Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
142/10.4GDAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: DISPENSA DE PENA
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 74º, DO C. PENAL
Sumário: A dispensa de pena, mesmo nos casos avulsamente previstos no Código Penal, está sujeita ao regime geral do art.º 74º, do mesmo Diploma, como expressamente resulta do n.º 3, deste normativo, que dispõe que “quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1”, ou seja, se a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas (alínea a)), se o dano tiver sido reparado (alínea b)) e se à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção (alínea c)).
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo Juízo de Instânica Criminal de Anadia, comarca do Baixo Vouga, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

            “(…)

            Pelo exposto, o Tribunal decide:

            1) Condenar o arguido A... pela prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do C.Penal, na pena parcelar de 01 (um) mês e 15 (quinze) dias de prisão para cada um deles.

            2) Condenar o arguido A... , em cúmulo jurídico, na pena única de 02 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 01 (um) ano.

            3) Condenar o arguido a pagar a cada um dos assistentes a quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida juros, desde a condenação até integral pagamento, à taxa legal, determinada nos termos do art. 559.º, n.º 1, do C.Civil.

            4) Absolver o arguido do restante peticionado pelos assistentes.

            5) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a T.J. em 3UC (art.os 513.º e 514.º ambos do C.P.P., e 8.º, n.º 5, do R.C.P.).

            6) Isento de custas cíveis (art. 4.º, n.º 1, al. m), do R.C.P.).

(…)”.

Inconformado, o arguido A... interpôs recurso da sentença, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

l. A matéria de facto dada como provada, nomeadamente nos pontos 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9, 12 e 13 da alínea C) Fundamentação da Sentença, em conjugação com a matéria dada como não provada, não teve em consideração a totalidade da prova produzida quanto às expressões efectivamente dirigidas ao Assistente B..., e que determinariam uma ponderação diversa da que o Juiz a quo veio a decidir.

2. Na matéria de facto dada como provada, nomeadamente nos pontos 5, 6, 8, 10, 11 e 13 da alínea C) Fundamentação da Sentença, relativamente à Assistente C..., não foi tida em consideração a totalidade da prova produzida quanto às expressões efectivamente dirigidas à Assistente C..., e que determinariam uma ponderação diversa da que o Juiz a quo veio a decidir.

3. O tribunal a quo não apreciou assim como era seu dever, as declarações do arguido e da testemunha D..., que por si só impunham decisão diversa da que efectivamente aconteceu.

4. O tribunal a quo não apreciou assim como era seu dever, as declarações do arguido e dos Assistentes, que por si só impunham decisão diversa da que efectivamente aconteceu.

5. A não consideração das penas aplicáveis ao caso concreto, nomeadamente, a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, realçando-se as virtualidades do plano individual de readaptação, e deixando de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar, atingiu a decisão recorrida com o vício de nulidade, atentas as disposições conjugadas dos artigos 379.°, n.º 1, alínea c) e 410.°, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal;

6. No caso concreto justificava-se a aplicação da dispensa da pena a que se alude no artigo 186° n.º 3 do CP, ao arguido que injuria outro, no âmbito de uma discussão e como reacção a uma outra injuria que tenha sofrido.

7. Ou seja está claramente demonstrado que as imputações injuriosas que configuram o crime pelo qual o arguido foi condenado decorreram no âmbito de uma discussão e como reacção ilícita a uma injúria, ou série de provocações e insultos que também ele tinha sofrido.

8. Deverá assim e de acordo com as antecedentes conclusões, ser a douta sentença proferida pelo tribunal a quo ser substituída por outra que dispense de pena o arguido dos crimes pelos quais foi condenado.

9. Por último, da prova produzida em julgamento, designadamente do testemunho do arguido e das declarações dos Assistentes e testemunhas, e em relação a ambos os crimes, resultou no mínimo uma dúvida razoável, tendo assim sido violado o principio de presunção de inocência consagrado constitucionalmente no artigo 32.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

 

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, acrescentando estar vedada a apreciação do mérito do recurso em matéria de impugnação do julgamento de facto por omissão de cumprimento dos ónus previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP.

