Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
790/16.9T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: RECURSO
PERDA DE DIREITO
CUSTAS DE PARTE
TRANSACÇÃO
RATIFICAÇÃO
Data do Acordão: 11/28/2017
Votação: APELAÇÃO
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.43, 44, 45, 291, 632 CPC, 25 RCP, 217, 268 CC
Sumário: 1. O simples pagamento das “custas de parte”, na sequência das notificações entre os mandatários judiciais das partes, não configura acto ou facto “inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer” (art.º 632º, n.º 3 do CPC).

2. A transacção em que se reconhece uma obrigação pecuniária e se assume a obrigação do respectivo pagamento está sujeita a forma escrita (cf. o art.º 290º, n.º 1 do CPC) e, como tal, também ficará sujeita a forma escrita a sua ratificação (art.º 268º, n.º 2 do CC).

3. O carácter formal da declaração de ratificação não obsta a que possa ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida seja observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração - v. g., a transacção deve considerar-se regular e tacitamente ratificada pela A., se esta, através dos seus dois legais representantes (com poderes para o efeito), reconheceu a transacção e procedeu ao cumprimento parcial das obrigações ali assumidas, subscrevendo a correspondente e efectivada transferência bancária (cf. os art.ºs 217º e 268º, n.º 2 do CC).

Decisão Texto Integral:            









            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

            I. Associação (…) (AAT) instaurou a presente acção declarativa comum contra J (…) e F (…) , pedindo que seja declarada nula ou, pelo menos, seja anulada a transacção judicial (aludida nos autos), ao abrigo do art.º 291º do Código de Processo Civil (CPC) [a)]; os Réus sejam condenados a devolver a primeira prestação recebida no valor de € 45 000 (quarenta e cinco mil euros) [b)]; a A. seja absolvida da obrigação de pagar a segunda prestação no valor de € 45 000 (quarenta e cinco mil euros) [c)]; a acção judicial que terminou com a transacção judicial retome a sua legal tramitação [d)].

            Alegou, em síntese: no âmbito de um processo que correu termos na Instância Local de Seia, no qual foi interveniente, sendo AA. os aqui Réus, foi celebrada uma transacção homologada por sentença; deverá ser declarada a nulidade de tal transacção, na medida em que o seu mandatário nessa acção não tinha poderes de representação da A., dado que a procuração foi outorgada por quem não tinha poderes para o efeito; também o Presidente (da AAT), apesar de estar presente, não tinha, sozinho, poderes para representar a A.; formou tal vontade com base em informações transmitidas pelo seu mandatário, que não correspondiam à realidade, sendo que, de todo o modo, a sua vontade não foi devidamente ponderada e esclarecida, até porque o mandatário que a representava era também representante e prosseguia interesses de outrem, não tendo acautelado devidamente os seus interesses.

            Os Réus contestaram, por excepção, aduzindo a sua ilegitimidade e concluindo pela sua absolvição da instância; por impugnação, alegaram não ser verdade a factualidade vertida na petição inicial e, nomeadamente, que inexistia qualquer conflito de interesses entre a aqui A. e a interveniente E (…) S. A. (então E (…), S. A.), dado que a posição pelas duas assumida, naquela acção, era idêntica, sendo que nunca o alegado pela A. seria oponível aos aqui Réus, totalmente alheios às relações que refere. Concluíram que sempre a A. actua em claro abuso de direito, peticionando a sua condenação como litigante de má fé.

            Requerida e admitida a intervenção principal provocada E (…), esta apresentou o articulado de fls. 131, concluindo pela improcedência da acção.

            Na sequência da audiência prévia de fls. 149, a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 03.5.2017, julgou improcedente a dita excepção de ilegitimidade passiva e, conhecendo do mérito, julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus e a Interveniente do pedido; julgou ainda improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé deduzido pelos Réus contra a A..
Inconformada e reafirmando o pedido deduzido na acção, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O Tribunal a quo deu como provado que, antes de se começar a elaboração dos termos da transacção, a Mm.ª Juíza (no âmbito do processo n.º 220/12.5TBSEI) verificou se as partes estavam presentes e se tinham poderes para o acto.

            2ª - A referida decisão foi fundamentada com recurso à acta da audiência prévia.

