Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
196/21.8T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO FUNDADA EM SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DE ACORDO DE PARTILHA
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
APROVEITAMENTO DE ACTOS PROCESSUAIS JÁ PRATICADOS
PROMESSA DE DOAÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 828.º, 829.º-A E 830.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 10.º; 186.º E SEG.S; 193.º; 551.º, 2; 703.º, 1, A); 726.º, 1, A); 729.º, A); 868.º, 1 E 874.º, 1, DO CPC
Sumário: 1. - Em caso de erro na forma de processo, no campo das nulidades processuais, mesmo imperando o princípio do máximo aproveitamento possível dos atos/processado, é líquido não poder aproveitar-se qualquer ato praticado de que resulte diminuição de garantias de defesa do demandado.
2. - São ainda configuráveis, por possíveis, situações de inidoneidade/inadequação absoluta da forma processual utilizada, âmbito em que a nulidade processual daí decorrente, de conhecimento oficioso, ocasiona a extinção da instância, por se tratar de um vício insanável.

3. - É o que ocorre quando se intenta execução para prestação de facto positivo infungível e se pede que seja proferida sentença que substitua a declaração negocial da contraparte, de modo a operar a transmissão para os exequentes do direito de propriedade sobre os bens que a contraparte/executado se recusa a doar mediante declaração formal para tanto.

4. - Intentada tal execução, tendo como título sentença homologatória de acordo de partilha, proferida em inventário subsequente a divórcio, constando do acordo de partilha que determinados bens “serão doados” a dois filhos (os exequentes) dos interessados, mas nada constando na sentença homologatória em matéria de doação – por apenas ali se ter homologado a partilha e adjudicado os bens em conformidade –, inexiste qualquer condenação no respeitante a obrigação de doar, que pudesse ser executada.

5. - Vista a natureza obrigacional do acordado nesta parte, e por a sentença ser omissa a respeito, ocorre promessa de doação, que configura uma assunção, em decorrência, de obrigação mediata de doar, através da celebração do negócio (prometido) de doação.

6. - Tratando-se de facto/prestação infungível, afastado sempre ficaria o recurso à execução para prestação do facto positivo (específico e pessoal) da outorga da pretendida doação, apenas tendo os exequentes o direito a ser indemnizados pelos danos resultantes do não cumprimento da prestação/promessa.

7. - Pretendendo os exequentes uma sentença declarativa de transmissão do direito dominial, isto é, que seja o tribunal da execução a substituir o executado perante a sua recusa de outorga da transmissão, tal nunca poderia ocorrer na ação executiva para prestação de facto, mas apenas em ação declarativa de execução específica.

8. - Reconhecida a admissibilidade do contrato-promessa de doação, não é, porém, permitida a respetiva execução específica, por a tal se opor a natureza da obrigação assumida.

9. - No caso, ocorre inviabilidade da execução, seja por não ser admissível a execução específica, seja por inadmissibilidade da execução para prestação de facto positivo infungível direcionada para a obtenção da declaração negocial do faltoso (proceder à doação dos bens, mediante declaração negocial formal), havendo erro insuperável na forma de processo e falta de título executivo bastante.

10. - Pedida ainda a aplicação de sanção pecuniária compulsória, a fixar na execução, também nesta parte inexiste título executivo bastante, por estar ainda em causa a obrigação/promessa de doação e a sentença dada à execução não conter condenação – ou sequer simples alusão – à matéria de doação, apenas mencionada no acordo de partilha.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA e BB, com os sinais dos autos,

intentaram execução para “Prestação de facto” ([1]), fundada em sentença homologatória de acordo de partilha ([2]), proferida em autos de inventário na sequência de divórcio de seus pais, CC e DD,

contra aquele CC, também com os sinais dos autos,

alegando, no essencial, que:

- foram adjudicados, através de tal sentença homologatória, ao aqui Executado um estabelecimento comercial e um prédio urbano, devidamente identificados, dos quais, por isso, aquele se tornou proprietário;

- consta da cláusula 5.ª do acordo de partilha que «Pelos cabeça de casal e requerente foi ainda dito que os bens Imóveis e estabelecimento comercial que ora lhes foram adjudicados e atribuídos serão pelos mesmos doados aos seus filhos maiores, BB e AA, ficando os Interessados com os respectivos usufruto»;

- porém, o Executado não cumpriu a obrigação imposta naquela cláusula 5.ª, no sentido de doar aos seus ditos filhos o estabelecimento e o imóvel mencionados, não obstante interpelado para tanto, entendendo os Exequentes que o prazo de dez dias úteis é suficiente para o Executado cumprir a obrigação a que foi condenado.

Formularam, por isso, as seguintes pretensões (neste âmbito executivo):

a) Ser «fixado o prazo de 10 dias uteis para que o executado cumpra a sua obrigação de doação para com os exequentes, marcando a escritura publica de doação com reserva de usufruto ou documento autenticado com a mesma validade jurídica, em dia, local e hora que lhe for mais conveniente»;

b) Ser «o devedor (ora executado) citado para, em 20 dias, dizer o que lhe oferecer, e que o aludido prazo de 10 dias uteis seja fixado judicialmente»;

c) Requerendo ainda, «ao abrigo do disposto no artigo 868.º, n.º 1, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória pelo período de tempo correspondente ao incumprimento por parte do executado», com fixação do montante de diário de € 300,00;

d) Mais requerendo, «se no aludido prazo o executado não cumprir com a sua obrigação [de] marcar a escritura publica de doação com reserva de usufruto ou documento autenticado com a mesma validade jurídica a favor dos exequentes, (…) seja proferida sentença que substitua a declaração negocial do executado operando a transmissão para os exequentes de tais bens, declarando-se a transmissão a favor dos mesmos, do direito de propriedade de tais bens» ([3]).

Juntaram certidão dos aludidos autos de inventário para partilha de bens na sequência de divórcio, de que consta o mencionado acordo (cláusula 5.ª incluída), bem como sentença homologatória, esta nos seguintes essenciais termos:

«Nestes autos de inventário (…), homologo pela presente sentença a partilha que antecede, adjudicando os bens em conformidade com a mesma, nos termos do disposto nos artigos 1353.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.».