            Os assistentes responderam, aderindo a este douto parecer.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

            - Impugnação da matéria de facto provada;

            - Violação do princípio da presunção de inocência;

            - Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

            - Prestação de trabalho a favor da comunidade;

            - Dispensa da pena.

                                                           *          *          *         

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:

1. No dia  …  Setembro de 2010, entre as 18h e as 19h, quando o assistente B… se encontrava à porta do seu estabelecimento denominado “W...”, situado na Rua … , o arguido A..., atirou alguma água para cima do toldo publicitário desse estabelecimento e para a via pública, atingindo o assistente B... e, pelo menos, outro cliente.

2. Da varanda do seu apartamento que se situa no segundo andar direito do prédio, por cima da esplanada e desse toldo publicitário, o arguido dirigiu ao assistente B... os seguintes impropérios: “és cabrão”; “drogado”; filho da puta”; “…andas a ir ao cú ao D…”…”; “a minha mulher estragou-te o negócio da droga e eu vou conseguir fechar o café”.

3. Tudo com intenção de enxovalhar e envergonhar o assistente B... perante quem passava na rua e clientes do estabelecimento.

4. Expressões essas que repetiu por diversas vezes em alta voz, de forma a serem audíveis pelas pessoas que frequentavam o estabelecimento do assistente B... e pelos vizinhos que residem no prédio e demais pessoas que se encontravam na via pública.

5. Sobressaltada por esses berros a assistente C…, que na mesma altura se encontrava no interior da sua casa, que fica no segundo andar esquerdo do mesmo prédio, veio à sua varanda; e o arguido, ao vê-la na varanda, dirigiu-lhe também a ela as seguintes palavras em voz alta e tom agressivo: “sua merda”; “vá para dentro sua velha”, “vai-te embora, já estás aqui há muito tempo”; “o que queres é andar a passear a cona dentro do carro dele para cima e para baixo!”; referindo-se ao facto das boleias dadas pelo assistente B... e mulher para ir ao centro da vila.

6. A assistente C... é viúva, reformada, mulher honrada, de porte irrepreensível, pelo que ficou profundamente chocada, magoada, triste e deprimida ao ver-se assim insultada; receando que o arguido voltasse de novo à carga com mais insultos nos dias seguintes.

7. O assistente B... ficou muito envergonhado e triste perante a sua mulher, clientes do seu estabelecimento e vizinhos.

8. Ao agir da forma descrita, o arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, idóneas a produzir danos na honra e consideração dos assistentes, resultado esse que previu e representou clara e antecipadamente não se inibindo por forma alguma de lhes dar as infelizes expressões que vão referidas, perante outras pessoas.

9. Os assistente são pessoas dignas e honradas, gozando de bom nome e respeito de todos com quem convivem diariamente.

10. A assistente C... é viúva, reformada, e desde esse dia passou a andar muito perturbada.

11. A assistente C... vive sozinha e com receio de ao sair de casa se cruzar com o arguido nas escadas internas do prédio e sofrer novos insultos.

12. As palavras dirigidas pelo arguido aos assistentes foram nos dias seguintes comentadas junto de amigos da terra e vizinhos.

13. As palavras dirigidas pelo arguido provocaram nos assistentes tristeza e angústia vivencial.

14. O assistente B... é casado; tem uma menor dependente; trabalha com a mulher no ramo da hotelaria, restauração e bebidas; e a mulher obteve, no ano fiscal de 2009, um rendimento bruto de € 21.531,47.

15. O arguido e a sua ex-companheira e o assistente B... e a sua mulher estão incompatibilizados, o que tem gerado conflitos e recíprocas queixas criminais.

16. Em tempos o arguido frequentava o café, participava nas actividades que ali eram desenvolvidas pelo ofendido B..., como torneios de sueca.