            3ª - Tal não corresponde à realidade, uma vez que a procuração forense foi outorgada pelo Sr. Presidente e pelo Sr. Vice-Presidente da AAT e não pelo Sr. Presidente e pelo Sr. Tesoureiro.

            4ª - Não ficou provado que o Sr. Presidente e o Sr. Vice-Presidente tenham comunicado, no prazo máximo de 8 dias, aos restantes membros da Direcção.

            5ª - Pelo que não foi assinada por quem tinha poderes para tal, nem foi sanada a assinatura pelos Srs. Presidente e Vice-Presidente mediante comunicação aos restantes membros.

            6ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto nos pontos 42.2.1 e 42.2.2 dos Estatutos da AAT.

            7ª - Também o Sr. Advogado não verificou a identidade dos representantes da AAT.

            8ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto do art.º 90º, n.º 2, alínea c) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

            9ª - No que concerne à inexistência de poderes por parte do Sr. Advogado, ainda que se admita que conferir poderes forenses por meio de uma procuração forense é um acto de mera administração, o acto concreto praticado – transacção – envolveu a transferência de € 90 000, o que não consubstancia um acto de mera administração. Pelo que não estava o Sr. Advogado legitimado para representar a AAT e efectuar tal transacção.

            10ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto no ponto 42.3 dos Estatutos da AAT.

            11ª - E no que toca à ausência de poderes do Sr. Presidente, este também não podia representar a AAT visto que sozinho não tem poderes para dispor dessa quantia monetária.

            12ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto nos pontos 36., alínea c), 42.2.1, 42.2.2 e 42.3 dos Estatutos da AAT.

            13ª - No que se refere ao fundamento do erro-vício, não pode o Tribunal a quo decidir sobre tal questão sem permitir à A. demonstrar o que alegou, em sede de petição inicial, com recurso aos meios de prova, entre outros, prova testemunhal.

            14ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto no art.º 392º do Código Civil.

            15ª - O pagamento da primeira prestação não pode ser entendido como uma ratificação da transacção na medida em que a AAT não dispôs de tempo suficiente para se aconselhar devidamente e limitou-se a cumprir uma obrigação que foi criada por virtude da transacção.

            16ª - Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto nos art.ºs 217º, n.º 2 e 268º, n.º 2 do Código Civil.

            17ª - Por conseguinte, não actuou a AAT em abuso do direito. Ao decidir diferentemente, o Tribunal a quo violou o que resulta do disposto no art.º 334º do Código Civil.

            A interveniente e os Réus responderam, pugnando, a primeira, pela rejeição do recurso face à perda do direito a recorrer, pela apelante[1], ou, assim não se entendendo, pela sua improcedência, e, os segundos, pela mesma improcedência.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, e, como se verá, não se mostrando afectado o direito de recorrer, importa, pois, verificar e decidir da validade da questionada transacção de 04.02.2016.           


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) J (…) e F (…)  propuseram uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum ordinário contra a E (…), que correu termos no processo sob o n.º 220/12.5TBSEI, na Comarca da Guarda, Instância Local, Secção de Competência Genérica de Seia - J1.

            b) Em tal acção era peticionado o seguinte: “a) Declararem-se os AA. donos e legítimos comproprietários e proprietários dos imóveis, condenando a Ré a reconhecer aos aqui demandantes o direito de propriedade sobre os imóveis em causa e parcialmente ocupados pela Ré; b) Condenar-se a Ré a restituir aos AA. a parte do imóvel que ilicitamente ocupa, entregando-lhe livre de pessoas e coisas”.

            c) Como fundamento da sua pretensão, invocaram ser comproprietários de dois prédios e proprietários de um outro, sitos no concelho de x (...) , Freguesia de y (...) .

            d) Na Petição Inicial, alegaram ainda ter a Ré E (…) ocupado tais imóveis e, designadamente, ter edificado um imóvel destinado a uma subestação para captação da electricidade produzida em aerogeradores, com uma vedação (de uma parte substancial), ter colocado duas torres eólicas para a produção de electricidade em dois dos prédios e ter aberto uma estrada com cerca de 400 m de comprimento por 5 m de largura de acesso a tais torres, tudo sem o conhecimento e consentimento dos mesmos.

            e) A E (…) foi representada pelo Senhor Dr. M (…) , da Sociedade de Advogados (…).

            f) A E (…) também conferiu poderes, mediante procuração forense, aos Senhores Doutores (…) todos Advogados da Sociedade de Advogados (…).

