Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3944/09.0T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
IMPOSTO SOBRE O RENDIMENTO DE PESSOAS SINGULARES
IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE IMÓVEIS
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – ÁGUEDA – JUÍZO DE EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 748.º; 749.º; 751.º DO C. CIVIL; ARTIGO 11º DO DL 103/80, DE 09 DE MAIO
Sumário: 1. Goza de privilégio imobiliário especial o crédito de IMI por imposto devido pelo prédio/fracção penhorada, tendo “preferência/prevalência” sobre qualquer outro direito constituído sobre o mesmo bem, ainda que de constituição anterior (cfr. art. 751.º do C. Civil).

2. O crédito do I. S. S e o crédito por IRS, gozando dum privilégio que, sendo imobiliário, não é especial, não aproveitam da oponibilidade a terceiros conferida pelo art. 751.º do C. Civil; pelo que, não valendo o privilégio de tais créditos “contra terceiros, titulares de direitos que recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”, não valem em relação ao crédito garantido por hipoteca.

3. No concurso entre si, o crédito do I. S. S tem necessariamente que ficar à frente do crédito por IRS (uma vez que este não é algum dos impostos a que alude o art. 748.º do C. Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Por apenso à execução, para pagamento de quantia certa, que o A... SA, moveu a B... e esposa C..., ambos com os sinais dos autos, para haver deles a quantia de € 28.575,80 acrescida de juros vincendos, foram reclamados os seguintes créditos:

Pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional:

De IRS, de 2007 e 2008, € 2.744,79 (capital e juros), sobre o executado B....

De IMI, de 2008, € 185,28 (capital e juros), sobre o executado B....

De IRS, de 2007 e 2008, € 2.744,79 (capital e juros), sobre a executada C...

Pelo Instituto da Segurança Social - Centro Distrital de ...:

De contribuições, como entidade empregadora, € 42.433,89 de capital e € 19.400,73 de juros de mora calculados até Novembro/09, sobre a executada C...

De contribuições, como trabalhadora independente, € 5.971,24 de capital e € 2.624,03€ de juros de mora calculados até Novembro/09, sobre a executada C...

Pelo D... SA:

Dum mútuo garantido por hipoteca, € 86,990,43 (€ 79.645,95€ de capital, € 5.878,12€ de juros remuneratórios, € 235,12 € de I. Selo, € 1.183,88 de juros moratórios e € 47,36 de I. Selo) sobre ambos os executados.

Não foi deduzida qualquer impugnação.

Conclusos os autos e estando a instância totalmente regular, foi proferida sentença em que se concluiu do seguinte modo:

“ (…)

Julgo reconhecidos os créditos reclamados, procedendo à sua graduação pela seguinte forma:

1º - Crédito reclamado pelo D... com a limitação imposta pelo artigo 693/2 do Código Civil, excluídos os peticionados juros remuneratórios;

2º - Crédito reclamado pelo Ministério Público a título de IRS;

3º - Crédito reclamado pelo Ministério Público a título de IMI;

4 º - Crédito reclamado pelo I.S.S.;

5º - Crédito exequendo.

(…) ”

Inconformado, interpôs o Instituto da Segurança Social recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que gradue o seu crédito com prioridade sobre os créditos reclamados provenientes de IRS.

Termina a sua alegação com as seguintes “conclusões”:

1. O Instituto da Segurança Social, I.P. (…) veio, em Novembro/09, reclamar créditos sobre a executada C..., nos valores de 42.433,89 € e de 5.971,24 €, respectivamente, na sua qualidade de entidade empregadora e de trabalhadora independente, num total de crédito reclamado de 48.405,89 €..

2. Reclamou também os juros vencidos a Novembro/09 sobre as quantias mencionadas no parágrafo anterior, no valor de 22.024,76 €, tudo, num total global de 70.429,89 €.