Por decisão judicial datada de 02/07/2023 (a aqui recorrida) foi entendido estarem verificados erro na forma de processo – por, no essencial, a execução específica (de promessa de doação) dever seguir a forma de ação declarativa, em vez de executiva, não sendo possível o aproveitamento de qualquer ato processual – e, bem assim, manifesta falta de título executivo (por a sentença homologatória não configurar título bastante), razão pela qual se formulou o seguinte dispositivo:

«Face a tudo o exposto, julgo procedente a excepção dilatória de erro na forma do processo e, em consequência, absolvo o executado da instância, e em consequência declaro extinta a instância, tudo nos termos do disposto nos artigos 193.º, n.º 2, 196.º, 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b), e 578.º, todos do Código de Processo Civil.» ([4]).

Inconformados, recorrem os Exequentes, apresentando alegação, onde formulam as seguintes

Conclusões ([5]):

«A) A douta sentença recorrida deve ser revogada, porque nela se fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do Direito.

O erro na forma do processo é numa nulidade processual, não é uma excepção dilatória.

B) A douta sentença que ora se recorre julgou procedente a excepção dilatória de erro na forma do processo e, em consequência, absolveu o executado da instância, e em consequência declarou extinta a instância, tudo nos termos do disposto nos artigos 193.º, n.º 2, 196.º, 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b), e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

C) Tal a nulidade é de conhecimento oficioso nos termos dos artigo 193.º e 196.º do Código de Processo Civil, nem tal vício teria como consequência a absolvição da instância do réu (o artigo 193.º do Código de Processo Civil determina que se mande observar a forma correcta, repetindo-se os actos necessários para que o processo se ajuste àquela forma), nem tal vício existe sequer.

D) O erro na forma de processo é um vício que se encontra definido e regulado na secção das nulidades processuais. Enquanto nulidade possui um regime próprio consagrado no artigo 193.º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.

E) Trata-se, portanto, em primeiro lugar de um vício sanável através da prática dos actos necessários à recondução do processo à forma adequada, sanação essa que só será inviável nos casos em que face às especificidades da forma adequada e da forma até aí seguida não seja possível aproveitar os actos já praticados.

F) Depois, trata-se de um vício que, excepto quando for insanável, não determina a nulidade de todo o processo uma vez que nos termos expressos do n.º 1 do artigo 186.º do Código de Processo Civil esta só ocorre quando for inepta a petição inicial. Por conseguinte, o erro na forma de processo também não é uma excepção dilatória, em cujo elenco se inclui de facto a nulidade de todo o processo (artigo 577.º, alínea b) do Código de Processo Civil) mas no que, como vimos, não está compreendido o erro na forma de processo.

G) A forma de processo é o modo específico como o legislador definiu o modelo e os termos dos actos a praticar e dos trâmites a observar pelas partes e pelo tribunal com vista à aquisição adequada dos elementos de facto e de direito que permitem decidir uma determinada pretensão, podendo assim definir-se como a configuração da estrutura de actos e procedimentos a que deve obedecer a preparação e julgamento de determinado litígio.

H) Na enunciação dos factos que executado apresentou na oposição à execução por meio de embargos, apresentada à luz do disposto no n.º 2 do art. 868.º do Código de Processo Civil, foram apresentados pelo mesmo argumentos que afastam a versão dos exequentes apresentada na exposição dos factos da execução.

I) Que em suma, refere o executado: - Nunca aceitou tal doação, nem nunca deu quaisquer instruções nesse sentido à mandatária que o acompanhou naquela diligência, que não era o seu Advogado. HOUVE ERRO, na interpretação da vontade real do executado/oponente, levada á sua revelia na ata da conferência. - Existe assim, divergência entre os sentidos –querido, declarado e percebido- sendo assim o negócio é anulável – Artigo 247º do Código Civil. Pois dúvidas não há que existe erro na interpretação do declarado e querido pelo oponente, entre a sua vontade e o que ficou plasmado na aludida ata de conferência, que não reflete a sua vontade real de transacionar. - O título dado à execução é anulável, pelas razões supra expostas e por na realidade não corresponder à vontade do executado/oponente, a qual não ficou expressa, por erro manifesto de interpretação, daquilo que queria transacionar em tal processo de inventário. - Terminando pedindo que a oposição, fosse recebida e julgada procedente e provada e consequentemente determinar-se a extinção da presente ação executiva, tudo com as legais consequências.

J) A oposição à execução configura uma verdadeira acção declarativa enxertada na acção executiva, que segue os termos do processo sumário, aparecendo o executado/opoente/embargante como “autor” e o exequente como “réu”, observando-se a regra geral de repartição do ónus da prova consignada no artº 342º do CC.

K) Pelo que in casu, é inequívoco podem aproveitar-se os atos já praticados, dado não qualquer diminuição de garantias do réu, no presente caso Executado, tendo em conta os embargos apresentados pelo mesmo, a serem apreciados na tal acção declarativa enxertada na acção executiva.

L) As garantias do executado estão assim perfeitamente asseguradas, quando forem apreciadas nos embargos por si instaurados.

M) Nessa medida, podemos concluir pela inverificação da nulidade processual do erro na forma do processo e pela necessidade de revogar a decisão recorrida.

N) Decidindo como decidiu, neste particular, a decisão a quo viola o disposto no artigo 193º, nº 1 do C. P. Civil.

Pelo exposto, deverá julgar-se o recurso procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos segundo a forma de processo que lhe foi atribuída pelos exequentes

Por tudo o que se deixou exposto, terá de ser julgado procedente, nesta parte, o recurso interposto pelos Recorrentes.

Se assim não se entender, sem prescindir:

Quanto ao erro na forma de processo

O) No caso vertente interpretados os factos temos que, pela sentença declarativa, ao Recorrido/executado foi imposto o dever de doar aos seus filhos (recorrentes/exequentes) os bens Imóveis e estabelecimento comercial que lhes foram adjudicados e atribuídos em ação de inventário, ficando o mesmo com os respectivo usufruto.

P) De acordo com a cláusula 5.ª do acordo de partilha, o executado obrigou-se a doar, os referidos bens aos exequentes, ficando com o usufruto dos mesmos.

Q) Com aceitação de tal clausula o executado/recorrido pretendeu, inequivocamente, dispor gratuitamente de tais bens a favor dos donatários seus filhos, ora recorrentes/exequentes.

R) Houve assim da sua parte, intencionalmente, um espírito de liberalidade traduzida pela generosidade ou espontaneidade da entrega de tais bens aos seus filhos, ora recorrentes.