            g) Em sede de Contestação nessa acção a E (…) requereu a intervenção principal provocada da AAT, alegando que tinha celebrado com a mesma um contrato de arrendamento[2] e entenderem tratar-se dos donos e legítimos proprietários de tais prédios.

            h) O Senhor Dr. (…), da Sociedade de Advogados (…) e a quem foram também conferidos poderes forenses pela E (…) mediante procuração forense, representou a AAT, mediante procuração forense outorgada pelos Senhores Presidente (…)e Vice-presidente (…).

            i) A AAT contestou a acção e alegou ser dona e legítima possuidora dos prédios em causa, por duas ordens de razão: por os prédios estarem registados na Conservatória do Registo Predial de x (...) e inscritos na matriz predial a seu favor e por a AAT ter ocupado e gerido tais prédios desde sempre até à data actual, de forma contínua, ininterrupta, de boa-fé, de forma pública, à vista e com o conhecimento de todos e pacífica, sem oposição de ninguém e, como tal, convencidos de que estavam a exercer um direito próprio.

            j) Em 04.02.2016, o Senhor J (…) na qualidade de interveniente principal e em representação da AAT, compareceu em Tribunal para a audiência de julgamento que teria lugar nesse dia.

            k) No processo n.º 220/12.5TBSEI teve lugar uma transacção entre a AAT, os agora Réus e a “E (…) S. A.”.

            l) Em tal transacção ficou acordado que a AAT teria de entregar aos AA. a quantia global de € 90 000 (noventa mil euros), paga em duas prestações: € 45 000 (quarenta e cinco mil euros) até ao final do mês de Fevereiro de 2016 e o remanescente até ao final do mês de Maio de 2016.

            m) Tal transacção foi homologada por sentença que transitou imediatamente em julgado, em virtude das partes terem prescindido do prazo do respectivo recurso.

            n) A AAT procedeu ao pagamento da aludida primeira prestação através da ordem de transferência constante de fls. 41 verso/42.

            o) Consta da acta da audiência final, no âmbito do processo 220/12.5TBSEI que “quando eram 10 h 35 m e não antes por as partes terem estado em conversações com vista a alcançar um possível acordo, pela Mm.ª Juiz foi tentada a conciliação das partes, o que se logrou obter, tendo as partes chegado e feito a seguinteTransacção (…)”.

            p) Antes de se começar a elaboração dos termos da transacção, a Mm.ª Juíza verificou se as partes estavam presentes e se tinham poderes para o acto, fazendo constar da respectiva sentença que “dada a qualidade dos intervenientes (…) julgo válida a transacção que antecede (…)”.

            q) A transacção em causa foi celebrada e homologada na sala de audiências da Instância Local de Seia.

            r) Foi através da transacção supra referida que no dia 04.02.2016, as partes quiseram pôr termo, e puseram, ao litígio objecto da acção n.º 220/12.5TBSEI.

            s) Dando cumprimento ao acordado, em 29.02.2016, a ali chamada, aqui A., efectuou o pagamento da primeira prestação.

            t) A ordem de transferência desse montante foi subscrita e assinada pelo Presidente e pela Tesoureira[3].

            u) A Senhora Dra. (…), Magistrada do M.º Público, no exercício de funções naquele Tribunal nessa mesma data, foi consultada, tendo referido nada ter a opor à transacção.

            v) No processo referido em II. 1. a), quer a A (…) quer a E (…) nos seus articulados, pugnaram, com iguais fundamentos, pela improcedência da acção.

            w) Nos presentes autos a A., representada pelos Exmos. Srs. (…) na qualidade de Vice-Presidente, Secretário e Tesoureira, respectivamente, conferiu mandato forense os Srs. Drs. (…)

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Como “questão prévia”, a interveniente/apelada EDP Renováveis diz que a A./apelante perdeu o direito de recorrer, porquanto pagou as custas de parte em momento anterior à interposição do recurso - cf. o disposto no art.º 632º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil/CPC e fls. 190/201 verso e 223 (o recurso foi interposto a 12.6.2017 e o dito pagamento ocorreu a 24/26.5.2017).

            Nos termos dos referidos normativos, não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida (n.º 2); a aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita, sendo esta a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (n.º 3).