3. Reclamou ainda, sobre os créditos reclamados os juros vincendos até ao mês de pagamento inclusive.

4. Quer o privilégio imobiliário constante do art. 111.º do C.I.R.S., quer o privilégio imobiliário consignado pelo art. 11.º do D.L. 103/80 de 9.5, são privilégios imobiliários gerais, abrangendo todos os bens imóveis do devedor;

6 - Por sua vez, o art. 11.º do D.L. 103/80 ressalta ainda que os créditos da segurança social se graduam logo após os referidos no art. 748° do C. Civil;

7 - Inserindo-se nos créditos do Estado aí previstos, apenas os de contribuição predial, sisa e imposto sobre sucessões e doações (aos quais correspondem, actualmente, o I.M.I., o I.M.T. e o Imposto de selo — sobre transmissões gratuitas) — terá que se dar preferência aos créditos da segurança social;

8 - Com efeito, todos os outros créditos do Estado são excluídos, designadamente o I.R.S.., imposto que, embora criado posteriormente, com o D.L. n. 442-A/88, de 30 de Novembro, que o citado art. 748° do C. Civil não abrange;

9 - A sentença devia, pois, ter concedido prioridade de pagamento aos créditos reclamados da Segurança Social, sobre os créditos reclamados pelo MP sobre os executados, provenientes de I.R.S, no valor de € 5.489,58;

10- Não o tendo feito, errou na aplicação do direito, violando o disposto nos art. 748° do C. Civil, 11° do D.L n. 103/80, de 9 de Maio e 111° do C.I.R.S., neste sentido, Vide, a título de exemplo, os acórdãos deste STA de 13/2/2008 (rec. n. 1068/07) e de 10/7/2002, rec. n. 181/02).

Não foram apresentadas quaisquer contra alegações.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

A) Na execução a que os autos correm por apenso, foi penhorado, em 14/08/2009, o seguinte bem pertencente a ambos os executados:

Fracção autónoma designada pela letra C, destinada a habitação no segundo andar frente com área de 83,5 m2, do prédio constituído em propriedade horizontal registado sob o art. matricial urbano n.º ... e descrito na CRP de ... sob o n.º ...

B) O executado B... deve à Fazenda Nacional a título de IRS, dos anos de 2007 e 2008, € 2.090,27 e € 467,35, respectivamente; ao que acrescem juros de € 182,50 e € 4,67 calculados até Outubro de 2009.

C) A executada C... deve à Fazenda Nacional a título de IRS, dos anos de 2007 e 2008, € 2.090,27 e € 467,35, respectivamente; ao que acrescem juros de € 182,50 e € 4,67 calculados até Outubro de 2009.

D) O executado B... deve à Fazenda Nacional a título de IMI respeitante à fracção penhorada a quantia de € 31,23; ao que acrescem juros de € 1,86 calculados até Outubro de 2009.

E) O executado B... deve à Fazenda Nacional a título de IMI respeitante a fracções situadas no concelho de Águeda a quantia de € 143,55; ao que acrescem juros de € 8,64 calculados até Outubro de 2009.

F) A executada C... encontra-se inscrita no Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social com o número 116.022.915 como entidade empregadora, estando em dívida, 42.433,89 € a título de contribuições em dívida como trabalhadora dependente, referentes aos meses de Abril/01 a Maio/03, Julho/03 a Abril/04, Junho/04 a Novembro/06, Fevereiro/07 a Julho/07, Setembro /07 a Agosto/08, acrescidos de 19.400 € a título de juros de mora calculados até Novembro/09.

G) A executada C... encontra-se inscrita no Centro Distrital de Segurança Social de ... com o número 111.642.666.94, como trabalhadora independente, estando em dívida, 5.971,24 € a título de contribuições, referentes aos meses de Novembro/04 a Julho/07, acrescidos de 2.624,03 € de juros de mora calculados até Novembro/09.

H) Para garantir um mútuo de 100.000,00, concedido pelo D... SA aos executados, encontra-se registada hipoteca voluntária, a favor do D..., sobre a fracção identificada em A), datada de 09.11.2005, para garantia do montante máximo de 139.289,90€; ascendendo o crédito, decorrente de tal mútuo, em 13/11/2009, a € 86.990,43 (incluindo € 79.645,95 de capital, € 5.878,12 de juros remuneratórios vencidos, € 235, 12 de Imposto de selo, € 1.183,88 de juros moratórios e € 47,36 de imposto de selo).


*

*


III – Fundamentação de Direito

O recorrente circunscreve, como claramente resulta das suas conclusões, a sua divergência – em relação à recorrida sentença de verificação e graduação de créditos – à graduação propriamente dita e, dentro desta, à parte em que a mesma não gradua o seu crédito, proveniente de “contribuições” para a S. Social, com prioridade sobre os créditos provenientes de IRS.

