Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
238/17.1T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
DIREITOS REAIS
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - V.N.F.CÔA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.5, 552, 580, 581, 628 CPC
Sumário: 1. A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir).

2. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos (de facto e de direito) e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.

3. A figura da autoridade do caso julgado só ocorre na medida/limite do que foi apreciado e decidido, não obstando a que em novo processo seja decidido aquilo que não ficou definido no caso julgado anterior - a segunda acção não deverá ser repelida quando não tende, pelo seu objecto (v. g., em toda a complexidade duma acção real por excelência), a colocar o juiz na alternativa, ou de se contradizer, ou de confirmar pura e simplesmente a sentença já proferida.

4. Assim sucederá, nomeadamente, quando, na sequência de uma decisão de um Tribunal Superior, para fundamentar idêntico segmento do pedido da primeira acção, sejam alegados na segunda acção factos que permitem sustentar a aquisição do direito de propriedade (relativo ao muro em causa) por usucapião, sendo que, naquela primeira acção, não foram invocados «factos que permitissem a aplicação da presunção de propriedade exclusiva (do muro), consagrada no n.º 5 do art.º 1371º do CC e nada tendo resultado provado - desde logo porque nada foi alegado - quanto à origem do muro e uso que lhe foi dado até à época em que estalou o litígio, em ordem a fundamentar o direito de propriedade sobre o mesmo muro por eventual usucapião».

Decisão Texto Integral:



            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                  

              

           

I. Na presente acção declarativa instaurada por T (…) e A (…)  contra S (…)  e mulher M (…), estes, na contestação, invocaram a “excepção dilatória de caso julgado”, alegando, em síntese, que no Processo n.º 189/11.3TBVLF os AA. alegaram, além do mais, que “os Réus começaram por abusiva e ilegalmente, implantar sobre o ancestral muro, em pedra de xisto, que serve de suporte do terreno dos AA. e delimita toda a estrema Sul do seu conjunto predial com o logradouro e prédio urbano dos mesmos Réus, a parede Norte do 2º Piso, de uma construção de dois pisos, em blocos de cimento, com cobertura em telha, que edificaram a partir do logradouro ou quintal da sua casa. (…) Levantando e construindo o 1º Piso, até sensivelmente ao nível da altura do muro dos AA., prosseguindo em altura e invadindo e ocupando toda a largura do mesmo muro com 60 cm, numa extensão aproximada de 2 m (…). (…) É perfeitamente visível, após o derrube da parede do 2º piso, que os Réus não construíram parede própria do 1º piso, do lado Norte da aludida construção anexa, limitando-se a encostar as paredes poente e nascente, ao muro e parede divisória dos AA., aproveitando-se abusivamente, do mesmo muro, utilizando-o e ocupando-o como parede norte do mesmo anexo. Sendo também agora visível que os Réus ocuparam o muro dos AA. com barrotes de madeira de sustentação do telhado da mesma construção anexa, barrotes que apoiam sobre o topo do muro, ocupando parte substancial da sua largura.”[1]

Mais alegaram os Réus que os AA., na citada acção, terminaram peticionando, entre o mais, o seguinte: “Absterem-se de ocupar qualquer parte da parede ou muro que delimita toda a extrema sul do mesmo conjunto predial dos AA. com a extrema norte do logradouro da casa dos Réus, reconhecendo que a mesma parede ou muro é propriedade exclusiva dos AA.; Absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe, interfira ou limite o direito de propriedade dos AA. sobre a referida parede ou muro sul, retirando os barrotes de madeira que apoiam sobre o mesmo e que suportam a cobertura da construção anexa dos mesmos Réus” e a “Construírem e implantarem de raiz a parede norte da anexa construção deixando de utilizar abusivamente como tal, a parede ou muro dos AA., deixando de apoiar neste as paredes poente e nascente do mesmo anexo”.[2]

Alegam ainda os Réus que, os AA., no âmbito dos presentes autos, alegaram nos pontos 15º a 20º da petição inicial (p. i.), tal como o tinham feito nos autos do processo n.º 189/11.3TBVLF, que são donos e proprietários da parede ou muro - extrema sul do conjunto predial dos AA., tendo ainda terminado com pedidos idênticos [alíneas a) e b)] aos que apresentaram no processo anterior [alíneas a), b) e e)] e terminam concluindo que os AA. pretendem ver reconhecido, na nova acção, o mesmo direito (propriedade exclusiva sobre o muro situado a sul do seu conjunto predial) que já lhe foi negado por sentença proferida em outra acção.

O AA. responderam à matéria de excepção, aduzindo que apesar de nos únicos pedidos desta segunda acção voltarem a pedir, em “a) e b)”, a condenação dos Réus a reconhecer o direito de propriedade exclusiva sobre o muro que delimita toda a extrema sul do seu conjunto predial com a extrema e norte do prédio dos Réus e para que estes se abstenham de ocupar ou utilizar qualquer parte do mesmo muro e de nele praticar qualquer acto que perturbe, interfira ou limite o mesmo direito de propriedade sobre o mesmo, porém, alicerçam tais pedidos em diferente e individualizada causa de pedir, por via da adição e alegação de novos e essenciais factos aos que suportaram os pedidos que formularam em “b), c) e e)” da primeira acção, pelo que a causa de pedir não se apresenta idêntica, não existindo potencial risco de contradição e ofensa da autoridade de caso julgado.