            Compulsados os autos, verifica-se que, tendo as partes sido notificadas da sentença em 04.5.2017 (cf. o “histórico” dos actos processuais), em 17.5.2017, a interveniente/apelada juntou a respectiva “nota discriminativa e justificativa de custas de parte” (fls. 184 e seguintes), então notificada aos Exmos. Mandatários das partes, ou seja, bem antes do términus do prazo previsto no art.º 25º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais/RCP (aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26.02).

            Diz a interveniente/apelada que “na sequência de contactos entre mandatários e após facultado aos Ilustres Mandatários da Apelante, conforme solicitado, o IBAN da Apelada REDP Renováveis”, “em 24/05/2017 a A (…) procedeu ao pagamento das custas de parte devidas à E (…), S. A., através de transferência bancária no montante de € 2 256 (operação criada em 24/5/2017 e concretizada em 26/5/2017), para a conta bancária da aqui Apelada”, fazendo-se constar no “comprovativo dessa operação” os seguintes dizeres: “CUSTAS DE PARTE REFERENTE À SENTENÇA TRIBUNAL DA GUARDA JUIZ 1 PROC 790 16 9 T8GRD”.

            Assim, segundo a interveniente, atendendo a que “a sentença recorrida condenou a Apelante no pagamento das custas”, “ao proceder, em 24/5/2017, ao pagamento das custas de parte (referindo-o expressa e inequivocamente no movimento bancário/transferência)” a A./apelante “conformou-se, ainda que tacitamente, com a sentença, cumprindo-a sem qualquer reserva”, perdendo assim “o direito ao recurso, pois que esse pagamento decorre e é expressão da aceitação tácita da sentença, cumprindo-a integralmente e sem reservas”.

            Afigura-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que o terem sido tais actos praticados porventura antes do azado/conveniente/oportuno momento processual (a dita “nota discriminativa e justificativa”, que podia ser remetida “até cinco dias após o trânsito em julgado” - cf. o citado normativo do RCP -, foi enviada quando havia transcorrido cerca de 1/3 do prazo para a interposição do recurso; o subsequente, e, quiçá, induzido, pagamento também ocorreu bem antes da data em que a decisão transitaria em julgado…) não será “inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer”.

            Na verdade, da descrita actuação, e nas circunstâncias em que teve lugar, não decorre que a A. haja manifestado, por forma inequívoca, a perda de interesse em recorrer, antes se podendo dizer que continuavam reunidas as “condições” para interpor o recurso.

            Com aquele comportamento, a A./apelante não assumiu a “parte nuclear” do julgado, sendo certo que não estamos perante, por exemplo, uma sentença que condene no pagamento de determinada quantia ou na prática de determinado facto e em que a parte (obrigada) tenha voluntariamente cumprido ou dado início a esse cumprimento, situação em que seria possível equacionar a prática de facto incompatível com a vontade de recorrer ou, no dizer da lei, de um facto “inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer”, i. é, contrário à vontade de interpor o correspondente recurso ordinário.[4]

            Concluindo - não se rejeita o recurso, por existirem dúvidas sobre a “vontade” manifestada pela A./apelante e, como tal, faltar a evidência/clareza pressuposta pelo supra referido normativo (art.º 632º, n.º 3 do CPC).  

            3. A A./recorrente diz que o facto aludido em II. 1. p), supra, não pode ser considerado provado, na parte relativa à verificação dos poderes das partes que estavam presentes, por parte da Mm.ª Juíza, pela simples razão de que “nos termos dos pontos 42.2.1. e 42.2.2 dos Estatutos da AAT, são obrigatórias duas assinaturas entre os quatro membros da Direcção (Presidente, Tesoureiro, Vice-Presidente e Secretário) e, caso não sejam as do Presidente e Tesoureiro, ficam os outros membros que assinaram as operações financeiras obrigados a comunicá-las ao Presidente e ao Tesoureiro no mais curto período de tempo possível, sem exceder o prazo de oito dias úteis com as necessárias documentação e justificação”, sendo que “não consta dos factos provados que houve lugar a tal comunicação e como tal, ainda que se considerasse que a procuração poderia ter sido outorgada pelo Sr. Presidente e pelo Sr. Vice-Presidente, não estaria sanada a não assinatura pelos membros que deveriam assinar, uma vez que o requisito de comunicação não se encontra preenchido”.

            Decidindo.

            A recorrente não tem razão.