17. A partir de momento não apurado o arguido passou a considerar insuportável o ruído do funcionamento do café.

18. Muita da animosidade deve-se ao facto de o arguido considerar que suporta diariamente muito barulho vindo do café, principalmente durante a noite, a partir das dez da noite, o que o impede de descansar, bem como a sua família; e o arguido já por inúmeras vezes ter solicitado a presença da G.N.R. queixando-se que o café se encontra aberto ao público para além da hora de fecho para a qual está licenciado e que há ruído excessivo no exterior do café; tendo já denunciado a situação à Câmara Municipal.

19. O arguido encontra-se separado de facto; tem um menor dependente, que vive com a mãe, e para cujo sustento contribui; vive sozinho; teve no ano fiscal de 2008 um rendimento bruto (trabalho dependente) de € 5.600,26; encontra-se desempregado, recebendo subsídio de desemprego no valor de € 291,00 mensais.

20. Do registo criminal do arguido (emitido a 23-05-2011) constam as seguintes condenações:

ProcessoFactosDecisão
Trânsito
CrimesPenas
[A=ano;M=mês]
Estado
5/95
C.Singular
Cantanhede-T.J.-2.ºJ.
31-08-199310-05-1995Maus-tratos a cônjuge Prisão-7MPerdoada a
14-12-1999
74/95.4TBCNT
C.Singular
Cantanhede-T.J.-2.ºJ.
-04-199514-06-1999Falsificação de documento
(256.º/1/a) CP)
Multa-90 diasPaga a
19-12-2003
282/95.8TBCNT
C.Singular
Cantanhede-T.J.-1.ºJ.
08-05-199515-11-1999O.I.F.Qualificada tentada
(143.º/1, 144.º/1, 22.º CP)
Multa-90 diasPaga a
01-05-2004
296/00.8TBCNT
C.Singular
Cantanhede-T.J.-1.ºJ.
27-07-199922-02-2001E. Cheque S/ Provisão
(11.º/1/b) DL 454/91, 28/12)
Multa-90 diasPaga a
03-10-2003
6983/00.3TDLSB
C.Singular
Lisboa-1.ºJ.C.-1.ªS.
10-11-199928-05-2002
27-05-2003
E. Cheque S/ Provisão
(11.º/1 DL 454/91, 28/12)
Multa-125 diasPaga a
10-05-2004
29/03.7TAAND
Sumaríssimo
Anadia-J.I.C.
17-04-200213-10-2003
13-10-2003
Falsidade de dep. ou declaração
(359.º/2 CP)
Multa-70 diasPaga a
28-04-2004
19775/00.0TDLSB
C.Singular
Lisboa-4.ºJ.C.-2.ªS.
23-11-199912-05-2004
14-06-2004
E. Cheque S/ Provisão
(11.º/1 DL 454/91, 28/12)
Multa-100 diasPaga a
21-12-2005
200/08.5GDAND
C.Singular
Anadia-J.I.C.
29-12-2007

29-12-2007
16-12-2009
23-02-2010
Injúria Agravada
(181.º /1, 184.º, 132.º/2/I) CP);
Difamação Caluniosa Agravada
(181.º/1, 183.º/1/b), 184.º do CP)
Multa-200 dias;

Multa-90 dias;
Em cúmulo:
Multa-240 dias
Englobadas
em cúmulo
27/09.7GDAND
C. Singular
Anadia-J.I.C.
01-03-2009

01-03-2009

01-03-2009
17-02-2010
10-03-2010
Injúria Agravada
(181.º/1, 184.º, 132.º/2/I) CP);
Injúria Agravada
(181.º/1, 184.º, 132.º/2/I) CP);
C.V.E. Embriaguez
(292.º/1, 69.º /1 CP)
Multa-90 dias

Multa-90 dias

Multa-60 dias+
P.A.P.C.-4M
Em cúmulo:
Multa-160 dias+
P.A.P.C.-4M
Englobadas
em cúmulo
27/09.7GDAND
C. Singular
Anadia-J.I.C.

