Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1200/20.2T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
PERÍCIA DE PSICOLOGIA FORENSE
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 127.º, 163.º, N.º 1, E 412.º, N.º 3, ALÍNEAS A) E B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – Na designada impugnação ampla, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., do que se cura é de corrigir eventuais erros de julgamento, que para o serem terão de consistir em decisões sobre os factos à margem do que a prova imponha, apreciação em que o julgador é livre, mas dentro dos limites legais e das regras da experiência comum, não bastando meras hipóteses alternativas de valoração, seja dos recorrentes, seja do tribunal de recurso, pois se as conclusões do julgador recorrido se mostrarem consentâneas com aqueles limites então são virtualmente insindicáveis.

II – O objectivo da perícia não é o de certificar, como um “detector de mentiras”, a verdade do que é dito, substituindo-se aos tribunais em matéria que a lei a estes reserva, que por natureza e determinação legal lhes assiste.

III – No que respeita à perícia psicológica a primazia dos peritos está circunscrita à percepção e avaliação de hipotéticas consequências físicas e/ou psíquicas dos factos na pessoa da examinada, e da integridade ou compromisso, e em que medida, das capacidades dessa pessoa para relatar o sucedido, sobre isso testemunhando, sendo a valoração desse testemunho e, no confronto com a demais prova, as conclusões a tirar dele, função judicial de julgar.

IV – O acolhimento de valorações alternativas da prova à margem de uma estrita imposição da prova nesse sentido significaria, sob a capa de putativo erro de julgamento, sobrepor à convicção do tribunal recorrido o julgamento feito pelos recorrentes, saltando por cima do facto de o julgamento pertencer a este tribunal e prescindindo da oralidade e imediação de que o mesmo beneficiou.

Decisão Texto Integral:
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Projecto de acórdão 1200/20.2T9LRA.C1



após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 08/05/2023 sentença em cujos termos o arguido,

contra quem na pronúncia vinha imputada comissão de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art. 171.º/1, 177.º/1-a/b/c, e 69.º-C/3, do Código Penal (CP), foi do mesmo absolvido, de igual modo o sendo do pedido de indemnização civil que o Ministério Público contra ele formulara em representação da menor …

2. Contra tal sentença interpôs o Ministério Público (MP) recurso … Das motivações de recurso extrai as seguintes conclusões:

« I – Os factos a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m) e n), constantes da decisão recorrida, foram indevidamente julgados como não provados;

IX – O tribunal devia ter valorado de forma diferente as mensagens escritas que a menor escreveu, assim como a relevância do seu percurso escolar para a sua análise;

3. E de igual modo recorreu a assistente , constituída como tal na qualidade de progenitora da ofendida menor e assim em sua representação, … Correspondendo ao convite que se lhe dirigiu para que corrigisse as que começara por apresentar, formulou, das motivações desse recurso, as seguintes conclusões:

« I – A recorrente entende que se encontra incorrectamente julgada toda a matéria fáctica constante em B – Factos não provados da douta sentença ora recorrida [os factos não provados enumerados sob a) a n), adiante incluídos na reprodução da sentença recorrida]

4. O arguido respondeu aos recursos, …

5. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer …

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1. Delimitação do objeto do recurso

c) Somando que não vêm arguidas e nem se detectam nulidades de conhecimento oficioso, então, à luz do que antecede e, vistas as conclusões dos recorrentes, fazendo a delimitação do objecto do recurso com a síntese anunciada, temos enfim que a questão a apreciar se reduz, caso não sejam detectados vícios dos previstos no art. 410.º/2, do CPP, à de determinar, segundo isso sim os parâmetros do art. 412.º/3-a-b, do CPP, se ao estabelecer como não provados os factos assim enunciados sob as als. a) a n) do alinhamento respectivo, o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, impondo as provas indicadas nos recursos a decisão contrária, com a correlativa inadequação do arrimo ao princípio in dubio pro reo – e, na afirmativa, com que consequências, designadamente que factos importaria então dar afinal como provados, se essa modificação implica ou não a condenação criminal e cível do recorrido e, nesta hipótese, em que concretos moldes. 

