Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
63/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INTERDIÇÃO
INABILITAÇÃO
ANOMALIA PSÍQUICA
INCAPACIDADE
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 138, 1552 CC
Sumário: 1.- A interdição deve ser concebida como um instrumento que visa tutelar os interesses do incapaz, afirmando-se pela necessidade de cuidado da pessoa, e, implicando restrições aos direitos fundamentais à capacidade civil e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26 da CRP, encontra-se sujeita ao princípio da proporcionalidade.

2.- Os fundamentos da interdição e da inabilitação consistem em situações de anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, aos quais acresce a prodigalidade ou o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, na inabilitação (artigos 138, nº1 e 1552, do Código Civil).

3.- O conceito de anomalia psíquica é aqui tomado num sentido mais lato, por abranger não só as deficiências patológicas do intelecto, entendimento ou discernimento, mas também as deficiências patológicas da vontade, da sensibilidade e afectividade, que afectem a pessoa no todo ou em parte, para gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais.

4.- Envolvendo a inabilitação para o inabilitado a incapacidade de praticar actos de disposição de bens, manterá, em princípio, a capacidade para praticar actos de mera administração dos seus bens, ou seja, actos que não afectem a sua substância, e outros previstos na lei, devendo o julgador adaptar a incapacidade de exercício do inabilitado à sua incapacidade natural.

5. A declaração na sentença da data do começo da incapacidade assume um valor meramente indiciário, não de uma presunção judicial (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

J (…), A (…) e M (…) , intentam a presente ação especial de inabilitação por anomalia psíquica, contra JM (…),

alegando, para o efeito, e em síntese:

são, respetivamente, irmãos germanos e sobrinho do requerido, e este, fruto da anomalia psíquica permanente de que padece – psicose maníaco depressiva grave/doença bipolar – encontra-se impossibilitado de reger por si só a sua pessoa e bens, pelo que pugnam, para além da sua inabilitação provisória imediata, pela sua inabilitação;

o requerido encontra-se reformado por força da sua doença mental, não exercendo qualquer atividade empresarial ou de mera gestão corrente há mais de 20 anos, encontrando-se desde há muitos anos sob medicação, com períodos de internamento, e com a progressiva deterioração das capacidades intelectuais e cognitivas;

o requerido desde sempre que vem praticando atos de benemerência, em períodos de crise psíquica, com o desejo de doar um terreno com 7.000 m2 ao CR (...) desejo de doação da sua quota-parte da sociedade “C (…), Lda.”, de determinadas máquinas de uma secção da mesma, de pretender casar com a sua companheira em Albufeira, pretender fazer doações em numerário aos sobrinhos, pretender doar apartamentos aos sobrinhos netos e manifestar vontade de doar um jeep a cada um dos seus funcionários, em número de 150 a 200 unidades, tendo para o efeito redigido o respetivo contrato-promessa, sendo que muitos negócios não se realizaram por oposição dos potenciais beneficiários.

Concluem, aduzindo que o requerido não é habitualmente pródigo mas incorre, por tendência, em excessos patrimoniais, pelo que pugnam, para sua proteção, pela sua inabilitação, devendo, por conseguinte, ser representado por um curador a fim de lhe administrar todo o seu património, bem como a prática dos atos de natureza pessoal de carácter familiar.

O requerido apresentou contestação, alegando, em síntese:

padece de uma doença de foro neurológico, hereditária, do tipo “psicose”, não o impedindo de exercer de forma proveitosa e bem sucedida a sua atividade industrial, pelo que não padece de anomalia psíquica que o impeça de reger a sua pessoa e bens.

tal doença não tem carácter permanente, manifestando-se com intervalos de muitos meses ou anos, recorrendo espontaneamente ao médico adequado que lhe prescreve a adequada medicação e que respeita escrupulosamente, com auxílio de terceiros;

sofreu períodos de internamento, por sua iniciativa, e quando não tinha auxílio de terceiros para o auxiliar na terapêutica, reconhecendo os sintomas iniciais da doença e, consequentemente, suspendendo qualquer atividade.

sempre foi contido nos seus gastos quotidianos, e seguindo o caminho do seu pai, foi um filantropo e benemérito, tendo após o 25 de Abril de 1974 oferecido uma bicicleta a todos os seus funcionários, adquiriu para a ARCIL o edifício para as suas instalações e reconstruiu-o, impulsionou a Fanfarra B (...), concedeu-lhe um donativo anual e emprestou o terreno para o CR (...);

os jeeps que pretende oferecer aos seus trabalhadores visa recompensá-los pelo seu esforço e dedicação, e cuja decisão vem sendo ao longo do tempo ponderada, manifestando os requerentes oposição ao negócio, pelo que o referido negócio se encontra em suspenso.

Procedeu-se ao interrogatório judicial e exame pericial do requerido, o qual concluiu que o estado psicopatológico apresentado pelo requerido, “que lhe vem condicionando a capacidade de gerir/e ou dispor dos seus bens, deverá revelar para efeitos de requerimento da sua eventual inabilitação/interdição por anomalia psíquica”.

Falecido o requerido na pendência da ação (a 23 de março de 2005), foi determinado o prosseguimento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 958º do CPC (na redação anterior à reforma).

Foi proferido despacho saneador, com seleção da matéria de facto assente e fixação da base instrutória.

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão de resposta à matéria de facto dado como provada.

O juiz a quo proferiu sentença, julgando a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvendo o requerido dos pedidos contra si formulados.

Inconformados com tal decisão, os requerentes dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem parcialmente:

(…)

Pelo representante do requerido, entretanto falecido, foram apresentadas contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 684º, do Código de Processo Civil, na redação anterior à reforma dos recursos introduzida pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Se existia a incapacidade alegada e, em caso afirmativo, qual a sua extensão e desde quando.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Impugnação da matéria de facto.

(…)

2. Se é de alterar a decisão de improcedência do pedido de inabilitação proferida na sentença recorrida.

A. Matéria de facto:

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas na sequência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos Apelantes:

A) O requerido JM (…) nasceu no dia 7 de Outubro de 1934, na freguesia e concelho da Lousã, e é filho de M (…) e E (…), ambos falecidos.

B) O requerido tem vindo a ser assistido de há cerca de 20 anos a esta parte por diversos médicos, neurologistas e psiquiatras, tais como o falecido Dr. (…), o Dr. (…), o Prof. (…), o Prof. (…), o Prof. (…), o Prof. (…), o Dr. (…), a Dra. (…), o Dr. (…) e o Dr. (…).

