Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
354/22.8T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO AMBIENTAL MUITO GRAVE
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL POR VIOLAÇÃO DE NORMAS AMBIENTAIS
REQUISITOS DO AUTO DE NOTÍCIA
NULIDADE DO AUTO DE NOTÍCIA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE RECURSO EM MATÉRIA CONTRAORDENACIONAL
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA ...
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 29.º, N.º 4, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 2.º, N.º 1, 40º, Nº 1, DA LEI N.º 50/2006, DE 29 DE AGOSTO
ARTIGOS 27.º-A, 28.º E 75.º, N.º, 1, DO DECRETO LEI.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO
ARTIGO 120.º E 121.º DO CÓDIGO PENAL,
ARTIGO 243.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – É incorrecta a decisão de considerar provados os factos por mera remissão para o texto da decisão da autoridade administrativa.

II – Da interpretação sistemática efectuada com respeito pela harmonia do sistema, como é pressuposto da boa hermenêutica, resulta que o regime da prescrição do procedimento contraordenacional por violação de normas ambientais se rege em primeiro lugar pelo artigo 40.º da Lei n.º 50/2006, de 29 Agosto, depois pelo regime geral constante dos artigos 27.º, 27.º-A e 28.º do RGCO e por fim, supletivamente e desde que daí não resulte conflito com as normas do RGCO, pelas normas do Código Penal atinentes à prescrição, por expressa disposição do artigo 32.º do Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

III – O argumento da aplicação da lei mais favorável em matéria de prescrição do procedimento contraordenacional por violação de normas ambientais subverte o que resulta do princípio constante do n.º 4 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, norma que tem exclusivamente em vista os casos de sucessão de leis penais, ou seja, a aplicação da lei penal no tempo, não relevando na determinação do enquadramento jurídico.

IV – Na ausência de regulamentação no RGCO e por força do disposto no seu artigo 41.º, n.º 1, os requisitos do auto de noticia são os descritos no artigo 243.º do Código de Processo Penal, dele devendo constar, segundo o disposto na alínea b) do n.º 1, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida a contraordenação, não havendo norma que imponha uma determinada fórmula para a representação da data e da hora.

V – A norma ISO 8601, sobre a representação da data e hora, foi concebida essencialmente para evitar equívocos na transmissão de dados entre países, tendo como principal característica o ordenamento da data e hora a partir do valor mais elevado (o ano) para o mais reduzido (o segundo), respeitando a ordem dos demais factores em função da sua grandeza (mês, dia, hora, minuto), método que não é, no entanto, obrigatório.

VI – Por força do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, podendo conhecer da matéria de facto apenas no âmbito da revista alargada proporcionada pelo conhecimento dos vícios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que são, aliás, de conhecimento oficioso.

VII – O princípio  in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, dúvida metódica que impossibilita concluir, com segurança, pela verificação de um determinado facto, e que pode sobrevir por total ausência de produção de prova, por os meios de prova que apontam no sentido da verificação do facto não se apresentarem como convincentes, ou ainda porque as premissas que permitiriam considerar como provado um concreto facto admitem coerentemente ter como verificados factos alternativos com igual grau de probabilidade.

VIII – A comprovação fáctica exige uma «certeza judiciária», certeza lógica e racional assente na prova, fundada num equilibrado sentido da vida e na normalidade das situações.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Por decisão da Agência Portuguesa do Ambiente proferida de 02 de Setembro de 2022, foi R..., LDA, condenada em cúmulo jurídico na coima de 12.000,00€ pela prática de duas contraordenações ambientais muito graves, previstas na al. u) do n.º 3 do artigo 81.º do Decreto-Lei n.º 226-A/2007 de 31 de Maio, sancionáveis nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 22.º da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto.

Dessa decisão interpôs a arguida recurso de impugnação judicial que correu termos pelo Juízo de Competência Genérica ... e que veio a ser julgado improcedente.

Inconformada, recorre a arguida para este Tribunal da Relação retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

(…)    

            a)- A considerar-se como não verificada a nulidade dos autos de notícia, e a aceitar-se a existência de ilícitos contraordenacionais e a imputação à ora Recorrente das condutas a que os autos de notícia se reportam - o que apenas se admite para facilidade de raciocínio e sem conceder - mesmo assim os autos nunca poderiam prosseguir porque, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 40.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, e no entendimento de que a remissão para o regime geral aí feita se deve entender como remissão para o regime geral das prescrições constante dos art.ºs 120º e 121º do Cód. Penal, o procedimento contraordenacional já se encontrava prescrito aquando da prolação da decisão administrativa;

            b)- Mesmo a considerar-se como não verificada a prescrição do procedimento contraordenacional, nunca os presentes autos poderiam prosseguir nos termos em que o foram nem se justificaria a coima aplicada, desde logo porque, sendo sabido que a “data” é um dos elementos essenciais à existência, qualificação e punibilidade de qualquer conduta, a materialização de tal elemento na escrita de um documento com a importância e prorrogativas de um “auto de notícia” não foi feita de acordo com os normativos legais para que possa merecer qualquer fé em Juízo;