Cúmulo com:



200/08.5GDAND
28-06-2010
21-09-2010
Multa-90 dias;
Multa-90 dias;
Multa-60 dias+
P.A.P.C.-4M;
Multa-200 dias;
Multa-90 dias
Em cúmulo:
Multa-320 dias+
P.A.P.C.-4M;
- - -

            Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:

 O TRIBUNAL JULGA NÃO PROVADOS TODOS OS RESTANTES FACTOS, NOMEADAMENTE QUE:

1. O arguido atirou a água com uma mangueira.

2. A assistente C... ouviu por repetidas vezes as expressões que o arguido dirigia ao assistente B....

3. O arguido, durante algum tempo, permaneceu na varanda com “ar de gozo”, fazendo troça da assistente C....

4. O assistente B... viu afectada a sua imagem de homem sério, honrado e trabalhador.

5. A assistente C... é amiga de todos e não recusa ajuda aos que lhe são mais próximos.

6. Em consequência directa e adequada da conduta do arguido, a assistente C... ficou com arritmia cardíaca para a qual teve que procurar tratamento médico.

7. Os comentários sobre a ocorrência prejudicam muito os assistentes na sua alegria de viver e bem assim na sua afirmação pessoal e social, nomeadamente o ofendido B... que tem um estabelecimento com porta aberta ao público.

8. As palavras dirigidas pelo arguido aos assistentes mergulharam a assistente C... em estado de nervosismo e depressão e momentos de arritmia cardíaca necessitando de tratamento.

9. Em consequência directa e adequada da conduta do arguido, o assistente B... ficou com instabilidade emocional e problemas familiares, vivendo diariamente em constante sobressalto quando vai trabalhar, receando que o arguido volte à carga com novas injúrias à porta do estabelecimento.

10. Em consequência directa e adequada da conduta do arguido, o assistente B..., que sofre de tensões altas, passou a andar em constante nervosismo e provocou-lhe no passado dia 28 de Outubro, dores fortes no peito e braço, tendo sido assistido pelo INEM, foi-lhe diagnosticado princípio de enfarte.

11. Antes da ocorrência o arguido e o ofendido B... eram bons amigos, ajudando-se mutuamente em pequenas tarefas, e mesmo em pequenas obras ou arranjos no café.

12. Antes da ocorrência, o arguido tinha boa vizinhança com a assistente C... que reside no segundo andar tal como o arguido e que o acompanhava nas queixas contra o barulho excessivo vindo do café que tinham de suportar.

13. O arguido é pessoa honesta e trabalhadora, dedicado à família e inserido socialmente.

14. A ofendida C... mantém o seu dia-a-dia normal, cruzando-se com o arguido no prédio onde ambos residem sem mostrar qualquer receio.

15. O episódio de 28/10/2010 nada teve a ver com qualquer atitude do arguido, que aliás nem se encontrava em casa.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

O Tribunal baseou a sua convicção na análise crítica de todas as provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras da experiência comum, nomeadamente:
Os documentos juntos aos autos:
Autos de denúncia [fls.35 e 36];
Outros documentos [fls.115 a 121, 129 a 137, 148, 149, 159, 161 a 168 e 178 a 182];