C) O requerido esteve internado, desde 08.05.85, durante um período de 7 dias, na Casa de Saúde (...); no Instituto de Investigationes Neuropsiquiátricas – (...), S.A., desde 24.04.89 até 27.04.89 e na Clínica (...), Lda., o que ocorreu em 08.02.95.

D) Em 24.10.1995, o Sr. Dr. (…), médico-psiquiatra e assistente convidado de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, elaborou o relatório médico junto a fls. 83, dele constando, além do mais, que:

“…declara por sua honra profissional que tem seguido em regime de consulta e internamento o Sr. J (…) por este vir apresentando crises repetidas depressivas ou maniformes que caracterizam a Psicose Maníaco Depressiva.

Desde muito novo que vem apresentando algumas dificuldades emocionais (tal como outros membros da família) que com o tratamento lhe possibilitavam o exercício profissional, contudo, nos últimos anos o seu estado agravou-se e desde então tem-se assistido a um contínuo agravamento e declínio cognitivo dependente da evolução da doença e às próprias terapêuticas que necessita de fazer cronicamente.

Devido à evolução do seu estado crónico, neste momento profundamente depressivo com as ruminações relacionadas com o dormir e à impotência que apresenta, aos deficits cognitivos e mnésicos que são manifestos, sou de opinião que não possui as condições consideradas mínimas para poder exercer a sua actividade profissional, ou mesmo outras tarefas, pelo que deverá ser proposto à junta de reforma para atribuição de incapacidade permanente para o trabalho e consequente atribuição de reforma por doença…”.

E) Este relatório médico foi emitido para instruir o processo de obtenção da reforma por parte do requerido, proposta pela Sra. Dra. (…) a qual subscreveu a “Informação Médica Para Avaliação de Incapacidade Permanente” com data de 24.11.1995, junta a fls. 84 a 87.

F) Em 27 de Setembro de 1996 foi atribuída ao requerido a reforma por invalidez.

G) Por volta do ano de 1974, o requerido procedeu a diversos actos de benemerência - como a doação de uma Quinta para nela ser instalada a sede da ARCIL (Associação para a Recuperação do Cidadão Inadaptado da Lousã), o que envolveu uma despesa que, a preços de hoje, se cifraria em muitas dezenas ou centenas de milhares de contos/euros.

H) Adquiriu ainda o edifício e restaurou-o à sua custa, reparando o telhado, os tetos, as janelas, as paredes interiores e exteriores.

I) Após o que adquiriu, à sua custa, o mobiliário.

J) Precedeu ainda a vários donativos pecuniários a diferentes entidades de serviço público da Lousã.

K) Foi também o requerido o responsável pelo impulso da “Fanfarra B (...)”.

L) Tem exercido a benemerência periódica em benefício da “Fanfarra” a quem dá, quase todos os anos, mil contos (5.000.00 euros).

M) De maneira idêntica procede em relação à Filarmónica, fazendo em benefício dela e à custa do seu património pessoal, quase todos os anos, um donativo de mil contos (5.000.00 euros).

N) Em Janeiro de 1998, o requerido passou a viver como se de marido e mulher se tratassem, com M (…).

O) Em finais de Março/inícios de Abril de 1998, deslocaram-se ambos a Albufeira onde fizeram correr os “banhos” com vista à celebração do casamento entre eles.

P) Em requerimento apresentado pelo requerente, J (…), datado de 29 de Abril de 1998, dirigido à Conservatória do Registo Civil de Albufeira, constante de fls. 88 e 89, é declarado que: “…o nubente J (…) tem 63 anos de idade e sofre de anomalia psíquica grave e crónica desde há cerca de 24 anos, o que constitui impedimento para contrair casamento (…) Devido à sua doença, que por um lado tanto o deprime como impele a decisões irreflectidas tomadas em períodos de optimismo, e por outro lado diminuiu as suas capacidades, delegou a gestão dos seus bens aos seus familiares, já desde há longos anos…

Q) Pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira correu os seus termos o processo de impugnação de casamento com o n.º 169/98, em que era requerente J (…) e requeridos o ora requerido e M (…).

R) No âmbito de tal processo judicial, em 25.06.98, foi proferido um despacho, que consta a fls. 91, do seguinte teor: “Inexiste intenção de casar por parte do nubente, J (…). Assim, o impedimento perde o seu objecto – o casamento. Verifica-se, assim, a inutilidade superveniente da lide. Assim, julgo extinta, por inutilidade superveniente da lide, a instância – artigo 287º, al.e) do C.P.C. Custas pelos nubentes em partes iguais. (…)”

S) No dia 5 de Janeiro de 2000, o requerido referiu ao seu sobrinho, C (…), que pretendia oferecer um “jeep Honda” a todos os trabalhadores das sociedades de que é sócio, diretamente – como é o caso de C (…), Lda. – ou através de participações sociais – como sucede com B (…) & Cª Lda., com sede na Lousã, e S (…), Lda. com sede em (...), Seia.

T) No dia 10 seguinte, o referido C (…) e o irmão L (…)dirigiram-se a casa do requerido, a solicitação deste, constatando a presença do gerente da “Ondacentro”, (…), tendo tomado conhecimento que o contrato-promessa para aquisição dos jeeps já estava redigido.

U) Nessa ocasião, o requerido manifestou intenção de proceder, de imediato, à emissão de um cheque de 90.000 contos para sinalizar o negócio.

V) O requerido é sócio das sociedades “M (…), Limitada” e “C (…)Limitada”, ambas com sede na Lousã.

X) No ano de 1981, o requerido outorgou uma procuração na qual constitui seus irmãos, J (…) e A (…), em alternativa, seus representantes junto de todos os bancos e demais instituições, tudo conforme documento de fls. 93.

Z) Em 5 de Agosto de 1988, o requerido municiou o sobrinho C (…) de uma procuração com poderes, nomeadamente para “…comprar, vender, trocar propriedades mobiliárias ou imobiliárias (…) adquirir ou ceder quotas em sociedades comerciais…”

AA) O requerido procedeu à revogação de todas aquelas procurações que outorgara.

BB) Pouco depois do 25 de Abril de 1974, a sociedade da família C (…) sob o impulso do requerido e do seu empenhamento pessoal, resolveu dar uma bicicleta a cada um dos empregados.