Por saneador-sentença de 20.7.2018, a Mm.ª Juiz a quo julgou procedente a excepção de autoridade de caso julgado e, em consequência, absolveu os Réus da instância, nos termos do disposto nos art.ºs 595º, n.º 1, al. a), 577º al. i), 578º e 576º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC).

Inconformados, os AA. apelaram formulando as seguintes conclusões:

1ª - Não se verifica a decretada procedência da excepção da autoridade do caso julgado invocada pelos Réus/apelados na contestação da Acção 328/17.1T8VLF.

2ª - A sentença recorrida denota uma errada apreensão do conceito, amplitude e aplicação do instituto do caso julgado - da leitura e análise crítica da fundamentação da sentença recorrida decorre não ter sido atendida e considerada na devida conta, a dupla e diferenciada função positiva e negativa que o instituto do caso julgado exerce, traduzindo-se a primeira na autoridade do caso julgado, e a segunda na excepção do caso julgado.

3ª - Se é certo que a autoridade do caso julgado visa impor os efeitos de uma primeira decisão já transitada, contudo não pode olvidar-se que a força e autoridade de tal já transitada decisão só existe na exacta medida e alcance do seu conteúdo e fundamentação, não impedindo por isso, que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.

4ª - Não tendo sido definida na anterior decisão da 1ª instância proferida na acção 189/11.3TBVLF nem a aquisição presuntiva nem por usucapião do muro em questão (na sentença decidiu-se sim, porém erradamente, de presuntiva compropriedade), nem podendo sê-lo por nada ter sido alegado na p. i. quanto a tal questão, como assim se declarou no acórdão de 12.7.2017 proferido na apelação interposta da sentença, tratando-se pois a invocação na petição da nova acção 238/17.1T8VLF dos factos potencialmente conducentes à aquisição presuntiva e/ou por usucapião do muro, de factos que não foram abrangidos na causa de pedir da anterior, nada impede que não pudessem vir invocá-los na acção posteriormente interposta 238/17.1T8VLF.

5ª - Sendo consabido que a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo do qual emerge a pretensão deduzida, logicamente que em ordem a poder decidir-se se em duas acções a causa de pedir é a mesma, haverá que procurar indagar se tal facto jurídico concreto é o mesmo em cada uma das acções - quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal.

6ª - Outrossim atender-se quanto à identidade da causa de pedir, ao que prescreve o n.º 4 do art.º 581º do CPC, que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”.

7ª - É inatacável que entre as acções 189/11.3TBVLF e 238/17.1T8VLF, tão-somente existe identidade de sujeitos e de pedido, que não de causa de pedir - a causa de pedir na acção 238/17.1T8VLF, expressamente invocada nos art.ºs 13º a 30º da p. i., é a alegação de concretos factos potencialmente conducentes à aquisição presuntiva e por usucapião, do muro ou parede que separa a sul o conjunto predial dos AA. do prédio dos Réus, factos estes não invocados na anterior acção 189/11.3TBVLF, ausência esta declarada no já mencionado acórdão desta Relação, proferido em 12.7.2017 nos autos de apelação n.º 189/11.3TBVLF.C1.

8ª - Sendo a coberto da leitura e interpretação do sentido e alcance da fundamentação e decisão que emanam do aludido acórdão de 12.7.2017, extraída dos autos da primeira acção, que os mesmos AA. por não terem individualizado nem alicerçado a causa de pedir da primeira acção quanto ao muro, na factologia potencialmente conducente quer à aquisição presuntiva quer à aquisição por usucapião da propriedade sobre o mesmo, apresentaram a posterior acção, integrando na respectiva causa de pedir - art.ºs 13º a 26º, 29º e 30º da p. i. -, tal factologia, convictos da inexistência de qualquer efeito preclusivo do caso julgado.

9ª - Releva que se realce, como insofismavelmente decorre da factologia da causa de pedir da primeira acção, que o pedido ou pretensão dos AA. no reconhecimento do direito de propriedade sobre o muro, estribou-se em ser o mesmo parte integrante do conjunto predial urbano reivindicado pelos AA., assim se explicando tenha na sentença sido declarada a compropriedade, ainda que erradamente, como o declarou esta Relação na apelação, improcedendo porém o pedido da propriedade exclusiva invocada pelos AA., por falta de alegação de factos essenciais à procedência da sua aquisição presuntiva e ou por usucapião, o que foi suprido na nova acção, constituindo o objecto da lide.

10ª - A autoridade do caso julgado implica uma aceitação duma decisão proferida numa acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial, donde e consequentemente, por força da autoridade do princípio do caso julgado, uma mesma causa de pedir não poder gerar consequências jurídicas potencialmente contrárias, sendo esta virtualidade a razão de ser do caso julgado, que se explica “pela conveniência de evitar que o tribunal seja colocado na triste e desairosa situação de se contradizer ou de se repetir”.

11ª - Sempre que não se perfile essa contradição ou repetição, não entrando a nova pronúncia em contradição com o juízo de valor anteriormente proferido, jamais se pode entender que a autoridade do caso julgado esteja posta em causa.

