Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
977/10.8T2AVR-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DESISTÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 06/29/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 120.º E SS DO CIRE E ALÍN. E) DO ART.º 287.º DO CPC EX VI ART.º 17.º DO CIRE
Sumário: A desistência pelo administrador da insolvência dos efeitos da resolução em benefício da massa insolvente a que oportunamente procedeu, nos termos dos art.ºs 120.º e ss do CIRE, após impugnação e antes da prolação de sentença, determina, por falta de objecto, a extinção da instância por impossibilidade da lide, nos termos da alín. e) do art.º 287.º do CPC ex vi art.º 17.º do CIRE.
Decisão Texto Integral: Decide-se singularmente no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            Decretada a insolvência de “a..., SA” e efectuada a resolução em benefício da Massa Insolvente (MI) pelo respectivo Administrador da Insolvência (AI), veio a terceira transmissária de um bem imóvel, “B..., Lda.” impugnar a resolução através da correspondente acção proposta contra a MI, pedindo fosse declarada a impugnação da resolução incondicional comunicada dos contratos de compra e venda identificados na carta (resolutória) do AI, declarando-se não produzir a mesma quaisquer efeitos sobre esses negócios, nem relativamente à A. e à sua aquisição de propriedade do imóvel, ou, subsidiariamente, fosse declarada a inoponibilidade de tal relação à A.

            Alegou, para tanto, em resumo, ter recebido uma carta do AI daquela massa insolvente notificando-a da resolução incondicional dos contratos de compra e venda que celebrou com “C..., Lda.” relativamente a um imóvel, nomeadamente o contrato de compra e venda por que a A. o adquiriu, por alegadamente ter constituído uma acto manifestamente prejudicial à MI, que tinha sido praticado a menos de 6 meses antes do início do processo de insolvência, que à data do negócio a insolvente já se encontrava encerrada, sem contabilidade organizada, configurando a venda um acto que diminuiu a satisfação dos credores da insolvência e que não existiu evidência da entrada dos valores no património da insolvente.

Mais alegou a sua boa fé quando celebrou o contrato de compra e venda, tendo consciência da aquisição por um preço justo e ignorando lesar os direitos de outrem e a pendência de qualquer processo de insolvência contra a “ A...”, bem como que, quando esta vendeu o imóvel à “ C...” poderia provocar quaisquer prejuízos aos credores da insolvente.

Decorrido o prazo de oposição sem contestação do AI, foi este notificado para informar se essa omissão correspondia a desistência da resolução do negócio, vindo o mesmo informar que a sua inércia correspondia a desistência da resolução, face ao que foi proferido o seguinte despacho:

- “Considerando que o senhor administrador da insolvência desistiu dos efeitos da resolução a que procedeu nos termos do art.º 120.º e ss do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que por estes autos a autora pretendia impugnar, por ausência de objecto declaro extinta a instância com fundamento na inutilidade superveniente da lide.

Custas a cargo da massa insolvente por ter dado causa à acção e à respectiva extinção”.

Inconformada com o assim decidido, recorreu a impugnante da resolução, cujas alegações rematou com as seguintes conclusões:

a) - Pretendia e pretende a autora seja condenada a ré a ver reconhecida a invalidade das resoluções de negócios comunicadas, por não serem legalmente válidas desde o momento em que foram emitidas, não produzindo, em consequência, quaisquer efeitos, desde tal momento;

b) – A sentença recorrida reconduz-se a manter os efeitos na ordem jurídica de tais resoluções impugnadas, desde a data em que foram emitidas pelo Senhor Administrador de Insolvência até à data em que, por requerimento de fls o mesmo vem desistir dos efeitos das resoluções;

c) - A desistência não afecta eventuais direitos de terceiros no que respeita aos efeitos de tais resoluções, no período já identificado entre a emissão das mesmas e a desistência dos seus efeitos;

d) - Como resulta do disposto no artigo 127º do CIRE, a autora tem relevante interesse em ver a resolução dos negócios ser declarada ineficaz por decisão definitiva, pois esta terá força vinculativa, relativamente às questões que tenha apreciado, nomeadamente no que respeita à boa fé alegada e à inexistência de prejuízos para a Massa Falida e para os credores, no âmbito de qualquer acção de impugnação pauliana, pendente ou futura, proposta tendo por objecto os negócios em causa;

e) - Tem a autora direito a ver apreciada a questão de mérito que colocou ao Tribunal: a procedência da impugnação deduzida e consequente invalidade das resoluções dos negócios, com efeitos a partir da respectiva emissão;