            c)- O auto de notícia de 10/02/2017 é nulo porque foi elaborado em violação das normas gerais internacionais que definem a forma de fazer representar as datas e as horas nos documentos (cfr. norma ISO 8601) bem como em violação das normas de direito interno (cfr. art.º 40.º do Código do Notariado, art.º 131º do Cód. Proc. Civil e art.º 94º do Cód. Proc. Penal);

            d)- Do exame crítico e global do auto de notícia elaborado em 18/09/2015 – o único que poderia servir de suporte à aplicação da coima contraordenacional ambiental ora sob crítica - de que se destacam as afirmações/conclusões transcritas no ponto 3. da alínea C) das alegações e que aqui se dão como reproduzidas, resultam elementos só por si suficientes para se poder concluir, com segurança, pela impossibilidade de poder ser imputada à ora Recorrente, por ato ou omissão, qualquer conduta ilícita - mormente a da alínea u) do n.º 3 do art.º 81º do Dec. Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio - impondo-se o arquivamento dos presentes autos de contraordenação, no limite através da aplicação do princípio “in dubio pro reo”;

            e)- Ao decidir como decidiu o Meritíssimo Juiz “a quo”, salvo o devido respeito e melhor opinião, violou, para além do mais a suprir doutamente, os princípios processuais gerais e os normativos legais que disciplinam a redação dos autos, designadamente a norma ISO 8601, o art.º 131º do Cód. Proc. Civil e o art.º 94º do Cód. Proc. Penal bem como, por erro de interpretação e aplicação, o n.º 1 do art.º 40º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, o art.º 21º do Dec. Lei n.º 153/2003, de 11 de junho, e a alínea u) do n.º 3 do art.º 81º do Dec. Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio.

            …

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso …

            Nesta instância, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto, sufragando a resposta do MP em primeira instância, pronunciou-se também pela improcedência do recurso.

            Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

            - Prescrição do procedimento contraordenacional;

            - Nulidade do auto de notícia; e

            - Violação do princípio in dubio pro reo.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (ainda que o tenha feito por forma que a jurisprudência vem sistematicamente apontando como incorrecta, por mera remissão para o texto da decisão da autoridade administrativa, sem sequer eliminar os elementos conclusivos):

            Processo nº ...17

            1. No dia 21 de agosto de 2015, foi pela entidade autuante recebida denúncia relacionando-se a mesma com a presença de óleos no caminho municipal de acesso à Zona Industrial ..., nas coordenadas 39:48.9916N-008:06.0209W

            2. Deslocou-se a entidade autuante junto às instalações da empresa R..., Lda, pessoa colectiva nº ..., com sede no Parque Industrial ..., Lote ...5, Apartado ...25, ... ..., aqui arguida, tendo verificado que no referido caminho municipal, nas suas imediações, se encontra instalado um tubo com um diâmetro aproximado de 30 cm, por onde saíam águas de cor escura (pequeno escorrimento) com cheiro a óleos, as quais se encontravam na valeta da estrada de terra batida, estando aquelas empossadas/estancadas em certos locais.

            3. Dirigiu-se a entidade autuante às instalações da arguida, onde contactou com um funcionário desta, AA, o qual em seguida acompanhou a entidade autuante ao local, trazendo ao conhecimento que o referido tubo servia para descargas de águas da cobertura do complexo industrial.

            4. Deslocou-se a entidade autuante novamente às instalações da arguida, a 11 de setembro de 2015, tendo contatado com o representante legal desta à data, BB.

            5. Foi nesse momento alertado que pela rejeição de águas degradadas diretamente para o solo sem qualquer tipo de mecanismo que assegure a sua depuração, iria ser elaborado auto de notícia por contraordenação e enviado à entidade competente ARH Tejo - Pólo em Abrantes.

            6. Procedeu ainda a entidade autuante, em ato contínuo, à fiscalização das instalações da arguida e ao seu funcionamento, nomeadamente vistoriando a saída das águas provenientes do sistema de tratamento de óleos, verificando que as mesmas apresentavam cor límpida, sendo encaminhadas para o sistema de águas residuais do coletor municipal, autorizado pela Câmara Municipal ....

            7. Concluiu que no dia 21 de agosto de 2015, data dos factos, não se sentiu/caiu qualquer tipo de pluviosidade no concelho ..., pelo que, aquelas águas não seriam águas pluviais. 

            8. A tubagem referida supra em §2, tem a sua origem nas instalações da arguida, terminando no local onde foi detetada a presença de águas degradas, servindo para escoamento de águas pluviais dos telhados.

            9. As águas degradadas, apresentando cor escura (pequeno escorrimento) e com cheiro a óleos, detetadas pela entidade autuante, provieram da tubagem com origem nas instalações da arguida, terminando numa valeta presente no caminho municipal anexo aquelas instalações.

            …

            11. No período fiscal compreendido entre 01 de janeiro de 2016 e 31 de dezembro de 2016, a arguida, em sede de tributação IRC - modelo 22, declarou o valor de 434.584,10€ a título de lucro tributável, apurando-se um imposto de 55.049,85€ a recuperar.