CC) Essa dádiva representava já na altura largas centenas de contos.

DD) Quando na Lousã se tomou a iniciativa de organizar um CR (...), o requerido emprestou o terreno para o campo de jogos.

EE) Há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico – doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS, - sendo que aproximadamente desde 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), com alguns défices cognitivos seletivos ou lacunares, que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental (resp. ao ponto 1).

FF) O requerido deixou de exercer qualquer atividade empresarial ou de gestão, de forma sistemática, há cerca de 15 a 10 anos (com referência à propositura da causa) (resp. ao ponto 2).

GG) O requerido foi acometido por vários surtos depressivos com duração semanal e por vezes mensal, que alternaram com períodos mais curtos e escassos de exaltação e euforia (estes desacompanhados de ideias psicóticas de alucinação ou delírio) (resp. ao ponto 3).

HH) Nos períodos de manifestação da doença de fase maníaca o requerido apresentava algumas ideias obsessivas, alguma desinibição e euforia (resp. ao ponto 4).

II) Quando a fase é depressiva, o requerido fecha-se em casa, no quarto de dormir, sem qualquer atividade, com pensamentos pessimistas sobre a sua vida e a sua pessoa, permanecendo na cama até a fase passar ou a medicação começar a surtir efeito (resp. ao ponto 5).

JJ) Há cerca de 20 anos, o requerido, em conversa com o dirigente do “ RB (...)da Lousã” manifestou-lhe a possibilidade de se decidir a doar a este um terreno com cerca de 7000m2, sito no coração da Lousã, que o referido clube já vinha utilizando há vários anos (resp. ao ponto 6).

KK) Durante uns tempos uma tal possibilidade caiu no esquecimento, até que decorrido cerca de uma ano o requerido pretendia, à viva força, proceder à doação imediata do mencionado terreno (resp. ao ponto 7).

LL) Exigia que a escritura tivesse lugar nesse mesmo dia (resp. ao ponto 8).

MM) Há cerca de 5 anos, o requerido dirigiu-se à ARCIL, propondo ao respetivo Presidente da Direção a doação da sua “quota-parte” em determinadas máquinas de uma secção da sociedade “C (…), Lda.” (resp. ao ponto 9).

NN) Decorridos uns dias, essa intenção do requerido caiu no esquecimento (resp. ao ponto 10).

OO) O requerido desistiu de levar em diante a intenção de casamento que projetara com D. (…) (resp. ao ponto 11).

PP) Em 27 de Março de 1999, no início da Assembleia Geral ordinária de “C (…), Lda.”, o requerido anunciou ser sua vontade fazer a entrega a cada um dos seus sobrinhos – que são 16 – de um cheque de 30.000.000$00 (resp. ao ponto 12).

QQ) Continuando a falar deste assunto durante mais alguns dias até que dele, por completo, veio a esquecer-se (resp. ao ponto 13).

RR) No dia 2 de Janeiro de 2000, o requerido, encontrando o sobrinho P (…), passou a comunicar-lhe que pretendia proceder à aquisição para doação de um apartamento para cada um dos sobrinhos-netos (resp. ao ponto 14).

SS) A essa data, os sobrinhos netos perfaziam número 25 (resp. ao ponto 15).

TT) Desde, pelo menos, o início dos anos 70, o requerido outorgou a favor do seu irmão J (…), uma procuração com plenos poderes de representação na gerência de M (…), Lda. (resp. ao ponto 16).

UU) A partir do momento em que começou a manifestar-se a doença, foi o irmão, J (…) quem, por vontade expressa do requerido, passou a orientar todos os negócios particulares deste (resp. ao ponto 17).

VV) A doença bipolar do requerido manifestava-se de tempos a tempos, com episódios raros de mania e mais frequentes de depressão, apresentando-se com intervalos de muitos meses sem sinais (resp. ao ponto 18).

XX) (eliminado).

ZZ) Quando as manifestações consistiam de insónia (crise de mania), muitas vezes após auto-sedação prolongada, o requerido consultava médico especialista, mas sendo acompanhado em regra por familiares, sendo já depois de Janeiro de 1998, por M (…), sua companheira – médico aquele que o observava e prescrevia os medicamentos necessários (resp. ao ponto 20).

AAA) Após a morte dos pais, com o apoio de outros familiares – nomeadamente até à sua morte, da cunhada e mulher do irmão J (…) – foi solicitado, por várias vezes, o internamento médico do requerido (resp. ao ponto 21).

BBB) Nos momentos de surto depressivo, que eram os predominantes, o requerido suspendia toda a sua atividade, recolhendo-se em casa (resp. ao ponto 24).

CCC) O requerido era habitualmente poupado nos gastos do quotidiano, e habitualmente seletivo na convivência, contido naquilo que dizia e fazia (resp. ao ponto 25).

DDD) Quando começou a tratar da reforma, o requerido carecia de parecer médico comprovativo da sua incapacidade, sob pena de a pretensão de reforma antecipada esbarrar na negação da junta médica (resp. ao ponto 27).

EEE) Com essa finalidade procurou o Dr. (…) (resp. ao ponto 28).

FFF) E marcou consulta com a Dra. (…) pois necessitava do impulso procedimental do médico de família (resp. ao ponto 29).

GGG) O requerido pretendeu que a ARCIL pudesse dispor das máquinas da “C (…)s, Lda.” para ocupação e ensino profissional dos deficientes (resp. ao ponto 31).

HHH) No mês de Março, por ocasião da Páscoa, o requerido teve intenção de celebrar o acto matrimonial em Albufeira – local onde a D. (…) tem família (resp. ao ponto 32).

III) Os requerentes J (…) e A (…), os sobrinhos filhos do primeiro e outros sobrinhos procuraram demover o requerido de casar (resp. ao ponto 33).

JJJ) Por força da oposição dos sobrinhos, acabou por subscrever requerimento dirigido ao processo judicial mencionado na alínea Q)declarando que não tinha intenção de casar (resp. ao ponto 34).

LLL) O requerido vai diariamente à fábrica da Lousã, uma ou duas vezes por dia, e vai frequentemente à fábrica de (...) (resp. ao ponto 38).

MMM) Acompanha a D. M (…) nas suas deslocações (resp. ao ponto 39).

NNN) (eliminado).

OOO) O requerido não definiu, em concreto, o número de jeeps – entre os 150 e os 200 (resp. ao ponto 41).