Sustenta pois o recorrente, em síntese, que o seu crédito deve ser graduado com prioridade sobre os créditos reclamados provenientes de IRS.

Tem razão, desde já se antecipa.

O que impõe que o objecto do recurso tenha que ir além dos termos estritos em que o recorrente o apresenta.

Pelo seguinte:

Mantendo-se inalterada a parte restante da graduação da sentença recorrida e graduando-se o crédito do recorrente à frente dos créditos do IRS, temos que o crédito do recorrente passará para o 2.º lugar, o crédito do IRS passará para o 3.º lugar e o crédito do IMI será relegado para o 4.º lugar.

Ora – também se antecipa – o lugar certo do crédito do IMI é o 1.º e não o 4.º que assim passaria a ter (e não, também, o 3.º que a sentença recorrida lhe concedeu).

Temos pois – é isto que, com respeito ao objecto e âmbito do recurso, se quer começar por referir – que a questão colocada pelo recurso “arrasta” o conhecimento/apreciação das outras vertentes da graduação; pelo que, verdadeiramente, é toda a graduação que está em causa.

Justamente por ser assim – para conhecer devidamente de toda a graduação – operámos diversas correcções e acrescentos aos factos provados; todos eles extraídos/contidos nos documentos juntos pelos credores reclamantes; todos eles feitos ao abrigo do “exame crítico” imposto pelos art. 659.º, n.º 3, e 713.º, n.º 2, do CPC.

Correcções e acrescentos que de imediato, pelo simples cotejo entre os factos da sentença recorrida e os factos deste acórdão, se revelam; e que, com excepção dos que dizem respeito ao IMI, são apenas correcções de lapsos, omissões e imprecisões.

Isto dito – delimitado o objecto da apelação – debrucemo-nos pois sobre a graduação:

E, em termos necessariamente sintéticos, começar-se-á por dizer e “assentar” o seguinte:

Que o bem penhorado é um imóvel – a fracção “C” dum prédio descrito na CRP de ....

Que tal penhora foi feita/registada em 14/08/2009.

Que o crédito exequendo apenas goza de penhora, sendo que através dela o exequente apenas “adquire o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior” – cfr. 822.º, n.º 1, do C. Civil.

Que o crédito do Estado por IRS, sendo o bem penhorado um imóvel, goza do “privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente” – cfr. 111.º do CIRS.

Que o crédito do ISS, credor recorrente, sendo o bem penhorado um imóvel, goza do “privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no art. 748.º do C. Civil” – cfr. 11º do DL 103/80, de 09 de Maio.

Que o crédito do D... goza de hipoteca (sobre a fracção penhorado), constituída em 19/11/2005, sendo que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor da coisa hipotecada “com preferência sobre os demais credores que não gozam de privilégio especial ou de prioridade no registo” – cfr. art. 686.º, n.º 1, do C. Civil.

Que o crédito do Estado por IMI “goza das garantias especiais previstas no C. Civil para a contribuição predial” – cfr. 122.º, n.º 1, do CIMI; sendo que no C. Civil se diz, entre outras coisas, que “os créditos por contribuição predial (…) têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição” – cfr. 744.º, n.º 1, do C. Civil.

Deixámos propositadamente o crédito do Estado por IMI para o fim para poder salientar que os dois preceitos legais em causa – 122.º, n.º 1, do CIMI e 744.º, n.º 1, do C. Civil – significam que o crédito por IMI goza dum privilégio imobiliário especial.

E para, a tal propósito e com atinência ao caso dos autos, esclarecer as diferenças e “nuances” entre os privilégios mobiliário e imobiliários, o modo como se graduam entre si e se compatibilizam/graduam no confronto com os direitos de terceiros.

Vejamos então:

Os privilégios creditórios, é sabido, podem ser classificados de acordo com a natureza mobiliária ou imobiliária dos bens sobre que incidem (em mobiliários ou imobiliários) ou quanto à maior ou menor abrangência do mesmo (em gerais ou especiais).

Classificações que não são meramente “teóricas”, uma vez que há diferenças, não despiciendas, entre os privilégios; que resultam, em grande medida, do carácter determinado, ab initio, dos bens sobre que incide o privilégio especial e da inexistência de semelhante característica no que toca ao privilégio geral.