            12. A arguida, ao atuar da forma que atuou, nas circunstâncias temporais e locais indicadas de §1 a 9, procedeu à rejeição de águas degradadas diretamente para o solo, atingindo o meio hídrico, sem qualquer mecanismo que assegurasse a sua depuração, tendo com tal prática preenchido o tipo objetivo de ilícito que lhe é imputado.

            13. A arguida não observou o cuidado e diligência exigíveis à situação em apreço, não podendo desconhecer a proibição de rejeição de águas degradadas directamente para o solo, sem qualquer tipo de mecanismos que assegurem a depuração.

            14. A arguida, na pessoa do seu representante legal, é responsável pelas ações e gestão decorrentes da sua atividade, tendo a obrigação de procurar conhecer e cumprir todo o enquadramento legal em que a mesma pode ser exercida.

            15. A arguida, na pessoa do seu representante legal, não agiu com o cuidado necessário para conhecer e cumprir com as obrigações legais a que estava obrigada e era capaz, não se descortinando quaisquer factos que retirem a censurabilidade à infração praticada nos termos supra descritos ou que excluam a ilicitude da sua conduta.

            processo n.º ...18

            1. No dia 01 de fevereiro de 2017, pelas 16H30, na sequência de patrulha de fiscalização geral do ambiente, a EPNA do Destacamento Territorial da ..., deparou-se que num caminho municipal próximo das instalações da empresa arguida supra identificada (coordenadas 39:48.99 16N - 008:0G.0209W), está instalado um tubo com diâmetro aproximado de 30cm, por onde saiam águas de cor escura (acinzentada) com um odor a óleos, as quais escorriam ao longo da valeta da estrada de terra batida, encontrando-se as águas empossadas em certos locais, acompanhadas com alguma espuma.

            2. Em seguida, encetou a EPNA as devidas diligências, tendo-se dirigido às instalações da empresa arguida, onde contatou com funcionário desta, Sr. AA, o qual informou que o representante legal da sociedade não se encontrava na empresa, desconhecendo quando o seu regresso.

            3. Perante tais factos, o funcionário da arguida acompanhou a EPNA ao local da rejeição das águas para o solo (valeta), referindo que tem conhecimento que para o local são canalizadas as águas pluviais da cobertura das instalações, bem como as águas pluviais do parque auto.

            4. Contudo, as águas do parque auto antes de serem lançadas para o coletor municipal (com autorização do Município ... quando satisfaçam os requisitos legalmente definidos), são encaminhadas para um tanque com separação de hidrocarbonetos.

            5. Deslocou-se a entidade autuante ao coletor municipal, que recolhe as águas provenientes do parque auto, já após passarem pelo separador de hidrocarbonetos, tendo sido solicitado ao funcionário da arguida que procedesse à abertura da água, para que esta fizesse o seu circuito normal quando se trata de águas pluviais.

            6. Constatou-se efetivamente que as águas chegavam ao coletor municipal com uma coloração escura (acinzentada).

            7. No dia seguinte, a entidade autuante deslocou-se novamente às instalações da arguida onde contatou com o representante legal, questionando-o acerca da rejeição de águas potencialmente poluentes detetadas no dia anterior, tendo este confirmado a informação colhida, junto do seu empregado.

            8. Na noite anterior à fiscalização verificou-se a ocorrência de bastante precipitação na Vila da ..., a qual afetou igualmente o local da empresa arguida.

            9. As águas degradadas, apresentando cor escura (acinzentada) com odor a óleos, as quais escorriam ao longo da valeta da estrada de terra batida, encontrando-se as águas empossadas em certos locais, acompanhadas com alguma espuma, provieram da tubagem com origem nas instalações da arguida.

            …

            11. No período fiscal compreendido entre 01 de janeiro de 2016 e 31 de dezembro de 2016, a arguida, em sede de tributação IRC - modelo 22, declarou o valor de 434.584,10€ a título de lucro tributável, apurando-se um imposto de 55.049,85€ a recuperar.

            12. A arguida, ao atuar da forma que atuou, nas circunstâncias temporais e locais indicadas de §1 a 11, procedeu à rejeição de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, bem como para o solo, atingindo o meio hídrico, sem qualquer mecanismo que assegurasse a sua depuração, tendo com tal prática preenchido o tipo objetivo de ilícito que lhe é imputado.

            13. A arguida não observou o cuidado e diligência exigíveis à situação em apreço, não podendo desconhecer a proibição de rejeição de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, bem como para o solo, atingindo o meio hídrico, sem qualquer tipo de mecanismos que assegurem a depuração.

            14. A arguida, na pessoa do seu representante legal, é responsável pelas ações e gestão decorrentes da, sua atividade, tendo a obrigação de procurar conhecer e cumprir todo o enquadramento legal em que a mesma pode ser exercida.

            15. A arguida, na pessoa do seu representante legal, não agiu com o cuidado necessário para conhecer e cumprir com as obrigações legais a que estava obrigada e era capaz.

                       

            Foram considerados não provados os seguintes factos:

            Processo nº ...17

            1. As águas degradadas encontradas pela entidade autuante não provinham das instalações da arguida.

            2. A tubagem que liga directamente às instalações da arguida serve o único propósito de disposição de águas pluviais.

            3. As águas degradadas encontradas na valeta foram colocadas por terceiros, por forma a atingir a dignidade e honra da arguida.

            processo n.º ...18

            4. As águas degradadas encontradas pela entidade autuante não provinham das instalações da arguida.

            5. As descargas de águas degradadas, provenientes do parque auto, para o colector municipal, estão autorizadas pela Câmara Municipal ....