PPP) O património do requerido, avaliado por baixo, valerá mais de 2 milhões de contos (resp. ao ponto 42).

 B. O Direito

Na sentença recorrida, reconhecendo-se que “é patente que o requerido sofre de anomalia psíquica”, considerou-se que “no entanto, tal patologia não é de tal forma grave que o incapacite de gerir a sua pessoa e bens” ou que “justifique o decretamento da inabilitação”, acabando por julgar a ação improcedente:

Com efeito, não obstante o requerido ter sido assistido durante cerca de 20 anos, com períodos de internamento, a patologia de que padece não lhe comprometiam as funções nervosas superiores de atenção, memória, consciência e linguagem, com ligeira afectação das funções de cálculo e das funções executivas.

Por outro lado, importa atentar que os surtos depressivos, com duração semanal e por vezes mensal, alternavam com períodos de exaltação e euforia, algumas ideias obsessivas, mas desacompanhados de ideias psicóticas de alucinação e delírio.

Importa atentar igualmente que o requerido, para além de reconhecer os sintomas da patologia, nas fases agudas da patologia protegia-se em conformidade, procurava, espontaneamente, assistência clínica, permanecendo na cama até a fase passar ou a medicação começar a surtir efeito, inculcando responsabilidade e sentido crítico, protegendo-se aquando desses surtos.

Mais a mais, a doença do requerido manifesta-se de tempos a tempos, com episódios raros de mania e mais frequentes de depressão, com intervalos de muitos meses sem sinais, e sendo facilmente detectáveis pelo requerido, suspendendo toda a sua actividade na sua fase aguda.

Por outro lado, extrai-se da factualidade dada como provada, que o requerido sempre pautou a sua conduta, através das correspondentes doações, empréstimos e donativos, pela filantropia e benemerência, em prol da comunidade em que estava inserido e em benefício da sua família (não obstante alguns das suas intenções caírem posteriormente no esquecimento), delegando, quando a situação o reclamava, nos seus familiares os destinos dos seus negócios.

Já no que tange com o parecer médico referido em D) importa contextualizá-lo, atentando na sua finalidade, só assim permitindo explicar que em 1995 o requerido apresentava uma sintomatologia mais grave que aquela que consta da demais factualidade apurada.

Ora, o referido relatório visava a obtenção da reforma por parte do requerido, pelo que o mesmo não deveria deixar qualquer dúvida à junta médica que iria apreciar o respectivo pedido e foi com essa finalidade, e apenas, que o mesmo foi subscrito, sob pena de lhe ser negado o pretendido.

Mais a mais, o Tribunal entende que o requerido não praticou qualquer comportamento anómalo, e muito menos habitual, que reclame uma intervenção a fim de protegê-lo de si próprio.

Com efeito, e como já aflorado supra, o requerido sempre demonstrou ser um cidadão dinâmico, contribuindo para o bem público, e, em última análise, para dotar a localidade onde reside de infra-estruturas para as actividades locais, preocupando-se com os seus funcionários e familiares, não se descortinando qualquer atitude ou acto condenável na sua gestão.

Tal asserção alicerça-se no facto de desde 1974 o requerido ter vindo a praticar actos de benemerência, para fins louváveis, e não obstante representarem disposições patrimoniais significativas, foram sempre norteadas pelo interesse público.

Importa atentar que não resultou demonstrado que qualquer das disposições patrimoniais que o requerido realizou, ou que pretendia realizar e que caíram no esquecimento, o foram aquando de alguma crise do foro psiquiátrico, não se vislumbrando qualquer crítica que se possa assacar a alguma dessas disposições pelos argumentos supra aduzidos.

É certo que algumas dessas disposições patrimoniais representam montantes significativos, maxime a constante da al. S), mas tal terá de ser devidamente conjugado com o valor do património do requerido e que, avaliado por baixo, ascende a mais de 2 milhões de contos.

Por outro lado, resultou da matéria fáctica dada como provada, que a decisão de doar jeeps aos seus funcionários alicerça-se numa decisão pondera e reflectida, visando gratificar os trabalhadores da empresa como compensação pelo seu esforço e dedicação, não tendo definido, em concreto, o número de jeeps uma vez que ainda teria algumas dúvidas de realizar essa atribuição aos trabalhadores que se reformaram ou que tinham contratos de trabalho a termo certo.

Identidade de razões no que tange com a factualidade dada como provada atinente às vicissitudes do matrimónio não concretizado pelo requerido uma vez que o mesmo não se concretizou, fruto da desistência por parte deste, e atenta a oposição dos seus familiares, sendo certo que afigura-se-nos que a natureza da anomalia psíquica de que padece o requerido não é de tal forma grave ou incapacitante que reclame protecção.

(…)

Resta aferir se é caso para decretar a inabilitação do requerido.

(…)

Se a anomalia psíquica não tornar o incapaz inapto para a prática de todos os negócios, mas só para alguns, este será inabilitado.

(…)

  O interesse determinante das incapacidades do exercício de direitos previsto na lei é exclusivamente o interesse do próprio incapaz e não interesses alheios.

Vejamos.

O requerido, e conforme aflorado supra, tem pautado a sua vida por actos de benemerência, consubstanciados em doações, empréstimos e donativos, em prole do bem comum, sendo que algumas dessas disposições patrimoniais, à data, já representavam valores significativos.

Por outro lado, do manancial dado como provado, e sopesando que desde 1974 o requerido tem vindo a actuar nesse sentido, afigura-se insusceptível de crítica os negócios que este realizou, não se descortinando que os mesmos tenham sido injustificados, ruinosos ou absurdos, na medida em que apenas pretendiam beneficiar o próximo, desinteressadamente.

Mais a mais, careceu de demonstração que algum dessas disposições patrimoniais, ou simples intenções, tenham tido lugar em fases de manifestação dessa doença, inculcando a matéria probatória exactamente o oposto.

Com efeito, apurou-se que o requerido aquando da manifestação da patologia de que padece, procurava assistência médica, e fechava-se em casa até que a medicação surtisse efeito.

Importa reter que, não há registo de ao longo da vida do requerido este ter sido alguma vez enganado, manipulado ou prejudicado em algum negócio fruto da anomalia psíquica de que padece.

Por outro lado, o requerido era um cidadão activo, embora reformado por invalidez, deslocando-se diariamente a uma das suas empresas e demonstrando preocupação pelos seus trabalhadores.