De tal maneira que o direito de “preferência/prevalência” conferido pelos privilégios “especiais” sobreleva sobre qualquer outro direito constituído sobre o mesmo bem em momento posterior (cfr. art. 750.º e 751.º do C. Civil); e vai mesmo mais longe em relação a certos direitos de constituição anterior (cfr. art. 751.º do C. Civil)

Ao invés, os “gerais”, em razão da sua indeterminabilidade, cedem perante os direitos de terceiro constituídos antes da concretização (que ocorre no momento da penhora ou do acto equivalente; momento em que ocorre a identificação dos concretos bens sobre os quais recai a garantia) do respectivo objecto (cfr. art. 749.º do C. Civil)

Mais, também ao nível da sequela (o poder se seguir o objecto ainda que tenha sido alienado a terceiro) existem diferenças, uma vez que esta apenas existe nos “especiais”, sendo negado aos “gerais”, em face do carácter vago de tal garantia.

O que significa que só os “especiais” são verdadeiros direitos reais de garantia desde a constituição do crédito que garantem; enquanto os “gerais” apenas assumem esta natureza a partir da data da penhora (a partir da apreensão dos bens do devedor), pelo que, em caso de concurso (entre uns e outros) a solução estará em atribuir preferência aos especiais[1].

Questões de resolução menos linear ocorrem, todavia, quando, juntamente com o concurso entre privilégios gerais e especiais, concorrem outros direitos reais de garantia[2]; e/ou por causa das dificuldades que a criação mais ou menos “indiscriminada” de privilégios imobiliários gerais trouxe[3].

Efectivamente, lembra-se, na pureza conceitual do legislador de 66, os privilégios imobiliários estabelecidos no C. Civil eram sempre especiais (cfr. art. 735.º, n.º 3, da redacção inicial do C. Civil).

Entretanto, porém, as leis posteriores, vieram consagrar a figura dos privilégios imobiliários gerais; solução que criou dificuldades e hesitações na doutrina e na jurisprudência, uma vez que tal legislação, avulsa, era e é omissa quanto ao regime aplicável a esta categoria de privilégios, designadamente no confronto com outros direitos que incidem sobre os mesmos bens.

Ora, na medida em que o C. Civil não previu (nem prevê) a existência da figura dos privilégios imobiliários gerais (cfr. 735.º, n.º 3, do C. Civil), não teria, dir-se-á, dado directa resposta à questão de saber se os mesmos valem ou não perante terceiros. Embora, por outro lado, face à epigrafe do art. 749.º – “privilégio geral” – e ao conteúdo de tal preceito pareça ser perfeitamente extensível a sua ratio legis aos demais privilégios (imobiliários) gerais entretanto criados.

Foi esta “primeira impressão” – de aplicar o princípio contido no art. 749.º aos privilégios imobiliários gerais e de recusar a sua oponibilidade a terceiros detentores de direitos reais constituídos anteriormente sobre os bens abrangidos pelo privilégio (assim se recusando a aplicação do disposto no art. 751.º do C. Civil) – que acabou por vingar; designadamente, a partir dos “pronunciamentos” a que o TC foi convocado.

Efectivamente, após vários Acórdãos em sede de fiscalização concreta, o TC declarou – no Acórdão n.º 363/02, a propósito do art. 11.º do DL 103/80, de 09 de Maio, que, como já referimos, atribui um privilégio imobiliário geral aos créditos da Segurança Social – com força obrigatória geral, ser inconstitucional a aplicação do regime do art. 751.º do C. Civil a tal privilégio imobiliário geral.

E fê-lo por tal aplicação implicar a violação do princípio da confiança (art. 2.º do CRP) com claro prejuízo dos demais credores – nomeadamente do hipotecário (ainda que a hipoteca fosse anterior à constituição do crédito privilegiado) – que veriam a sua garantia neutralizada pela existência de uma garantia oculta – um verdadeiro ónus real oculto – da qual não poderiam ter tido conhecimento; defraudando as legítimas expectativas de terceiros titulares de direitos reais sobre os bens em causa, por mais diligentes que fossem em indagar através da consulta do registo acerca da existência daqueles privilégios.

Mais ainda, além dos efeitos nefastos da incogniscibilidade de tal privilégio mobiliário geral, ponderou-se também a circunstância de tal privilégio imobiliário geral não se encontrar sujeito a qualquer limite temporal e o facto de, por ser geral, prescindir de qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto gerador da dívida[4].