 

2. A decisão recorrida

3. Enfim apreciando

3.1. A decisão da matéria de facto pode em sede de recurso sindicar-se por duas vias: (1) no âmbito dos vícios previstos no art. 410.º/2, do CPP, a que se convenciona chamar de impugnação restrita (que concita a chamada revista alargada e que a proceder reclama, para correcção do decidido, um novo julgamento, total ou parcial, apenas excepcionalmente a podendo fazer o próprio tribunal superior – nos termos dos art. 426.º/1 430.º/1, e 431.º/a-c, do CPP); ou (2) com a designada impugnação ampla, a que se refere o art. 412.º/3/4/6, também do CPP (neste caso implicando a eventual procedência a correcção do decidido pelo tribunal superior – art. 431.º/b), do CPP). Da primeira via, e segundo os explícitos termos literais da lei, apenas podem relevar os vícios decisórios que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que vale por dizer que têm de ser uns tais que se revelem por escrutínio que, armado daqueles critérios da experiência comum (é dizer: da lógica, da razão, enfim, do conhecimento científico), se limite à decisão em crise, sem recurso a elementos que lhe sejam externos, designadamente probatórios e mesmo que produzidos em julgamento. Já na segunda, aí sim, versa-se a decisão em confronto com a prova e o respectivo reexame, na medida do necessário e à luz dos pertinentes critérios legais (o art. 127.º do CPP, com os seus limites).

3.2. Correlativamente, tema da primeira (1) podem ser (e aliás até em conhecimento oficioso): (a) a insuficiência dos factos provados para suportar a decisão de direito (coisa que se não pode confundir com a insuficiência das provas para a decisão sobre os factos); (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (i.e., entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma); e enfim (c), o erro notório na apreciação da prova (patente às capacidades mínimas comuns de qualquer destinatário a partir da análise dela feita na decisão) – tudo conforme, respectivamente, as als. a), b) e c), do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Tema da segunda (2), por seu lado, são as eventuais vicissitudes do próprio processo e resultado de formação de convicção sobre a prova: a respectiva suficiência ou insuficiência, a capacidade e segurança de convencimento que proporcione à luz dos critérios legais da avaliação dela pelo julgador, designadamente dos limites da liberdade de apreciação que é a regra (art. 127.º do CPP), sejam os decorrentes das regras da experiência comum, sejam os impostos pelas previsões excepcionais sobre prova vinculada. Na verdade, a primeira (1), embora versando em derradeira análise a decisão de facto, directamente implica, em bom rigor, e nos moldes restritos em que a respectiva impugnação se consente, um escrutínio isso sim da sentença, sem necessidade de directa análise da prova; e a segunda (2), com a amplitude que lhe é característica, versando directamente o juízo decisório em cotejo com a prova, analisando-a, é que em sentido próprio dá corpo ao recurso em matéria de facto.

3.3.  Por outro lado, não pode perder-se de vista que do que se cura, no contexto desta última (da impugnação ampla da decisão de facto, nos termos do art. 412.º/3, do CPP), não é e nem pode ser de um novo julgamento da causa, sobreposto ao da primeira instância e para mais sem os benefícios da oralidade e imediação de que esta usufruiu. A impugnação visa, e só isso cabe que vise e pode lograr, a cirúrgica correcção de potenciais erros de julgamento; e mesmo que potencialmente muitos, é sempre e apenas isso. Dito de outro jeito, e de resto com mais exactidão, não está e nem pode estar em causa a sobreposição, pelo tribunal de recurso, da sua compreensão da prova e das conclusões que viabiliza (ou já agora da dos recorrentes), àquela que o tribunal recorrido formou e exprimiu em sentença, no uso da respectiva liberdade, outorgada pelo dito art. 127.º, do CPP, e naturalmente desde que com respeito pelos correspondentes limites. Isto é uma implicação necessária de a potencial alteração do decidido em matéria de facto pela primeira instância, só justamente ser viável lá onde a prova impusesse decisão diversa, como resulta directa e explicitamente do art. 412.º/3-b, do CPP, e é aliás doutrina e jurisprudência comuns. Para que fiquem afastadas quaisquer incompreensões: não basta configurar hipóteses decisórias alternativas ainda mais ou menos compagináveis com a prova produzida, é dizer, nela também em tese suportáveis.