S) Resultando assim, do teor da aludida clausula 5ª, uma clara intenção de Atribuição patrimonial sem contraprestação à custa do património do doador/executado, com o consequente enriquecimento do património dos exequentes.

T) O Executado não cumpriu essa obrigação imposta na cláusula 5.ª do acordo de partilha. O executado não efetivou, nem se dispôs a efetivar, a doação aos seus filhos BB e AA dos aludidos bens.

U) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra que a esta obrigação esteja inerente qualquer promessa de doação, mas pura e simplesmente uma obrigação de doação, não resultando do teor do acordo de partilha dado à execução qualquer clausula nesse sentido (de promessa de doação).

V) Pretendem os exequentes, no pós sentença, receber por doação os identificados bens, como concedido no acordo de partilha e respectiva sentença que o homologou.

W) O executado violou a sua obrigação de doar tais bens aos seus filhos, recusando-se a fazê-lo.

X) O tempo verbal utilizado – “serão doados” – em nada altera a intenção subjacente e atinente na referida clausula da obrigação de doar a que o executado se vinculou ao aceitar tal clausula.

Y) Muito menos, houve da parte dos exequentes/recorrentes qualquer entendimento que a clausula em apreço consubstanciava uma promessa de doação ao efetuarem o pedido alternativo de “se no aludido prazo o executado não cumprir com a sua obrigação marcar a escritura publica de doação com reserva de usufruto ou documento autenticado com a mesma validade jurídica a favor dos exequentes …, seja proferida sentença que substitua a declaração negocial do executado operando a transmissão para os exequentes de tais bens, declarando-se a transmissão a favor dos mesmos, do direito de propriedade de tais bens.”

Z) Fizeram, sempre no pressuposto que existia por parte do executado uma obrigação de doar, perfeitamente assumida pelo mesmo.

AA) O que pretendiam com tal pedido alternativo é pura e simplesmente uma sentença a declarar a transmissão de tais bens a favor dos mesmos, esta intenção manifestada neste pedido, em nada abada a convicção de que para os mesmos existia uma obrigação de doar, nunca tendo sequer vislumbrado existir eventualmente uma promessa de doação, não o fizeram com esse entendimento, como resulta claramente da exposição dos factos relatados na execução.

BB) Sendo assim, tal obrigação de doar que o executado assumiu na clausula 5ª do acordo de partilha, inequivocamente susceptível de execução. E daí a execução.

CC) A situação jurídico-factual relatada nos presentes autos legitima os exequentes, no âmbito da execução para prestação de facto, na perspetiva de prestação de facto positivo.

DD) Nesta vertente, porque o direito dos exequentes apenas se concretiza pela prática de um facto positivo: a doação.

EE) O caso dos autos é desta obrigação paradigmático, pois que aos exequentes assiste jus o direito de receber os aludidos prédios por doação.

FF) E é isto, para além do mais, que os exequentes pedem na execução.

GG) Os autos relatam que não foi realizado o facto, a obrigação de doação.

HH) Na execução para prestação de facto, atende-se ao regulado nos art.ºs 868º a 877º do CPC (normas especiais) e, subsidiariamente, ao regime da execução para pagamento de quantia certa (art.º 551º, n.º 2 do CPC).

II) Se o prazo para conclusão da prestação ainda não estiver fixado, deve iniciar-se a execução pelo incidente de fixação judicial de prazo na própria execução. Nesta fase, o exequente indica o prazo que reputa suficiente (para realizar a prestação) e o executado é citado para, em 20 dias, deduzir oposição à execução e dizer o que se lhe oferecer sobre o prazo (n.ºs 1 e 2 do art.º 874º).

JJ) Fixado o prazo pelo juiz, e se o executado não prestar a facto dentro desse prazo, iniciar-se-á então uma segunda fase, admitindo-se que o executado venha novamente deduzir oposição à execução com fundamento na ilegalidade do pedido da prestação por outrem ou em qualquer facto ocorrido posteriormente à citação para o incidente da fixação de prazo, do art.º 874º, n.º 1, v. g., um facto extintivo, e que, nos termos dos art.ºs 729º e seguintes seja motivo legítimo de oposição (n.º 2 do art.º 875º do CPC).

KK) Sendo precisamente isto que os exequentes pretendem com a presente execução.

LL) Pretendendo os Exequentes, beneficiários da aludida sentença condenatória, transitada em julgado, a qual consubstancia indiscutivelmente título executivo (art. 703º, n.º 1, al, a) e 704º, n.º 1 do CPC), obter a execução coerciva da prestação do aqui recorrido/executado, que foi condenado, em definitivo, e consistente na obrigação de doar, os referidos bens aos seus filhos, ficando com o usufruto dos mesmos, assim condenado o ora executado por sentença homologatória do acordo de partilha.

MM) Com esse desiderato os exequentes instauraram (e bem) contra o executado nos presentes autos executivos, a presente execução para prestação de facto positivo, começando por requerer que se fixasse prazo de dez dias uteis para que o executado prestar aquela prestação exequenda.

NN) Note-se que a execução para prestação de facto pode ter por objeto a prestação de um facto positivo ou negativo (art. 10º, n.º 6 do CPC), isto é, o seu objeto pode consistir em fazer algo – um determinado facto “um facere” –, caso em que a execução será para prestação de facto positivo, ou um “non facere”, em que a prestação de facto traduz-se numa “abstenção, omissão ou mera tolerância”, caso em que a execução será para prestação de facto negativo, a que se reportam as normas do art. 876º e 877º do CPC.

OO) É apodíctico que consistindo a obrigação exequenda nos autos, em função do título executivo dado à execução (a sentença condenatória já identificada, transitada em julgado) e também do pedido formulado pelo exequente/apelado (pedido este que, adiante-se desde já, está em consonância com o enunciado título executivo em que se esteira a presente execução) a obrigação do executado de coercivamente doar os aludidos bens aos seus filhos, ora recorrentes, que a presente execução é para prestação de facto positivo.

PP) Nesse caso, como é o presente, em que na sentença condenatória que serve de título executivo à presente execução, não se encontra fixado o prazo para o executado doar os bens aos exequentes, o exequente deverá indicar no requerimento executivo o prazo que reputa suficiente para que o facto seja prestado e requerer que o mesmo seja fixado judicialmente logo que os executados sejam citados para, no prazo de vinte dias, dizerem o que lhe oferecer quanto àquele prazo e/ou para, querendo, deduzirem oposição à execução (art. 874º do CPC).