            Na verdade, a procuração outorgada ao seu Exmo. Mandatário presente conferia-lhe poderes “especiais para confessar, desistir e transigir” (cf. doc. de fls. 39 verso); a recorrente também ali se fez representar pelo seu Presidente da Direcção, ao qual, de acordo com a alínea c) do art.º 36º dos Estatutos da A./recorrente, competia/compete “representar a Associação em juízo ou fora dele” (fls. 75); estando em causa factos a provar por via documental, a Mm.ª Juíza atendeu ao teor dos referidos documentos (fls. 39 verso e 72 verso) e da acta reproduzida a fls. 40 e seguinte (que refere a presença das partes com legitimidade e poderes para o acto e a actuação dos presentes com relevância para o acto documentado).

            Assim, o referido facto resulta daquela documentação, devidamente analisada e conjugada, como consta da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.

            Ademais, subsistindo porventura alguma dúvida, a subsequente actuação dos representantes da A./recorrente, documentada nestes autos (a contrapor, de algum modo, ao supra referido arrazoado…), diz-nos, claramente, que qualquer eventual irregularidade derivada da forma como se efectuou a transacção apenas poderia/deveria ser suprida de forma deveras simples e expedita, e, existindo, foi efectivamente suprida.

            4. A confissão, a desistência e a transacção podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros actos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do art.º 359º do Código Civil (art.º 291º, n.º 1 do CPC). O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transacção não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação (n.º 2). Quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o acto ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o acto do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito (n.º 3).  

            A pretensão deduzida nestes autos reporta-se à transacção dita em II. 1. k) a m), supra, afirmando a A./recorrente que a mesma foi efectuada por quem não tinha poderes forenses para o efeito, desde logo, o Exmo. Mandatário que interveio em representação da AAT (inexistência de poderes de representação da AAT por parte do Sr. Dr. (…)), na medida em que a procuração foi conferida pelo Presidente e Vice-Presidente da AAT, quando teria de sê-lo pelo Presidente e Tesoureiro, como decorre do art.º 42º, n.º 1 dos respectivos Estatutos.

            Ficou provado que aquele causídico representou a AAT, mediante procuração forense outorgada pelos Presidente (…) e Vice-Presidente (…).

             Estamos perante uma relação de mandato forense, que se constituiu através da subscrição de procuração, pela qual o mandante confere ao mandatário amplos poderes forenses e/ou os poderes especiais para confessar, transigir ou desistir em qualquer causa em que o mandante seja parte ou interessado (cf. os art.ºs 43, 44º, n.º 1 e 45º do CPC e 262º, n.º 1 do CC).

            Segundo os Estatutos da A./recorrente (AAT) (fls. 72 verso e seguintes):

            - Compete ao Presidente da Direcção representar a Associação em juízo ou fora dele (art.º 36º, alínea c)).

            - Para obrigar a Associação são necessárias e bastantes assinaturas conjuntas de quaisquer três membros da Direcção, ou as assinaturas conjuntas do Presidente e do Tesoureiro (art.º 42º, n.º 1).

            - Nas operações financeiras são obrigatórias duas assinaturas de entre os quatro seguintes membros da Direcção: Presidente, Tesoureiro, Vice-Presidente e Secretário (art.º 42º, n.º 2.1).

            - Porém, sempre que as assinaturas não sejam em conjunto as do Presidente e do Tesoureiro, ficam os outros membros que assinaram as operações financeiras obrigados a comunicá-las a estes membros no mais curto espaço de tempo possível, nunca superiores a oito dias úteis com as necessárias documentação e justificação (art.º 42º, n.º 2.2).

            - Nos actos de mero expediente bastará a assinatura de qualquer membro da Direcção (art.º 42º, n.º 3).

            Na situação em análise verifica-se, além do mais, que o Presidente da Direcção da Associação A., com competência para a representar “em juízo ou fora dele”, esteve presente na audiência de 04.02.2016 e interveio nas negociações/conversações que antecederam a dita transacção [resulta da acta de audiência final, na qual foi homologada a transacção, que compareceu e esteve presente durante todo o acto, o Presidente da AAT, acompanhado do seu ilustre mandatário Dr. (…) - cf. fls. 40 e, nomeadamente, II. 1. j), supra] e, naturalmente, e necessariamente, na sua concretização/formalização; foi também ele, de resto, um dos subscritores da procuração junta a esses autos (acção de processo ordinário 220/12.5TBSEI).