3.4. Necessário será, ainda, que na proposta apreciação alternativa a prova que foi produzida de algum modo imponha como conclusão lógica uma decisão diversa da tomada e em concreto aquela a que nas argumentações de recurso se chega – daqui decorrendo o duplo ónus processual, imposto pelo art. 412.º/3-a-b/4, do CPP, de os recorrentes indicarem por um lado os concretos pontos de facto que considerem incorrectamente julgados e, por outro, as concretas provas que no seu entender teriam imposto naquela matéria decisão diversa – além disso incluindo-se nesse cumprimento, necessariamente e como decorrência lógica daquelas obrigações, ainda as de ligar as provas aos factos em crise (com menção de que provas o impõem e quanto a que factos) e de explicitar argumentativamente as razões (más ou boas) de considerarem que as mesmas com efeito impõem a reclamada decisão diversa, é dizer, de explicarem o porquê disso, em termos susceptíveis de alcance e acolhimento pela racionalidade intersubjectiva suposta na comunidade destinatária das decisões judiciais. Postas estas considerações, de que resulta um esboço dos parâmetros das impugnações algo esquemático e linear mas amplamente suficiente, cumpre agora passar aos concretos termos do recurso.

3.5. Naturalmente, o conhecimento da eventualidade de vícios dos previstos pelo art. 410.º/2, do CPP, tem sobre a dos eventuais erros de julgamento uma precedência que é imposta pela lógica processual, vista a maior ou pelo menos mais recuada amplitude das suas consequências potenciais. No caso, e como vimos, o MP nenhum argui no respectivo recurso, e a assistente, embora arguindo-os nas motivações do seu, deixa depois cair uma tal arguição na formulação de conclusões, afastando-a do correspondente objecto. Ainda assim, e na medida em que a matéria sempre seria de conhecimento oficioso, não deixamos de notar que absolutamente nenhum daquela ordem vislumbramos na sentença, de onde e para como tal relevarem teriam de colher-se, vista apenas em si mesma ou em conjugação com as regras da experiência comum. …

3.6.

3.7. Como ponto prévio, reiteremos sumariamente o que acima e com mais detalhe deixámos consignado: do que se cura, não é e nem pode ser de um novo julgamento, que o tribunal ad quem sobrepusesse ao do tribunal a quo, segundo as suas próprias valorações da prova e sem beneficiar das mesmas imediação e oralidade de que gozou o último; o objectivo é tão só o de corrigir eventuais erros de julgamento, que para sê-lo terão de consistir em decisões sobre os factos à margem do que a prova imponha (art. 412.º/3-b, do CPP), e numa apreciação desta em que o julgador é livre, dentro dos limites legais e das regras da experiência comum (art. 127.º, do CPP); a final não bastando meras hipóteses alternativas de valoração, sejam dos recorrentes, do tribunal de recurso ou de quem seja, na medida em que se as conclusões do julgador recorrido se mostrarem consentâneas com aqueles limites, então se tornam virtualmente insindicáveis. E isto recordado, sucede que passando ao escrutínio dos recursos (tarefa que no caso do da assistente é de resto singularmente penosa, mercê, sempre com o respeito devido, do longuíssimo e algo confuso encadeamento de argumentos constante das motivações), o que precisamente se surpreende é a pretensão de em grande medida obter com a impugnação esse novo julgamento.

