gravidade do crime, ou à gravidade da própria pena (pena principal, penas acessórias e consequências da condenação). VI - Em relação ao terceiro proprietário sem qualquer relação com a actividade criminosa, a declaração de perdimento apenas se pode basear na perigosidade do bem em causa. VII - A perda de vantagens do crime é um instrumento de política criminal com finalidades preventivas, através da qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito. VIII - A declaração de perda de vantagens assenta na existência de uma vinculação entre o bem declarado perdido e um determinado facto ilícito típico, constituindo pressuposto jurídico-constitucional irrenunciável que o seu decretamento respeito o princípio da proporcionalidade face à gravidade do ilícito praticado. IX - A omissão de audição do terceiro em nome de quem o bem apreendido está registado, por parte da autoridade judiciária, gera irregularidade, a arguir nos termos e prazo previstos no artigo 123.º do C.P.P. | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. Nos autos de incidente … por despacho judicial datado de 12.08.2025 foi indeferido o requerimento apresentado por AA …, e assim mantida a apreensão da viatura … 2. Inconformado, recorreu AA …, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões que se transcrevem: «… 2. Neste conspecto, o presente recurso tem por objeto toda a matéria de facto e de direito que motivou e sustentou a decisão, por violação dos referidos normativos constitucionais e legais. 3. O Recorrente não se conforma com a decisão de manutenção de apreensão do veículo pela mesma carecer do preenchimento de todos os pressupostos legais. … 5. Salvo o devido respeito que o douto Tribunal a quo nos merece, cremos que não teve em consideração o requisito da essencialidade, traduzida na circunstância de o automóvel em causa ser necessário ao surgimento do delito, assim como a inexistência de factos que indiciem um sério risco de continuidade da atividade criminosa, uma vez que o recorrente não é visado no âmbito dos presentes autos, sendo totalmente alheio aos factos que estão sob investigação. 6. O requisito da essencialidade configura uma orientação que tem por fundamento a necessidade de existência ou preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objeto e a infração, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objeto, jurisprudência que conforma o texto legal com os princípios constitucionais da necessidade e da adequação, sem esquecer que que há ainda a ter em consideração o princípio constitucional da proporcionalidade - artigo 18.º, n.º 2 da CRP -, princípio esse que preside a toda a providência sancionatória. … 8. Neste sentido, prescreve o artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal o seguinte: “São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem serviço ou estivessem destinados a servir para a sua prática.”. … 11. Neste sentido, importa reiterar que o veículo se encontrava na posse do Arguido …, a título de comodato, e de forma meramente ocasional, não tendo o Recorrente qualquer conhecimento que a utilização do veículo tinha como objetivo a prática dos alegados factos ilícitos-típicos. … 13. A formulação do juízo de que o ato de apreensão culminará com a perda do objeto a favor do Estado, deve obedecer a critérios de casualidade e proporcionalidade, não sendo automaticamente aplicável, por forma a obedecer ao princípio da proporcionalidade, em sede de restrição de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da CRP, como é no caso vertente, o direito de propriedade que o Recorrente detém sobre o veículo, e que também está constitucionalmente consagrado no artigo 62.º, n.º 1 da norma normarum. 14. Em síntese, o Tribunal terá que concluir que, por um lado, a utilização do veículo seria essencial se tivesse tornado a prática do crime significativamente mais fácil, colocando em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, bem como oferecendo risco de cometimento de novos crimes; por outro lado, a futura perda do veículo há-de antever-se como justa e proporcional à gravidade dos crimes. … 16. Em concreto, no caso sub judice, entendeu a Digníssima Procuradora do Ministério Público que o levantamento da apreensão do veículo …, não se justificava pois quem, efetivamente, assumia o pagamento do leasing da viatura era o arguido …, dissimulando dessa forma a proveniência ilícita dos proventos que alegadamente auferiria com a atividade ilícita. 