Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/14.3TBRSD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: BALDIOS
ASSEMBLEIA DE COMPARTES
CONSELHO DIRECTIVO
RECURSO A JUÍZO
CEDÊNCIA DA POSIÇÃO CONTRATUAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 10/22/2019
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.577, 662, 941 CPC, LEI Nº68&93 DE 4/9, LEI Nº 75/2017 DE 17/8
Sumário: 1. A Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

2. Tendo a assembleia (constituinte) de compartes deliberado conferir ao conselho directivo «plenos poderes (…) para pedir à Junta de Freguesia a devolução dos terrenos baldios, reclamar (…) o pagamento das rendas dos terrenos baldios, podendo inclusivamente recorrer às vias judicias e constituir mandatário para defesa dos interesses legítimos da comunidade relativamente a estes baldios», não faz sentido considerar-se que o órgão com competência para deliberar o recurso à via judicial tenha de vir, posteriormente, ratificar a sua própria decisão ou deliberação, não existindo pois qualquer violação ao preceituado nos art.ºs 15º, n.º 1, alínea o) e 21º, alínea h), da Lei n.º 68/93, de 04 (Lei dos Baldios), não se verificando, assim, a excepção dilatória prevista na alínea d) do art.º 577º do CPC (falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter).

3. Tal entendimento sai reforçado pelo preceituado nos art.º 24º, n.ºs 1, alíneas q) e r) e 2, e 29º, n.º 1, alínea h), da actual Lei dos Baldios (Lei n.º 75/2017, de 17.8), ao estabelecer que a assembleia de compartes tem competência para, por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes, deliberar o recurso a juízo pelo conselho directivo para defesa de todos os direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários, bem como dos direitos da comunidade de compartes decorrentes dos actos de gestão dos imóveis comunitário, cabendo-lhe também ratificar os actos da sua competência reservada se o conselho directivo os tiver praticado sem autorização com fundamento em urgência.

4. Foi intenção do legislador preservar a vigência e a validade dos contratos celebrados pelas entidades que (em princípio) deviam proceder à devolução de facto dos baldios às comunidades locais (cedência da posição contratual ope legis), o que poderá determinar a prestação de contas, nos termos gerais, por parte da entidade que efectuou a administração/gestão dos baldios (art.ºs 34º a 36º da Lei n.º 68/93, de 04 e 941º e seguintes do CPC).

Decisão Texto Integral:










            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. Em 17.6.2014, Conselho Directivo dos Moradores - Compartes de F (…) com sede em F (…), (...) , instaurou a presente acção declarativa comum contra União das Freguesias de (…) (1ª Ré), com sede em (...) , (...) - (...) , e E (…), S. A. (2ª Ré), pedindo que estas sejam condenadas: a reconhecerem que os prédios identificados no art.º 4º da petição inicial (p. i.) (a 2ª Ré quanto aos n.ºs 1627, 1851 e 1889) são baldios e propriedade comunal dos moradores compartes da freguesia (…) [a)]; a reconhecerem esse direito e a absterem-se de qualquer acto que o ponha em causa [b)]; a verem declarado que os prédios foram devolvidos ao Conselho Directivo dos Compartes pela Junta de Freguesia (…)c)]; a União de Freguesias a ver declarada a ineficácia e a nulidade da escritura de justificação notarial e ordenado o cancelamento de qualquer registo efectuado a seu favor com base na mesma escritura [d)] e que não adquiriu os prédios por usucapião e, ainda, a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos [e) e f)], bem como a indemnizarem o A. pelos prejuízos sofridos com a sua conduta ilícita, nomeadamente com os honorários e demais despesas a suportar com a constituição de advogado a determinar em ulterior decisão [g)].

Alegou, em síntese: o A. foi eleito em reunião de Assembleia dos moradores compartes da Freguesia (…) de 20.01.2013; estão inscritos na matriz predial rústica da freguesia da União das Freguesias (…), tendo como titular a Assembleia dos Moradores Compartes, um conjunto de 10 prédios rústicos, que identifica, sitos na área da antiga freguesia de (…), cujos artigos matriciais estão actualizados em resultado da agregação das freguesias e que são baldios; desde tempos imemoriais que os referidos prédios têm vindo a ser possuídos e fruídos pelos moradores das comunidades locais da freguesia de (...) , que neles apascentam gado, recolhem matos e lenhas e exploram águas, há mais de 20, 50, 100 ou 200 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de os utilizarem por direito próprio e exclusivo dos moradores da Freguesia (…), ignorando lesar direitos de outrem; a Junta de Freguesia  (JF) (…) outorgou no Cartório Notarial de (...) , em 18.9.2002, uma escritura de justificação notarial, fazendo-se constar que adquirira aqueles prédios rústicos, por compra verbal no ano de 1975, a pessoas que identifica, alegando a posse e fruição sobre eles há mais de 20 anos conducente à sua aquisição, também, por usucapião; a ali justificante sabia que as declarações não correspondem à verdade, pois tais prédios nunca estiveram na sua posse como proprietária, nunca lá praticou quaisquer actos de posse, nos termos e com a convicção de proprietário declarados na escritura ou jamais estiveram na posse ou foram propriedade das pessoas identificadas na mesma escritura como transmitentes e tais prédios nunca lhes foram transmitidos por qualquer forma; o A., no uso dos poderes conferidos pela Assembleia dos Moradores Compartes numa Acta, pediu, por escrito, a devolução dos terrenos baldios à JF de (…), tendo esta deliberado, por unanimidade, devolver os terrenos à Comissão dos Moradores Compartes da Freguesia (…) ratificou a devolução aprovada pela Junta, em reunião realizada em 19.5.2013; a JF de (...) , em 02.02.2002, deu de arrendamento à sociedade S (…), Lda., para exploração de um parque eólico, terrenos inscritos na matriz predial rústica sob os artigos (antigos) 964, 901, 918 e 945, sendo certo que à 2ª Ré foi-lhe cedida a posição contratual de arrendatária e, por alterações do contrato inicial, o parque eólico encontra-se actualmente instalado nos prédios dos artigos actuais n.ºs 1889, 1851 e 1627; com a devolução dos baldios ao A. pela 1ª Ré, aquele ocupou a posição de cedente no contrato de arrendamento; não surtiram efeito as missivas de 14.01.2014 e de 10.4.2014, juntas à p. i., para que fossem entregues ao A. os valores das rendas em causa.

