Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
768/12.1TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO INTELECTUAL
FALSAS DECLARAÇÕES PERANTE AUTORIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CP
Sumário: O segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” apenas inclui a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não a mera declaração de factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo de instrução 768/12.1TAVIS.C1 da Comarca de Viseu, Instância Central de Instrução Criminal foi proferida, em 6 de Maio de 2014, a seguinte decisão instrutória:

Declaro encerrada a Instrução.

Mantém-se a competência do tribunal, a legitimidade dos sujeitos processuais, inexistindo quaisquer nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.

                                               *

No âmbito dos presentes autos, no termo do inquérito, e por ter entendido não se colherem indícios suficientes da prática pelos arguidos A... , B... e C... dos crimes da prática do crime de abuso de confiança que lhes vinha imputado pela assistente na queixa apresentada nos autos, foi proferido pelo Ministério Público, no termo do inquérito, despacho de arquivamento dos autos, nos termos e com os fundamento de fls. 132 e ss., que se dão por integralmente reproduzidos.

Inconformada com o arquivamento dos autos, veio a assistente D... , requerer a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia dos arguido pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido nos termos do artigo 205º do Código Penal, nos termos constantes do requerimento de abertura de instrução de fls. 96 e ss..

No âmbito do processo n.º 617/12.0TAVIS (apenso aos presentes autos), foi, no termo do inquérito proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público relativamente à queixa apresentada pela assistente A... contra as arguidas D... e E... , por se considerar não resultarem indícios suficientes da prática, pelas arguidas, do crime imputado.

Inconformada com o despacho de arquivamento dos autos, veio a assistente, a fls. 201 e ss. dos autos, requerer a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos constantes do RAI, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia das arguidas D... e E... pela prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º do código Penal e de um crime de falsas declarações, previsto e punido  nos termos do artigo 360º do código Penal e 97º do Código do Notariado, nos termos e com os fundamentos constantes do RAI, que se dão por integralmente reproduzidos.

Foi declarada aberta a instrução.

Procedeu-se à inquirição da testemunha G....

Procedeu-se à realização de debate instrutório.

                                               *

A instrução destina-se, tal como o estabelece o artigo 286º do Código de Processo Penal, à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

O artigo 308º do Código de Processo Penal estabelece, no seu n.º 1 que, se até ao encerramento de instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Consideram-se suficientes os indícios, nos termos do disposto no artigo 283º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Quanto a este conceito, escreve Figueiredo Dias que, os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição, acrescentando este autor que, logo se compreende que a falta delas, “provas”, não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem que ser sempre valorada em função do arguido.
Assim, deve o juiz proferir despacho de pronúncia do arguido quando os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior e seja de concluir, com uma probabilidade razoável, que tais elementos se manterão em julgamento, ou quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação.
                                          *

Pugna a assistente A... pela prolação de despacho de pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal.

De acordo com o disposto no artigo 205º n.º 1 do Código Penal, quem, ilegitimamente, se apropriar de coisa móvel que lhe foi entregue por título não translativo de propriedade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

São elementos típicos deste tipo de crime a apropriação ilegítima, de uma coisa móvel, entregue ao agente por título não translativo de propriedade.

Apropriar-se é fazer sua coisa alheia.

Na apropriação ilegítima, esta sucede à posse ou detenção legítimas, pois que, tal posse ou detenção têm origem numa entrega válida ao agente da coisa, passando este a detê-la de forma lícita a título precário ou temporário.

Como referem Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado, II vol., pág. 686, de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus. Deixa então de possuir em nome alheio e faz entrar a coisa no seu património ou dispõe dela como se fosse sua, ou seja, com o propósito de não a restituir[1], ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer.

A entrega será aquela que, não implicando transferência da propriedade, não justifique a apropriação, sendo entregue com a constituição de uma obrigação de afectação a um uso ou fim determinado, ou com a constituição de obrigação de restituição.

A entrega terá que ser, assim, válida, ou seja, decorrente de razão justificada, terá que decorrer de acto do seu proprietário, de detentor legítimo ou de terceiro obrigado à entrega, com a obrigação de a restituir.

A consumação do crime dá-se com a apropriação, isto é, com a inversão do título da posse, situação que ocorre quando, estando a coisa em causa na posse ou na detenção do agente por modo legítimo, embora a título não translativo de propriedade, ele se apropria do mesmo actuando como seu dono[2], ou seja, quando o agente passa de possuidor legítimo em nome alheio a possuidor ilegítimo em nome próprio.