12ª - Não sendo idêntica a causa de pedir na primeira e na segunda acção, não existindo contradição de pronúncia e ofensa da autoridade do caso julgado por ser diferente e individualizada, na segunda acção, a causa de pedir e a factologia com que os AA. ancoram e alicerçam o invocado direito de propriedade sobre o muro, falece inexoravelmente a sentença recorrida.

13ª - Se a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentam como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado é forçoso concluir pela interpretação do conteúdo da sentença proferida na primeira acção 189/11.3TBVLF e do conteúdo do acórdão proferido em 12.7.2017, na apelação da mesma sentença, que a autoridade do caso julgado não é posta em causa com a pronúncia na nova acção 238/17.1T8VLF.

14ª - A sentença recorrida para além de fazer uma errada leitura e interpretação do alcance e sentido do decidido e proclamado no mencionado acórdão da RC de 12.7.2017, apresenta e cita como fundamento doutrina e jurisprudência que porém, por não ter correspondência com a situação em concreto sob apreciação e julgamento, não merece acolhimento e aceitação, como ao julgar verificada a excepção da autoridade do caso julgado, atenta para além do erro de julgamento, contra o disposto nos art.ºs 580º e 581º, n.º 4 do CPC.

Rematam dizendo que se deverá julgar não verificada a excepção de autoridade de caso julgado que a sentença recorrida proclamou, decretando a sua revogação e ordenando o prosseguimento da acção.

Os Réus não responderam.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar, apenas, se ocorre a figura da “autoridade do caso julgado” - excepção decorrente da força e autoridade de caso já julgado (decisão da referida acção declarativa n.º 189/11.3TBVLF).


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o enquadramento fáctico e adjectivo dito no antecedente relatório e ainda o seguinte:[3]

a) Na acção declarativa sumária 189/11.3TBVLF, também instaurada pelos aqui AA. contra os mesmos Réus, foi pedida a condenação dos Réus a: a) Reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre o conjunto predial urbano identificado nos artigos 1º a 3º da p. i., em toda a sua extensão e composição; b) Absterem-se de ocupar qualquer parte da parede ou muro que delimita toda a estrema sul do mesmo conjunto predial dos AA. com a estrema norte do logradouro da casa dos Réus, reconhecendo que a mesma parede ou muro é propriedade exclusiva dos AA[4].; c) Absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe, interfira ou limite o direito de propriedade dos Autores sobre a referida parede ou muro sul, retirando os barrotes de madeira que apoiam sobre o mesmo e que suportam a cobertura da construção anexa dos mesmos Réus; d) Recolocarem e cravarem sobre o muro dos AA. a rede em arame que cortaram e retiraram, de modo a que a mesma impeça a passagem e entrada de animais; e) Construírem e implantarem de raiz a parede Norte da anexa construção deixando de utilizar abusivamente como tal, a parede ou muro dos AA., deixando de apoiar neste as paredes poente e nascente do mesmo anexo; f) Retirarem a barreira em madeira que colocaram a escassos centímetros da frente da janela da casa dos AA. mencionada no artigo 14º da p. i., abstendo-se de praticar qualquer acto que perturbe ou impeça a livre utilização pelos AA. da janela, deixando-a livre e desimpedida de modo a ser usada pelos AA. para vistas, luz, arejamento e demais fins a que se destina, como inerente ao pleno exercício do direito de propriedade dos AA.”.

b) Foi aí alegado, nomeadamente:

            1 - Os AA. A (…) e mulher, T (…) são donos e legítimos possuidores, na freguesia de (...) , deste concelho de (...) , de um conjunto predial urbano, constituído pelos seguintes prédios: a) Casa térrea sita ao (...) , limite da freguesia de (...) , a confrontar do Norte com o próprio, Sul com os RR. e outros, Nascente e Poente com Rua, inscrita na matriz sob o artigo (...) , descrita e inscrita na CRP sob o n.º (...) , prédio que entre outros, adquiriram dos antepossuidores S (..:)  e mulher, M (…) sogros do A. e pais da A., por Escritura de Doação de 24.8.1999, outorgada no Cartório Notarial de (...) , conforme consta da fotocópia certificada da mesma escritura de doação adiante junta, e onde se encontra mencionada sob o n.º “Sete” - docs. n.ºs 2 e 4; b) Casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, sita ao (...) , limite da dita freguesia de (...) , confrontando do Poente com o prédio anterior, inscrita na matriz sob o artigo (...) , descrita e inscrita na CRP sob o n.º (...) da mencionada freguesia, adquirida a N (…), viúvo, por escritura de compra e venda de 25/11/2004, outorgada no Cartório Notarial desta cidade - docs. n.ºs 3 e 5.

2 - Prédios estes que estiveram na posse e domínio dos mencionados transmitentes, seus antepossuidores, ininterrupta e consecutivamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma pacífica e pública, habitando-os, usando-os, gozando-os e fruindo-os como coisa sua, habitando-os, realizando neles obras de conservação e de ampliação, construindo anexos, neles arrumando bens móveis, materiais e pertences diversos, pagando as contribuições e impostos, retirando dos mesmos todas as potencialidades e utilidades que propiciam pela sua natureza e fim a que se destinam, cientes de exercerem um direito próprio e de propriedade plena, durante seguramente, 40, 50 e mais anos.