A 2ª Ré, na contestação, além do mais, confirmou que E (…) S. A., lhe cedeu a posição contratual no contrato de arrendamento celebrado com a JF de (...)  e afirmou que sempre pagou a renda nos termos do mencionado contrato, à JF de (...) . Concluiu pela improcedência da acção.

A 1ª Ré também contestou, alegando, em resumo: o A. é uma inexistência jurídica, dado que não cumpriu qualquer dos formalismos e procedimentos previstos na Lei dos Baldios, contendendo com o recenseamento provisório dos compartes, a existência de caderno de recenseamento dos compartes, convocatória para a realização da assembleia constituinte e a efectiva ocorrência de eleições para os órgãos de administração do baldio no respeito do quorum legalmente necessário, etc., verificando-se, assim, a excepção dilatória da falta de personalidade e capacidade judiciária do mesmo; os prédios identificados no art.º 4° da p. i. são legítima propriedade da 1ª Ré, estão na sua posse há mais de vinte anos - pelo menos desde 1975 - e encontram-se registados na Conservatória Predial a seu favor, assim como nas matrizes prediais; em nenhum momento a comunidade de (...) usou e fruiu ou teve qualquer espécie de posse sobre tais terrenos como baldios; se outro título não houvesse, adquiriu a 1ª Ré o direito de propriedade sobre todos os prédios pela figura de usucapião. Concluiu pela procedência da excepção dilatória de falta de personalidade e capacidade judiciárias do A., absolvendo-se a 1ª Ré da instância, ou pela total improcedência da acção, com a sua absolvição de todos os pedidos.

O A. respondeu à matéria de excepção, concluindo pela sua improcedência.

O A. ampliou o pedido para € 162 000 (considerada a renda vencida em 31.01.2015),  requerendo, ainda, a condenação da 1ª Ré a restituir-lhe as demais rendas que se vencerem até trânsito da sentença, devidas actualizações e respectivos juros moratórios.

 Foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da matéria de excepção, firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento [no decurso da qual foi proferido despacho, a 02.3.2018, objecto de recurso, admitido como apelação a subir com o recurso da sentença final - cf., nomeadamente, fls. 740 verso, 742 verso, 776 e 939 do processo físico], o Tribunal a quo, por sentença de 11.3.2019, julgou a acção parcialmente procedente, decidindo: condenar as Rés a reconhecerem que os prédios identificados no artigo 33 dos factos provados - e a 2ª Ré apenas relativamente às alíneas D), E) e G) de tal artigo - são baldios e propriedade comunal dos moradores compartes da antiga freguesia (…) e consequentemente a absterem-se de qualquer acto que o ponha em causa; declarar que os prédios em causa foram devolvidos aos Compartes de (...) pela Junta de Freguesia (…); declarar a ineficácia da escritura de justificação notarial identificada nos art.ºs 4 e 5 da factualidade, no que tange aos Compartes, com o consequente cancelamento de qualquer registo (registral ou matricial) efectuado a seu favor com base na mesma escritura; declarar que a 1ª Ré - antes Freguesia (…) - não adquiriu tais prédios por usucapião; condenar a 1ª a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes - 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 - à razão anual de valor não inferior a € 81 000 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos; julgar improcedente o pedido de indemnização ao A. por prejuízos por este sofridos, com honorários e demais despesas a suportar com a constituição de advogado, absolvendo as Rés deste pedido.
Inconformada, a 1ª Ré apelou formulando as seguintes conclusões:

(…)

Remata dizendo que deve revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por decisão que, alterando a decisão da matéria de facto nos termos supra expostos, declare verificada a excepção dilatória de falta dos pressupostos de personalidade e capacidade judiciária do Autor e absolva as Rés da instância; ou declare verificada a excepção dilatória de falta de deliberação de ratificação do recurso a juízo pelo Autor e absolva as Rés da instância; ou, considere a presente acção totalmente improcedente; ou, subsidiariamente, considere improcedente o pedido de condenação da 1ª Ré a entregar/pagar ao A. as rendas que recebeu da 2ª Ré.

O A. respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) relevância da matéria de excepção; c) decisão de mérito, cuja modificação depende, sobretudo, da eventual alteração da decisão de facto; d) pedido de “devolução” das rendas entregues à 1ª Ré.  


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1. A Ré União de Freguesias foi criada por agregação integrando o património (…) “e assumindo todos os direitos e deveres, bem como as responsabilidades legais, judiciais e contratuais das freguesias agregadas” (de (…)), sendo que os artigos matriciais infra estão actualizados em resultado da agregação das freguesias.

2. Correu termos no Tribunal de Resende uma acção ordinária-Proc. 37/03.8TBRSD-A - era Autor a comunidade local de (…), representado por anterior Conselho Directivo de Compartes e Ré a Junta de Freguesia e Outros, na qual o Autor Conselho Directivo pedia, além do mais, que se declarasse que esses terrenos eram baldios, como tal, propriedade comunitária do povo de (…) e que a Junta o reconhecesse e respeitasse esse direito.