QQ) Neste caso, a ação executiva começa pelas diligências prévias tendentes à determinação judicial desse prazo, sob pena de inexequibilidade, cumprindo ao juiz, uma vez realizadas as diligências necessárias à fixação desse prazo, fixá-lo (n.º 1 do art. 875º do CPC), assistindo aos executados o direito a realizar a prestação dentro daquele prazo.

RR) Fixado esse prazo, ou os executados cumprem com a prestação dentro do mesmo e finda a execução, ou caso não a cumpram e sendo a prestação incumprida de facto positivo de natureza fungível, segue-se o regime jurídico supra explanado enunciado nos arts. 868º a 873º do CPC (n.º 2 do art. 875º do CPC), o qual, como se disse, confere ao exequente o direito a optar: a) pelo cumprimento da prestação exequenda por terceiro (execução específica), acrescida da indemnização pela mora, isto é, pelos prejuízos que sofreu em consequência direta e necessária do atraso no cumprimento, isto é, no período que se estende desde ao termo do prazo fixado judicialmente para que aqueles prestassem a obrigação exequenda ao exequente e o momento temporal concreto em que esta acaba por lhe ser prestada pelo terceiro, a quem se recorreu para o efeito; ou b) pela indemnização pelos danos sofridos por ter ficado sem a prestação a que tinha direito.

SS) No caso, os exequentes instauraram a execução requerendo que fosse fixado em dez dias o prazo para o executado, lhes prestar a obrigação exequenda de prestação de facto positivo, de natureza infungível, fixada na sentença condenatória transitada em julgado, que serve de título executivo à presente execução, consistente na obrigação de doação para os exequentes, mediante a outorga de escritura publica de doação.

TT) É certo que em função do título executivo dado à execução, isto é, da sentença homologatória e condenatória de acordo de partilha, transitada em julgado, o executado, foi condenado na obrigação exequenda de doar aos seus filhos os identificados bens.

UU) É indiscutível que o executado não prestou a obrigação exequenda.

VV) Atento os motivos expostos, é inequívoco que inexiste nos presentes autos erro na forma do processo.

Quanto à falta manifesta de título executivo

WW) Refere ainda a douta sentença que ora se recorre: “Por outra parte, resta acrescentar que, caso inexistisse erro na forma do processo, sempre se estaria perante a manifesta falta de título executivo, pois que, atentos todos os motivos expostos, mesmo tendo sido proferida sentença homologatória, a mesma não configura título executivo bastante.”

XX) No caso dos presentes autos, o título executivo que serve de base à presente execução é a sentença homologatória e condenatória do acordo de partilha do aqui executado, proferida nos autos de processo de inventário nº 35/08...., que correu termos no Tribunal Judicial ...., em que figura como requerente o aqui Recorrido, transitada em julgado.

YY) Pretendendo os exequentes/recorrentes, beneficiários daquela sentença condenatória, transitada em julgado, a qual consubstancia indiscutivelmente título executivo (art. 703º, n.º 1, al, a) e 704º, n.º 1 do CPC), obter a execução coerciva da prestação em que o ali Requente, aqui recorrido, foi condenado, em definitivo, e consistente em doar os bens aí melhor identificados aqueles.

ZZ) Na execução para prestação de facto – positivo ou negativo - definida em sentença, ao exequente assiste jus, para além da realização do facto, a impetrar indemnização pelos prejuízos causados pela ação ou omissão do executado, bem como sanção pecuniária compulsória, a liquidar na fase liminar da execução e a satisfazer segundo as regras da execução para pagamento de quantia certa, constituindo a sentença título executivo bastante para estes pedidos – artºs 868º, 870º a 872º, 876º e 877º do CPC.

AAA) O título executivo é um pressuposto da ação executiva na medida em que confere ao direito à prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal ação.

BBB) Na verdade «…a relevância especial dos títulos executivos que resulta da lei deriva da segurança, tida por suficiente, da existência do direito substantivo cuja reparação se pretende efetivar por via da ação executiva. O fundamento substantivo da ação executiva… é a própria obrigação exequenda, sendo que o título executivo é o seu instrumento documental legal de demonstração, ou seja, constitui a condição daquela ação e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas» - Ac. do STJ de 18.10.2007, dgsi.pt, p.07B3616.

CCC) É inequívoco que nos presentes autos temos título executivo, tendo dada à execução sentença homologatória de transacção, celebrada em acção de inventário, vinculando-se as partes a aceitar tal transacção – é  no âmbito da própria oposição à execução que se irá determinar qual o estado e alcance de tal transacção.

DDD) Não se entendendo assim, é desvirtuar por completo tal transacção e respectiva sentença homologatória.

EEE) A sentença dada à execução constitui indiscutivelmente título executivo, pois impõe ao executado, expressamente, o cumprimento duma obrigação, contendo uma ordem de prestação: doar aos filhos.

FFF) O título executivo fundamento da presente ação executiva é a sentença do Tribunal que decidiu homologar por sentença a aludida transacção, bem como a sentença que condenou o executado ao seu cumprimento, conjugada tal decisão com a violação desse dever do executado doar os aludidos bens aos seus filhos.

GGG) No requerimento executivo, os exequentes invocaram a decisão proferida na aludida ação de inventário de condenação do executado cumprir o acordo de partilha e alegaram os factos que consubstanciaram a violação desse dever, juntando a respetiva prova.

HHH) Não há razão, por isso, para se concluir que possamos estar, por um lado, perante um erro na forma do processo, e por outro lado, perante manifesta falta de título.

III) Na verdade, ao entender que o tempo verbal utilizado na aludida Clausula 5ª – “serão doados” – configura uma promessa de doação e não de uma obrigação de doação, e ao mesmo tempo ao entender que se os próprios exequentes não tivessem entendido a cláusula em apreço como uma promessa doação não teriam tido necessidade de peticionar ao tribunal que se substitua ao executado para doar os bens, o Tribunal a quo não interpretou adequadamente a referida clausula 5ª, e consequentemente a Lei.

JJJ) A sentença recorrida, decidindo como decidiu, penaliza de forma excessiva e desadequada, o direito dos exequentes a receber por doação do executado os respectivos bens, bem como, retira toda a relevância prática que é atribuída à aludida clausula 5ª, bem como à SENTENÇA do acordo de partilha.