Enfim, tudo somado, concluiu-se que o art. 11.º do DL 103/80, de 09 de Maio, determina a aplicação do regime consagrado no art. 749.º do C. Civil ao privilégio por ele criado (com a diferença, em relação ao art. 749.º, resultante do facto do art. 11.º em causa dizer que ele recai sobre os bens existentes no património do devedor na data da instauração do processo executivo).

É este tipo de argumentação, este mesmo juízo de inconstitucionalidade, que vale, “mutatis mutandis”, para os outros privilégios imobiliários gerais criados por leis avulsas.

Designadamente, para os art. 111.º do CIRS e 108.º do CIRC.

Embora estes créditos fiscais possuem uma dimensão/privilégio temporal apertados – ponto em que se separam e são menos gravosos que o do art. 11.º do DL 103/80 – ocorre a mesma violação do princípio constitucional da protecção da confiança, têm o mesmo carácter geral, a mesma ausência de publicidade, o mesmo carácter oculto e são idênticos os prejuízos que daí advém para as garantias de terceiros, ainda que estas tenham sido constituídas em momento anterior ao da constituição do crédito privilegiado.

Daí que mereçam – os art. 111. do CIRS e 108.º do CIRC - a mesma resposta e o mesmo juízo de inconstitucionalidade (do art. 11.º do DL 103/80).

Não surpreende pois por isso que o TC – no Acórdão 362/02 sobre o art. 104.º do CIRS (artigo que antes do DL 198/01, de 3-07, correspondia ao actual 111.º do CIRS) – haja alargado o juízo de desconformidade à lei fundamental quando ao privilégio imobiliário geral do art. 104.º do CIRS se pretenda aplicar o regime do art. 751.º do C. C

E, já agora, por identidade de razões, o mesmo deve acontecer – juízo de inconstitucionalidade – quanto (à aplicação do art. 751.º do C. Civil) aos privilégios imobiliários gerais dos trabalhadores e do IEFP[5][6].

Em resumo, na medida em que os privilégios gerais não constituem, antes da penhora, um verdadeiro direito real (por não incidirem sobre coisa certa e determinada), a solução mais harmónica com o princípio contido no art. 749.º é a de recusar a oponibilidade a terceiros detentores de direitos reais constituídos anteriormente sobre os bens abrangidos pelo privilégio – assim se recusando a aplicação, aos privilégios imobiliários gerais, do disposto no art. 751.º do C. Civil.

Em conclusão, aos imobiliários gerais aplica-se o art. 749.º[7]; mais, com a nova redacção dos art. 749.º e 751.º (do DL 38/03, de 08-03) – passando o art. 751.º a aludir expressamente a “privilégios imobiliários especiais” – não há lugar a grandes dúvidas[8].

Aqui chegados, aplicando tais conclusões ao caso sub-judice, temos:

 - Que o IMI goza de privilégio imobiliário especial, mas apenas em relação aos bens cujos rendimentos sejam sujeitos a tal imposto; isto é, no caso, só goza de tal privilégio o crédito de IMI por imposto devido pelo prédio/fracção penhorada[9]. Daí a “ampliação” introduzida à matéria de facto; passando a mesma espelhar, separadamente, o crédito respeitante ao IMI da fracção penhorada (destrinçando-o de créditos de IMI doutros prédios).

 - Que o crédito de IMI que goza “mesmo” de privilégio imobiliário especial – apenas o identificado em D) dos factos provados deste Acórdão – tem “preferência/prevalência” sobre qualquer outro direito constituído sobre o mesmo bem, ainda que de constituição anterior (cfr. art. 751.º do C. Civil). Daí que o crédito por IMI identificado em D) dos factos provados tenha que ficar necessariamente em 1.º lugar.

 - Que o crédito do I. S. S e o crédito por IRS, gozando dum privilégio que, sendo imobiliário, não é especial, não aproveitam da oponibilidade a terceiros conferida pelo art. 751.º do C. Civil; pelo que, não valendo o privilégio de tais créditos “contra terceiros, titulares de direitos que recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”, não valem em relação ao crédito garantido por hipoteca que, deste modo, fica necessariamente em 2.º lugar[10].