3. Nesses autos também o Autor Conselho Directivo peticionava que fosse declarada nula e de nenhum efeito escritura de justificação outorgada em 29.11.2002, no Cartório Notarial de (...) , tendo por objecto os terrenos da presente acção.

4. A Junta de Freguesia de F(…) outorgou no Cartório Notarial de (...) em 18.9.2002 a escritura de justificação notarial lavrada a fls. 79 a 80 do Livro de Notas para escrituras diversas – 38 – D e publicada no Jornal de (...) , editado em 16.01.2003.

5. Nessa escritura a Ré Junta de Freguesia declarou através dos seus representantes: “Que a sua representada não é detentora de qualquer título formal que legitime o domínio dos referidos prédios os quais adquiriu, por compra verbal em data imprecisa no ano de 1975, feita a M (…) e mulher J (…), quanto à verba n.º um; J (…) no estado de viúva, quanto às verbas dois e três; M (…)quanto à verba número quatro e A (…), quanto às verbas cinco e seis, todos no estado de viúvos, residentes A (…), viúva, quanto à verba número dez, residentes que foram no mencionado lugar de (...) e (…), viúvo, residente que foi em (...) , Brasil, quanto às verbas sete, oito e nove, não tendo sido outorgadas as respectivas escrituras de compra e venda, nem as podendo outorgar agora por terem falecido os vendedores.

Que não obstante isso, sempre se têm mantido na posse e fruição dos indicados prédios há mais de 20 anos, cultivando-os, fazendo benfeitorias, pagando os respectivos impostos, administrando-os com ânimo de quem exercita direito próprio, de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente porque sem violência, pública e continuamente, com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja.

Que dadas as enumeradas características de tal posse e domínio adquiriram os mencionados prédios por usucapião, que invocam, em nome da sua representada, justificando o seu direito de propriedade para efeitos da primeira inscrição no Registo Predial, dado que esta forma de aquisição não pode ser comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial”.

6. Essa escritura foi outorgada por A (…) - então Presidente da Junta de Freguesia, hoje Presidente do Autor – (…) - ali Secretário da Junta - e A (…) como Tesoureiro Autárquico - e como testemunhas (…)

7. A Junta de Freguesia (…), em 02.02.2002, deu de arrendamento à sociedade H (…), Lda., para exploração de um parque eólico (aerogeradores), os terrenos inscritos na matriz predial rústica sob os artigos (antigos) 964, 901, 918 e 945.

8. À Ré E (…) S.A. foi cedida a posição contratual de arrendatária e, por alterações do contrato inicial, o parque eólico encontra-se actualmente instalado nos prédios dos artigos actuais números 1889, 1851 e 1627.

9. O arrendamento foi pelo prazo de 20 anos, mediante uma contrapartida de renda referente a cada ano a pagar adiantadamente no mês de Janeiro, na morada da Junta ou por transferência, sendo sujeitas a juros de mora em caso de incumprimento.

10. As rendas são actualizadas, em conformidade com a actualização do valor do tarifário aplicado na venda da energia produzida à rede pública que, à data do contrato, era em função da evolução dos índices do preço ao consumidor.

11. A Junta de Freguesia anterior à agregação - Junta de Freguesia (…) - jamais efectuou o recenseamento dos compartes.

12. A certa altura, em data não concretamente apurada, foi constituída uma Comissão Ad-Hoc de 12 moradores compartes (…), reconhecidos como tal pela comunidade, a qual procedeu à elaboração do recenseamento com base no Caderno de Recenseamento Eleitoral da freguesia (…) que apresentava aí recenseados um número de 125 cidadãos eleitores.

13. A Assembleia dos “Moradores” Compartes foi convocada pela dita Comissão por aviso assinado pelos seus membros (mencionando o dia, a hora, o local da reunião e Ordem de Trabalhos) afixado por editais nos locais do estilo - o placard da Junta de Freguesia e o placard da Igreja - com pelo menos oito dias de antecedência.

14. Tal aviso convocatória estava datado de 11.01.2013 e referia uma reunião da Assembleia de Compartes da freguesia de (…), a realizar no dia 20.01.2013, pelas 10.30 horas, no salão da Junta de Freguesia, com a seguinte ordem de trabalhos: 1° Informação e esclarecimento sobre a legislação dos Baldios. 2° Eleição da Mesa da Assembleia de Compartes e dos órgãos representativos dos compartes da Freguesia para Administração dos respectivos bens comuns. 3° Actualização do recenseamento dos compartes dos Baldios da Freguesia (…). 4° Outros assuntos de interesse para a administração dos bens comuns da Freguesia.

15. Ainda a aludida convocatória informava que a assembleia de compartes reuniria validamente se, à hora marcada estivessem presentes metade mais um dos moradores, maiores, da Freguesia, ou, uma hora depois desde que estivessem pelo menos um quinto dos moradores.

16. Esta Assembleia foi também anunciada nos termos costumados pelo Pároco da Freguesia na missa dominical anterior e na missa dominical do próprio dia de efectivação da Assembleia.

17. Na dita Assembleia o Caderno Provisório de Recenseamento dos Moradores Compartes considerou 88 moradores como possuindo a qualidade de compartes.

18. A Assembleia de Compartes reuniu no dia e hora marcados no aviso convocatório, verificando-se a existência e presença de 49 moradores compartes, os quais aprovaram o Caderno Provisório.

19. E nela procedeu-se à eleição da Mesa da Assembleia de Compartes para dirigir os trabalhos.

20. O Caderno de Recenseamento dos Compartes foi também aprovado na Assembleia de Compartes e devidamente rubricado e assinado pela Mesa da Assembleia, ficando inscritos no Caderno 88 moradores compartes entre o número 1 e 88.