KKK) A ação executiva deverá, pois, prosseguir seus termos tal e qual como requerido pelos exequentes. O que é de elementar justiça, em caso contrário é desrespeitar o aludido acordo de transacção e a decisão do Tribunal que homologou por sentença o mesmo.

LLL) A decisão a quo viola o disposto nos artigos 703º, nº 1, al. a); 868º, 874º, 875º e artigo 551º, nº 2 —todos do C. P. Civil, bem como a visão que a decisão a quo, preconiza, desvirtuou, a nosso ver, completamente o sentido de todo acordo de transacção e a homologação por sentença do mesmo, trazidos aos presentes autos.

MMM) Assim, nos termos e fundamentos de todo o exposto deverá ser julgado procedente a apelação e revogada a douta decisão recorrida, substituem-na pela decisão que reconhece a regularidade adjectiva da presente execução, e se determina a tramitação subsequente dos autos, respeitando-se, desta forma, a coerência do sistema jurídico.

Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Exa.s doutamente suprirão deve julgar-se o recurso procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos segundo a forma de processo que lhe foi atribuída pelos exequentes, tudo com as demais consequências legais.

Se assim não se entender, sem prescindir:

Assim, nos termos e fundamentos de todo o exposto deverá ser julgada procedente a apelação e revogada a douta decisão recorrida, substituem-na pela decisão que reconhece a regularidade adjectiva da presente execução, e se determina a tramitação subsequente dos autos, respeitando-se, desta forma, a coerência do sistema jurídico, tudo com as demais consequências legais.

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA

JUSTIÇA!».

Foi apresentada contra-alegação recursiva, concluindo o Recorrido pela total improcedência do recurso.

Recurso esse que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo ([6]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos o regime e o efeito anteriormente fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões – nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação, limitada a matéria de direito, saber se há, ou não, fundamento para a decretada absolvição/extinção da instância executiva:

a) Por erro insuprível na forma de processo;

b) Por manifesta falta de título executivo.

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

A materialidade fáctica e a dinâmica processual a considerar, para decisão adequada do recurso, são as que constam retratadas no antecedente relatório, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

         B) O Direito

Do erro insuprível na forma de processo e falta/insuficiência de título executivo

O Tribunal a quo julgou no sentido da total extinção da execução, considerando que ocorre “erro na forma de processo”, aferido em função do(s) pedido(s) deduzido(s), em termos de não aproveitamento de qualquer ato, visto que «a execução específica sempre seguiria a forma de acção declarativa».

Para tanto, entendeu a 1.ª instância, no âmbito interpretativo, que estamos, face ao recorte do caso apresentado pelos Exequentes, perante uma «promessa de doação» (não ainda uma doação) – visto o adotado uso do tempo verbal «serão doados» –, afastando a figura, invocada pelos Exequentes, da «obrigação de doação», que, enquanto imposição (dever de cumprir), seria incompatível com a doação civilística, que «tem subjacente o (…) espírito de liberalidade».

Prosseguindo, enunciou o Tribunal a quo que, embora o contrato-promessa de doação seja admissível, «já não é admissível a sua execução (quer específica quer por acção executiva)», sendo que o peticionado acaba por coincidir «com o pedido inerente à execução específica prevista no artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil», sem abranger a entrega das coisas prometidas, pedido de entrega esse que sempre estaria vedado «atento o espírito de liberalidade do contrato de doação».

Por fim, foi entendido na decisão recorrida que ocorre manifesta falta de título executivo para o efeito executório pretendido.

Começam os Apelantes por contrapor – segue-se a ordem do seu acervo conclusivo – que o erro na forma de processo configura uma nulidade processual e não uma exceção dilatória, pelo que a consequência sempre teria de ser, não a absolvição da instância, mas, de acordo com o disposto no art.º 193.º do NCPCiv., a anulação apenas dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma legalmente estabelecida.

Ora, apreciando, cabe dizer, desde logo, que, se o n.º 1 desse art.º 193.º está, efetivamente, vocacionado para o aproveitamento máximo possível do processado, mesmo que em erro na forma de processo, apenas se anulando os atos insuscetíveis de aproveitamento, devendo o juiz praticar os que forem estritamente necessários para que aquele processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma legalmente estabelecida, já o n.º 2 do mesmo dispositivo legal exceciona – como limite insuperável – o que causar diminuição de garantias (de defesa) do réu.

Assim, é líquido que não poderá aproveitar-se qualquer ato praticado de que resulte diminuição de tais garantias.

Acresce que, sendo, embora, verdade que o erro na forma de processo, tal como tipificado na lei, se enquadra nas nulidades dos atos (ou nulidades processuais, como previsto nos art.ºs 186.º e segs. do NCPCiv.), não pode colher, de forma irrestrita, o efeito prático que os Apelantes daí pretendem extrair.

Com efeito, situações podem ocorrer em que seja clara a “total inadequação da petição à forma processual a seguir, logo se anulando todo o processado e consequentemente se extinguindo a instância” ([7]).

Ou seja, embora nos movamos, efetivamente, no campo das nulidades processuais – em vez de exceções dilatórias propriamente ditas –, o certo é que são configuráveis, por possíveis, situações de “inidoneidade absoluta da forma utilizada”, «casos de inadequação absoluta da petição em relação à nova forma processual», âmbito em que a nulidade processual daí decorrente, de conhecimento oficioso ([8]), “pode e deve ser conhecida logo que detetada”, com a virtualidade de, no caso de ser “totalmente inidónea” a forma utilizada, dar lugar à «extinção da instância com base na nulidade de todo o processo»  ([9]).

Logo, em tais casos limite, tratar-se-á de um vício insanável, levando à extinção da instância, termos em que não pode acompanhar-se, nesta parte, o raciocínio dos Apelantes, na linearidade com que foi vertido no seu acervo conclusivo.

Mas os Recorrentes invocam ainda que inexiste erro na forma de processo e que, em qualquer caso, foi deduzida oposição à execução por meio de embargos, pelo que em nada foram preteridas as garantias de defesa do Executado.

Terão razão?

Vejamos.

A posição jurídica dos Exequentes/Apelantes, quanto à pretensão que os move (numa das suas vertentes, em execução para prestação de facto positivo), encontra expressão paradigmática no enunciado da sua conclusão DD), onde elaboram assim: «(…) o direito dos exequentes apenas se concretiza pela prática de um facto positivo: a doação.».