O C.R.C. quanto a condenações criminais registadas [fls.183 a 193].
As declarações do arguido: Confirmou as circunstâncias de tempo e lugar dos factos; confessou parcialmente algumas das expressões proferidas; relatou as circunstâncias em que ocorreram os factos; relatou as suas condições pessoais.
As declarações dos assistentes: C...; e B…; Declararam, no essencial, em conformidade com a acusação particular e com os pedidos de indemnização civil deduzidos.
Os depoimentos das testemunhas:
 … ; mulher do assistente B...; sabe dos factos porque assistiu parcialmente ao desenrolar dos factos; presenciou a projecção da água pelo arguido e as expressões que dirigiu aos assistentes.
D...; sabe dos factos porque se encontrava no local a discutir com o arguido e presenciou o desenrolar dos factos.
 … ; sabe que o episódio ocorrido foi comentado nos dias seguintes no café; e a forma como a assistente se sentiu na sequência dos factos.
 … ; amigo do assistente; sabe que o episódio ocorrido foi comentado nos dias seguintes no café; e a forma como o assistente se sentiu na sequência dos factos.
 … ; sabe que o episódio ocorrido foi comentado nos dias seguintes no café; e a forma como a assistente se sentiu na sequência dos factos.
 … ; ex-companheira do arguido; não presenciou os factos; confirmou as actuais más relações entre as pessoas envolvidas; depôs de forma parcial e manifestamente comprometida com a defesa dos interesses do arguido.
 … ; Guarda da G.N.R.; e
 … ; Cabo da G.N.R.; que se dirigiram por diversas vezes ao estabelecimento por queixas relativas ao ruído por parte do arguido; nunca constataram ruído excessivo no exterior do estabelecimento; presenciaram as más relações de vizinhança existentes.

Sobre os factos provados:

A motivação resulta da prova documental em conjugação com a parte das declarações confessórias do arguido, as declarações dos assistentes/demandantes na medida em que corroboradas pelos depoimentos das testemunhas.

Quanto aos factos não provados:

A motivação resulta da ausência de prova bastante e/ou credível e quanto ao pedido de indemnização civil da falta de demonstração do necessário nexo de causalidade adequada entre os factos aqui praticados pelo arguido contra os assistentes/demandantes e o estado de saúde relatados pelos mesmos, tal como exigido pelo art. 563.º do C.Civil.

                                                           *          *          *

O recurso é de facto e de direito, tendo o arguido e ora recorrente impugnado a matéria de facto fixada em 1ª instância.

No que concerne ao recurso da matéria de facto, constata-se que o recorrente, pese embora tenha elaborado a sua impugnação com apelo às declarações e depoimentos prestados em audiência e indicando a faixa correspondente à gravação digital, não deu integral cumprimento ao disposto no art. 412º, nºs 3 e 4, indicando nas conclusões que formulou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta. Servindo as conclusões, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso[1], operando a vinculação temática do tribunal superior e definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem, em bom rigor haveria que o convidar a completar as conclusões, nos termos do art. 417º, nº 3, formalidade que se nos afigura dispensável, visto os elementos necessários estarem minimamente especificados na motivação do recurso, resultando claro o âmbito da impugnação pretendida.

De todo o modo, não assiste razão ao recorrente na impugnação que faz da matéria de facto. A circunstância de ter confessado parcialmente os factos que lhe são imputados não se impunha de forma inelutável ao tribunal a quo, obrigando-o a ater-se na formulação da sua convicção aos limites dessa confissão. De resto, o recorrente limita-se a transcrever as parcelas de declarações e depoimentos que isoladamente apreciados parecem sustentar a sua alegação, escamoteando a análise do conjunto de elementos de prova que conduziram à fixação do provado. Ora, o provado traduz-se essencialmente no resultado depurado do conjunto da prova produzida, apreciada à luz das regras da experiência comum; e no caso vertente, a análise conjunta da prova aponta para o bem fundado da matéria de facto que se teve como provada. Os factos que o recorrente impugna têm sustentação na prova produzida em audiência, nomeadamente nos depoimentos prestados pelas testemunhas  … e D.... A primeira, casada com o assistente B…, referiu expressamente que o arguido dirigiu insultos ao seu marido, chamando-lhe «cabrão», «filho da puta» e «drogado». Depois, dirigindo-se à testemunha D... disse-lhe que ele era o segurança do seu marido e perante a negação deste, retorquiu-lhe que «então andas-lhe a ir ao cú». Em momento ulterior, a assistente C...  veio à varanda e o arguido, dirigindo-se-lhe, proferiu as expressões «sua merda», «já devias ter ido embora há muito tempo», «andas com a cona para baixo e para cima». Por seu turno, a testemunha D... referiu que o arguido, dirigindo-se ao assistente, afirmou «que era um drogado», «que a mulher estragou-lhe o negócio da droga», «que era um filho da puta», e depois dirigindo-se à testemunha, afirmou que o assistente «lhe estava a ir ao cú».