21. A Assembleia dos Moradores Compartes procedeu à eleição dos Órgãos representativos e, de entre eles, o seu Conselho Directivo, por ou conforme Deliberação aprovada por 45 votos a favor e 4 abstenções.

22. O Conselho Directivo (e demais Órgãos) tomaram imediatamente posse.

23. Nessa Assembleia foram aprovados todos os pontos da Ordem de trabalhos, nos termos das deliberações tomadas pela Assembleia de Compartes, uns por unanimidade, outros por larga maioria mas em caso algum com votos contra, sendo que nenhuma das deliberações acima referidas foi objecto de impugnação em prazo útil por quem dispusesse de legitimidade para tal.

24. Entre os assuntos deliberados foi aprovado por unanimidade pela Assembleia dos Moradores-Compartes de (…) dar plenos poderes ao Conselho Directivo para pedir à Junta de Freguesia a devolução dos terrenos baldios, reclamar junto da E (…) S.A., o pagamento das rendas dos terrenos baldios, podendo inclusivamente recorrer às vias judicias e constituir mandatário para defesa dos interesses legítimos da comunidade relativamente a estes baldios.

25. Na sequência o Conselho Directivo foi registado como Entidade equiparada a Pessoa Colectiva do Registo de Pessoas Colectivas com o NIPC (…)

26. A acta de eleição dos órgãos dos compartes, de 20.01.2013, foi lida e aprovada no dia 3 de Fevereiro seguinte, em nova reunião extraordinária da Assembleia dos Moradores Compartes, como Ponto 1 da Convocatória, após a Presidente da Mesa ter procedido à Leitura da dita acta.

27. Esta, após verificação do quórum para deliberar, foi posta à votação, tendo sido aprovada por unanimidade e assinada pela Mesa da Assembleia de Compartes e pelos presentes.

28. O Conselho Directivo dos Moradores Compartes, no uso dos poderes conferidos pela Assembleia dos Moradores Compartes na Acta n.º 1 junta, veio pedir, por escrito, a devolução dos “terrenos baldios” à Junta de Freguesia de (…), com os fundamentos de facto e de direito constante da Acta n.º 5/2013, da reunião extraordinária da Junta de 28.4.2013.

29. A Junta de Freguesia deliberou, por unanimidade devolver os terrenos à Comissão dos Moradores Compartes da Freguesia (…) e o Plenário da Freguesia de (…) e ratificou a devolução aprovada pela Junta, em reunião realizada em 19.5.2013.

30. Por carta registada com aviso de recepção de 14.01.2014, o Conselho Directivo veio pedir à sociedade Ré E (…), S. A., o pagamento da renda a vencer no mês de Janeiro de 2014 com os eventuais acréscimos e actualizações, tendo a sociedade Ré respondido que iria efectuar o pagamento da renda devida à Junta de Freguesia da União das Freguesias.

31. Por carta registada com aviso de recepção de 10.4.2014, o Autor veio solicitar à Ré União de Freguesias a restituição dos valores recebidos das rendas, das actualizações e acertos, mas a não respondeu e tem vindo a receber as rendas, desde data de propositura da acção.

32. A Junta de Freguesia anterior à agregação jamais efectuou o recenseamento dos compartes.

33. Os prédios a seguir identificados: a) rústico composto de mato e terra incultivável, sito à (...) , a confrontar (…) inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…) sob o artigo 1959; b) rústico composto de mato, sito ao x (...) , a confrontar (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias (…) sob o artigo 1727; c) rústico sito à y (...) , a confrontar (…) inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…) sob o artigo 1797; d) rústico composto de mato e terra incultivável, sito ao (...) e (...) , a confrontar (…) , inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias (…) sob o artigo 1627; e) rústico composto de mato, pastagem e terra incultivável, sito ao (...) , (...) , a confrontar (…)  inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…) sob o artigo 1889; f) rústico composto de mato, pastagem e terra incultivável, sito ao (...) , (...) e (...) , a confrontar (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias (…) sob o artigo 1763; g) rústico composto de sequeiro, mato, pastagem e terra incultivável, sito ao (...) , (...) , (...) , (...) , (...) , a confrontar (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…) sob o artigo 1851; h) rústico composto de pastagem, sito à (...) , a confrontar (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…)sob o artigo 751; i) rústico composto de mato, sito ao Entre Caminhos, a confrontar (…), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de (…) sob o artigo 1741; j) rústico composto de mato e terra incultivável, sito ao (...) ou (...) , a confrontar (…) inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias (…) sob o artigo 1641, os quais se encontram inscritos na dita matriz tendo como titular a Assembleia dos Moradores Compartes, desde tempos imemoriais que têm vindo a ser possuídos e fruídos pelos moradores das comunidades locais da freguesia de (…), que neles apascentam gados, recolhem matos e lenhas e exploram águas.

34. Tais factos acontecem há mais de 20, 50, 100 ou 200 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de os utilizarem por direito próprio e exclusivo dos moradores da Freguesia de (…), ignorando lesar direitos de outrem, antes exercendo um direito de proprietários desses baldios, que todos têm considerado propriedade comunal dos moradores da freguesia.

35. Tais prédios vêm sendo administrados, primeiramente pela Junta de Freguesia de (…) e desde finais de 2013 pela Ré União de Freguesias, desde data não apurada em concreto, na ausência, em tempos, da constituição da Assembleia de Compartes, sem embargo do facto fixado em 28 e 29.