3.8. É quanto tem de inferir-se da evidente circunstância de se tratar, em ambos os recursos e independentemente das óbvias diferenças de estruturação, de meramente contrapor aos juízos do tribunal recorrido e em matéria de credibilidade das declarações do arguido e dos depoimentos testemunhais demoradamente concitados, os dos próprios recorrentes. Por outras palavras, onde o tribunal recorrido entendeu, face à prova disponível e produzida, não lhe ser possível vencer a dúvida (razão eficiente de ter dado como não provados os factos em causa, no essencial constitutivos do crime imputado e por isso todos desfavoráveis ao arguido), entendem os recorrentes que essa prova seria suficiente para demonstrá-los, que por isso uma tal dúvida é impertinente, não podia o tribunal razoavelmente manter-se nela e, em suma, aqueles factos teria de tê-los dado por provados, por assim o impor a prova. Uma análise mais fina dessa argumentação não dispensa, claro está, o escrutínio dessa prova, nos termos do art. 412.º/3-b/4/6, do CPP, plano em que, com efeito a ele procedendo, sem mais diremos que não está em causa a fidedignidade das indicações dos recorrentes relativamente à prova com efeito produzida, concretamente os relatórios de exames médico-legais sobre a menor (de clínica e patologia forenses e de avaliação psicológica), as informações escolares a ela relativas, as mensagens telefónicas que teria enviado, as suas próprias declarações (perante OPC e perante juiz e para memória futura), o depoimento de AA (mãe da menor e sua representante enquanto assistente) e o depoimento da testemunha BB (psicóloga a quem assisti-la foi afinal cometido pela mãe da menor e sua representante enquanto assistente).

3.9. E todavia, adiantemo-lo desde já, ou seja, antes mesmo de mais detalhadas referências a tais provas e seu valor, os argumentos de recurso têm em ambos os casos de improceder, na exacta medida em que ela não impõe, quanto a fosse qual dos factos fosse, decisão diversa da impugnada.

a) Comecemos por observar que semelhante imposição, logo conceptualmente, não poderia decorrer das declarações da testemunha …, que em bom rigor e quanto aos factos em causa se não vê sequer como pudesse ser valorado. Na verdade, manifestamente não tendo presenciado a suposta actuação do recorrido sobre a ofendida sua filha ou sequer o respectivo contexto, e assim nenhum conhecimento pessoal e directo tendo daqueles factos, sobre eles nem com propriedade e à luz do art. 128.º/1, do CPP, poderia falar-se de um testemunho senão indirecto. E se apesar de tudo e como tal o dermos por admissível, … decisivo seria sempre o facto de um tal testemunho, ao menos naquilo em que os recursos o concitam, em lugar de cingir-se, aos termos da suposta actuação do recorrente sobre a ofendida (como pela mesma tivessem à testemunha sido relatados) e/ou às respectivas consequências na pessoa dela, se estendem isso sim a considerações sobre a credibilidade da pequena.

b) Vale por dizer, a pretensão dos recorrentes vem afinal a ser a de que a testemunha e seu depoimento, nesse segmento que excede aquilo que a menor lhe dissera sobre os factos, não apenas se transmutem em esclarecimentos periciais e perícia (prestados e feita por quem perita no caso não é e nem podia ser!), como ainda que nisso se ergam em certificação da verdade do relatado! … tomadas em conjunto, as circunstâncias de a intervenção da testemunha, enquanto psicóloga, resultar de uma decisão da mãe da menor, de o seu único conhecimento do que teria ou não ocorrido resultar somente do que a mesma lhe contou, e enfim de o afastamento de eventual confabulação no relato se cifrar em mero alvitre da depoente (“Esta situação em particular não me parece que tenha sido (…) Mas não é que tenha confabulado, na minha opinião, o assunto em causa”, “Na minha opinião, não confabulou”), todas implicariam prudente reserva sobre o valor do depoimento. Mais ainda, segundo julgamos, quando afinal a mesma testemunha emite um tal alvitre não obstante manifeste do mesmo passo (em depoimento) que a pequena tem “(…) de facto, alguma tendência para negar alguns factos da realidade, e recorrer à fantasia para conseguir lidar”, e bem assim que (em relatório de avaliação da sua lavra) “(…) tem graves dificuldades na percepção convencional da sua realidade (…)”, havendo factores vários que “(…) têm criado interferências sérias no curso do seu pensamento, que se revela perturbado, comprometendo a sua rigorosa capacidade de apreciação crítica”.