3 - Posse, domínio e direito que com tais características foram transmitidos aos Autores, vindo os mesmos AA. a exercer sobre o mesmo conjunto predial urbano, logradouro e anexos, de forma continuada, pacifica, ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e de boa fé, os mais variados actos de posse e domínio, habitando, ocupando, utilizando, melhorando, reparando, ampliando, guardando móveis, bens e materiais diversos, pagando as contribuições e impostos, tudo assim fazendo com a natural convicção de exercerem um direito próprio e de propriedade plena, por si e antepossuidores, há 20, 30, 40, 50 e mais anos, pelo que ainda que titulo de aquisição não tivessem, até por usucapião, que cautelarmente invocam, adquiriram os AA. o mencionado conjunto predial.

c) E ainda:

 1 - O referido conjunto predial dos AA. confina a Sul com logradouro da casa dos Réus, que fica num plano inferior em cerca de 3 m.

2 - Os Réus começaram por abusiva e ilegalmente, aproveitando-se da ausência dos AA. na Alemanha, onde trabalham como emigrantes, assentar sobre o ancestral muro, em pedra de xisto, que serve de suporte ao terreno dos AA. e delimita toda a estrema sul do seu conjunto predial com o logradouro e prédio urbano dos Réus, a parede Norte do 2º piso de uma construção com dois pisos e cobertura em telha que edificaram a partir do logradouro ou quintal da sua casa, ocupando numa extensão aproximada de 2 m toda a largura do mesmo muro com 60 cm e numa altura de 2,50 m acima do muro.

3 - Derrubadas as paredes em blocos do 2º piso por ordem da Câmara Municipal, ficou visível que os Réus não construíram parede própria do lado norte do 1º piso, limitando-se a encostar ao muro as paredes poente e nascente da construção e tendo assente sobre o muro, ocupando parte substancial da sua largura, os barrotes de sustentação do telhado da construção.

4 - Os Réus impediram a reposição da rede de vedação em arame que existia cravada sobre o muro para resguardar e impedir a passagem de animais para o conjunto predial dos AA., rede esta que os Réus cortaram e descravaram.

5 - Prosseguindo os Réus na saga de ataque ao direito de propriedade dos AA., deram em tapar as vistas da janela com 50 cm de largura e 60 cm de altura, existente no quarto de casal da casa dos AA., há mais de 30, 40 e mais anos, sendo da antiguidade da casa, que deita actualmente sobre o logradouro da casa dos Réus mas que à data da sua abertura era um prédio rústico com algumas oliveiras.

            d) O Réu contestou e concluiu pela improcedência da acção.

            e) Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, a 12.12.2016, decidindo-se: “A) Condenar os Réus a recolocarem e cravarem sobre o muro referido no facto provado em 11. a rede em arame que cortaram e retiraram aquando do levantamento da parede do 2º piso da construção aí igualmente referida, de modo a que a mesma impeça a passagem e entrada de animais; B) Condenar os Réus a retirarem a barreira em madeira que colocaram em frente à janela da casa dos Autores, referida no facto provado 18, e a escassos centímetros da mesma, deixando-a totalmente livre e desimpedida para vistas, luz e arejamento; C) Absolver os Réus do demais peticionado pelos Autores; D) Condenar o Réu, como litigante de má fé, em multa de 3 (três) Unidades de Conta.”

f) Por acórdão da RC de 12.7.2017, transitado em julgado e que teve por objecto a dita sentença, decidiu-se: «a) julgar nula a sentença recorrida na parte em que omitiu pronúncia sobre o pedido formulado em a), que julgam procedente, condenando os Réus a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores sobre o conjunto predial urbano formado pelos prédios identificados nos pontos 1. e 2. dos factos assentes, em toda a sua extensão e composição; b) manter quanto ao mais a sentença apelada; (…)».

g) No mesmo acórdão foi expendido, designadamente, quanto ao muro que separa as propriedades de AA. e Réus, que o mesmo não podia ter sido considerado pelo Mº Juiz a quo em compropriedade, já que ao ter considerado verificada a pré-existência e anterioridade do muro em relação à posterior edificação da casa de habitação dos Réus, em prédio que tinha antes da construção desta, natureza rústica, inviabiliza qualquer pretensão de aplicação da comunhão prevista no n.º 2 do artigo 1271º do CC, dada a diferente natureza dos prédios assim divididos.

            h) Referindo-se, no mesmo aresto, que não basta a não comunhão sobre o muro para atribuir o direito de propriedade em exclusivo, se não forem alegados factos que permitam sustentar a aquisição do direito de propriedade por usucapião, e considerou-se que os AA. não invocaram «factos que permitissem a aplicação da presunção de propriedade exclusiva (do muro), consagrada no n.º 5 do art.º 1371º do CC e nada tendo resultado provado - desde logo porque nada foi alegado - quanto à origem do muro e uso que lhe foi dado até à época em que estalou o litígio, em ordem a fundamentar o direito de propriedade sobre o mesmo muro por eventual usucapião (…)».

            i) Alega-se na presente acção, nomeadamente:

- Por força e autoridade do caso julgado que emana da decisão proclamada no douto Ac. da 3ª Sec. da RC de 12/7/2017, tirado na apelação 189/11.3TBVLF.C1, extraída dos autos de Acção de Processo Sumário n.º 189/11.3TBVLF do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda - Juízo de Competência Genérica de V. N. F. Côa -, são os ora AA., T (…)  e seu filho, A (…)donos e legítimos possuidores do conjunto predial urbano formado pelos prédios identificados nos pontos 1., 2., 3. e 4., da Fundamentação de facto do Acórdão, em toda a sua extensão e composição, os quais são: a) Casa térrea sita ao (...) , limite da freguesia de (...) , com a área de 32 m2, a confrontar do Norte com os AA. e outros, Sul com os RR. e outros, Nascente com Rua e outros e Poente com AA. e RR., inscrita na matriz sob o artigo (...) , descrita e inscrita na CRP sob o n.º (...) , prédio este que foi doado à ora Autora e falecido marido, A (…), por S (…) e mulher M (…), respectivamente pais e sogros, como donos e antepossuidores, por escritura pública de doação de 24/8/1999, outorgada no Cartório Notarial de (...) , lavrada a fls. 3 do Livro de Notas para escrituras diversas n.º 48-D; b) Casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, destinada a arrumos, sita ao (...) , limite da dita freguesia de (...) , concelho de (...) , inscrita na matriz sob o artigo (...) confrontando do Poente com o prédio anterior, inscrita na matriz sob o artigo (...) , descrita na CRP sob o n.º (...) da mencionada freguesia, adquirida a N (…) viúvo, por escritura pública de compra e venda de 25/11/2004, outorgada no Cartório Notarial de (...) , lavrada a fls. 81 do Livro de Notas para escrituras diversas n.º 91-C (art.º 13º da p. i.).

            - Prédios estes que os AA. e seus antecessores, desde há pelo menos 50 (cinquenta) anos, detêm, como se de coisa sua se trate, o que fazem ininterrupta e consecutivamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, habitam-nos, realizam nos mesmos obras de conservação e de ampliação, construíram anexos, neles arrumam bens móveis, materiais e pertences diversos, pagam as contribuições e impostos, na convicção de exercerem um direito próprio, factualidade esta dada como assente pelas instâncias, conforme vem assinalado e reproduzido nos pontos 5 a 9º da fundamentação de facto do Acórdão (art.º 14º da p. i.).

            - Os mencionados imóveis e seus anexos assentam e foram construídos sobre antiga parede ou muro de pedra de xisto, como assim se alcança e é perfeitamente visível no local (art.º 15º da p. i.).

            - Imóveis estes que são as únicas construções existentes sobre tal parede ou muro, que as sustenta do lado sul, ocupando toda a largura da mesma parede ou muro (art.º 16º da p. i.).

            - Formando as paredes destas construções do lado sul, conjuntamente com a parte visível exterior de antiga parede ou muro de suporte, em pedra de xisto - com largura de 60 cm e extensão de 3 m calculada entre a parede poente em tijolo, sem reboco, de construção anexa dos AA., que serve de casa de banho, até à linha limite do logradouro em degrau, de acesso às mesmas casas e anexos, pela Travessa do (...) -, a estrema Sul do mesmo conjunto predial dos AA. (art.º 17º da p. i.).

            - Estrema Sul esta definida por uma linha ideal que se inicia a partir da junção Nascente/Sul do conjunto predial dos AA., junto à Rua da (...) , seguindo o alinhamento da parede sul das casa e anexos, contorna a parede poente em tijolo, sem reboco, de construção anexa dos AA., que serve de casa de banho, até alcançar a parte visível do muito antigo muro exterior em pedra de xisto, e prossegue ao longo dos 3 m de extensão deste e termina na junção com o Poente, na Travessa do (...) , no ponto definido pela vertical tangente com o início do pequeno logradouro de acesso em degrau, para as casas e anexos dos AA., adjacente ao portão em ferro (art.º 18º da p. i.).

            - Muro muito antigo em pedra de xisto, assim definido e especificado, bem visível do lado dos Autores, que conjuntamente com a parede sul dos prédios urbanos e anexos, delimita e divide a sul, há seguramente 50 (cinquenta) e mais anos, o mencionado conjunto predial dos AA. do terreno de oliveiras e outras árvores em parte do qual os RR. vieram a construir a muito mais recente sua casa de habitação (art.º 19º da p. i.).

            - Muro divisório em pedra de xisto, que foi construído pelos antecessores e antepossuidores dos AA., a expensas suas, há 50 e mais anos, tanto para suporte e segurança do terreno e das casas, como também para delimitar a estrema sul do seu conjunto predial e anexos, do então prédio de oliveiras situado a um nível inferior, cerca de 3 m mais abaixo, onde os Réus actualmente possuem a sua casa de habitação (art.º 20º da p. i.).

            - Usando, gozando, ocupando e reparando os AA. e seus antecessores, o referido muro divisório, utilizando-o na satisfação das suas necessidades e interesses sempre que necessário, consecutiva e ininterruptamente, como parte integrante do seu conjunto predial, sobre ele construindo e assentando em toda a sua largura, como coisa sua, as paredes sul das casas e anexos (art.º 21º da p. i.).

            - Nele cravando e fixando rede em arame, retirando em suma do mesmo muro todas as utilidades e potencialidades do fim a que se destina, tudo assim fazendo de boa fé, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém e com a natural convicção de exercerem sobre o mesmo um direito próprio e de propriedade plena (art.º 22º da p. i.).