            Foi exarada a seguinte motivação de facto:

            A convicção desta Entidade, no que se refere aos factos provados, fundou-se na análise crítica e conjugada, segundo juízos de experiência comum e normalidade social, apreciados por via de confronto com os demais elementos juntos aos autos.

            § Processo n.º ...17

            No âmbito dos presentes autos, fundamentalmente teve-se por base o auto de notícia, levantado por elementos da entidade autuante acima identificada, com competência para o ato, cujas declarações se reputam objetivas, isentas, rigorosas, coerentes e cuja veracidade e fé pública não foram afastadas, que presenciou os factos os quais foram testemunhados por pessoa, naquela sede melhor identificada e que dada a simplicidade da causa se prescindiu da respetiva inquirição, bem como foi feito o confronto com os demais documentos juntos aos autos, nomeadamente os registos fotográficos apresentados nas folhas de suporte, a defesa da arguida, e a prova testemunhal produzida.

            Ora, compulsado o auto de contraordenação, resulta do mesmo, devidamente suportado por reportagem fotográfica, que após chegada da EPNA do Destacamento Territorial da ... da GNR ao local, e recorrendo às suas capacidades visuais e sensoriais, verificou a saída de águas de cor escura (pequeno escorrimento) com cheiro a óleos, para um caminho municipal, proveniente de um tubo com um diâmetro aproximado de 30 cm, nas imediações do estabelecimento industrial da arguida.

            Neste sentido, a patrulha da GNR do NPA verificou, in loco, que as águas não apresentavam as suas características típicas no seu estado natural - inodora, insípida e transparente, ou seja, límpida e incolor, como fez constar de relatório fotográfico completo.

            Veja-se,

            Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, efetivamente visualizou a entidade autuante que, através de um tubo de 30cm, se procedia à rejeição de águas degradadas diretamente para o solo - caminho público municipal - afetando, consequentemente, o meio hídrico. Atento o facto de nas imediações se encontrarem localizadas as instalações da arguida, deslocou-se a entidade autuante a estas, com o fito de apurar se as escorrências detetadas provinham da atividade industrial ali desenvolvida, consistente com a qualidade das águas encontradas.

            …

            Atenta a prova carreada para os autos, facilmente se concluiu que as águas encontradas pela entidade autuante, além de provirem da tubagem ligada diretamente às instalações da arguida, apresentam os elementos (cor escura e cheiro a óleos) próprios da atividade desenvolvida, encontrando-se efetivamente degradadas. Ainda que, em tese, se pudesse admitir a descida de águas resultantes do funcionamento de outras empresas situadas em cota de terreno superior às instalações da arguida, resulta claro da reportagem fotográfica realizada, bem como do presenciando pela entidade autuante, que a rejeição das águas degradadas deu-se pelo tubo que liga diretamente às instalações desta, terminando na valeta onde foram detetadas, não se verificando qualquer confluência de águas que eventualmente descessem peJos terrenos, ou pelo caminho municipal.

            Pese embora o alegado pela arguida, não transpôs a entidade autuante para o auto de notícia, nem foi realizada prova, quanto ao facto de um terceiro ter, fortuita ou deliberadamente, despejado na valeta água contaminada com óleo, por forma a atingir a honra e consideração da arguida.

            Caso se estivesse perante águas única e exclusivamente provenientes da queda sobre as coberturas, aquelas não apresentariam estado de degradação considerável – cor escura e com cheiro a óleos.

            Acresce ainda o facto de no referido dia 21 do mês de agosto de 2015 não ter sido registada qualquer precipitação, motivando a conclusão de que as águas encontradas somente poderem resultar de descarga realizada pela arguida para os sistemas de disposição de águas pluviais, sendo permitido inferir que tal tenha sucedido ainda que por mero descuido ou incúria.

            Ainda neste último ponto, se bem que a arguida avance que a tubagem somente serve o propósito de encaminhamento das águas pluviais recolhida pelos telhados da instalação, não logrou a arguida fazer prova do por si alegado, nem que tal sistema se encontra inviolável quando à possibilidade de receber águas residuais e/ou degradadas, ainda que por descuido.

            …

            Por último, e desenvolvendo a arguida igualmente a sua atividade em questões relacionadas com a proteção do ambiente, conforme resulta do seu objeto social (certidão permanente junta aos autos), poderia, e devia ter acautelado que as águas degradadas não fossem diretamente rejeitadas para o solo, atingindo o meio hídrico, sem o devido tratamento.

            A conclusão pela culpa da arguida assentou nos elementos de prova juntos aos autos e nas regras de experiência comum, não restando dúvidas que apenas por grave descuido se explique que não tenha cumprido as obrigações que se encontram plasmadas nas normas, cuja violação lhe são imputadas.