c) E com isto não dando outro valor ao depoimento da dita testemunha … além do de narrar o que a menor lhe disse sobre os factos, já algo depois da suposta ocorrência destes e em contexto de acompanhamento de psicologia, temos, agora em relação à mãe da menor, que do mesmo jeito nenhum conhecimento directo teve, limitando-se à transmissão do que a menor lhe teria transmitido … Ora, não contando o que refere quanto a consequências do que se teria passado, …, também quanto à mãe dela fica por aqui o valor potencial das declarações respectivas, que no mais igualmente se reduz a opinião sobre a credibilidade da filha no que assim lhe disse, respondendo, quando perguntada sobre “a imaginação” da menina, que “De estar a fantasiar, no sentido de inventar situações, não (…)”.

d) As reservas que do mesmo modo implicariam tais declarações, adensam-se ainda quando se pondere a percepção de um certo clima conflitual entre os progenitores a respeito da menor (para além do que que resultasse dos factos em apreço, segundo em um dos relatórios explicitamente se menciona), e, sobretudo, a questão das mensagens telefónicas e as dúvidas que em si mesmas suscitam, na comparação entre si. É que, explicáveis como a vários títulos poderiam sempre ser, aquelas mensagens, pela sua escorreição e concisão, uma (com que presuntivamente a menor teria transmitido o sucedido à mãe), e pela infantilidade dos seus erros ortográficos, outra (a que inequivocamente dirigiu ao pai), ostentam, de modo inarredavelmente objectivo, diferenças que abrem porta à possibilidade de afinal a primeira não ser sequer da menina, como na motivação da decisão de facto longa e minuciosamente se ponderou. E aberta a porta a essa dúvida, certamente que não teria o potencial de dissipá-la o mero apelo às boas capacidades da pequena, comprovadas pelas informações escolares, temperadas com a propensão para os erros quando se ache sob tensão – menos ainda, segundo na motivação da sentença igualmente é notado, quando afinal o tema seria naturalmente gerador de tensão em ambas as situações, ao menos por igual, senão até algo mais na primeira (em que se tratava de escrever no telefone e para mostrar à mãe aquilo que estava com prurido de directa e verbalmente lhe contar) do que na segunda (em que se tratava de com efectivo distanciamento e em momento posterior remeter uma mensagem ao pai).

e) Como prova directa sobre os factos em causa, e segundo tantas vezes sucede e é característico suceder em circunstâncias desta natureza, o tribunal não teve em boa verdade outra senão as declarações da própria menor, que a terem-se com efeito passado segundo a imputação, os teria pessoalmente vivido. Pois bem, não é susceptível de tergiversação que as ditas declarações da menor são no inequívoco sentido de que os aqueles factos teriam no essencial decorrido segundo a dita imputação, como ambos os recorrentes enfatizam. E contudo, sucede que também não poderiam simplesmente escamotear-se nessas declarações as inconsistências e discrepâncias, tanto em si mesmas das que lhe foram tomadas por juiz e para memória futura (a 20/11/2020), quanto entre estas e as que antes prestara perante a PJ (a 09/06/2020), tudo ainda segundo na motivação vem pormenorizadamente escrutinado, e relativas sobre os termos da concreta interacção entre o recorrente a própria menor aquando da pretensa actuação daquele, e em concreto sobre como foram os gestos, como se movimentaram, como estavam vestidos, qual e como tirou a roupa, qual a colocou no chão ou onde, qual a recolheu, qual disse o quê.