Tendo em conta o valor do seu património, a natureza, finalidade das disposições patrimoniais e sopesando que o requerido manifesta sentido crítico em relação à anomalia psíquica de que padece, uma vez que reconhece os sintomas, procura assistência médica e refugia-se em casa até se mostrar restabelecido, o Tribunal entende que o requerido não necessita de protecção que o inabilite a realizar determinados negócios, quer patrimoniais, quer de natureza pessoal.

Com efeito, o requerido, embora padecendo de uma anomalia psíquica, sempre demonstrou que se encontra apto a reger a sua pessoa e bens, não sendo aquela de tal forma grave, que justifique o decretamento da sua inabilitação.

Mais a mais, não ficou demonstrado um nexo etiológico entre a anomalia psíquica demonstrada e a incapacidade alegada, sendo que esta não ficou demonstrada”.


*

Também por força das alterações pontuais aqui introduzidas à matéria de facto dada como provada, na sequência da impugnação deduzida pelos Apelantes, a apreciação que fazemos de tal factualidade é substancialmente diferente daquela a que chegou o juiz a quo.

Tem-se por inquestionável que a interdição é, antes de mais, entendida como um instrumento que visa tutelar os interesses do incapaz, afirmando-se pela necessidade de cuidado da pessoa: “É em face destes que é decretada e é por causa deles que subsiste, o que significa que, uma vez verificada a desadequação da medida em relação aos interesses do incapaz deve esta cessar ou adotar-se outra, designadamente a habilitação[2]”.

Implicando restrições aos direitos fundamentais à capacidade civil e ao desenvolvimento da personalidade, consagrados no artigo 26º da CRP, encontra-se sujeita ao princípio da proporcionalidade, nos seus três subprincípios; necessidade ou exigibilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito[3].

Os fundamentos da interdição e da inabilitação consistem em situações de anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, aos quais acresce a prodigalidade ou o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, na inabilitação (artigos 138º, nº1 e 1552º, do Código Civil).

É ainda habitual referirem-se os requisitos do caracter habitual ou duradouro da anomalia e da atualidade, bem como a necessidade de se ponderarem os interesses em causa para determinar o grau de proteção, bem como a eficiência da tutela.

O entendimento de anomalia psíquica é aqui tomado num sentido mais lato, por abranger não só as deficiências patológicas do intelecto, entendimento ou discernimento, mas também as deficiências patológicas da vontade, da sensibilidade e afetividade, que afetem a pessoa no todo ou em parte, para gerir os seus interesses pessoais e patrimoniais[4].

Não bastará, contudo, a mera verificação a anomalia psíquica, física ou físico-psíquica, tornando-se ainda necessário que estas sejam graves e que se encontrem relacionadas com a incompetência do adulto para governar a sua pessoa e bens (art. 138º, nº1, in fine).

A nossa lei distingue duas modalidades no regime de ajuda ao incapacitado, reservando a interdição para os casos mais graves e destinando a inabilitação para as deficiências que não apresentem um grau elevado de incapacidade que não impeçam nem excluam totalmente a indispensável aptidão do visado para gerir os seus interesses.

Diferentes são também os efeitos que resultam da declaração de uma ou de outra: não só a declaração de inabilitação apenas limita a capacidade de exercício nos casos especificados na sentença que a decretou, por contraposição à interdição que lhe nega a capacidade geral de exercício, como os meios de suprimento da incapacidade operam de forma distinta – na interdição pela representação e na inabilitação pela assistência[5].

Realizado o exame pericial ao requerido, os Srs. Peritos fizeram constar do relatório médico-legal, as seguintes conclusões:

“1. O examinado padece de uma Psicose maníaco-depressiva (rubrica F31 da CID-10), que deixa perceber uma evolução crónica, comportando uma certa insuficiência social e residual sintomática, com processo de deterioração mental associado.

2. Um tal contexto psicopatológico, que lhe vem condicionando a capacidade de gerir e/ou dispor dos seus bens, deverá relevar para efeitos de requerimento da sua eventual inabilitação/interdição por anomalia psíquica.

3. É recomendável que possa continuar a beneficiar, em regime ambulatório, de um regular e adequado acompanhamento clínico-psiquiátrico (psicofarmacológico, com recurso, entre outras, a terapêuticas profiláticas com psicofármacos, e psicoterapêutico), visando influenciar positivamente (e na medida do possível) o prognóstico da situação clínica em causa e/ou, pelo menos, evitar o seu agravamento futuro.”

Na opinião dos Srs. peritos, a patologia apresentada pelo requerido – psicose maníaco depressiva associada a uma deterioração mental – condiciona-lhe a capacidade de gerir e/ou dispor dos seus bens, o que deverá relevar para efeitos de requerimento da sua eventual inabilitação/interdição.

E o tribunal veio a dar como provada a seguinte factualidade, relativamente ao estado clínico do requerido:

“Há mais de 25 anos que foi diagnosticado ao requerido/falecido uma doença do foro psiquiátrico – doença bipolar afetiva, na classificação da CID-10 da OMS – sendo que aproximadamente desde 10 anos antes da sua morte à mesma se foi associando um processo de deterioração cognitiva sem compromissos grosseiros das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), com alguns défices cognitivos seletivos ou lacunares, que lhe comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental (resp. ao ponto 1).

Contudo, a decretação da interdição/inabilitação, embora tenha, necessariamente, de ter por base uma avaliação médica que defina o estado da pessoa, não é, em si, uma decisão médica mas jurídica.

Como defende Geraldo Rocha Ribeiro, mais do que a avaliação médica da deficiência natural e da natureza da mesma, é essencial determinar se a pessoa é inapta para se reger a si própria e aos seus bens, sendo, para isso necessário proceder a uma avaliação personalizada e situacional a incapacidade: “Terá de realizar-se um juízo não apenas médico, mas sim jurídico, para a aplicação de uma medida de proteção necessária e adequada ao contexto de vida da pessoa em causa[6]”.