            Por conseguinte, foi o Presidente da AAT que representou a A./recorrente naquele acto (pese embora acompanhado pelo seu Exmo. Mandatário), pelo que, contrariamente ao entendimento perfilhado pela recorrente, nenhuma questão se suscita ao nível da sua representação.

            5. Ficou igualmente provado que foi, precisamente, a Tesoureira (cuja assinatura, na alegação da A./recorrente, faltou na procuração conferida ao Exmo. Advogado) quem assinou a ordem de transferência para cumprimento do acordado na transacção em causa, maxime, para que fosse efectuado o pagamento da 1ª prestação (cf. II. 1. n), s) e t), supra, e, ainda, documentos de fls. 11 e 41 verso).

            Assim, como bem se refere na decisão sob censura, tendo a ordem de transferência sido dada pelo Presidente e pela Tesoureira da AAT, mesmo entendendo-se, como pretende a A./recorrente, que apenas as suas duas assinaturas poderiam vincular a A., haverá de concluir-se que a transacção acabou por ser ratificada por quem legitimamente tinha poderes para obrigar a AAT - a transacção, por via da qual se reconheceu uma obrigação pecuniária e se assumiu a obrigação do respectivo pagamento, obedeceu à forma escrita (cf. o art.º 290º, n.º 1 do CPC) e, como tal, também ficou sujeita a forma escrita a ratificação dessa transacção por parte da pessoa em nome de quem foi celebrada mas por quem não detinha os necessários poderes de representação; o carácter formal da declaração de ratificação não obstava a que pudesse ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida fosse observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração, pelo que, tendo sido celebrada a transacção em nome da associação A. e por um dos seus representantes (apesar de os Estatutos exigirem a intervenção de dois), tal transacção deve considerar-se regular e tacitamente ratificada pela associação, porquanto esta, através desses seus dois representantes, reconheceu a transacção e procedeu ao cumprimento parcial das obrigações ali assumidas, subscrevendo a correspondente e efectivada transferência bancária (cf. os art.ºs 217º e 268º, n.º 2 do CC).[5]

            6. No final da petição inicial, a A./recorrente alegou que, aquando da realização da aludida transacção, formou a sua vontade com base em informações transmitidas pelo seu mandatário, que não correspondiam à realidade, e que a sua vontade não foi devidamente ponderada e esclarecida, até porque o mandatário que a representava era também representante e prosseguia interesses de outrem (em virtude da sociedade de advogados da qual faz parte, representar também a “Enernova”, e que teria interesses e posições incompatíveis), não tendo acautelado devidamente os seus interesses.

             Ora, aquela factualidade (centrada no pretenso mau e/ou indevido aconselhamento por parte do seu advogado) não seria susceptível de integrar qualquer erro/erro-vício (cf. os art.º 251º e 252º do CC), e, muito menos, que o mesmo tenha sido determinante para formar a sua vontade.[6]

            Ademais, também nada se alegou que pudesse concretizar/consubstanciar violação dos deveres deontológicos por parte do Exmo. Advogado que a representou no processo 220/12.5TBSEI, designadamente resultante do pretenso conflito de interesses com a aí Ré (e aqui interveniente E (…), S. A, agora EDP Renováveis), representada pela mesma sociedade de advogados (veja-se, de resto, II. 1. v), supra) e que sempre deveria ser suscitada em sede própria (baseada na responsabilidade contratual no exercício do mandato forense), que não no âmbito da presente acção.

            Assim, não se impunha produzir qualquer meio de prova para demonstrar o que não existe ou não foi alegado, e que sempre seria deslocado do objecto da presente acção.

            7. Igualmente correcto o derradeiro juízo da Mm.ª Juíza a quo.

            De facto, a admitir-se algum direito na esfera da A./recorrente (o que não se demonstra), a pretensão deduzida nos presentes autos sempre envolveria abuso do direito (art.º 334º do CC) - a A. esteve representada pelo seu Presidente na audiência final de 04.02.2016, tendo aceitado e subscrito o acordo (interveio na formalização da transacção e nunca referenciou existir qualquer falta de poderes); em 29.02.2016, no cumprimento dessa transacção, o seu Presidente e a Tesoureira (precisamente quem tinha poderes para o efeito) subscreveram uma ordem de transferência de € 45 000; tal conduta foi susceptível de criar na parte contrária uma situação de confiança objectiva (de que ratificava aquele “acordo” e assumia as obrigações nele estabelecidas) e que, agora, a mesma pessoa (em termos físicos) que interveio em tal transacção, ou seja, o seu Presidente, pretende pôr em causa, invocando a “nulidade” da transacção.