f) É certo que são inconsistências ou discrepâncias, como nos recursos se aponta e aliás na própria sentença recorrida se pressupõe, que não bulem com os contornos essenciais do relatado em ambas as ocasiões, antes se ficando por aspectos afinal laterais/acessórios, mas isso de modo nenhum pode levar-se ao ponto de classificá-los como longínquos ao cerne da conduta imputada e portanto irrelevantes ou insuficientes para fundar uma dúvida razoável sobre se e como ela teve lugar. É que os pormenores também muitas vezes têm importância, mais ainda se se trata em boas contas do relato em que consiste a prova única dos factos com relevo criminal que a um arguido se imputam, e especialmente impactante, neste contexto, é a constatação, que ao tribunal recorrido não passou em claro, de que o primeiro relato da menina, perante a PJ e ainda bem próximo do que teria ocorrido, em todo o caso já depois de com isso ter falado com familiares, acaba por ser, contra o expectável, menos pormenorizado do que o feito, mais de cinco meses depois desse, perante juiz e em declarações para memória futura, portanto muito mais tarde e já depois de sobre isso ter falado não só perante aquele OPC, mas com a mãe, familiares e a psicóloga…

g) …, resulta das ditas inconsistências e incongruências (como na motivação da sentença referidas), que a porta acaba até um pouco mais aberta à dúvida, sendo enfim que igualmente a não encerram, minimamente e em termos que damos por óbvios, os relatórios dos exames periciais. Sobre estes, cabe dizer que o que demonstram, em particular o de avaliação psicológica, e de resto com a força que lhes é própria (à luz do art. 163.º/1, do CPP), é a ausência, na pessoa da menor, de compromisso das capacidades cognitivas e de estruturação das percepções em raciocínio coerente próprias da idade (e aliás algo superiores ao normativo), tendo-se emocional e discursivamente apresentado ao exame em termos compatíveis com o expectável face a factos como os relatados, … sem evidenciar indícios de um condicionamento significativo de depoimento, e tendo por conseguinte a capacidade de testemunhar e de fazê-lo sem recurso a confabulações de memória. E a essa luz conclui-se em um dos relatórios (o de exame de clínica e patologia forense) que “ (…) ainda que a possibilidade de confabulação ou mentira não possa ser excluída em absoluto, não se identificam critérios que a literatura científica relacione com baixa credibilidade do relato, parecendo tratar-se de um testemunho válido e credível”, e no outro (o de avaliação psicológica), e com mais propriedade, que “(…) podemos afirmar que [a menor] tem conservada a sua capacidade cognitiva para perceber correctamente o teor dos factos em investigação, [e] manifesta capacidade para testemunhar sem recorrer a confabulações de memória”.

h) … o objectivo da perícia, mesmo da verdadeira perícia, feita por verdeiros peritos, isto é, pelos técnicos independentes dos envolvidos e que tenham no processo a específica missão de fazer avaliações de factos que exigem os seus especiais conhecimentos técnicos e científicos, não é e nem pode ser o de certificar, como um “detector de mentiras”, a verdade do que é dito e nem mesmo, substituindo-se aos tribunais em matéria que a lei a estes reserva, o de vinculá-los ferreamente à credibilidade de quem o diz! O objecto da apreciação pericial médico-legal, em que os peritos têm a primazia que por natureza e determinação legal em conformidade lhes assiste, mas a que tal primazia está circunscrita, é, no que aqui pudesse importar, a percepção e avaliação de hipotéticas consequências físicas e/ou psíquicas dos factos imputados ao recorrente na pessoa da examinada, e bem assim a integridade ou compromisso, e em que medida, das capacidades dessa pessoa para relatar o sucedido, sobre isso testemunhando. A valoração desse testemunho, e, no confronto com a demais prova e com as suas próprias forças e/ou fraquezas, as conclusões a tirar dele, isso é já do cerne da função judicial de julgar, que os Srs. peritos não devem e em boa verdade nem podem invadir.