            - Actos materiais de posse e de convicção de exercício de direito próprio que configuram a aquisição por usucapião pelos AA., do direito de propriedade do muro, que expressamente invocam (art.º 23º da p. i.).

            - Confinando com a descrita estrema sul do conjunto predial urbano dos AA., formada pelo alinhamento e implantação das paredes sul das construções e muro integrante em pedra de xisto, sempre existiu há 40, 50 e mais anos, a um nível inferior, cerca de 3 m mais baixo, um prédio rústico, composto por terreno de oliveiras e outras árvores (art.º 24º da p. i.).

            - Encontrando-se actualmente, numa parcela da área de tal terreno de oliveiras e outras árvores, implantada a casa que os Réus Salvador e mulher construíram de raiz para sua habitação (art.º 25º da p. i.).

            - Casa de habitação dos Réus cujas características de implantação, área, tipo, materiais e técnica de construção, revela que foi edificada passadas largas dezenas de anos após a construção das antigas casas dos AA. e do muro em pedra de xisto, tornando perceptível que estas e o muro são de construção muito anterior e antiga, já existindo muitos anos antes da construção da casa dos Réus (art.º 26º da p. i.).

            - Persistindo os Réus até ao presente, em declarar e arrogarem-se serem eles os donos do aludido muro em pedra de xisto de suporte e divisório, sobre o qual assentam e apoiam as paredes sul do conjunto predial dos AA., é esta a via judicial adequada e própria, para que os mesmos sejam condenados a reconhecer e respeitar, de uma vez por todas, que são os AA., os únicos legítimos e exclusivos donos do muro (art.º 29º da p. i.).

            - Direito dos AA. sobre o antigo muro em pedra, que em nada é prejudicado ou beliscado com a circunstância de ao mesmo muro vir morrer e ser ligado, do lado da rua pública designada por Travessa do Reitor - em resultado da execução das obras do alargamento da mesma rua pública em finais da década de 1980, para permitir a passagem de veículos automóveis - para a sustentação e suporte da alargada Travessa do Reitor, o alinhamento da parede em betão de suporte da mesma alargada rua pública (art.º 30º da p. i.).

            j) - E pede-se que os Réus sejam condenados a: «a) Reconhecer o direito de propriedade exclusiva dos AA. sobre o muro divisório em pedra de xisto, que serve de suporte do conjunto predial dos AA. formado pelos prédios urbanos identificados em a) e b) do artigo 13º desta p. i. e anexos, e delimita a estrema sul do mesmo conjunto predial da estrema norte do terreno de oliveiras onde os Réus construíram a sua casa de habitação. b) Absterem-se de ocupar com qualquer material ou objecto, ou utilizarem como parede de construção ou apoio, qualquer parte do muro e de nele praticar qualquer acto que perturbe, interfira ou limite o direito de propriedade dos AA. sobre o mesmo muro

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (art.º 5º, n.º 1 do CPC).

            Na petição, com que propõe a acção, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção (art.º 552º, n.º 1, alínea d) do CPC).

            As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado (art.º 580º, n.º 1 do CPC). Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (n.º 2).

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (art.º 581º, n.º 4).

            Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.ºs 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 696º a 702º (art.º 619º, n.º 1 do CPC).

            As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.º 620º, n.º 1 do CPC).

            A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (art.º 628º do CPC).

            3. A nossa lei adjectiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão (despacho, sentença ou acórdão) decorrente do seu trânsito em julgado (art.º 628 do CPC).

            O caso julgado é, evidentemente, uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.[5]

            4. A partir do âmbito da sua eficácia, importa considerar o caso julgado formal e o caso julgado material: o primeiro tem um valor estritamente intraprocessual, dado que só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida; o segundo é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão, mas também pode sê-lo em processo distinto (art.ºs 619 e 620 do CPC).

            O caso julgado resolve-se na inadmissibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer tribunal, mesmo por aquele que a proferiu.

            Todavia, o caso julgado não se limita a produzir um efeito processual negativo, traduzido na insusceptibilidade de qualquer tribunal, mesmo aquele que é o autor da decisão, se voltar a pronunciar sobre essa mesma decisão. Ao caso julgado deve também associar-se um efeito processual positivo: a vinculação do tribunal que proferiu a decisão e, eventualmente, de outros tribunais, ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada por aquele tribunal, ou seja, ao conteúdo da decisão desse mesmo tribunal.

            5. Na petição inicial o A. propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos.

O pedido é a pretensão do autor (art.º 552º, n.º 1, alínea e) do CPC); o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial/e o modo por que intenta obter essa tutela; o efeito jurídico pretendido pelo autor (art.º 581º, n.º 3 do CPC).

            A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, direito que não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir - o acto ou facto jurídico concreto em que o autor se baseia para formular o seu pedido, de que emerge o direito que se propõe fazer declarar.[6] Identifica-se, pois, com o(s) concreto(s) facto(s) da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor, ou seja, a causa de pedir traduz-se nos acontecimentos da vida em que o A. apoia a sua pretensão.[7]

            6. A eficácia do caso julgado material - relevante para a situação em análise - varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

            Se o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i. é, se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado - que tem por finalidade evitar que o tribunal da acção posterior seja colocado na alternativa de reproduzir ou de contradizer a decisão transitada (art.ºs 580 n.º 1, in fine, e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória (art.º 577º, alínea i) do CPC).