f) - Não se verifica, assim, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, violando a sentença recorrida o disposto nos artigos 287.º, alínea e), e 660.º, nº 2, do Código de Processo Civil e artigo 127º, nº2, do CIRE;

g) - Acresce que, tendo a ré sido devida e validamente citada para a presente acção e não tendo apresentado contestação, deveria ter sido condenada de preceito no pedido deduzido pela autora, atendendo aos factos alegados na PI, violando, assim, a sentença recorrida o disposto no artigo 784.º, do Código de Processo Civil e no artigo 125º e 127º, do CIRE, pelo que deverá ser condenada conforme pedido na petição inicial.

Não foi apresentada resposta.

Cumpre decidir, singularmente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 700.º, n.º 1, alín. c) e 705.º do CPC , sendo colocadas duas questões:

a) – Se a desistência do AI dos efeitos da resolução em benefício da massa insolvente pode levar à extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide;

            b) – Se, por falta de contestação em momento anterior à desistência, não deveria ter sido proferida condenação de preceito da Ré, com vista a declarar a ineficácia da resolução e assim ter força vinculativa no âmbito de eventuais acções de impugnação pauliana quanto às questões apreciadas.

Vejamos.


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2. Fundamentação

2.1. De facto

O quadro factual relevante para o julgamento do recurso é o que acaba de ser exposto o antecedente relatório, para onde, brevitatis causa, se remete.


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2.2. De direito

Escrevemos no acórdão desta Relação de 18.1.11[1] que “a acção de impugnação assume uma natureza de contra-ataque, por isso devendo o impugnante conhecer previamente os factos concretos sobre que deva defender-se e são objecto de resolução por banda do administrador da insolvência.[2]

Dir-se-á que é a carta resolutória que define o objecto da própria impugnação, pelo que só os actos ou contratos resolutivos prejudiciais à massa insolvente nela indicados podem ser apreciados na acção, sob pena de, extravasando-se para acto diverso, a respectiva sentença incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do cit. art.º 688.º, n.º 1, alín. d) do CPC.”

“No art.º 123.º regulou-se a forma de resolução a efectuar pelo administrador da insolvência mediante carta registada com aviso de recepção e a prescrição do direito[3] sem, contudo, se referir ao conteúdo da própria declaração resolutiva.

Gravato Morais[4] defende a necessidade de uma específica motivação com invocação dos fundamentos que a originam, os quais têm um conteúdo bem diverso da típica resolução extrajudicial, desde logo porque cabe ao administrador da insolvência a prova da natureza do acto, caso haja impugnação, impondo-se que as circunstâncias que fundamentam a prejudicialidade do acto sejam invocadas quando se declara a resolução.

Por seu turno, Carvalho Fernandes e João Labareda[5] aludem à exigência de formalidades mínimas.

Também a jurisprudência se tem pronunciado pela necessidade de fundamentação, com indicação dos concretos factos fundamento da medida resolutiva.[6]

E é assim porque ao impugnante assiste o direito a conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são desferidos de forma a poder demonstrar a insubsistência do acto resolutivo[7], com vista a demonstrar que o acto não foi prejudicial.[8]

É caso a caso que terá que ser apreciado o alcance exigível da fundamentação e se a mesma garante ou não um efectivo direito de defesa (impugnação) ao impugnante”.

O que aí escrevemos é transponível para o caso em apreço.

Dito de outro modo, é a resolução extrajudicial (ou judicial que em seu lugar também pode ocorrer[9]) que delimita o âmbito do processo e, daí, que o seu concreto fundamento e pedido tenha a posição de uma petição inicial, condicionando todo o processo e a impugnação a de defesa, desde logo ao nível de repartição do ónus da prova, a incidir sobre o AI quanto aos factos constitutivos do direito, v. g., má fé dos que negociaram com o insolvente ou terceiros transmissários e sobre o impugnante os factos extintivos, v. g., que o acto não foi prejudicial à MI, não podendo o AI em representação da MI, na contestação apresentada a esta, assentar a oposição em nova factualidade diversa da que fundamentou a resolução.

E como sobre qualquer petição inicial pode o autor desistir do pedido, sem necessidade de aceitação da parte contrária (art.º 295.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), com a consequente extinção do direito que pretendia fazer valer, por implícito reconhecimento de que a pretensão fora, afinal, infundada, à partida, nada obstará à desistência do AI dos efeitos da resolução, com iguais consequências.