O que, no essencial, pretendem é, pois, a consumação de uma concreta doação, enquanto negócio translativo do direito de propriedade (do doador para os donatários), doação essa que o Executado se teria obrigado a realizar, mas o que nunca cumpriu.

Assim, concretizam os Recorrentes, no seu acervo conclusivo:

- «AA) O que pretendiam com tal pedido alternativo é pura e simplesmente uma sentença a declarar a transmissão de tais bens a favor dos mesmos, esta intenção manifestada neste pedido, em nada abada a convicção de que para os mesmos existia uma obrigação de doar, nunca tendo sequer vislumbrado existir eventualmente uma promessa de doação, não o fizeram com esse entendimento, como resulta claramente da exposição.»;

Ou seja, pretendem uma sentença declarativa de transmissão do direito dominial – transmissão nunca ocorrida, apesar de ter sido assumida, no acordo de partilha, uma obrigação de transmitir (“serão doados aos seus filhos”) –, posto a sentença homologatória não ter esse efeito transmissivo.

Aliás, a sentença homologatória é omissa quanto a tal matéria, limitando-se a homologar a partilha, com adjudicação dos bens assim partilhados (entre os dois interessados, em que não se contavam, logicamente, os aqui Exequentes, filhos daqueles), dentro do objeto do inventário instaurado – e não mais –, como não poderia deixar de ser ([10]).

Elaboram ainda os Apelantes no sentido de, «pela sentença declarativa, ao Recorrido/executado» ter sido «imposto o dever de doar aos seus filhos (recorrentes/exequentes) os bens Imóveis e estabelecimento comercial (…)».

Todavia, como já salientado, a sentença é omissa quanto a tal dever, embora o mesmo possa ser visto como constante do acordo estabelecido entre os interessados (os pais dos Apelantes). Assim, nenhuma condenação foi proferida quanto à matéria de doação, apenas se tendo, como dito, homologado a partilha, com adjudicação dos bens partilhados.

Ou seja, o aqui Executado assumiu essa obrigação de doar futuramente, ao acordar (com a outra interessada, seu ex-cônjuge) que “serão doados aos seus filhos” (cláusula com conteúdo meramente obrigacional, não real, dispondo para o futuro), obrigação à qual, vinculando-se, ficou sujeito (em termos, reitera-se, obrigacionais), sabido, por outro lado, que a sentença homologatória proferida não o condenou a doar.

Por isso, vista a natureza meramente obrigacional do acordado nesta parte, e por a sentença ser omissa a respeito, estamos – em termos de qualificação jurídica – perante uma promessa de doação, que configura, logicamente, uma assunção, em decorrência, de obrigação mediata de doar, através da celebração do negócio (prometido) de doação, e não mais.

Esgrimem os Recorrentes que, «Com aceitação de tal clausula o executado/recorrido pretendeu, inequivocamente, dispor gratuitamente de tais bens a favor dos donatários seus filhos, ora recorrentes/exequentes» [conclusão Q)].

Ora, se pretendeu vincular-se em termos obrigacionais, certo é que de nada dispôs – com efeitos reais –, pelo que da sentença homologatória, sendo omissa a respeito, não resulta qualquer condenação a doar, que pudesse ser executada.

Ademais, não deve esquecer-se que estamos perante facto infungível, o que sempre afastaria o recurso à execução para prestação do facto positivo (específico e pessoal) da outorga da prometida/pretendida doação – cfr. art.º 868.º, n.º 1, do NCPCiv..

Aliás, como visto, os Exequentes pretendem – por assim o terem peticionado –, após uma sentença homologatória de partilha (inventarial), uma sentença declarativa de transmissão do direito dominial, isto é, que seja o Tribunal a substituir o Executado perante a sua recusa de outorga da prometida (assumida obrigação de) doação ([11]).

O que não é permitido. O Tribunal – tem de reconhecer-se – não é um terceiro que pudesse cumprir no lugar do obrigado, nem se trata de obrigação de natureza fungível, que permitisse substituição por terceiro no cumprimento.

O que quiseram as partes nesse acordo – a ter de ser interpretado – foi mesmo a assunção daquela obrigação, equivalente, se bem se vê, a uma promessa de doação (no limite, a uma doação não consumada). Sem, pois, qualquer transferência do direito real, o direito de propriedade ([12]).

Trata-se, por isso, inequivocamente, de meros efeitos obrigacionais, como a parte apelante bem sabe, motivo pelo qual pede uma sentença declarativa da transmissão dos bens (leia-se, do direito de propriedade sobre tais bens).

Mas, obviamente, essa sentença declarativa nunca poderia ser proferida em processo executivo, designadamente em execução para prestação de facto positivo, posto não se poder ignorar a diferença – inultrapassável – entre ação declarativa e ação executiva, seja quanto ao fim (cfr. art.º 10.º do NCPCiv.), seja quanto ao processado legalmente previsto (art.ºs 548.º, 550.º, 552.º e segs. e, no relevante para o caso, 868.º e segs., todos do NCPCiv.).

O que tudo mostra, nesta vertente, que a parte carece ainda de sentença declarativa condenatória, tornando incongruente a pretensão – nesta instância – de executar uma sentença já proferida, a sentença homologatória da partilha, a qual, como visto, nada refere (muito menos, condena) quanto à invocada «obrigação de doar».

Ser proferida sentença que substitua a declaração negocial do Executado (por este recusada), operando a transmissão para os Exequentes de tais bens, declarando-se a transmissão, a favor dos mesmos, do direito de propriedade, corresponde à economia e efeitos da execução específica do contrato-promessa, como pode entender-se perante o conteúdo normativo do art.º 830.º do CCiv., o que mostra que os Recorrentes têm a noção de que lhes falta ainda essa sentença declarativa.

Não obstante, insistem ser «tal obrigação de doar que o executado assumiu na clausula 5ª do acordo de partilha, inequivocamente susceptível de execução. E daí a execução» [conclusão BB)].

Olvidam, todavia, que estamos perante obrigação/prestação de natureza claramente infungível, em que o devedor não pode ser substituído no cumprimento por terceiro. Só o próprio devedor pode fazer operar a doação, mediante declaração negocial sua, por ser ele o proprietário dos bens, a única pessoa, por isso, que os pode transmitir (por contrato translativo da propriedade, como a doação ou a compra e venda).