i)

j)

k) Em suma: o que daqueles relatórios se tira é que a menor tem íntegras as capacidades para narrar os factos sem recurso a confabulações de memória, e que além disso não ostenta sinais perceptíveis de condicionamento significativo, o que contudo, e muito evidentemente, não impõe a conclusão de que com efeito os narrasse com verdade ou sequer exactidão, que o condicionamento não pudesse existir ou, enfim, que se tornem irrelevantes as inconsistências/incongruências efectivamente patenteadas nos seus relatos, …

3.10. Feita a análise que antecede, o que temos então? Não obstante o indiscutível melindre do caso, a resposta resulta relativamente simples:

a) O recorrido, arguido, nega em absoluto os factos que lhe são imputados, fazendo o seu próprio relato dos acontecimentos em termos que de todo excluem a prática respectiva, …

b) …, a menor, nas suas declarações, afirma a prática desses factos pelo recorrente, e de resto transmitiu-os à mãe, a outros familiares e a uma psicóloga que a primeira lhe dispôs para assisti-la, …

c) Todavia, sendo em todo o caso a menor a única pessoa com potencial conhecimento directo dos factos, …, aqueles seus relatos enfermam de inconsistências que não obstante se manifestarem em aspectos laterais/acessórios, sempre são geradoras de legítima dúvida sobre a fidedignidade e até genuinidade correspondentes;

d) Dúvidas sendo, ainda, o que ao mesmo propósito suscitam as mensagens telefónicas presuntivamente enviadas pela menor, a respeito do alegadamente sucedido, tanto para a mãe ver como dirigidas ao pai, e isso em face de inconsistências linguísticas delas que sugerem a possibilidade de a primeira não ser sequer da lavra dela;

e) E enfim, apesar de pericialmente documentada a integridade das capacidades da menor para rememoriar factos sem confabulação, não ostentando sinais de condicionamento, e assim para relatá-los testemunhalmente, o certo é que isso em nada apaga a existência das ditas inconsistências dos relatos efectivamente feitos e a pertinência das dúvidas que em face deles e daquelas mensagens se suscitam.

3.11. Dito de outro jeito, temos que, nas razões que o tribunal recorrido longa e minuciosamente alinha, para dar conta de como avaliou a prova e, ao cabo disso, se manteve em estado de dúvida, nada lobrigamos como desviado das regras da experiência comum ou de outros quaisquer dos limites da liberdade que nesse labor de apreciação da prova e formação da convicção lhe outorga o art. 127.º do CPP. … a dita avaliação do tribunal recorrido, enfim conducente à dúvida em que se manteve, em processo mental que a motivação expõe com louvável pormenor, e que os recorrentes tanto censuram, é isso sim e em absoluto compatível com as ditas regras.

3.12. Cabe reconhecer, de boamente aliás, que a leitura que os recorrentes fazem da prova, as conclusões que dela tiram, é perfeitamente plausível, ao ponto de também essas conclusões alternativas se poderem compaginar com aquela prova. … Mas o facto é que … a leitura que o tribunal recorrido fez da prova não é ilógica, irracional ou sequer excessiva e indevidamente céptica, e que a dúvida em que se manteve não resulta por isso como coisa irrazoável ou sanável.

3.13. Queremos, com o que antecede, significar que decerto outro qualquer tribunal, este incluído, poderia porventura ter feito uma avaliação consentânea com a proposta pelos recorrentes, cujo desconforto e até insatisfação com o decidido por isso bem se percebe. Porém, as valorações alternativas deles, igualmente admissíveis como em tese sejam, não são padrão do devido pelo juiz, o terceiro imparcial que julga. Do que se trataria, a acolhê-las aqui para, sob a capa de putativo erro de julgamento, modificar o decidido à margem de uma estrita imposição da prova nesse sentido, não seria já de corrigir um erro de julgamento, consistente em decisão sobre os factos diversa da que a prova impusesse, mas antes e verdadeiramente a de sobrepor ao do tribunal recorrido o nosso próprio julgamento (ou melhor, o dos recorrentes), do mesmo passo saltando por cima do facto de o julgamento pertencer àquele tribunal recorrido, e prescindindo da oralidade e imediação de que o mesmo beneficiou. E isso, que já dissemos extravasar do legítimo alcance da impugnação da decisão de facto e ser por conseguinte indevido, sê-lo ainda mais, por assim dizer, quando se pondere a relevante especificidade de que razão última da contestada decisão foram os ditames do princípio in dubio pro reo.