 - Que, no concurso entre si, dizendo-se no final do art. 11.º do DL 103/80 que os créditos por contribuições à S. S. se graduam “ (…) logo após os créditos referidos no art. 748.º do C. Civil” o crédito do I. S. S tem necessariamente que ficar à frente do crédito por IRS (uma vez que este não é algum dos impostos a que alude o art. 748.º do C. Civil); o que significa que o crédito do recorrente deve ficar em 3.º lugar e o crédito do Estado por IRS se quedará pelo 4.º lugar.


*

Isto dito, uma última e final observação, a propósito do crédito, garantido por hipoteca, do D...:

A sentença recorrida contém uma restrição a tal crédito, fundada na regra fixada pelo Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2009; de “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas (…) não implicar a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nela incorporados”.

Trata-se de parte/aspecto da sentença que está claramente fora do objecto do recurso; decorrendo a razão da presente alusão do facto do alegado pelo D..., o que consta do contrato de mútuo e respectivo documento complementar juntos e o que foi dado como provado na sentença recorrida não serem de molde a afirmar (ou infirmar) que o capital reclamado (os € 79.645,95 €) já incorpora juros remuneratórios[11].

Por conseguinte, na graduação, não deixaremos de, em face da exiguidade dos elementos factuais, tentar concretizar melhor o que, em linha com o citado Ac. Uniformizador de Jurisprudência, se quis determinar na sentença recorrida.


*

*

*


IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, procedendo-se à graduação de créditos pela seguinte forma:

1º - O crédito de IMI da Fazenda Nacional, identificado em D) dos factos provados;

2º - O crédito do D..., identificado em H) dos factos provados, com a limitação imposta pelo artigo 693/2 do Código Civil e não se incluindo no capital em dívida os juros remuneratórios vincendos (após o vencimento da totalidade da dívida);

3º - Os créditos do I.S.S., identificados em F) e G) dos factos provados;

4º - Os créditos de IRS da Fazenda Nacional, identificado em B) e C) dos factos provados

5º - O crédito exequendo.


*

Custas de ambas as instâncias precípuas.

*

Barateiro Martins (Relator)
Arlindo Oliveira
Emídio Santos

[1] Tanto mais que a adopção da solução inversa implicaria, em muitos casos, a perda da preferência do credor com privilégio especial, uma vez que este, via de regra, não poderá efectivar a sua garantia sobre outras coisas.

[2] Como, v. g., no caso de sobre um bem móvel concorrerem privilégios gerais e especiais e penhores de constituição posterior à do privilégio mobiliário especial – em que se gera um “arrastamento” na graduação.

[3] O caso, v. g., de sobre um mesmo bem incidir um privilégio imobiliário geral dos trabalhadores, uma hipoteca e um privilégio imobiliário especial.

[4] E, ainda, o facto de representar uma lesão desproporcionada dos demais credores em benefício, injustificado, da S. Social (a quem bastava registar a hipoteca legal que o art. 12.º do mesmo diploma lhe confere).

[5] Inconstitucionalidades que ocorrem também – e não apenas no confronto e na perspectiva do terceiro detentor duma hipoteca – do ponto de vista e na óptica dos adquirentes dos bens sobre que incida o privilégio.

[6] Razões de inconstitucionalidade que não é líquido que não valham para o mobiliário geral do art. 10.º, n.º 2, do DL 103/80; embora o TC tenha decidido, com voto de vencido da Conselheira Prazeres Beleza, no sentido da sua constitucionalidade.
[7] E da aplicação do regime do art. 749.º não resulta nenhuma desvantagem para os terceiros, seja para os titulares de direitos reais de aquisição, seja para os beneficiários de direitos reais de garantia, uma vez que qualquer um destes prevalecerá sempre sobre o privilégio imobiliário geral, desde que constituído em data anterior à da penhora dos bens sobre que incidem.

[8] De certo modo, o que vem sendo exposto é mesmo, admite-se, algo ocioso.

[9] Isto é, não goza de qualquer privilégio, sobre o prédio penhorado, o crédito de IMI identificado em E) dos factos provados; uma vez que diz respeito a imposto devido por outros prédios (situados no concelho de Águeda) e não por imposto devido pelo prédio/fracção penhorada.
[10] Cfr., neste sentido, v. g., Ac. STA de 14/10/2009, in DGSI.
[11] Esclarece-se que o Ac. Uniformizador só impede os juros remuneratórios vincendos – após o vencimento imediato – e não os já antes vencidos.