            § processo n.º ...18

            Já no que respeita aos presentes autos, fundamentalmente teve-se por base o auto de notícia, levantado por elementos da entidade autuante acima identificada, com competência para o ato, cujas declarações se reputam objetivas, isentas, rigorosas, coerentes e cuja veracidade e fé pública não foram afastadas, que presenciou os factos os quais foram testemunhados por pessoa, naquela sede melhor identificada e que dada a simplicidade da causa se prescindiu da respetiva inquirição, bem como foi feito o confronto com os demais documentos juntos aos autos, nomeadamente os registos fotográficos apresentados nas folhas de suporte, a defesa da arguida, e a prova testemunhal produzida.

            Em sede de direito de audiência e defesa, e no que respeita aos concretos factos verificados no dia 11 de fevereiro de 2017, veio a arguida confirmar que a tubagem encontrada na valeta provém das suas instalações, mas servindo para escoamento de águas pluviais que caiam na zona circundante, nomeadamente o parque automóvel, bem como nas coberturas.

            Reforçou ainda que as águas pluviais recolhidas pelas coberturas escoam através do parque automóvel, aberto a todos os clientes e visitantes das instalações, não integrando a atividade industrial de tratamento de resíduos.

            Neste sentido, compulsado o auto de contraordenação, resulta do mesmo, devidamente suportado por reportagem fotográfica, que após chegada da EPNA do Destacamento Territorial da ... da GNR ao local, e recorrendo às suas capacidades visuais e sensoriais, verificou a saída de águas de cor escura (acinzentada) com produção de espuma e cheiro a óleos, escorrendo ao longo da valeta do caminho municipal, encontrando-se empossadas em certos locais, e provenientes de um tubo com um diâmetro aproximado de 30 cm, nas imediações do estabelecimento industrial da arguida.

            Tubo esse que provém das instalações da arguida, o que foi confirmado tanto pela entidade autuante bem como pelos elementos de prova presentes nos autos, não restando dúvidas que as águas encontradas não resultam de intervenção de terceiro, nem resulta de escorrimento das empresas situadas em cota de terreno superior à arguida.

            Neste sentido, a patrulha da GNR do NPA verificou, in loco, que as águas não apresentavam as suas características típicas no seu estado natural - inodora, insípida e transparente, ou seja, límpida e incolor, como fez constar de relatório fotográfico completo.

            Ainda que na noite anterior à fiscalização se tenha verificado a ocorrência de precipitação, as águas encontradas pela entidade autuante, apresentavam elementos próprios da atividade exercida pela arguida - tratamento de óleos - não se podendo considerar estar perante águas pluviais que escorreram das coberturas da instalação industrial. Caso se estivesse perante águas única e exclusivamente provenientes da queda sobre as coberturas, aquelas não apresentariam estado de degradação considerável - cor escura (acinzentada) com produção de espuma e cheiro a óleos.

            Aliás, a própria arguida confirma que a tubagem serve especificamente o propósito de escoamento de águas pluviais, com origem tanto nas coberturas, bem como no parque auto localizado nas instalações, o que permite o arraste de materiais em suspensão ou outros poluentes e contaminantes.

            Acresce que, durante a operação de fiscalização, e com a colaboração de funcionário da arguida, foi ainda possível à entidade autuante apurar que mesmo após a passagem por tanque separador de hidrocarbonetos, as águas pluviais com origem no parque auto, apresentavam cor acinzentada, conforme verificado após abertura do coletor municipal, pertencente ao sistema de disposição de águas residuais.

            Tanto que a arguida, na sua defesa, não coloca efetivamente em causa o presenciado pela entidade autuante, e transposto para auto de notícia, optando por atribuir a responsabilidade da degradação das águas ao facto de o parque automóvel ser utilizado pelos clientes que ali se dirigem, libertando os seus veículos resíduos posteriormente recolhido pelas águas pluviais. Contudo, percebe-se da defesa da arguida que as águas degradadas são rejeitadas através de tubagem diretamente para o solo, tal como são rejeitadas para os sistemas municipais de gestão de águas residuais, sem que qualquer tipo de mecanismo assegure a completa depuração destas.

Dúvidas restam, e face à não junção do respetivo documento camarário, da efetiva permissão do Município ... para que a arguida procedesse à rejeição das águas para o coletor municipal, estando assente a efetiva rejeição de águas degradadas.

            No que respeita à prova testemunhal produzida, apesar dos depoimentos se terem como objetivos, isentos e coerentes, nenhuma das testemunhas presenciou a ocorrência de dia 11 de fevereiro de 2017, apenas transmitindo aos autos aquilo que era a sua convicção e perceção pessoal, sem que pudesse afastar a convicção desta entidade, ou atacar os factos dados como provados. Contudo, diga-se que veio a testemunha AA novamente confirmar que a arguida procede ao envio de águas para a valeta, inexistindo quaisquer dúvidas que o faz através da única tubagem presente.

            Caso as águas encontradas fossem somente águas da chuva encaminhadas das coberturas da instalação industrial da arguida, certamente não apresentariam coz acinzentada, e muito menor teriam odor a óleos ou produziriam espuma, ainda que a precipitação se tivesse verificado em considerável volume.