“A perícia médica do foro psiquiátrico (do foro psiquiátrico e/ou neurológico) é determinante para traçar o diagnóstico e prognose da evolução do estado clínico, mas não será o elemento decisivo nem último para fundar um juízo de incapacidade. Esta resulta de uma avaliação relacional a realizar pelo tribunal que deverá igualmente integrar uma avaliação social e psicológica. É em função dos concretos e individuais interesses da pessoa em correlação com o estado clínico que se justifica a constituição de uma medida de protecção e incapacitação judicial.[7]

Atentar-se-á em que a determinação da necessidade de proteção deverá ter por referência os direitos e interesses individuais da pessoa a proteger. Como referem Ferrer Correia e Eduardo Correia, a medida da incapacidade é necessariamente relativa: o juízo sobre a capacidade para o governo não prescinde do exame da situação pessoal do interdicendo, da maior ou menor complexidade da sua vida, da natureza e extensão dos assuntos que lhe compete tratar, enfim, da importância das tarefas a seu cargo[8].

No caso em apreço, partindo da avaliação médica que dá por assente que a patologia apresentada pelo requerido lhe “condiciona” a capacidade de gerir e/ou dispor os seus bens, vejamos, assim, se o demais circunstancialismo fáctico dado como provado aponta para a necessidade de proteção e cuidado do requerido.

Desde logo e antes de mais, haverá que salientar, não se questionar nos presentes autos a capacidade do requerido para gerir a sua pessoa, mas unicamente a sua (in)capacidade para gerir os seus bens – os Srs. Peritos que elaboraram o relatório médico-legal não põem em causa a capacidade de o requerido se autodeterminar a nível pessoal, o que, desde logo, nos levará a ter por excluída a possibilidade de decretar a sua interdição[9]. Circunscrevendo-se a discussão da sua incapacidade à necessidade/oportunidade de aplicação de alguma medida de proteção relativamente à gestão do seu património, a decisão incidirá unicamente quanto à necessidade da declaração da sua inabilitação e, em caso afirmativo, quanto ao respetivo âmbito[10].

A inabilitação tem por efeito que os atos de disposição entre vivos fiquem dependentes de autorização do curador (nº1 do art. 153º CC), podendo ainda o tribunal entregar ao curador a administração de parte ou da totalidade do património do inabilitado (nº1 do art. 154º CC).

Envolvendo a inabilitação para o inabilitado a incapacidade de praticar atos de disposição de bens[11], manterá, em princípio, a capacidade para praticar atos de mera administração dos seus bens[12], ou seja, atos que não afetem a sua substância, e outros previstos na lei, devendo o julgador adaptar a incapacidade de exercício do inabilitado à sua incapacidade natural.

No que respeita à esfera patrimonial, como salienta João de Castro Mendes[13], a inabilitação é maleável e de limites variáveis consoante a sentença – há um regime regra quanto aos atos de disposição, que são praticados em regime de assistência; quanto aos atos de administração, pode da sentença resultar um de três regimes: liberdade (o inabilitado pode praticá-los pessoal e livremente); assistência (todos ou alguns atos estão sujeitos a autorização prévia); representação nos termos do art. 154º (a administração do património do inabilitado é entregue pelo tribunal, no todo ou em parte ao curador).

Encontrando-se o requerido reformado por invalidez desde Setembro de 1996 e sendo auxiliado no dia-a-dia pela sua companheira, poderia, eventualmente, sustentar-se (como o faz o representante do requerido nas suas contra-alegações de recurso[14]), não se justificar a aplicação de qualquer medida de proteção.

Contudo, em primeiro lugar, há que ter em consideração a dimensão do património de que o requerido é titular (o qual inclui participações sociais em várias empresas e aplicações financeiras, como é reconhecido nas suas contra-alegações de recurso) e ainda que, se durante muitos anos, se fez auxiliar por pessoas da sua confiança, recorrendo nomeadamente à ajuda de um contabilista, se no ano de 1981 outorgou uma procuração constituindo os seus irmãos J (…) e A (…) seus representantes junto de todos os bancos e demais instituições[15] e se em 1988 subscreveu uma nova procuração concedendo ao seu sobrinho C (…) amplos poderes para gerir o seu património[16] – nomeadamente, para comprar, vender, trocar propriedades mobiliárias e imobiliárias, adquirir e ceder quotas em sociedades comerciais, etc. –, encontra-se igualmente provado que, na sequência de desentendimentos familiares relacionados com a dádiva dos jipes, o requerido procedeu à revogação dessas e das demais procurações que outorgara (como é por si confessado no art. 281º da sua contestação).

Ora, com a subscrição de tais procurações há como que um reconhecimento pessoal da sua própria incapacidade para gerir o seu património.

Por outro lado, se da matéria dada como provada ressalta que, ao longo da sua vida, o requerido sempre foi dado a atos de filantropia, através do auxílio financeiro a instituições locais (através de donativos periódicos ou doações pontuais aos Bombeiros, à Arcil, à Filarmónica, etc.) – cuja natureza e valor surgem como perfeitamente adequados e proporcionais, quer ao património do requerido quer ao tipo de instituições beneficiadas, e em que se descortina um espírito altruísta de ajuda à comunidade em que se insere – igualmente se constata, com especial incidência para o ano que antecedeu a propositura da presente ação, uma propensão para um outro tipo de dádivas, quer quanto aos beneficiários, quer quanto à motivação que as inspira, quer quanto à ordem de valores envolvidos, significativamente elevada, mesmo tendo em consideração a dimensão do património do requerido:

- a 27 de março de 1999, a promessa dos 30.000,00 € a cada sobrinho (são 16);

- a 2 de janeiro de 2000, a aquisição para doação de um apartamento a cada um dos seus sobrinhos netos (em número de 25;

- a 5 de Janeiro de 2000, e a oferta entre 150 a 200 jipes a cada um dos trabalhadores das sociedades de que é sócio  (num valor mínimo de 516.900 contos),

E, se é verdade que, não tendo ascendentes, descendentes ou cônjuge, e tendo em conta a sua idade, teria o direito a fazer do seu património aquilo que muito bem entendesse, igualmente é certo que todas as grandes dádivas que anunciou, caso se tivessem concretizado (e não se terão concretizado, nomeadamente, porque os beneficiários das mesmas não as terão levado a sério), teriam acarretado, necessariamente, uma diminuição considerável do seu património[17].

Por outro lado, e apesar do elevado valor do património do requerido (acima dos dois milhões de euros), a dádiva dos jipes surge desproporcionada e desadequada, não só pela despesa que importaria para o requerido a respetiva aquisição, como pela utilidade de tal oferta para os contemplados quando confrontada com os custos que acarretaria para estes serem proprietários de um jipe[18], quer ainda face à compensação moral que o requerido pretendia retirar de tal oferta[19].