A apropriação tem que ser traduzida por actos objectivos reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como sua, designadamente pela não entrega injustificada da coisa, quando solicitada tal entrega.

Alega a assistente D... que, no dia 18 de Fevereiro de 2012 faleceu K..., no estado de casado em primeiras e únicas núpcias com a arguida A... , tendo o K... falecido sem deixar testamento e não fez qualquer doação em vida, tendo-lhe sucedido como herdeiros A... , B... , D... , E... , F... e B... , permanecendo a herança deixada por óbito de K... ilíquida e indivisa; que à data da morte de K... existiam na Caixa Geral de Depósitos as contas bancárias com os números 0035 0930073962220, 0742006038820, 0930073962500 e 0742006038000, nas quais se encontrava depositada a quantia total de € 93.326,00; que no dia 22 de Fevereiro de 2012, a arguida A... , acompanhada pelo arguidos B... e C... , dirigiu-se à agência de Viseu da Caixa Geral de Depósitos e transferiu todo o dinheiro existente nas referidas contas para uma conta que abriu em seu nome com o número 930152372300, tendo, nessa mesa data, efectuado nova transferência para uma outra conta no valor de 90.000,00€; que no dia 28 de Março de 2012, foi levantada a quantia de € 2.800,00 da nova conta, ficando esta apenas com € 536,00; no dia 28 de Março de 2012, foi reposta na conta n.º 930152372300 a quantia de € 67.500,00 e no imediato foi levantada a quantia de € 10.000,00, seguindo-se mais levantamentos no montante de € 5.000,00, no dia 2 de Abril, de € 10.000,00 no dia 3 de Abril, de € 5.000,00 no dia 4 de Abril, de € 10,000,00 no dia 5 de Abril e de € 10.000,00 no dia 9 de Abril de 2012, no total de € 50.000,00, alegando que tais levantamentos foram feitos em parcelas inferiores a € 10.000,00 para não serem justificados.

Mais refere a assistente que em 8 de Maio de 2012, a arguida A... apenas tinha nas suas contas as quantias de € 18.039,00 à ordem e € 22.50,00 a prazo, não lhe sendo conhecidas outras contas bancárias, havendo suspeitas de que o dinheiro em falta tivesse ficado na posse de B... e C... , sem que fosse sua intenção entrega-lo à herança.

No termo do inquérito concluiu o ministério Público pela falta de indiciação dos elementos típicos do crime imputado aos arguidos pela assistente D... , considerando que, da conjugação de todos os elementos de prova que constam dos autos não resulta que os arguidos, designadamente A... tenham agido com intenção de se apropriar das quantias monetárias depositadas nas aludidas contas bancárias, até porque, na prática, pertencia à arguida A... , na medida em que esta era co-titular das contas bancárias, pelo que falece um dos elementos do tipo de crime em apreciação.

Da prova colhida nos autos em sede de inquérito, não resulta, ao contrário do alegado pela assistente D... do RAI, a manifesta e inquestionável intenção dos arguidos em se apropriarem do dinheiro pertencente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de K... , pois que os depoimentos que referem que não era intenção dos arguidos restituírem tais quantias resultam da queixosa, da sua irmã E... e dos maridos destas, sendo que os arguidos negaram tal intenção.

A falta de intenção, por banda da arguida A... , em se apropriar de tais quantias, resulta indiciada, desde logo em face do requerimento por esta apresentado, que deu origem ao processo de inventário n.º 1569/12.2TBVIS, a correr termos do 3º Juízo Cível deste Tribunal, no qual figura a arguida A... como cabeça de casal, cargo que lhe cabe por ser cônjuge sobreviva (artigo 2080º, n.º 1, al. a) do Código Civil), e como tal, cabendo-lhe administrar a herança nos termos previstos no artigo 2079º e 2087º do Código Civil, tendo a arguida, aquela qualidade de cabeça de casal, na relação de bens que apresentou nos identificados autos, relacionado as quantias monetárias em questão, como fazendo parte do acervo hereditário, tal como resulta de fls. 341 a 379.

Ademais, importa ainda referir que, da aludida quantia de € 93.326,00, por a arguida A... ser cônjuge e em face do regime de bens, atento o disposto no artigo 1724º ou 1732º do Código Civil, em abstrato, metade desse valor cabia-lhe por direito, por ser cônjuge meeira, fazendo assim parte da sua meação, não entrando metade na partilha dos demais herdeiros.