            Toda a prova recolhida cria a convicção, e face à atividade desenvolvida, que a arguida, por ação ou omissão, procede à rejeição de águas degradadas através da tubagem para a valeta no caminho municipal, tentando promover a ideia que somente encaminha águas pluviais, com a agravante de proceder igualmente à sua rejeição para o coletor municipal, quando não totalmente depuradas.

            Por último, e desenvolvendo a arguida igualmente a sua atividade em questões relacionadas com a proteção do ambiente, conforme resulta do seu objeto social (certidão permanente junta aos autos), poderia, e devia ter acautelado toda a sua conduta.

            A conclusão pela culpa da arguida assentou nos elementos de prova juntos aos autos e nas regras de experiência comum, não restando dúvidas que apenas por grave descuido se explique que não tenha cumprido as obrigações que se encontram plasmadas nas normas, cuja violação lhe são imputadas.

            Vejamos então as questões suscitadas pela recorrente:

            Vem alegada a prescrição do procedimento contraordenacional, sustentando-se a recorrente no entendimento de que a remissão para o “regime geral” constante do art. 40º, nº 1, da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, apenas poderia ser entendida como referência ao regime geral da prescrição constante dos arts. 120º e 121º do Código Penal, e não ao regime dos art.ºs 27º-A e 28º do Dec. Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro. Convoca como alicerces dessa posição duas ordens de razões, a saber, um argumento literal retirado do confronto entre os arts. 40º e 2º da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto; e a prevalência do princípio da aplicação da lei mais favorável consagrado no art.º 29º da Constituição da República.

            Em desenvolvimento do primeiro daqueles argumentos alega a recorrente que tratando o art.º 40º da Lei n.º 50/2006, em exclusivo, da prescrição, a remissão para o regime geral não poderia deixar de ser entendida como tendo em vista o regime geral da prescrição constante do Código Penal, porquanto este normativo alude apenas ao “regime geral”, enquanto que o art. 2º do mesmo diploma, para definir o regime geral supletivo, menciona expressamente o “regime geral das contraordenações”. Ou seja, pretende a recorrente que a referência abreviada ao regime geral, a propósito da prescrição, constituiria um desvio de sentido relativamente ao alcance do art. 2º.

            A interpretação proposta pelo recorrente oferece-se como manifestamente contra legem, tanto quanto é certo que a Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, que aprovou a lei quadro das contraordenações ambientais, dispõe taxativamente no nº 1 do art. 2º que as contraordenações ambientais e do ordenamento do território são reguladas pelo disposto na presente lei e, subsidiariamente, pelo regime geral das contraordenações, precisando através deste normativo, sem formulação de restrições, o âmbito do direito subsidiário. É certo que o regime prescricional previsto no Código Penal tem aplicação no âmbito do direito contraordenacional, mas apenas a título subsidiário, por expressa disposição do art. 32º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contraordenações e Coimas, adiante designado apenas por RGCO), ainda que com uma limitação: “Em tudo o que não for contrário à presente lei…”, estatui aquele normativo!

            Assim, a interpretação sistemática efectuada com respeito pela harmonia do sistema, como é pressuposto da boa hermenêutica, impõe a conclusão de que o regime da prescrição do procedimento contraordenacional por violação de normas ambientais se rege em primeiro lugar pelo art. 40º da Lei 50/2006; depois, pelo regime geral constante dos arts. 27º, 27º-A e 28º do RGCO; por fim, supletivamente e desde que daí não resulte conflito com as normas do RGCO, pelas normas do Código Penal atinentes à prescrição.

            O argumento da aplicação da lei mais favorável, por seu turno, subverte o que resulta do princípio constante do nº 4 do art. 29º da CRP. Essa norma, estatuindo que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, tem exclusivamente em vista os casos de sucessão de leis penais, ou seja, a aplicação da lei penal no tempo, não relevando na determinação do enquadramento jurídico.

            Em suma, a pronúncia do tribunal recorrido relativamente à prescrição do procedimento contraordenacional ateve-se ao regime legal aplicável.

            No que concretamente concerne ao decurso do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, importa, pois, atender ao que se encontra previsto no RGCO, donde resulta o seguinte:

            Está em causa a prática de duas contraordenações ambientais muito graves, sendo o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional de cinco anos, sem prejuízo das causas de interrupção e de suspensão previstas no regime geral, conforme decorre expressamente do art. 40º, nº 1, da Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto.

            A primeira das contraordenações imputadas à arguida verificou-se em 21 de Agosto de 2015, data em que se iniciou o decurso do prazo prescricional. Esse prazo interrompeu-se, nos termos do art. 28.º, n.º 1, al. c), do RGCO, com a notificação para o exercício do direito de defesa, em 12 de Julho de 2017 (cfr. aviso de receção junto com o procedimento contraordenacional a fls. 11). Interrompeu-se de novo em 03 de Agosto de 2017, com a solicitação do auxilio das autoridades policiais, por força do previsto no art. 28.º, n.º 1, al. b) do RGCO. Ulteriormente, nos dias 17 de Novembro de 2017 e 19 de Janeiro de 2018, foram inquiridas testemunhas, diligências de prova que determinam novas interrupções do prazo de prescrição. Foi, entretanto, proferida a decisão administrativa (notificada em 5 de Setembro de 2022 ao mandatário da arguida), daí decorrendo nova interrupção, nos termos do artigo 28.º, n.º 1, al. d), do RGCO.