            Mas se a relação entre o objecto da decisão transitada e o da acção subsequente, não for de identidade, mas de prejudicialidade, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial (i. é, que constitui pressuposto ou condição de julgamento de outro objecto) vale como autoridade de caso julgado na acção em que se discuta o objecto dependente. Quando isso suceda, o tribunal da acção posterior – acção dependente – está vinculado à decisão proferida na causa anterior – acção prejudicial.

            A figura da autoridade do caso julgado - que é distinta da excepção do caso julgado e que não supõe a tríplice identidade por esta exigida - visa garantia a coerência e a dignidade das decisões judiciais.

            Assim, nesta matéria, há que fazer uma distinção entre a excepção do caso julgado e a autoridade do caso julgado, de extraordinária relevância, dado que, não se tratando da excepção do caso julgado mas da autoridade do caso julgado, não é exigível a apontada relação de identidade, i. é, a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir; só no tocante à excepção do caso julgado - dado que assenta na ideia de repetição de causas - deve reclamar-se uma identidade quanto aos elementos subjectivos (partes) e objectivos (pedido e causa de pedir) da instância (art.º 580º, n.º 1 do CPC).[8]

            7. O instituto do caso julgado encerra assim duas vertentes, que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal. A autoridade do caso julgado justifica-se/impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei: no mundo do Direito tudo se passa como se a sentença fosse a expressão fiel da verdade e da justiça.[9]

            8. O caso julgado está, porém, sujeito a limites, designadamente objectivos, subjectivos e temporais.

            No tocante aos limites objectivos - i. é, ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado - este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão, ou seja, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art.º 607º, n.º 3 do CPC).

            O problema está, porém, em saber se, de harmonia com uma concepção restritiva, apenas cobre a parte decisória da sentença ou antes se estende - de acordo com uma concepção ampla - a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão, tendo-se por preferível uma concepção intermédia, para o qual se orienta, maioritariamente, a jurisprudência: o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença.[10]

            Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos.

E não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão; os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi.[11]

            9. É entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência que a autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.º 581 do CPC.

            Trata-se da vinculação de um tribunal de uma acção posterior ao decidido numa acção anterior: é isso precisamente que constitui a autoridade de caso julgado; a autoridade do caso julgado impede a apreciação e conhecimento dos factos inerentes às pretensões formuladas.[12]

            10. Como vimos, afirmou-se no acórdão desta Relação de 12.7.2017, tirado na apelação 189/11.3TBVLF.C1, que (na primeira acção) não forem alegados factos que permitam sustentar a aquisição do direito de propriedade (relativo ao muro em causa) por usucapião - os AA. não invocaram «factos que permitissem a aplicação da presunção de propriedade exclusiva (do muro), consagrada no n.º 5 do art.º 1371º do CC e nada tendo resultado provado  - desde logo porque nada foi alegado - quanto à origem do muro e uso que lhe foi dado até à época em que estalou o litígio, em ordem a fundamentar o direito de propriedade sobre o mesmo muro por eventual usucapião (cf. II. 1. h), supra).

Assim sendo, existindo identidade de sujeitos (elemento subjectivo), na p. i. da mencionada primeira acção faltava alegar os factos concretos que suportassem a aquisição originária do direito de propriedade sobre o aludido muro pelos AA. (que também aí se pretendia ver reconhecido no âmbito do invocado “conjunto predial urbano“ - cf. II. 1. a), supra); omitiu-se, pois, o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou daquela concreta pretensão deduzida em juízo (como parte do elemento objectivo)[13]; a p. i. era omissa quanto à fonte do alegado direito (causa de pedir), omissão que veio a ser suprida na presente acção, com a indicação de diferente e substanciada causa de pedir (ou seja, invocando-se, agora,  factos novos e essenciais/fundamentais; identificando-se o invocado direito não só através do seu conteúdo e objecto, mas também através da sua causa ou fonte[14]) adequada ou potencialmente conducente à procedência do pedido (matéria de facto essencial à fixação do objecto desta segunda acção e sua procedência; cf., sobretudo, II. 1. alíneas i) e j), supra).

Tudo isto em linha com o referido entendimento de que toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos (cf. ponto II. 8., supra).

            11. A situação em análise não é isenta de dificuldades.

Contudo, com suficiente segurança, podemos afirmar que não ocorre a identidade da causa de pedir e que perante o descrito enquadramento fáctico e normativo será de concluir que não procede a autoridade do caso julgado da decisão absolutória proferida na primeira acção (quanto ao objecto novamente trazido à presente acção) para impedir a discussão e a decisão da pretensão formulada pelos AA. na segunda acção.