Assim, não permite o art.º 868.º, n.º 1, do NCPCiv. a execução para prestação de facto neste caso e modo almejado, por não se tratar de facto fungível [cfr. conclusões BB) a FF)].

Ou seja, a perspetivada «obrigação do executado de coercivamente doar os aludidos bens aos seus filhos, ora recorrentes», sabido «que a presente execução é para prestação de facto positivo», nunca poderia constituir um facto a prestar por outrem (um terceiro). Só o próprio Executado, enquanto exclusivo proprietário, poderia doar (outorgar na doação, como doador).

A única possibilidade, num tal âmbito, em que a doação não foi realizada e se pretende exigir que o seja, seria o recurso, se admissível, à execução específica, em que seria o Tribunal – e nunca um terceiro – a, mediante sentença declarativa, substituir/suprir a declaração negocial do faltoso, em termos de fazer operar a transmissão.

Aliás, são os próprios Exequentes/Recorrentes a admitir que, quando esteja em causa prestação incumprida de facto positivo de natureza fungível, é que se segue «o regime jurídico enunciado nos arts. 868º a 873º do CPC» [conclusão RR)].

Assim sendo, os Recorrentes sabem que tem de tratar-se de «facto positivo de natureza fungível», o que não é o caso, posto uma obrigação/promessa de doação se decompor, claramente, num facto infungível, em que o devedor não pode ser substituído por terceiro – art.ºs 868.º do NCPCiv. e 828.º do CCiv..

E são os próprios Exequentes/Apelantes quem acaba por reconhecer que estamos perante execução referente «a obrigação exequenda de prestação de facto positivo, de natureza infungível» [vide conclusão SS), com destaques aditados].

Ora, como bem esclarece Antunes Varela, a prestação é fungível «quando pode ser realizada por pessoa diferente do devedor, sem prejuízo do interesse do credor»; mas será infungível (“não fungível”) «no caso de o devedor não poder ser substituído no cumprimento por terceiro» – cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 1991, p. 98 ([13]).

E acrescenta este Autor: «Sendo o facto não fungível, o credor apenas poderá exigir o cumprimento do devedor (art. 817.º) e, na hipótese de este não cumprir, terá de contentar-se com a indemnização do prejuízo resultante do não cumprimento (indemnização por equivalente).» – cfr., op. cit., p. 100 ([14]).

E não se confunda o cumprimento por terceiro – um particular – com a execução específica, a que alude o art.º 830.º do CCiv., em que é o Tribunal (não um terceiro), com o seu poder de julgar (função jurisdicional), a emitir sentença (declarativa) que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.

Todavia, embora seja hoje reconhecida, de forma dominante, a admissibilidade do contrato-promessa de doação – o mesmo parecendo poder admitir-se quanto a uma obrigação de doação, em geral, referente a bens determinados –, o certo é que, «apesar do seu cariz vinculativo, não parece que o contrato-promessa admita a execução específica, por a tal se opor a natureza da obrigação assumida (art. 830.º, n.º 1)» – cfr. Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 189 ([15]).

Ou seja, «a promessa de doação é incompatível com a execução específica», como defende Ana Prata, em O Contrato-Promessa, p. 315, citada por Menezes Leitão, op. cit., p. 188.

Assim, mesmo que se considerasse que o caso documenta uma obrigação de doação – que, por alguma via, sendo admissível, pudesse distinguir-se de uma promessa de doação, com afastamento do regime legal do contrato-promessa –, ainda assim, a pretensão em análise dos Exequentes/Apelantes esbarraria com a impossibilidade de execução, seja por não ser admissível a execução específica (a que, todavia, teria de corresponder ação declarativa), seja por inadmissibilidade da execução para prestação de facto positivo infungível direcionada para a obtenção da declaração negocial do faltoso («proceder à doação dos bens», mediante «escritura pública de doação (…) ou documento autenticado com a mesma validade jurídica», como peticionado).

Ou seja, para além do erro insuperável na forma de processo – o pretendido corresponde a uma ação declarativa de execução específica, não podendo aproveitar-se para tanto a forma de processo escolhida de execução para prestação de facto, seja pelo caráter inconciliável/inadaptável da tramitação processual legalmente prevista, seja pela diminuição de garantias de defesa face à forma de processo comum declarativo, o que não poderia ser ultrapassável pela via da oposição à execução (embargos de executado) – e da inexistência de título executivo que permita execução para prestação de facto no sentido da outorga da doação (vista, desde logo, a omissão na sentença homologatória), não seria sequer possível a visada ação executiva, quer por inadmissibilidade de execução específica, quer por inadmissibilidade de execução para prestação de facto positivo infungível nos moldes pretendidos.

Sempre teríamos, pois, nesta parte, de defrontar-nos com a manifesta inviabilidade da pretensão dos Exequentes/Apelantes, parecendo serem a propósito as palavras de Antunes Varela no sentido de, perante promessa de contratar, não havendo «cabimento à execução específica (…), a única sanção possível contra o inadimplente culpado, se o houver, é, obviamente, a da indemnização dos danos causados à outra parte.» ([16]).

Melhor sorte pareceria, prima facie, poder assistir, em termos processuais, ao requerido ao abrigo do disposto no art.º 868.º, n.º 1, do NCPCiv., no sentido da aplicação – na ação executiva (por tal não ter ocorrido antes) – de uma sanção pecuniária compulsória pelo período de tempo correspondente ao incumprimento por parte do executado, com fixação do montante de diário de € 300,00.

Com efeito, aquele preceito legal reporta-se ao pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, «em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo» (destaques aditados).

Ora, a este respeito, referem Abrantes Geraldes e outros que, tratando-se de obrigação de prestação de facto positivo com prazo certo (no caso, inexiste prazo certo), «se a obrigação for infungível, o que assiste ao exequente é somente o direito a ser indemnizado pelos danos resultantes do não cumprimento da prestação», podendo o exequente «também pedir o valor correspondente à sanção pecuniária compulsória já fixada na sentença dada à execução ou a fixar na própria execução», de acordo com o disposto no art.º 829.º-A do CCiv. ([17]).

Inexistindo prazo certo – como no caso, por nada constar da sentença homologatória dada à execução –, dispõe o art.º 874.º, n.º 1, do NCPCiv. que o exequente indica o prazo que reputa suficiente e requer que, citado o devedor para, em 20 dias, dizer o que se lhe oferecer, o prazo seja fixado judicialmente, podendo o exequente também requerer a aplicação da sanção pecuniária compulsória a que alude o dito art.º 868.º, n.º 1, da lei processual.