            O decurso do prazo de interrupção suspendeu-se com o envio dos autos para o Ministério Público em 10 de Outubro de 2022, por força do disposto no art. 27.º-A, n.º 1, al. b), do RGCO e ainda por força da notificação do despacho que admitiu o recurso, conforme previsto no art. 27º-A, n.º 1, al. c), do RGCO.

            Por força do art. 28º do RGCO a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade. No caso das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 27º-A, a suspensão da prescrição não pode exceder 6 meses.

            Em conclusão, a prescrição do procedimento contraordenacional relativamente à primeira das contraordenações não se verificou por não ter decorrido o prazo correspondente, que por força das interrupções e suspensão que o afectaram apenas se completará em 21 de Agosto de 2023.

            Por maioria de razão e aplicado o mesmo raciocínio à segunda contraordenação praticada, também relativamente a esta se não verificou o decurso do prazo de prescrição, cujo termo apenas ocorrerá em 1 de Fevereiro de 2025.

            Prossegue a recorrente arguindo a nulidade do auto de notícia elaborado em 10 de fevereiro de 2017 e que está na origem do processo n.º ...18. Alega para o efeito que a data materializada no auto de noticia tem que ser aposta de acordo com os normativos legais aplicáveis e por forma a não permitir dúvidas. Sustenta que na elaboração do auto foram utilizadas formas diferentes de registar o dia e a hora e em nenhuma das datações foram respeitadas as normas que disciplinam esta matéria, existindo normas gerais internacionais que definem a forma de fazer representar as datas e as horas (norma ISO 8601), tendo o legislador nacional definido nos vários ramos de direito a forma de representação do dia e hora, bem como a forma da elaboração dos actos por escrito (art.º 40.º do Código do Notariado, art.º 131º do Cód. Proc. Civil e art. 94º do Cód. Proc. Penal). Assim, sendo o dia e a hora em que os factos ocorreram um elemento essencial para a existência e punibilidade do acto ilícito, o desrespeito das normas que regulamentam a indicação desses elementos não poderia deixar de ter como consequência a nulidade do acto.

            Apreciando, diremos que na ausência de regulamentação no RGCO e por força do disposto no art. 41º, nº 1, deste diploma, os requisitos do auto de noticia serão os descritos no art. 243º do CPP. Segundo o disposto na al. b) do respectivo nº 1, do auto de noticia deverão constar o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida a contraordenação.

            No que especificamente concerne ao direito processual penal não existe norma que imponha uma determinada fórmula para a representação da data e da hora. A norma a que a recorrente alude nas suas alegações – o art. 94º do CPP – não confere suporte ao alegado, posto que se refere exclusivamente à forma dos actos processuais e o respectivo nº 6 apenas obriga à menção do dia, mês e ano da prática do acto, bem como, tratando-se de acto que afecte liberdades fundamentais das pessoas, da hora da sua ocorrência, com referência ao momento do respectivo início e conclusão.

            A norma ISO 8601, proveniente da International Organization for Standardization – ISO, que a recorrente entende que deveria ter sido aplicada, constitui norma internacional para representação da data e hora, concebida essencialmente para evitar equívocos na transmissão de dados entre países, tendo como principal característica o ordenamento da data e hora a partir do valor mais elevado (o ano) para o mais reduzido (o segundo), respeitando a ordem dos demais factores em função da sua grandeza (mês, dia, hora, minuto). Contudo, a utilização deste método não é obrigatória, ainda que algumas instituições nacionais, sobretudo as que lidam com transmissão de dados a nível internacional, tenham emitido instruções específicas para normalização da sua utilização nas comunicações por si processadas.

            O Código de Processo Civil, que constitui direito supletivo na integração de lacunas (art. 4º do CPP), nada adiante sobre a matéria, limitando-se a dispor no art. 131º, nº 4, que as datas e os números podem ser escritos por algarismos, exceto quando respeitem à definição de direitos ou obrigações das partes ou de terceiros; nas ressalvas, porém, os números que tenham sido rasurados ou emendados devem ser sempre escritos por extenso.

            Assim, vigorando no âmbito do processo penal um princípio de tipicidade das nulidades e não estando prevista qualquer nulidade decorrente do modo de representação do momento da prática dos factos, se porventura a indicação desse momento se revelar equivoca e suscitar dúvida relevante, é em sede de matéria de facto que a questão deverá ser dirimida.

            No caso vertente, há que convir que a forma de representação da data utilizada pelo autuante é algo arrevesada. Ter-se-á tratado, porventura, de acto falhado na tentativa de aplicação da norma ISO 8601, mas com desconhecimento do respectivo modo de representação. Não obstante, o tribunal de 1ª instância, tal como anteriormente a entidade administrativa, interpretou coerentemente a representação da data aposta no auto de noticia sem que daí resulte qualquer dúvida razoável. Tratando-se, como se referiu, de questão de facto, está subtraída ao conhecimento deste tribunal de recurso, por força do disposto no art. 75º, nº 1, do RGCO.