36. Nesse exercício de administração, aquela primeiramente e a Ré, após finais de 2013, fizeram limpezas e abriram caminhos, além de terem dado de arrendamento a terceiros, com o consequente reporte a si, das correlativas rendas.

37. A renda em causa, em Janeiro de 2015, era de € 81 000.

2. E deu como não provado:

1. Relativamente aos prédios identificados no artigo 29 dos factos provados, a Ré União de Freguesias anda na posse deles como sua verdadeira proprietária, em nome próprio, dando continuidade à conduta dos anteriores proprietários, na convicção de exercer direito próprio e sem violar direito alheio, agindo de boa-fé, desde pelo menos o ano de 1975 e ininterruptamente.

2. E fazendo tal uso à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

3. Nos prédios em causa a Ré - e sua antecessora - fizeram plantações.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

(…)

            Rematamos, pois, dizendo que o Mm.º Juiz analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede, assim, a pretensão de ver modificada a decisão de facto.

            5. No tocante à decisão intercalar de 02.3.2018, igualmente objecto de impugnação[1], é irrecusável que a mesma não merece a menor censura, pois, ante as provas (então) produzidas nos autos e no decurso da audiência de julgamento - estando em causa a junção de uma cópia de um pretenso contrato-promessa datado de 02.4.2008[2] - e vistas as já assinaladas “circunstâncias” da vida e dos órgãos representativos dos cidadãos moradores da aldeia/povo/freguesia do (...) , não vemos qual o contributo que um tal documento (porventura referente a um dos imóveis indicados em II. 1. 33., supra) pudesse ter para uma diferente e melhor decisão sobre a matéria de facto!

Com todo o respeito, tratar-se-ia de um documento absolutamente irrelevante/desnecessário para o desfecho da presente causa, como, com inteiro acerto, também decorre do despacho recorrido (além da questionada tempestividade na junção): “A solicitação e o deferimento da pretensão [consubstanciada no pedido de requisição de um tal documento] acabava por se traduzir neste momento na realização de mais um meio de prova que o Tribunal não vê qualquer elemento que o justifique neste momento e neste circunstancionalismo dos autos, com toda a prova produzida”.

            Não foram pois violados quaisquer normativos.

            Assim, atento o preceituado nos art.ºs 644º, n.º 3 e 660º do CPC, resta concluir pelo não provimento da impugnação daquela decisão interlocutória, por manifesta improcedência e total irrelevância (da questão) para a decisão final.

6. Nos termos do art.º 1º, n.ºs 1 e 2, da  Lei n.º 68/93, de 04.9[3], são baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais (n.º 1), sendo que, para os efeitos da referida lei, comunidade local é o universo dos compartes (n.º 2). São compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio (n.º 3, do mesmo art.º, na redacção originária).

Os baldios são administrados, por direito próprio, pelos respectivos compartes, nos termos dos usos e costumes locais, através de órgãos democraticamente eleitos (art.º 11º, n.º 1). Os membros da mesa da assembleia de compartes, bem como do conselho directivo e da comissão de fiscalização, são eleitos pelo período de quatro anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções até à sua substituição (n.º 3).

            A assembleia de compartes é constituída por todos os compartes (art.º 14º).

            Compete à assembleia de compartes, nomeadamente: eleger e destituir, em caso de responsabilidade apurada com todas as garantias de defesa, os membros do conselho directivo e os membros da comissão de fiscalização [art.º 15º, n.º 1, b)]; fiscalizar em última instância a actividade do conselho directivo e das entidades em que tiverem sido delegados poderes de administração, e endereçar a um e a outras directivas sobre matérias da sua competência, sem prejuízo da competência própria da comissão de fiscalização [n.º 1, alínea m]; ratificar o recurso a juízo pelo conselho directivo, bem como a respectiva representação judicial, para defesa de direitos ou legítimos interesses da comunidade relativos ao correspondente baldio, nomeadamente para defesa dos respectivos domínios, posse e fruição contra actos de ocupação, demarcação e aproveitamento ilegais ou contrários aos usos e costumes por que o baldio se rege [alínea o), do mesmo n.º 1 e art.º].

            O conselho directivo é composto por três, cinco ou sete membros eleitos pela assembleia de compartes de entre os seus membros pelo sistema de lista completa (art.º 20º, n.º 1); o conselho directivo elege um presidente e um vice-presidente (n.º 2 do mesmo art.º).

            Compete ao conselho directivo, designadamente: dar cumprimento e execução às deliberações da assembleia de compartes que disso careçam [art.º 21º, alínea a)]; recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio e submeter estes actos a ratificação da assembleia de compartes [alínea h)]; representar o universo dos compartes nas relações com entidades públicas e privadas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 16º [alínea i)].      

            7. Considerando, sobretudo, a matéria factual mencionada, primeiro, em II. 1. 33. e 34., e, depois, em II. 1. 12. a 23., 26. e 27., supra, o preceituado nos art.ºs 11º a 15º, 18º, 19º e 33º da Lei dos Baldios (aqui aplicável) e o exposto no ponto que antecede, podemos concluir que estamos perante terrenos baldios (utilizados/usufruídos, durante centenas de anos, como simples “logradouros comuns dos povos”) e, também, pela válida constituição da respectiva assembleia de compartes (válida constituição e funcionamento daquela assembleia constituinte) e do conselho directivo A., pelo que, como se refere na decisão sob censura, dúvidas não restam de que o A. tem personalidade e capacidade jurídica e judiciária, problemática a que, como vimos, a 1ª Ré/recorrente dera especial relevo na p. i. e, depois, em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, sendo certo que o seu conhecimento fora relegado para final, naturalmente, por depender da prova a produzir em sede de instrução e audiência de julgamento.  