Todavia, ocorre que inexiste, a nosso ver – como se depreende do já exposto e salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento –, título executivo bastante para tanto.

É que, tratando-se de execução de sentença ([18]), o pretendido título é sempre a dita sentença homologatória – a única dada à execução (datada de 21/01/2011) –, embora, obviamente, em conjugação com o mencionado acordo de partilha, dela não constando, como visto já, qualquer alusão a “doação”, “obrigação de doação” ou “promessa de doação”.

Apenas ali se decide no sentido de homologar «a partilha que antecede» (a constante de tal acordo de partilha), com consequente adjudicação dos «bens em conformidade com a mesma», nos termos do disposto no art.º 1353.º, n.º 6, do CPCiv. então em vigor ([19]).

Ou seja, inexistindo qualquer condenação que extravase o âmbito da partilha e inerente composição dos quinhões, falta uma condenação ou qualquer injunção em matéria de doação.

Tal matéria foi levada ao acordo, é certo, pelos interessados, mas não houve qualquer pronúncia judicial a respeito na sentença proferida, a qual, por meramente homologatória, se limitou, como visto, a homologar a partilha e adjudicar os bens.

Assim sendo, em matéria de doação, inexiste qualquer condenação, que fosse suscetível de execução, pelo que ocorre falta de título executivo (de formação judicial) nesta parte (matéria não coberta pelo título/sentença).

Em suma, o título dado à execução não é bastante no concernente à pretendida doação ou obrigação de doar: perante sentença meramente homologatória de partilha, sendo diversa a obrigação cujo cumprimento os Exequentes/Recorrentes vêm reclamar – por reporte àquela obrigação de doação –, para esse efeito o título executivo é lacunoso e, por isso, insuficiente (inexiste qualquer condenação a respeito).

Nestes termos, não pode deixar de concluir-se como na decisão em crise: para além do erro insuprível na forma de processo, quanto a parte do peticionado, ocorre, outrossim, falta/insuficiência de título executivo, comprometendo também a pretensão quanto a sanção pecuniária compulsória, tudo determinando, a final, a extinção da execução [cfr., como lugares paralelos, os art.ºs 703.º, n.º 1, al. a), 726.º, n.º 1, al. a), 729.º, al. a), por remissão do art.º 551.º, n.º 2, todos do NCPCiv.] ([20]).

Improcede, pois, o recurso, sendo de manter a decisão recorrida de extinção da instância executiva, embora com fundamentação parcialmente diversa, não se vendo, por outro lado, que tenha ocorrido violação de qualquer preceito legal a que aludem os Apelantes.

 


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(…)

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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter – embora com fundamentação em parte diversa – a decisão recorrida de extinção da instância executiva.

Custas da apelação pelos Exequentes/Apelantes, já que vencidos no recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

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Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 06/02/2024

Vítor Amaral (Relator)

João Moreira do Carmo (1.º Adjunto)

Carlos Moreira (2.º Adjunto)


([1]) Em 21/10/2021, no Juízo de Competência Genérica de Vila Nova de Foz Côa, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.
([2]) Ou seja, «uma sentença condenatória nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 703.º do C. P.C.» (cfr. art.º 28.º do requerimento executivo).
([3]) Como tudo consta do requerimento executivo dos autos.
([4]) Foi ainda fixado «à causa o valor de € 6.379,75».
([5]) Cujo teor se deixa transcrito (com destaques retirados).
([6]) Como, aliás, havia sido requerido pelos Recorrentes.
([7]) Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 396, acrescentando que já no regime processual anterior era entendido que, «quando nada se pudesse aproveitar, (…) tinha lugar a absolvição da instância».
([8]) Como se constata perante os (atuais) art.ºs 193.º e 196.º do NCPCiv..
([9]) Assim, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 1998, ps. 254, 281 e 282. O Autor dá como exemplo, à luz do regime processual de pretérito – mas com validade para o atual –, o oferecimento de «requerimento para inventário, sendo idónea a forma de processo declarativo».
([10]) Nada ali foi mencionado quanto a qualquer doação ou obrigação de doar.
([11]) A alusão a «obrigou-se a doar» [conclusão P)] sempre nos remeteria para o campo meramente obrigacional, o que corresponderá a uma promessa de doação, tendo ainda em conta que não houve condenação a doar, nem transferência de direitos reais (direito de propriedade).
([12]) Se se alude a ter pretendido dispor – no futuro – gratuitamente de tais bens a favor dos donatários seus filhos, terá de admitir-se que não houve mais que uma obrigação/promessa, uma estipulação destituída de efeitos reais [cfr. conclusão Q)].
([13]) No mesmo sentido, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, p. 312.
([14]) Sobre a exigência judicial de cumprimento do devedor, referem Pires de Lima e Antunes Varela que o credor tem duas ações ao seu dispor, “a de cumprimento e a de execução”, sendo que «a segunda pode depender da primeira, isto é, da condenação do devedor à realização da prestação», tudo dependendo «da existência ou não existência de um título exequível que não seja a sentença condenatória» (cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1986, p. 91).
([15]) Na jurisprudência, cfr., inter alia, o Ac. STJ de 21/11/2006, Proc. 06A3608 (Cons. Ribeiro de Almeida), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I- É válida a promessa de doação. Mas uma coisa é a validade da doação e outra é a de saber se a mesma é passível de execução específica, como determina o art. 830.º do CC. // II- A natureza da obrigação assumida pelo promitente opõe-se pela sua natureza à execução específica.».
([16]) Cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 367 e 373.
([17]) V. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, cit., p. 313.
([18]) Reitera-se que a parte exequente afirma que o título executivo «é uma sentença condenatória».
([19]) Preceito que refere poder o inventário findar na conferência, por acordo dos interessados, se o juiz considerar que a simplicidade da partilha o consente, caso em que a partilha efetuada é judicialmente homologada em ata, da qual constarão todos os elementos relativos à composição dos quinhões e a forma da partilha.
([20]) Restará aos Recorrentes, querendo, a interposição de ação declarativa, nos moldes anteriormente referidos, tanto mais que, segundo referem, já terá havido «oposição à execução por meio de embargos» [cfr. conclusões H) e segs.], com inerente citação do Executado (cfr. art.º 868.º, n.º 2, do NCPCiv.), o qual não se dispôs a cumprir.