17. Salvo douto entendimento em sentido contrário, nada resulta dos autos que comprovem que fosse o Arguido … a assumir o pagamento das prestações mensais do veículo. 18. Deste juízo resulta ainda a indiciação do Requerente, ora Recorrente, como colaborador na dissimulação da proveniência ilícita de tal investimento. 19. Como facilmente se depreenderá, o Recorrente não se pode conformar com a formulação deste juízo, porquanto, a aquisição do veículo resulta dos rendimentos que obtém do exercício da sua profissão, sendo completamente alheio aos factos que se encontram sob investigação. 20. Aliás, o Recorrente juntou prova documental no sentido de esclarecer que a amortização mensal do valor global do veículo era realizada por meio de débito direto na conta corrente titulada por este, domiciliada no Banco 1.... 21. Mais se diga que o Ministério Público descurou a prova documental carreada pelo Recorrente. … 25. Acresce que o levantamento da apreensão do veículo não oferecia qualquer risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos, na medida em que o seu proprietário está isento de qualquer tipo de responsabilidade naqueles autos. 26. Razão pela qual entende o Recorrente que a decisão de manter o veículo apreendido à ordem dos presentes autos, carece de fundamentação legal, por falta do requisito da essencialidade. 27. Ainda que assim não se entenda, o que apenas por mero dever de cautela e de patrocínio se concede, deve o Despacho que se recorre ser revogado, por inobservância do disposto no artigo 178.º, n.º 9 do CPP. 28.Conforme resulta dos próprios autos, o Recorrente apresentou requerimento, nos serviços Departamento de Investigação e Ação Penal ..., em 28-05-2025, visando o levantamento da medida de apreensão do … 29.Para o efeito, o Recorrente instruiu o requerimento com prova documental, que comprovava a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo em causa, …, bem como a forma de aquisição da viatura, com recurso a financiamento bancário, figurando este como devedor da obrigação de amortizar mensalmente a quantia de € 330,12 … 30.Através de Despacho, datado de 11-08-2025, com a Ref.ª 97896720, entendeu o Mm.º Juiz de Instrução Criminal manter a decisão de apreensão do veículo à ordem daqueles autos, por entender que “a aquisição do veículo ocorreu com vantagem de crime e por constituir meio da prática do crime de branqueamento de capitais”, indeferindo o pedido com base nos artigos 111.º, n.º 1 e 2, alínea a), b) e c) e 109, n.º1 do Código Penal. 31.Sucede que, ao contrário do que prescreve o n.º 9 do artigo 178.º do CPP, nunca o Recorrente foi ouvido perante autoridade judiciária. 32.Sendo que o seu depoimento revelar-se-ia fulcral para almejar uma decisão justa e assente em pressupostos legais que justificassem a manutenção da medida de apreensão do veículo, restringindo o exercício do direito de propriedade do Recorrente. … 35. A inobservância da audição do Requerente/Interessado, ora Recorrente, patente nos autos, só é permitida quando não for possível, o que não é manifestamente o caso. Assim sendo, a omissão da prática deste ato, tendo em atenção que que afeta a decisão final, importa a violação do direito de defesa do Recorrente, prevista no artigo 35.º, n.º 2 da CRP, que terá de ser suprida pelo Tribunal a quo com a audição do Recorrente, nos termos do artigo 120.º, n.º 2 do CPP. 36. No caso ora em apreço, o Recorrente é um terceiro de boa fé, cuja titularidade do veículo está comprovada nos autos, sem qualquer intervenção no processo penal, nem estando em causa a sua participação nos factos ilícitos típicos sob investigação. … 3. Notificado, respondeu o Ministério Público … 4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer … 5. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido exercido o contraditório. 6. Proferido despacho liminar, foi admitido o recurso, foram colhidos os vistos e foram remetidos e julgados os autos em conferência.
II–FUNDAMENTAÇÃO 1. Questão a decidir
… No nosso caso, é Questão a decidir a de saber se deve ser, ou não, mantida a apreensão da identificada viatura.
2. Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante) «… veio requerer o levantamento da apreensão e consequente entrega do veículo alegando em suma ser legitimo proprietário … que o mesmo tinha sido emprestado ao arguido …, a título de comodato, aquando da sua apreensão , razão pela qual não se verificam os pressupostos da sua manutenção. * A Digna Magistrada do MP deduziu oposição … Cumpre apreciar e decidir : Ora efectivamente verifica-se que o veiculo … o respectivo direito de propriedade se encontra registado em nome do Requerente . Mais resulta da documentação junta que a aquisição do automóvel supra identificado ocorreu através de recurso a crédito bancário … Ora a prova recolhida nos autos aponta no sentido de que ainda que o contrato de crédito do veículo esteja a ser cumprido com débito na conta identificada a fls.3472 …, resulta dos autos que quem vem efectuando o pagamento do leasing da viatura é o arguido … Verifica-se pois que o arguido … do rendimento obtido da sua actividade ilícita o canaliza com verdadeira dissimulação no pagamento de prestação de aquisição de veículo que dissimula a sua proveniência ilícita, estando na titularidade de terceiro , e indiciando-se deste modo a colaboração do requerente na dissimulação da proveniência ilícita de tal investimento, estando-se deste modo no âmbito do crime de branqueamento de capitais… Pelo exposto , por a aquisição do veículo ocorrer com vantagem de crime e por constituir meio da prática de crime de branqueamento de capitais , indefere-se o Requerido art.º 111º, n.º 1 e 2 alinea a) , b) e c) e 109º , n.º 1 do CP . Notifique». * 3. Conhecendo o recurso * Insurge-se o recorrente contra o despacho que indeferiu o requerimento de levantamento de apreensão de viatura apreendida em sede de inquérito, alegando que não foi ouvido e que foi violado o seu direto de propriedade. Questão a decidir é a de saber se deve ou não ser mantida a apreensão da identificada viatura. Vejamos. Como é sabido, sendo entendimento convergente da generalidade da doutrina[1] e da jurisprudência, a apreensão de bens no decurso do inquérito, nos termos do art.º 178.º do Código de Processo Penal, pode ter diversas finalidades, incluindo a obtenção e a conservação das provas (finalidade processual probatória) e a garantia da perda a favor do Estado dos objetos que as encarnam, nos termos dos artigos 109.º e seguintes do Código de Processo Penal (finalidade processual substancial). Não sofre dúvida que nos encontramos perante medida que retira provisoriamente os bens das respetivas esferas de disponibilidade dos seus titulares, pelo que constitui de restrição grave do direito de propriedade privada. Ora, nos termos do art.º 62º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, «A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição». Assim, a limitação no uso e fruição desses bens pelo seu proprietário decorrente da sua apreensão em processo crime, não pode deixar de obedecer a critérios de necessidade e proporcionalidade, tal como qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias, por força do art.º 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, ex vi do respetivo art.º 17º. Na formulação do juízo de proporcionalidade, a apreensão deve ser necessária e adequada para prossecução dos desígnios que serve, de conservação da prova e de garantia da perda a favor do Estado, e cingir-se ao estritamente exigido quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem; e proporcional à gravidade dos ilícitos indiciados. No que respeita à perda de instrumentos e produtos do crime prevista no artigo 109.º do Código Penal – de que a apreensão é, ou pode ser, uma providência antecipatória – importa ter presente que: - Não é automática radicando nas exigências, individuais e coletivas, de segurança e na perigosidade dos bens apreendidos, ou seja, nos riscos específicos e perigosidade do próprio objeto, apresentando, natureza análoga à medida de segurança; - Tem por pressuposto formal que os instrumentos ou produtos do crime tenham sido ou estivessem destinados a ser utilizados numa atividade criminosa ou que por esta tenham sido produzidos. Assim, para a declaração de perda a favor do Estado, vem-se entendendo que é necessário que: - O crime não tivesse sido praticado (ou tivesse sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante) sem o objeto em causa (instrumento essencial), havendo que distinguir da utilização episódica ou ocasional; - O malefício correspondente à perda represente uma medida justa e proporcional à gravidade do crime, ou à gravidade da própria pena (nela se incluindo não só a pena principal, como todas as penas, sanções acessórias e consequências da condenação). Vem-se ainda entendendo que, em relação ao terceiro proprietário sem qualquer conexão com a atividade criminosa, a declaração de perdimento apenas se poderá filiar na perigosidade que representa o bem em causa. Por sua vez, a perda de vantagens do crime (artigo 111º do Código Penal) constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito. O fundamento da declaração de perda de vantagens assenta na existência de uma vinculação entre o bem declarado perdido e um determinado facto ilícito típico (que poderá assumir várias formas - direta ou indireta), constituindo pressuposto jurídico-constitucional irrenunciável que a perda de vantagens seja decretada com respeito pelo princípio da proporcionalidade face à gravidade do facto ilícito típico praticado. No que respeita a instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro, dispõe o art.