3.14. É que tudo quanto referimos acerca da admissibilidade, em tese, de uma eventual apreciação contrária à que o tribunal fez, e em concreto até a proposta pelos recorrentes, se manter compatível com o standard de validade que as decisões judiciais em matéria criminal devem seguir, traduz afinal, e na substantiva materialidade das coisas, a evidência de que os factos imputados ao recorrente podem ou não ter acontecido, dado a prova decerto não exclui a possibilidade afirmativa e até a poderia viabilizar. Mas não tendo o tribunal do julgamento logrado alcançar, a partir dela, a certeza prática, isto é, a segurança de convicção necessária para afirmar uma tal possibilidade como o realmente sucedido, não podendo dizer-se que a prova impusesse descartar a dúvida, e desse modo enfim não cabendo dar por desrazoável a subsistência nela, então aquele princípio in dubio pro reo, decorrência do da presunção de inocência consagrado no art. 32.º/2, da CR, e que se resolve em critério decisório em matéria de facto, justamente impunha, como o tribunal recorrido fez, e muito bem, dar por não provados os factos desfavoráveis ao recorrido e sobre que tal dúvida incidia – justamente, os alinhados nas als. a) a n) da factualidade não provada.

3.15.

3.16. Já começando a encerrar, o que tiramos de quanto até aqui deixámos exposto, é que a mais de a sentença recorrida não padecer de vícios dos previstos pelo art. 410.º/2, do CPP, na decisão da matéria de facto que encerra também nada vislumbramos que à luz dos art. 127.º e 423.º/3-a-b, do CPP, e porque provas houvesse a imporem solução diversa, pudesse verdadeiramente qualificar-se como erro de julgamento, tudo montando a que nem por uma nem por outra via cabe modificação alguma à dita decisão em matéria de facto. E assim, não procedendo em medida alguma as alegações de violação do art. 127.º, do CPP, e menos ainda dos art. 14.º/1, 26.º, 40.º, 171.º/1  e 177.º/1-a-b-c, do CP (estes aliás nem mesmo aplicados…), o que sobra é a intangibilidade dos factos provados nos termos em que a sentença recorrida os alinhou – em face dos quais é evidente o não preenchimento do tipo de crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art. 171.º/1, 177.º/1-a/b/c, e 69.º-C/3, CP, de que o recorrido vinha acusado (ou, já agora, de outro qualquer), pelo que a absolvição tem de ser mantida. Acrescentamos, somente e por fim, que não obstante se nos ter afigurado que a sensibilidade da concreta questão justificava a apreciação que aqui deixamos, no bom rigor das coisas, e por isso que à sentença não encontramos censura ou reparo de que se fizesse merecedora, teria bastado, nos termos dos art. 400.º/1/d, e 425.º/5, do CPP, confirmá-la, negando provimento aos recursos com mera remissão para os fundamentos dela – e de facto, em tudo o mais além daquilo que aqui expressamente ponderámos sobre a decisão de facto, com efeito deixamos essa remissão.

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento aos recursos do MP e da assistente

Custas pela assistente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 515.º/1-b, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais), quanto ao MP sendo isento.

Notifique


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Coimbra, 13 de Dezembro de 2023
Pedro Lima (relator)

Alexandra Guiné (1.ª adjunta)

Eduardo Martins (2.º adjunto)

Assinado eletronicamente