E, não é tanto este ato em si, visto isoladamente, mas, sobretudo, quando enquadrado no âmbito de uma série de outras “doações” que o requerido pretendeu levar a cabo e que acabaram por cair no esquecimento (e que não terão ido avante, também pelo facto de os respetivos beneficiários não as terem levado a sério), que nos levam a não o poder qualificar como um acto de “benemerência”, como pretende o requerido, mas antes, como fruto, ou de algum modo condicionado, pela doença de que padecia.

Tal avaliação por nós efetuada, associada à conclusão expressa no relatório médico-legal, de que o quadro patológico apresentado pelo requerido lhe condiciona a capacidade de gerir ou dispor dos seus bens, leva-nos a concluir necessitar o requerido do auxílio para a prática de actos de disposição do seu património.

Por outro lado, o facto de, desde há vários anos, recorrer a uma terceira pessoa, da sua confiança, para a gestão corrente do seu património, que lhe tratava de tudo, inclusivamente para tarefas tão indiferenciadas como a emissão de um cheque bancário, como é salientado no relatório de exame pericial (fls. 12 de tal relatório) – familiares e a um contabilista –, significa que o requerido, por si próprio, foi capaz de criar mecanismos de defesa para as suas dificuldades diárias de lidar com a gestão de um património complexo, composto por ações, imóveis, participações sociais.

Por fim, atendendo ao grau de incapacidade evidenciado no relatório médico-legal (o quadro patológico relatado não é suficientemente grave para lhe retirar a vontade, apenas a condicionando, encontrando-nos perante uma capacidade de facto limitada ou diminuída[20]), e ao princípio de que o sacrifício da liberdade individual deve ser restringido ao estritamente necessário para salvaguarda dos interesses do interdito, somos levados a concluir ser de manter intacta a sua capacidade jurídica para os actos de administração ordinária.

Assim sendo, no nosso entendimento, e ao contrário do peticionado pelos requerentes na petição inicial, apenas se impunha a nomeação de alguém para o auxiliar nos atos de disposição de bens entre vivos, mantendo o requerido a capacidade negocial de exercício para os atos de mera administração do seu património, nos termos do nº1 do artigo 153º do CC.

A incapacidade do requerido seria suprida pela assistência, havendo que proceder-se, caso o requerido fosse vivo, à nomeação de um curador ao inabilitando[21].

Por fim, há que fixar a data do começo da incapacidade.

Como é referido por Emídio Santos[22], o que está aqui em causa não é a data da condição de interdito ou inabilitado, pois esta só se constituiu com a sentença, mas sim de fixar a data de começo da incapacidade natural ou de facto, por ex., desde quando é que o requerido passou a estar afetado por anomalia psíquica que o tronou incapaz de reger a sua pessoa e bens.

De qualquer modo, na vigência do Código Civil de 1996, a doutrina e a jurisprudência[23] têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção judicial (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da provada existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação.

Embora os Srs. Peritos que elaboraram o exame médico-legal, não se tenham comprometido expressamente com uma data provável para o início da incapacidade, do teor global de tal relatório, infere-se que em, seu entender, coincidirá com o agravamento da sua situação clínica: a partir do momento em que à doença bipolar afetiva se associa um processo de deterioração mental.

Como fizeram constar em tal relatório, sendo a doença afetiva bipolar de que o requerido padecia, “temporária e reversível, com remissão da sintomatologia e restituição a um desempenho normal de todo os padrões funcionais nos períodos intercríticos (classicamente designados de “intervalos lúcidos”, só o “contínuo agravamento (nos últimos anos) da sua situação clínica (que vinha evoluindo clinicamente) e o declínio cognitivo patenteado, em resultado da evolução da doença e das próprias terapêuticas que necessitava de fazer cronicamente – como já então se afirmava em sede de Relatório Médico, datado de 24 de Outubro de 1995, que haveria de fundamentar a decisão (por Junta Médica), da sua reforma (antecipada) por invalidez – não pode deixar de constituir matéria atendível em termos médico-legais e psiquiátrico-forenses, complementada, obviamente, pelos resultados obtidos com a investigação pericial realizada”.

Por outro lado, a resposta dada ao ponto 1 da B.I. situa o início do processo de deterioração cognitiva cerca de 10 anos antes da sua morte (o requerido veio a falecer em 23 de Março de 2005), e uma vez que o relatório médico elaborado em 24.10.1995 pelo Dr. (…) e que se encontra junto aos autos atesta já a ocorrência de um declínio cognitivo associado à evolução do seu estado crónico[24], fixa-se o ano de 1995 como data de início da sua incapacidade (art. 954º, nº1 do CPC).

A apelação será, assim, de proceder parcialmente, reconhecendo-se a existência de uma situação de incapacidade ao requerido que justificaria a sua inabilitação, embora não com a extensão defendida pelos Apelantes.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida, e julgando-se a ação parcialmente procedente, reconhece-se a existência de uma situação de incapacidade que justificaria a inabilitação por anomalia psíquica do requerido, retirando-lhe a possibilidade de praticar, por ato próprio e sem autorização de curador, atos de disposição de bens entre vivos, fixando-se o início da incapacidade no ano de 1995.

Após trânsito, comunique à Conservatória competente, para efeitos de registo, nos termos dos arts. 69º, nº1º, al. g), e 78º, do Código de Registo Civil.

Custas a suportar por ambas as partes, na ação e no recurso, na proporção de 1/8 para os requerentes/apelantes e de 7/8 para o requerido/Apelado.