º 111.º do Código Penal: «1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada. 2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida». Por fim, diz-nos o art.º 178.º do CPP: «(…) 7 - Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida. 8 - O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição. 9 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas ou animais apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o. 10 - A autoridade judiciária prescinde da presença do interessado quando esta não for possível.». No entanto, vigorando o princípio do numerus clausus relativamente às nulidades em processo penal (art.º 118.º do CPP), a omissão da audição presencial (quando possível) gera uma mera irregularidade, a arguir perante o próprio juiz de instrução criminal nos termos e prazo previstos no art.º 123º do CPP. Aqui chegados. Resulta patente dos autos que o Mmº Juiz de Instrução Criminal não tramitou o requerimento de levantamento de apreensão suscitado pela requerente pela forma legalmente exigível, tendo omitido a única diligência que, à luz da lei aplicável, se oferecia como obrigatória (a sua audição presencial). Contudo, tal omissão gera uma mera irregularidade, que deveria ter sido arguida perante o próprio juiz de instrução criminal nos termos e prazo previstos no art.º 123º do CPP. Não o tendo sido, considera-se sanada. … Entendemos que, de acordo com os elementos nos autos indicia-se fortemente que: 1 - O crime de branqueamento não teria sido praticado - ou teria sido praticado de uma forma diferente, sendo essa diferença penalmente relevante – não fora a aquisição da viatura, segundo um critério de essencialidade- a própria aquisição traduz-se numa vantagem do crime; 2 - A futura perda desse objeto antevê-se como justa e proporcional à gravidade do crime que se indicia ter sido praticado; 3 – O requerente vem colaborando na dissimulação da proveniência ilícita de tal investimento. Ou seja, o bem apreendido tem a potencialidade de vir a ser declarado perdido a favor do Estado - por suspeita de se tratar de um instrumento e de uma vantagem indireta, da prática de ilícito criminal. A gravidade do crime indiciado justifica conservação do bem na disponibilidade do Estado, com vista à sua eventual declaração de perda, no momento processual adequado. A restrição imposta cinge-se ao estritamente necessário para prossecução dos desígnios que serve, de conservação da prova e de garantia da perda a favor do Estado, a final, do produto e da vantagem do crime, quer quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem.
Tudo visto, improcede o recurso. * III. Dispositivo Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso mantendo a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º 521º, n.º 2, do CPP) . Notifique.
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pela segunda e pelo terceiro signatários– artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) * Coimbra, 20.11.2025
Juíza Desembargadora Relatora: Alexandra Guiné Juíza Desembargadora 1.ª Adjunta: Sandra Maria Maia Rocha Ferreira Juiz Desembargador 2.º Adjunto: José Paulo Abrantes Registo
[1] Para Germano Marques da Silva, a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação da prova, mas também de segurança de bens para garantir a execução. Assim, embora se destine essencialmente a conservar provas reais, visa também garantir a efetivação da privação definitiva do bem (Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 217). No entendimento de Damião da Cunha, «no âmbito do CP (mas também do CPP) existe uma direta ligação entre a figura da apreensão (enquanto medida processual) e a declaração de perda; existe uma dupla função quanto aos bens apreendidos: eles são meios de prova do facto cometido e devem ser declarados perdidos em direta ligação ao facto ilícito praticado (Perda de Bens a Favor do Estado, Artigos 7.º-12.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro (medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira), Centro de Estudos Judiciários, 2002, p. 26). Por fim, também João Conde Correia entende que a apreensão de bens tem natureza híbrida: a medida destina-se a obter e a conservar as provas (finalidade processual probatória), mas também a garantir a perda dos objetos que as encarnam a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º e seguintes do CP (finalidade processual substancial). Para este autor, se os instrumenta, producta ou vantagens não forem apreendidos, para além das dificuldades probatórias acrescidas que isso pode acarretar, será mais difícil proceder depois ao seu confisco, impedir a prática de novos crimes e, sobretudo, acumulação indesejável e perniciosa das suas vantagens (Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, ob. cit., p. 154 e 155). |