Na verdade, sabendo-se que a função positiva do instituto do caso julgado é desempenhada pela autoridade do caso julgado, visando evitar que o Tribunal seja confrontado com a necessidade de reproduzir ou de contradizer uma anterior decisão que apreciou determinada questão ou resolveu determinado litígio, e que para invocar a autoridade de caso julgado é fundamental apreciar se a questão se encontra ou não coberta por alguma decisão anterior, de tal modo que se torne desnecessário ou inconveniente uma pronúncia posterior (pressupõe a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida)[15], poder-se-á dizer que as assinaladas diferenças quanto à causa de pedir numa e noutra das acções, bem como a absolvição decretada na primeira acção em virtude do circunstancialismo dito em II. 10., supra, afastam, necessariamente, a figura da autoridade do caso julgado, que só ocorre na medida/limite do que foi apreciado e decidido, não obstando a que em novo processo seja decidido aquilo que não ficou definido no caso julgado anterior.[16]

O Tribunal não poderá, pois, ver-se confrontado com a possibilidade de decidir os mesmos factos, em ambas as acções, de modo contraditório, desde logo, porque inexiste a necessária e suficiente similitude factual/objectiva - a segunda acção não deverá ser repelida porquanto não tende, pelo seu objecto (em toda a sua complexidade de acção real por excelência), a colocar o juiz na alternativa, ou de se contradizer, ou de confirmar pura e simplesmente a sentença já proferida.[17]

Por conseguinte, não verificada a excepção inominada de autoridade de caso julgado, a acção deverá prosseguir contra os Réus.

12. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a decisão recorrida e julga-se não verificada a excepção inominada de autoridade de caso julgado, com o consequente prosseguimento da acção.       

Custas pelos Réus.


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26.02.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Cf. os art.ºs 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial de 16.12.2011, reproduzida a fls. 23 verso e seguintes.
[2] Cf. a mesma peça, a fls. 25.
[3] Cf. os art.ºs 1º, 2º e 3º da petição inicial da acção 189/11.3TBVLF (fls. 22 e seguintes), os demais artigos do mesmo articulado/ibidem e os documentos de fls. 41 e seguintes e fls. 62 e seguintes
[4] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[5] Vide M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 568.

[6] Vide, entre outros, J. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pág. 369 e 374 e seguinte; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 110 e seguinte; Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 232 e seguintes e J. Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, págs. 321 e seguinte.

[7] Cf. o acórdão do STJ de 01.4.2008-processo 08A035, publicado no “site” da dgsi.

[8] Vide, nomeadamente, Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 260 e 318 e seguintes; Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 304 e seguintes; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, págs. 91 e seguintes; A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 383 e seguintes e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, Lisboa, 1973, págs. 60 e seguinte e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 26.01.1994, 19.5.2016-processo 4091/07.5TVPRT.P1.S1, 05.9.2017-processo 6509/16.7T8PRT.P1.S1, 20.12.2017-processo 2377/12.6TBABF.E1.S2, 27.02.2018-processo 2472/05.8TBSTR.E1, 18.9.2018-processo 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1, 18.9.2018-processo 21852/15.4T8PRT.S1, 18.10.2018-processo 3468/16.0T9CBR.C1.S1 e 13.11.2018-apelação 4263/16.1T8VCT.G1.S1 [assim sumariado: «Quando se fala de caso julgado na vertente de autoridade (o chamado efeito positivo do caso julgado) do que se está a falar é da imposição da decisão tomada sobre uma questão que é prejudicial em relação à decisão a tomar num processo subsequente (processo dependente).»] e da RC de 28.9.2010-processo 392/09.6TBCVL.C1, 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1, 30.6.2015-processo 89/14.5TBLRA.C, 14.11.2017-processo 826/14.8T8GRD.C1 e 06.3.2018-processo 10324/15.7T8CBR.C1, publicados, o primeiro, no BMJ 433º, 515 e, os restantes, no “site” da dgsi.

[9] Vide Alberto dos Reis, ob. cit., Vol. III, pág. 93 e seguintes e, entre outros, o acórdão do STJ de 03.11.2016-processo 1628/15.0T8STR-A.S1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Vide Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 318 e J. Rodrigues Bastos, ob. e vol. cit., pág. 253 e, entre outros, os acórdão do STJ de 10.7.1997, in CJ-STJ, V, 2, 165 e da RC de 24.02.2015-processo 1265/05.7TBPBL.C1 (já cit.).

[11] Vide M. Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 578 e seguinte e o cit. acórdão do STJ de 01.4.2008-processo 08A035.
[12] Cf. o citado acórdão da RC de 28.9.2010-processo 392/09.6TBCVL.C1 e o acórdão da RE de 22.11.2018-processo 687/16.3T8STR.E1, publicado no “site” da dgsi.
[13] Cf., designadamente, os acórdãos da RC de 27.9.2016-processo 220/15.3T8SEI.C1 e de 14.11.2017-processo 7034/15.9T8VIS.C1 (deste mesmo colectivo), publicados no “site” da dgsi.
[14] Cf. o acórdão da RP de 06.6.2016-processo 1226/15.8T8PNF.P1 [tendo-se aí concluído, nomeadamente: «A autoridade do caso julgado não se verifica relativamente a matéria de facto considerada não provada noutro processo.»], publicado no “site” da dgsi.
[15] Cf. o cit. acórdão do STJ de 03.11.2016-processo 1628/15.0T8STR-A.S1.

[16] Cf. o cit. acórdão da RC de 06.3.2018-processo 10324/15.7T8CBR.C1.
[17] Cf. o acórdão da RG de 03.11.2016-processo 1584/15.4T8PTL.G1, publicado no “site” da dgsi.