Assim, para esta questão, (novamente) suscitada por referência à acção dita em II. 1. 2., supra (e invocando-se a importância que aí teve), ante a factualidade supra referida, apurada na presente acção, jamais poderia resultar decisão adjectiva como a ali proferida (de absolvição da Ré da instância, baseada na verificação das excepções dilatórias de falta de personalidade e capacidade judiciárias do A.)[4] e que, assim, viesse a acolher a perspectiva da 1ª Ré/recorrente.

8. Para além daquela questão atinente à verificação dos principais pressupostos processuais do lado activo, a Ré, na pendência dos autos, veio invocar a inexistência de deliberação da Assembleia de Compartes, no sentido da ratificação do recurso à via judicial, por parte do Conselho Directivo (cf., ainda, as “conclusões 29ª a 33ª”, ponto I., supra).

Para responder a este tema dir-se-á, por um lado, que a matéria dada como provada em II. 1. 24., supra, dá-nos uma perspectiva clara sobre a inexistência de qualquer irregularidade, pela simples razão de que a assembleia (constituinte) de compartes, por unanimidade, conferiu «plenos poderes ao Conselho Directivo para pedir à Junta de Freguesia a devolução dos terrenos baldios, reclamar junto da Empresa E (…) S. A., o pagamento das rendas dos terrenos baldios, podendo inclusivamente recorrer às vias judicias e constituir mandatário para defesa dos interesses legítimos da comunidade relativamente a estes baldios

Por conseguinte, não vemos como seja possível configurar qualquer violação ao preceituado nos art.ºs 15º, n.º 1, alínea o) e  21º, alínea h), da Lei dos Baldios, pela simples razão de que - como se afirma e cita (o A.) na decisão recorrida - existindo tal decisão prévia da Assembleia de Compartes, não é necessária nem em rigor possível uma ratificação da decisão do Conselho Directivo, nos termos da parte final da al. h) do art.º 21º, pois a ratificação só faz sentido para os casos em que Assembleia de Compartes ainda não deliberou sobre essas questões; não faz sentido considerar-se que o órgão com competência para deliberar o recurso à via judicial, o haja feito e tenha de vir, posteriormente, ratificar a sua própria decisão ou deliberação, tomada no âmbito da sua competência (pois ratificar é confirmar, validar, não carecendo de tal ratificação os actos de execução de uma anterior deliberação do mesmo órgão).

Acresce que a actual Lei dos Baldios (Lei n.º 75/2017, de 17.8), no seu art.º 24º, n.ºs 1, alíneas q) e r) e 2, estabelece que a assembleia de compartes tem competência para, por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes, deliberar o recurso a juízo pelo conselho directivo para defesa de todos os direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários, bem como dos direitos da comunidade de compartes decorrentes dos actos de gestão dos imóveis comunitário, cabendo-lhe também ratificar os actos da sua competência reservada se o conselho directivo os tiver praticado sem autorização com fundamento em urgência. E é da competência do conselho directivo, nomeadamente, dar cumprimento e execução às deliberações da assembleia de compartes (art.º 29º, n.º 1, alínea a)) e, em caso de urgência, recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios e submeter estes actos a ratificação da assembleia de compartes (alínea h)).

Ou seja, se dúvidas houvesse, seriam as mesmas dissipadas pelo quadro normativo hoje vigente e que nos dá a melhor interpretação para a situação dos autos.

Por conseguinte, não se verifica a excepção dilatória prevista na alínea d) do art.º 577º do CPC - falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter.

9. A 1ª instância condenou a 1ª a restituir ao A. a renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes (2015 a 2019), à razão anual de valor não inferior a € 81 000 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos.

Quanto a esta parte, expendeu-se, nomeadamente, que a Junta de Freguesia de (…), em 02.02.2002, deu de arrendamento à sociedade H (…), Lda., para exploração de um parque eólico, determinados terrenos baldios, sendo que à 2ª Ré foi cedida a posição contratual de arrendatária; tal arrendamento foi dado pelo prazo de 20 anos, mediante uma contrapartida anual a pagar no mês de Janeiro, com a renda, em Janeiro de 2015, a ascender a € 81 000; foi ainda decidido que cabe à 1ª Ré restituir ao A. a importância da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e, por via da ampliação do pedido, as vencidas até ao momento e vincendas.

Partindo do alegado nos art.ºs 31º e 32º da p. i.[5], diz a Recorrente que o A. invocou como causa de pedir ter passado a ocupar “a posição de cedente no contrato de arrendamento”, e que essa cedência não se provou, devendo antes considerar-se, apenas, a matéria mencionada em II. 1. 7., supra; por outro lado, refere que não terá de entregar tais quantias a título de enriquecimento sem causa, porquanto não foi essa a causa de pedir invocada pela Ré nos autos e este instituto tem natureza subsidiária (art.º 474º do CC) - não havendo lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído -, razão pela qual o A. sempre poderá interpor contra a 1ª Ré uma acção sustentando que o referido contrato de arrendamento é inválido ou ineficaz, peticionado um indemnização pelos supostos danos causados pela celebração e execução de tal contrato.

Daí, segundo a recorrente, a pretensão do A. de que fosse condenada a entregar-lhe o valor das rendas em questão deveria ter sido julgada improcedente.