            Ora, nesta perspectiva, não/nunca poderia a A. vir invocar a “nulidade” da transacção para se eximir ao cumprimento (em parte já assumido e concretizado), o que, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, sempre configuraria situação de abuso do direito (por “venire contra factum proprium”), pois actua em abuso de direito quem, tendo actuado de determinada forma e tendo criado nos outros uma determinada expectativa que estava razoavelmente fundada nessa actuação, vem depois exercer um direito ou pretensão que, sendo incompatível ou contraditória com a sua anterior actuação, vem defraudar as expectativas legítimas de quem nesta havia confiado.[7] [8]

            8. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.         


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.  

            Custas pela A./apelante.


*

28.11.2017

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Para comprovar o aduzido sob o enquadramento “questão prévia” (fls. 206), a interveniente/apelada juntou o documento de fls. 223, ao abrigo do disposto nos art.ºs 425º e 651º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
[2] Rectificou-se lapso manifesto (cf. o documento de fls. 24 e seguintes - a que se alude na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto -, maxime, a fls. 28 verso e seguintes).
[3] Rectifica-se lapso manifesto (cf. o documento de fls. 41 verso e seguinte, a que se alude na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto).
[4] Cf., por exemplo, os acórdãos do STJ de 29.01.2014-processo 357/11.8TBEVR.E1.S1 e 28.5.2015-processo 2471/12.3TVLSB.L1.S1, publicados no “site” da dgsi.

[5] Sobre situação similar e em idêntico sentido, cf. o acórdão da RC de 10.3.2015-processo 45/13.0TBOFR.C1 [assim sumariado: «I - A transacção por via da qual se reconhece uma obrigação pecuniária e se assume a obrigação do respectivo pagamento está sujeita a forma escrita e, como tal, também ficará sujeita a forma escrita a ratificação dessa transacção por parte da pessoa em nome de quem foi celebrada mas por quem não detinha os necessários poderes de representação. II - O carácter formal da declaração de ratificação não obsta a que ela possa ser emitida tacitamente, desde que a forma exigida seja observada relativamente aos factos dos quais se deduz a declaração, pelo que, tendo sido celebrada uma transacção em nome de determinada sociedade e por um dos administradores (apesar de o pacto social exigir a intervenção de dois), tal transacção deve considerar-se regular e tacitamente ratificada pela sociedade, se esta, através de dois dos seus administradores, reconheceu a transacção e procedeu ao cumprimento parcial das obrigações ali assumidas mediante a entrega ao credor de cheques que eram, regular e devidamente, assinados por dois administradores.»], publicado no ”site” da dgsi.

[6] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª reimpressão, Livraria Almedina, 1974, pág. 233 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 3ª edição, 1982, Coimbra Editora, págs. 234 e seguintes e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 20.5.2010-processo 3655/1998.L1.S1, 27.5.2010-processo 237/05.6TBSRE.C1.S1 e 15.5.2012-processo 5223/05.3TBOER.L1.S1, publicados no “site” da dgsi.

[7] Cf. o cit. acórdão da RC de 10.3.2015-processo 45/13.0TBOFR.C1 [tendo-se concluído: «III - De qualquer forma, tendo a sociedade - através da actuação de dois administradores com poderes para a representar e vincular - reconhecido a transacção, tendo assumido as obrigações dela decorrentes e tendo procedido, durante algum tempo, ao regular cumprimento das obrigações ali assumidas, através de cheques assinados por dois dos seus administradores, não seria legítimo - por configurar abuso de direito na modalidade de ´venire contra factum proprium` - que se viesse invocar, em momento posterior, a ineficácia daquele negócio por falta de poderes de representação de quem nele interveio em nome da sociedade.»].

[8] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 296 e seguintes; Castanheira Neves, Questão de facto-Questão de direito, I, Almedina, 1967, págs. 524 e seguintes e Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. I, 8ª edição, págs. 552 e seguintes e RLJ, 128º, 241.