Mas, vendo mais em concreto, a recorrente estriba-se em 3 ordens de considerações para pretender obter ganho de causa:

a) – A eficácia retroactiva da resolução, nos termos da qual a lei (art.º 126.º, n.º 1, do CIRE) obriga à reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, sendo que a decisão recorrida (não conhecendo da causa) reconduz-se a manter os efeitos na ordem jurídica das resoluções impugnadas desde a data em que foram emitidas até
à desistência;

b) – Na frustração do seu interesse em beneficiar da força vinculativa da ineficácia da resolução quanto à boa fé e inexistência de prejuízos para a MI e credores no âmbito de qualquer acção de impugnação pauliana pendente ou futura, proposta tendo por objecto a impugnação dos negócios em causa (art.º 127.º, n.º 2, do CIRE);

c) – Na condenação de preceito consequente à falta de contestação da acção pelo AI.

Apreciando, dir-se-á que o procedimento resolutivo em causa e a subsequente acção de impugnação, aliás a fazer jus ao nomen juris que apresenta, visa beneficiar os interesses da massa insolvente.

Como refere Gravato Morais[10]do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contrataram com o devedor insolvente e eventualmente os dos que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência.

A finalidade prosseguida é, pois, a da reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos dos credores”.

A esta luz, improcedem os argumentos de que a decisão recorrida de extinção da instância implicitamente manteve os efeitos decorrentes do carácter retroactivo da resolução até á desistência e que impede a recorrente de demonstrar a ineficácia da resolução e obter as vantagens daí resultantes.

A lei não tutela outros interesse que não os da MI e, se bem se vir, a recorrente não alegou nenhum interesse ou prejuízo merecedor de tutela, sendo que o instituto da responsabilidade civil por facto ilícito é suficientemente abrangente para, noutra sede, poder acobertar reparação de eventual lesão dos direitos da recorrente.

Quanto à condenação de preceito, embora sumária a forma processual atinente à causa, o art.º 784.º do CPC não permite hoje (já desde a redacção do DL n.º 329-A/95, de 12.12) tal forma de condenação automática, decorrente do efeito cominatória pleno que já teve, antes impondo ao juiz, face à falta de contestação e desde que não verificadas as excepções do art.º 485.º, o julgamento dos factos como provados, de seguida lhes aplicando o direito (o que pode levar à improcedência da acção), se bem que a fundamentação possa fazer-se por remissão para a petição inicial.

Embora a desistência ocorresse após decurso do prazo de contestação, não haveria que proferir sentença, que constituiria, sim, um acto inútil, não podendo ser apreciada impugnação de algo que deixara de verificar-se, ficando, em suma, o respectivo processo sem objecto a prosseguir.

É assim que, concordando-se com a solução encontrada, de não prosseguimento da causa por falta de objecto, e que, por impossibilidade da lide (mais que inutilidade superveniente), conduziu à extinção da instância (art.º 287.º, alín. e) do CPC, ex vi art.º 17.º do CIRE).  


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            3. Em síntese conclusiva

            - A desistência pelo administrador da insolvência dos efeitos da resolução em benefício da massa insolvente a que oportunamente procedeu, nos termos dos art.ºs 120.º e ss do CIRE, após impugnação e antes da prolação de sentença, determina, por falta de objecto, a extinção da instância por impossibilidade da lide, nos termos da alín. e) do art.º 287.º do CPC ex vi art.º 17.º do CIRE.


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4. Decisão

            Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e mantém-se a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.


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Francisco M. Caetano


[1] Proc. n.º 7266/07.3TBLRA-E.C1.
[2] V. Ac. STJ de 17.9.09, Proc. 307/09.1YFLSB, Proc. 307/09.1YFLSB, in www.dgsi.pt.
[3] Que mais propriamente seria caducidade – V. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE, Anot.”, 2008, pág. 438.
[4] “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, 2008, págs. 54 e 164.
[5] Ob. cit., pág. 438.
[6] V. Ac. RP de 12.4.2010, Proc. 2975/08.2TJVNF-D.P1, in www.dgsi.pt.
[7] V. Ac. STJ de 17.9.2009 acima referido.
[8] V. Acs. RL de 24.9.2009, Proc. 725/06.7TBTVD-I.L1-8 e de 9.3.2010, Proc. 520/06.3TBLNH-F.L1-7, in www.dgsi.pt.
V., também, Gravato Morais, ob. cit. pág. 167.
[9] V. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob cit., pág. 438.
[10] Ob. cit., pág. 47.