            Por último, a recorrente esgrime a violação do princípio in dubio pro reo, sustentando que da matéria de facto assente resulta a impossibilidade de imputação de qualquer conduta ilícita.

            Não haverá que discutir aqui a matéria de facto, por força do já citado art. 75º, nº 1, do RGCO. Na ausência de qualquer previsão em sentido diverso, o Tribunal da Relação apenas conhecerá da matéria de direito. Quando muito poderia conhecer da matéria de facto no âmbito da revista alargada proporcionada pelo conhecimento dos vícios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP, que são, aliás, de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso; conhecimento que apenas poderá resultar do texto da decisão, ainda que conjugado com as regras da experiência comum, limitação que decorre directamente do proémio daquele nº 2. Contudo, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada apenas ocorreria se os factos assentes fossem, a priori, insuficientes para suportar uma decisão, qualquer que ela fosse, condenatória ou absolutória,  posto que essa insuficiência é aferida em função do objecto do processo [1]. Não é o caso, uma vez que a materialidade descrita evidencia linearmente a rejeição de águas degradadas directamente para o solo, sem qualquer tipo de mecanismo que assegurasse a sua prévia depuração. Também se não descortina qualquer insanável contradição, resultando assente, por devidamente comprovado,  que as águas degradadas de tonalidade cinzenta e com odor a óleos provinham de tubagem com origem nas instalações da arguida, tubagem supostamente destinada apenas ao escoamento de águas pluviais, mas que na verdade serviu para verter no solo águas que tinham outra proveniência, não se verificando qualquer relação de conflitualidade ou outro vício ao nível das premissas, susceptível de determinar uma deficiente formação da conclusão. E por fim, não se detecta qualquer erro notório, imediatamente perceptível, decorrente do texto da decisão recorrida.

            Regressemos, pois, à pretendida violação do princípio in dubio pro reo, a que a recorrente faz apelo mas que a decisão recorrida não evidencia. Sobre o tema, diremos que constituindo um princípio geral do processo penal, o in dubio pro reo se afirma também como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Esta dúvida razoável é uma dúvida metódica que reconhecendo a impossibilidade de concluir com segurança pela verificação de um determinado facto, terá que firmar-se no conjunto da prova produzida e na razoabilidade das situações da vida. É aquela dúvida que se forma no espírito do julgador quando este não encontra alicerces para ter como assente um determinado facto.  Poderá sobrevir por total ausência de produção de prova (quando a prova directa não confirma o facto e não é de admitir o funcionamento de prova indirecta), por os meios de prova que apontam no sentido da verificação do facto (positivo ou negativo) não se apresentarem como convincentes, ou ainda porque as premissas que permitiriam considerar como provado um concreto facto admitem coerentemente ter como verificados factos alternativos com igual grau de probabilidade. Todas estas situações geram uma impossibilidade ôntica de verificação do facto, que até poderá ser verdadeiro, mas que não está comprovado.

            Em contraponto, a comprovação fáctica exige uma «certeza judiciária». Não se trata de uma certeza absoluta, contra todas as possibilidades, mas de uma certeza lógica e racional, assente na prova, fundada num equilibrado sentido da vida e na normalidade das situações. Se uma vez produzida e analisada a prova subsistir uma dúvida razoável sobre a veracidade do facto, o non liquet daí resultante será necessariamente valorado a favor do arguido. Se, pelo contrário, foi alcançada uma certeza judiciária, o facto deve ser firmado como provado. É neste equilíbrio entre o juízo de certeza respaldado na prova e a inconsistência de factos que apesar da prova produzida não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal que é moldada a decisão penal em matéria de facto.

            Em sede de recurso contraordenacional, em que a 2ª instância apenas conhece da matéria de direito, o juízo de non liquet ao arrepio da decisão de primeira instância só seria de admitir se manifestamente a prova produzida não comportasse outra alternativa, revelando-se absolutamente inadmissível firmar os factos como provados por força da verificação de um dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP.

            Ora, no caso vertente não se vê que o tribunal recorrido tenha atingido uma situação de dúvida, resolvendo-a em desfavor da recorrente. A decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção, respeitou as regras da experiência comum e as circunstâncias do caso não permitem afirmar a verificação de várias soluções em termos de facto que encontrem apoio na prova produzida e que se apresentem como igualmente verosímeis.

            Note-se que mesmo quando são apontadas soluções alternativas para um mesmo facto, não se segue daí necessariamente que o tribunal seja obrigado, apenas por essa razão, a permanecer em estado de dúvida, como a recorrente parece pretender.

            Vale tudo isto por dizer que não se descortina qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

            Em conclusão, o recurso afirma-se como totalmente improcedente.

           

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se a recorrente na taxa de justiça de 4 UC.


*


                                                                       Coimbra, 10 de Maio de 2023

                        (texto processado e revisto pelo relator e assinado electronicamente)

                                                      (Jorge Miranda Jacob - relator)

                                                  (José Eduardo Martins – 1º adjunto)

                                                           (Isabel Valongo – 2ª adjunta)





[1] - Cfr. anotação do Exmo. Juiz Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, anot. ao art. 410º.