10. A resposta a esta matéria não é isenta de dificuldades, maxime, face às vicissitudes (sucessões, “transmutações” e modificações…) verificadas nas entidades autárquicas e comunitárias, supra referidas, representativas da comunidade local e com competência (pelo menos, de facto) para a administração/gestão dos terrenos baldios, e sua interligação - por vezes, em (aparente) oposição e, noutras, em estreita “colaboração”… -, dando azo a imbróglios a que a lei (estadual), que não poderá contemplar todas as hipóteses nem suspender o dinamismo histórico-social (“sempre os casos serão mais do que as leis”…)[6], dificilmente poderá por cobro, porque a realidade e alguns dos interesses das hodiernas comunidades rurais escaparam ao que nela se prevê… (cf., nomeadamente, II. 1. 1., 2., 3., 4., 5., 6., 7., 9., 10., 24., 28., 29., 30., 31., 35. e 36., supra).

11. Na redacção original da Lei n.º 68/93, estatuía-se nos seus art.ºs 34º, 35º e 36º:

Os baldios que, por força do disposto no art.º 3º do DL n.º 39/76, de 19.01, foram legalmente devolvidos ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, e que ainda o não tenham sido de facto, sê-lo-ão logo que, constituída a respectiva assembleia de compartes, esta tome a iniciativa de promover que a devolução de facto se efective (art.º 34º, n.º 1, sob a epígrafe “devolução não efectuada”). Os aspectos da devolução não regulados na presente lei e nos respectivos diplomas regulamentares serão, na falta de acordo, dirimidos por recurso ao tribunal comum, nos termos do art.º 32º (n.º 2).

Os arrendamentos e as cessões de exploração de baldios, nomeadamente para efeitos de aproveitamento florestal, em curso à data da entrada em vigor da presente lei, que tenham sido objecto de ajuste com órgão representativo da respectiva comunidade local, ou de disposição legal, continuarão nos termos ajustados ou prescritos até ao termo fixado ou convencionado, em qualquer caso não superior ao limite temporal fixado no n.º 4 do art.º 10º[7] (art.º 35º, n.º 1, referente a “arrendamentos e cessões de exploração transitórios”).

A administração de baldios que, no todo ou em parte, tenha sido transferida de facto para qualquer entidade administrativa, nomeadamente para uma ou mais juntas de freguesia, e que nessa situação se mantenha à data da entrada em vigor da presente lei, considera-se delegada nestas entidades com os correspondentes poderes e deveres e com os inerentes direitos, por força da presente lei, e nessa situação se mantém, com as adaptações decorrentes do que nesta lei se dispõe, até que a delegação seja expressamente confirmada ou revogada nos novos moldes agora prescritos (art.º 36º, n.º 1, com a epígrafe “administração transitória”). Finda a administração referida no número anterior, haverá lugar a prestação de contas, nos termos gerais, pela entidade gestora (n.º 2). As receitas líquidas apuradas serão distribuídas nos termos eventualmente previstos no acto de transferência ou em partes iguais pela entidade gestora e pela comunidade dos compartes (n.º 3).

            12. Podendo-se concluir que foi intenção do legislador preservar a vigência e a validade dos contratos que tenham sido celebrados pelas entidades que (em princípio) deviam proceder à devolução de facto dos baldios às comunidades locais (assim, in casu, passando a figurar, do lado activo, o A., numa cedência da posição contratual ope legis), e sendo por demais evidente que na situação dos autos não existiu qualquer “assalto” à administração e gestão dos terrenos baldios por parte da Autarquia Local (cf., v. g., II. 1., 6., 7. e 35., supra), afigura-se, ao contrário do decidido em 1ª instância, que se impõe a prestação de contas por parte da 1ª Ré, nos termos gerais (art.ºs 941º e seguintes do CPC), com vista a apurar o saldo que deverá entregar ao A., atentos os critérios fixados na lei[8] e as particularidades do caso vertente, inclusive, a forma como, nas respectivas comunidades locais, foram aplicadas as receitas geradas pelo contrato dito em II. 1. 7. a 10., supra, o que se desconhece.

13. Procedem, assim, parcialmente, com os referidos fundamentos, as “conclusões” da alegação de recurso, no tocante ao pedido de “devolução” das rendas entregues à 1ª Ré.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso da decisão intercalar e em revogar parcialmente a sentença recorrida, na parte em que condenou a 1ª Ré “a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes - 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 - à razão anual de valor não inferior a € 81 000 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos”, cujo valor, a entregar pela 1ª Ré ao A., deverá ser apurado como se indica em II. 11. e 12., supra, mantendo-se no mais o decidido.

Custas do recurso intercalar pela 1ª Ré e as do recurso principal pelo A. e pela 1ª Ré/recorrente, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, sendo que aquele goza do benefício do apoio judiciário (e da isenção prevista no art.º 16º, n.º 5 da Lei n.º 75/2017, de 17.8).


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22.10.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