Coimbra, 11 de Novembro de 2014

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Inês Moura


[1] A decisão recorrida foi proferida antes da entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, tendo a ação sido instaurada em data anterior a 1 de Janeiro de 2008 (art. 7º da Lei nº 41/2013).
[2] Geraldo Rocha Ribeiro, “A protecção do incapaz adulto no Direito Português”, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora 2010, pág. 85.
[3] “Comentário ao Código Civil Parte Geral”, Universidade Católica Editora 2014, Coordenação de Luís Carvalho Fernandes e Brandão Proença, anotação ao art. 138º, por Gabriela Páris Fernandes.
[4] Cfr., neste sentido, “Comentário ao Código Civil Parte Geral”, já citado, pág.297. Como salientam Ferrer Correia e Eduardo Correia, o conceito jurídico de demência não coincide com o psiquiátrico: demência para o direito civil é simplesmente o mesmo que anomalia mental ou psíquica – “Fundamento da interdição por demência”, in RLJ Ano 86, pág. 90.
[5] Segundo Castro Mendes, a interdição é suprida por uma pessoa que substitui na ação o incapaz, na inabilitação, uma pessoa assiste o incapaz, autorizando-o a agir nos casos referidos na sentença que o julgou incapaz: “quando as pessoas são incapazes de exercer os seus direitos e cumprir as suas obrigações, o direito arranja formas de suprir essa incapacidade, ou seja de permitir que os direitos se exerçam e as obrigações se cumpram através de outra pessoa ou sob o devido controlo de outra pessoa que age em nome do incapaz” – “Introdução ao Estudo do Direito”, pág. 151. Anabela Susana de Sousa Gonçalves, delimita as duas figuras pelo seguinte modo: “O representante legal age em nome no interesse do incapaz, sendo os seus poderes atribuídos e determinados por lei. Por sua vez, na assistência, o assistente atua ao lado do incapaz, portanto não o substituindo no agir, estando dependente da sua autorização a prática de certos atos por parte do incapaz”- “Breve estudo sobre o regime jurídico da inabilitação”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Henrich Ewald Horster, Almedina, pág. 115.
[6] Obra citada, pág. 90.
[7] Geraldo Rocha Ribeiro, obra citada, pág. 428.
[8] Segundo aqueles autores, “A mesma anomalia psíquica pode gerar num individuo aquela incapacidade que leva à interdição (parcial ou até plena) e deixar noutro a aptidão necessária para o governo da sua via vida, exatamente em vista do menor volume ou do menor relevo dos interesses da esfera pessoal e patrimonial do último” – artigo citado, RLJ Ano 86, pág. 353.
[9] Independentemente de ter sido requerida a inabilitação do requerido, o juiz é livre de optar pela interdição ou pela inabilitação, não se encontrando limitado pela pretensão formulada pelos requerentes.
[10] A anomalia psíquica, a surdez mudez ou a cegueira só justificam a interdição se tornarem o indivíduo incapaz de governar a sua pessoa e bens, afetando tanto a sua esfera pessoal como a patrimonial.
[11] Segundo Manuel de Andrade, são atos de disposição “todos aqueles que ultrapassem as funções e as finalidades indicadas próprias da mera administração, contando que digam respeito à gestão ou gerência do património administrado” – “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Almedina 1992, págs. 61 e 62.
[12] Como refere Geraldo Rocha Ribeiro, o conteúdo mínimo da inabilitação é uma incapacidade limitada para atos de disposição, não implicando uma incapacidade geral de agir, sendo personalizado atendendo às qualidades e necessidades da pessoa. (obra citada, pág. 128).
[13] “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. I, AAFDL, 1978, págs. 163 a 165.
[14] Onde se alega que, sendo o requerido um cidadão com património cristalizado em dinheiro, aplicações financeiras, participações sociais, cuja administração não evolve grandes riscos, nem exige conhecimentos especializados muito apurados, fazendo-se auxiliar por terceiros, por si livremente escolhidos, não se justificaria a aplicação de qualquer medida (29ª conclusão).
[15] Procuração cuja cópia se encontra junta a fls. 93 dos autos, pela qual lhes concedeu poderes para, conjuntamente ou em separado, movimentarem as suas contas, à ordem ou a prazo, fazendo depósitos ou levantamentos, passando cheques.
[16] Procuração cuja cópia se encontra junta a fls. 95 e 96, concedendo ainda poderes para o representar em juízo, para receber primeiras citações, apresentar contestações, licitar em inventários, requerer registos, cancelamentos e certidões na Conservatória, dar de arrendamento os seus prédios, rústicos e urbanos, fazer ou aceitar confissões de dívida, fazer partilhas amigáveis ou judiciais, divisões demarcações de bens, hipotecar todos os seus bens, fazer doações, etc.
[17] Só a oferta dos jipes implicaria a disposição de quase ¼ do seu património.
[18] Como é referido pela testemunha (…) (que foi técnico oficial de contas de duas das empresas da família do requerido), muitos dos funcionários contemplados não teriam sequer possibilidades económicas para proceder ao pagamento dos impostos inerentes à aquisição e titularidade de tais veículos; e como é também referido em audiência, outros funcionários nem carta de condução teriam.
[19] Fazer algo suficientemente marcante para que fosse lembrado, para que o nome de (…) não fosse esquecido, como é referido por uma das testemunhas.
[20] Como os Srs. Peritos fazem constar do relatório de exame médico-legal, dos três elementos fundamentais integrantes da capacidade jurídica do ponto de vista médico-legal – i) uma soma de conhecimentos acerca dos direitos e deveres e das regras de vida em sociedade ii) um juízo suficiente para aplicá-los num caso concreto; iii) integridade da vontade necessária para influenciar uma decisão livre – apenas esta última resulta prejudicada por falência dos respetivos mecanismos cerebrais de controlo: “face ao declínio do seu desempenho cognitivo, onde relevam, entre outros, o compromisso da sua capacidade cálculo (incluindo operações simples e/ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), a traduzir uma menor conservação das áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito de abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental e de antecipação das prováveis consequências pessoais e sociais das decisões tomadas”.
[21] Residindo o interesse no prosseguimento do processo, após a morte do requerido, na circunstância de o requerido poder ter praticado atos que se encontrem sujeitos a algum vício, para efeito de eventual anulação de atos praticados pelo inabilitando antes da propositura da ação e depois de anunciada a propositura da ação (artigos 149º e 150º, por força do art. 156º, todos do CC).
[22] “Das Interdições e das Inabilitações”, QUID JURIS 2011, pág. 91.
[23] Cfr., neste sentido, Gabriela Páris Fernandes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, pág. 332.
[24] Apesar do requerido ter pretendido desvalorizar tal Relatório, defendendo que o respetivo teor se encontrava justificado ou “empolado” pelos fins a que se destinava (a obter a reforma antecipada), o certo é que, ouvido em audiência o seu autor, o Dr. (…), veio a confirmar e a explicitar o processo de deterioração cognitiva que o requerido já então apresentava – uma deterioração cognitiva ligeira ou um início demencial (cfr., um resumo do respetivo depoimento, por nós citado, a fls. 29 do presente acórdão).