Por outro lado, há que recordar que ao tribunal de recurso não compete, salvo nos casos previstos no art. 430º, fazer um novo julgamento, mas apenas e tão-só verificar se a valoração feita pelo tribunal de 1ª instância respeita os critérios legais e as regras da experiência comum e se tem sustentação na prova produzida em audiência, desde logo por força das diferenças que intercorrem no julgamento a efectuar em cada uma das instâncias. O art. 127º estatui, com excepção para os casos em que a lei disponha de modo diverso, que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Ressalvados os casos de renovação da prova, o tribunal de recurso não tem à sua disposição a vastíssima informação que resulta da oralidade e da imediação em julgamento, estando limitado por força da própria natureza da sua intervenção à análise da prova documental e ao registo magnético da prova oralmente produzida em audiência. Daí que seja essencialmente sobre o julgador em 1ª instância que recaia a responsabilidade de apreciar e valorar a credibilidade da prova oralmente produzida. E se o produto final dessa valoração não poderá resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente (por exemplo, valorando especialmente um ou outro depoimento mais marcante, fruto da credibilidade do seu autor; desvalorizando depoimentos mais emotivos e menos objectivos; relacionando conclusões de prova pericial com declarações ou depoimentos), em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos (por exemplo, as dúvidas resultantes de um depoimento aparentemente seguro que no entanto, em momentos críticos, perante perguntas imprevisíveis, é acompanhado de inflexões na voz, hesitações antes da resposta, contradições com afirmações anteriores, deduções ilógicas; as dúvidas resultantes do depoimento da testemunha que em vez de responder linearmente à questão que lhe é posta, procura ansiosamente no olhar de quem a interroga o caminho para a resposta; as certezas decorrentes do depoimento da testemunha assertiva e peremptória que de repente se vê confrontada com uma pergunta que manifestamente não esperava e que antes de responder procura uma indicação no rosto da “parte” que não quer prejudicar), mas também deduzindo dos factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa. É precisamente esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto. Assim se efectiva a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP. E precisamente porque o aquilatar da credibilidade da prova é tarefa que impende essencialmente sobre o juiz de 1ª instância, com base na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só deverá questionar o resultado assim atingido se constatar que o que se teve como provado se oferece como incongruente, ou se revela  inadmissível face às regras que decorrem da experiência comum. Para tanto, necessário se torna que as provas indicadas pelo recorrente em cumprimento do ónus que lhe é imposto pelo art. 412º, nº 3, al. b), imponham uma decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal recorrido.

Manifestamente não é esse o caso. O tribunal a quo acreditou numa versão dos factos que tinha sustentação na prova produzida em audiência e explicou as razões dessa opção, sem que lhe tenha restado qualquer dúvida inultrapassável que devesse conduzir ao funcionamento do princípio in dubio pro reo.

No fundo, o que o recorrente questiona é a livre convicção do tribunal recorrido, pretendendo ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida. Contudo, a matéria de facto que se teve como provada em primeira instância tem suporte coerente na prova produzida, analisada de acordo com as regras da experiência comum, compaginando as declarações e depoimentos prestados em audiência, não se vislumbrando qualquer salto lógico ou afirmação temerária que pudesse inquinar as conclusões alcançadas pelo tribunal recorrido.

Acresce que a matéria que o recorrente aponta como traduzindo omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença mais não é do que a questão da correcção do provado trazida à colação sob novas vestes, mas que não lhe quadram por não ser a análise crítica do provado o âmbito de funcionamento das disposições conjugadas dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. c), do CPP.