[1] Tendo-se concluído: «1ª - Durante a audiência de julgamento, a Ré União de Freguesias requereu que se oficiasse - entenda-se fosse requisitado, nos termos do art.º 436º do CPC - às “(…) S. A.”, para juntar aos autos o acordo amigável de expropriação, e a forma de pagamento do valor acordado./ 2ª - O Tribunal, ao ser confrontado com um requerimento de uma das partes para notificação da parte contrária ou de terceiros para juntarem documentos, deve apreciá-lo no âmbito do regime da requisição de documentos regulado no art.º 535º do CPC e no uso do seu poder-dever ali consignado, deferindo-o ou indeferindo-o em função da sua necessidade para o esclarecimento da verdade./ 3ª - O Tribunal a quo consignou que a Ré apenas chegou ao conhecimento da existência de tais documentos naquele momento, mas indeferiu a requisição dos documentos uma vez que entendeu que seriam referentes a um contrato-promessa não sabia sequer se existia, pelo que, o Tribunal a quo entendeu que apesar de tempestivo e de abstractamente ser possível o deferimento, a requisição dos documentos não seria útil para o esclarecimento da verdade, tendo o Tribunal a quo decidido indeferir o referido requerimento./ 4ª - Contudo, o objecto da presente acção consiste, nomeadamente, em saber quem é o proprietário dos prédios indicados nas alíneas a) a j) do art.º 23º da base instrutória, sendo que o prédio antigamente inscrito na matriz sob o art.º 945º da freguesia de (…)e, actualmente, inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 1851º, da União das Freguesias de (…), corresponde ao prédio constante da alínea g), do art.º 23º da Base Instrutória./ 5ª - Pelo que, tendo-se tomado conhecimento de que tal prédio foi expropriado, mediante acordo amigável, pelas “(…) S. A.”, importa saber quais foram os termos desse acordo de expropriação. Desde logo, é manifestamente útil para a descoberta da verdade saber quem figurou no referido acordo de expropriação como entidade expropriada (ou seja, como proprietário e possuidor) e quais os valores que foram efectivamente pagos e a quem./ 6ª - É que - se o Autor diz que eram os compartes quem tinha a posse do referido terreno e, por seu lado, a Ré União de Freguesias sustenta que adquiriu tal terreno, sobre o qual tem posse, desde 1975 - importa saber quem efectivamente praticou o acto de disposição, ou o acto de posse tendente a tal disposição (contrato-promessa), tendo como objecto o terreno em questão./ 7ª - Atente-se que a expropriação amigável, mesmo que inicialmente por contrato-promessa, implica geralmente a transmissão da posse, sendo que só pode transmitir a posse de um imóvel a outrem quem a tem no momento em que a transfere./ 8ª - Pelo que a requisição de tais documentos junto da entidade expropriante é manifestante necessária para a descoberta da verdade./ 9ª - Assim, sendo a requisição de tais documentos necessária para a descoberta da verdade, no despacho de que se recorre, o Tribunal a quo deveria ter deferido o requerimento da Recorrente e ter requisitado à entidade expropriante “(…) S. A.” que juntasse ao presente processo o acordo amigável de expropriação referente ao prédio em questão, bem como a forma de pagamento do valor acordado./ 10ª - Ao não ter deferido o requerimento da Recorrente e não ter requisitado os referidos documentos, o Tribunal a quo violou, nomeadamente, o previsto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 436º, do CPC, devendo, assim, o despacho ser revogado e substituído por outro que, considerando a requisição de tais documentos necessária para a descoberta da verdade, defira o requerimento da Recorrente e ordene que se requisite à “A (…), S. A.” que junte ao presente processo o acordo amigável de expropriação referente ao prédio em questão, bem como a forma de pagamento do valor acordado, referentes ao prédio antigamente inscrito na matriz sob o art.º 945º da freguesia (…) e, actualmente, inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 1851º da União das Freguesias (…).»
[2] Tratar-se-ia do documento reproduzido a fls. 754, junto pela 1ª Ré com o seu requerimento de 23.3.2018.
[3] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[4] Cf. os acórdãos da RP de 05.01.2010-processo 37/03.8TBRSD.P1 [assim sumariado: «I - Tal como já resultava da anterior Lei dos Baldios (DL 39/76, de 19 de Janeiro, art.° 30 n.° 2) também face á actual Lei 68/93, para que se verificasse a devolução dos baldios
à administração e gestão dos compartes é necessário que se constituísse a respectiva assembleia constituinte.
II - Mas para que esta assembleia de compartes se pudesse reunir pela primeira vez, em assembleia constituinte, era necessário que, previamente, se tivesse elaborado um recenseamento provisório dos compartes ou houvesse documento que o substituísse. (…)/ V - Este vício (inexistência jurídica) dos actos e negócios jurídicos sendo equiparável à nulidade, além de ter sido invocado pela parte a quem aproveita, é do conhecimento oficioso do tribunal a todo o tempo e pode ser declarado na sua totalidade, ou seja, relativamente a todos os órgãos de administração dos baldios em apreço, por força do disposto no art.° 286° do CC, isto é, não obstante a acção ter sido apenas intentada pelo pretenso conselho directivo.»] e do STJ de 23.9.2010-processo 37/03.8TBRSD.P [tendo-se concluído: «(…) IV - (…) “o Conselho Directivo é uma emanação da Assembleia de Compartes; o seu órgão executivo”. É ao dito Conselho que, ex vi legis, cabe propor as pertinentes acções em juízo in nomine da comunidade ou, na expressão legal, “recorrer a juízo e constituir mandatário para a defesa dos direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio”. (…)/ VI - Como quer que seja, tanto a personalidade judiciária como a capacidade judiciária requerem a constituição válida da pessoa ou da entidade que em nome da pessoa, figura como parte na lide e a falta de qualquer destes pressupostos de validade de instância conduz ao mesmo resultado, isto é, à absolvição do Réu da instância, nos temos do art.º 288º, nº 1, alínea c) do CPC.»], proferidos nesses autos e publicados no “site” da dgsi.

[5]31º - Com a devolução dos baldios ao A. pela Junta de Freguesia (…), considerou-se revogada a administração daquela - art.º 36º da L.B.// 32º - Tendo o A. ocupado a posição de cedente no contrato de arrendamento e entregue à sociedade Ré as Actas da constituição da Assembleia de Compartes, da devolução dos terrenos pela Junta e demais documentação que comprovava a transição da posição contratual para o A..”
[6] Vide A. Pinto Monteiro, Interpretação e o protagonismo da doutrina, in RLJ, 145º, pág. 71.
[7] Que reza o seguinte: “A cessão de exploração, nos termos dos números anteriores, pode efectivar-se por períodos até 20 anos, sucessivamente prorrogáveis por períodos até igual tempo.”
[8] Vide Jaime Gralheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, págs. 198 e seguinte.