Ora, se em sede de impugnação da matéria de facto o recurso não merece provimento, também por via da oficiosa verificação dos vícios que poderiam inquinar a decisão, nomeadamente os previstos nas alíneas do nº 2 do art. 410º, nada resulta susceptível de contender com a validade do julgamento efectuado. Como é sabido, tais vícios apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a)), que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada [2].

O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão.

A al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” [3].

Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta a verificação de qualquer daqueles vícios, porquanto os factos provados constituem suporte bastante para a decisão adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão e não é perceptível qualquer erro grosseiro e ostensivo na apreciação da prova.

Consequentemente, a matéria de facto há-de ter-se por definitivamente assente.

Prossegue o recorrente insurgindo-se contra o facto de o tribunal não ter considerado a aplicação de uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

            O Código Penal prevê duas penas principais, a saber, a pena de prisão e a pena de multa. Para além destas, prevê diversas penas de substituição, entre elas se contando  a pena (de substituição) de prestação de trabalho e a pena (também de substituição) de suspensão de execução da pena.

            Segundo o previsto no art. 43º, nº 1, do Código Penal, “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)”.

            No caso vertente, sendo os crimes pelos quais o arguido foi condenado puníveis em alternativa com pena de prisão ou pena de multa e tendo o tribunal optado ab initio pela pena de prisão, já não faria sentido a sua substituição por multa, havendo que equacionar outra pena não privativa da liberdade aplicável, já que apesar dos antecedentes criminais do recorrente se entendeu, ainda assim, não ser exigível o cumprimento efectivo da pena de prisão para prevenir o cometimento de futuros crimes. Se assim é, pois que efectivamente seria excessiva no caso a imposição de uma pena de prisão efectiva, sempre haveria que ponderar as razões de prevenção evidenciadas pelo extenso registo criminal do arguido, que inclui diversas condenações por crimes contra o mesmo tipo de bem jurídico em causa na decisão que desencadeou este recurso. Justifica-se, pois, a opção por uma pena de prisão suspensa na sua execução, assente na expectativa de que o recorrente interiorizará o desvalor da sua conduta e evitará no futuro condutas semelhantes. De resto, esta será seguramente, nas circunstâncias do caso concreto, a mais pedagógica das penas aplicáveis, visto se traduzir numa oportunidade concedida ao recorrente para revelar o bem fundado da decisão de suspensão, deixando-o ciente de que se defraudar essas expectativas a sua socialização terá que ser conseguida à custa do cumprimento da pena cuja execução é suspensa. Nesta medida, a preservação da liberdade do arguido deixa de ser apenas preocupação comunitária para passar a ser também preocupação do arguido, a que este responderá com o seu comportamento quotidiano, enquanto expressão do seu livre arbítrio, no decurso do período de suspensão da execução da pena.

            O arguido reclamou ainda a dispensa da pena prevista no art. 186º, nº 3, do Código Penal, mas uma vez mais sem razão. Primeiro, porque não se demonstrou que as afirmações que comprovadamente proferiu tenham resultado de mera retorsão. Depois, porque a dispensa de pena, mesmo nos casos avulsamente previstos no Código Penal, está sujeita ao regime geral do art. 74º do mesmo diploma, como expressamente resulta do respectivo nº 3, que dispõe que “quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1”, ou seja, se a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas, se o dano tiver sido reparado e se à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção. Não estando verificadas estas condições, também por essa via improcede a pretensão do recorrente.

                                                           *          *          *

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.

Por ter decaído integralmente no recurso interposto, condena-se o recorente na taxa de justiça de 3 UC.

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                                                                       *

     

                                               Jorge Miranda Jacob (Relator)

                                               Maria Pilar de Oliveira


[1] - Jurisprudência constante dos tribunais superiores.
[2] - Vício que não se confunde, no entanto, com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP.
[3] - Entre outros, conferir, no sentido apontado, o Ac. do STJ de 22 de Abril de 2004, in “Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça”, ano XII, tomo 2, págs. 166/167.