Dos autos não se mostra ainda possível concluir que as quantias monetárias a cujos levantamentos se procedeu tenham sido entregues aos arguidos B... e C... , por falta de indiciação nesse sentido, uma vez que as quantias foram levantadas pela arguida A... , sendo ainda que tais valores irão entrar na partilha a realizar, não tenso sido determinado qual o valor que cabe a cada herdeiro, valor esse que pode ser preenchido com outros bens pertencentes da herança, razão pela qual, e fazendo as quantias monetárias em causa parte da herança, juntamente com os demais bens, não é possível falar em abuso de confiança, sendo que, da parte que pertence à arguida A... como meeira, que é sua, a mesma pode dispor dela livremente, entregando-a a quem bem entender.

Pelo exposto, e tal como se concluiu no termo do inquérito, dos autos não resultam indícios suficientes da prática pelos arguidos A... , B... e C... da prática do crime de abuso de confiança, previsto pelo artigo 205º do Código Penal.

                                               *

Relativamente ao crime de Falsas declarações, imputado pela assistente no requerimento de abertura de instrução às arguidas D... e E... , importa referir o seguinte:

Através da leitura do artigo 97º do Código do notariado resulta, após interpretação, que quem prestar falsas declarações perante notário é punido com a pena prevista para o crime de falsidade de declarações perante notário. Ou seja, não se faz a remissão para os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, mas tão só para a sua moldura penal, quer do n.º 1 quer do n.º 3, caso tenha existido a prévia advertência, razão pela qual, para a verificação do tipo de crime previsto pelo artigo 97º do Código do Notariado, não tem sequer de se proceder à análise dos elementos típicos do artigo 360º do Código Penal, mas apenas para os elementos do artigo 97º do Código do Notariado, sendo esta norma, e salvo o sempre devido respeito por opinião em contrário, a norma incriminadora, que remete, a sua punição e tão só esta, para o crime previsto pelo artigo 359º ou 360º do Código Penal, daí ser irrelevante, para efeito do preenchimento do tipo de crime em causa, a intervenção na qualidade de outorgantes, declarantes ou testemunhas, sendo apenas de exigir que tais pessoas, perante notário, tenham prestado declarações e afirmações que sabiam serem falsas e daí decorrer o prejuízo para terceiros, que se indicia nos presentes autos, em face dos elementos de prova indiciária.

Questão diferente é a da interpretação da norma punitiva para a qual o artigo 97º do Código do Notariado remete, pois que do catálogo dos crimes previstos no Código Penal, inexiste qualquer norma que puna expressamente a falsidade de declarações perante oficial público, tal como resulta da leitura do artigo 360º do Código Penal, bem como do artigo 259º do citado diploma legal, daqui podendo efectivamente decorrerem dificuldades interpretativas quanto à concreta norma punitiva, e que poderão levar, em situações idênticas, à aplicação, por remissão do artigo 97º do Código do Notariado, de punições distintas, o que vai contra o princípio da legalidade e o princípio da igualdade.

O artigo 97º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, que contém a previsão de um tipo legal de crime autónomo que remete para as penas da falsidade de testemunho indicadas no artigo 360.°, n.° 1, do Código Penal, tem o seguinte teor:

“Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura” (sublinhado nosso).

É, assim, elemento do tipo, o “prejuízo de outrem”, de tal modo que, não havendo nem podendo haver prejuízo causado pelas falsas declarações, estas nem sequer são ilícitas.

As meras falsas declarações (como as previstas no art. 359.º, n.º 2, do Código Penal, quanto à identificação do arguido) são punidas quer haja ou não prejuízo para terceiros, pois aí tem-se em vista, apenas, a “realização da justiça”. Já as falsas declarações perante notário ou conservador consistem ou visam uma forma de aquisição de direitos. Numa tal situação, em que as falsas declarações são, efectivamente, um meio através do qual se causa um real e efectivo prejuízo a terceiro, justifica-se que tal prejuízo de terceiro seja elemento do tipo. Daí resulta a diferença que permitiria a autonomização do crime do artigo 97º, n.º 2 do Código do Notariado em relação aos tipos legais definidos nos artigos 359º e 360º do C. Penal.

Resta saber qual o tipo de crime a que se refere ou para cuja punição remete o artigo 97º do Código do Notariado quando alude ao “crime de falsas declarações perante oficial público”.

Há jurisprudência que defende que tal conduta, não obstante advertidos pelo notário nos termos do artigo 97º do Código do Notariado, acabam por prestar declarações que sabiam não corresponderem à realidade, não integrará o crime previsto e punido pelos artigos 359º n.ºs 1 e 2, porquanto os outorgantes e intervenientes nessa escritura não prestaram tais declarações na qualidade de partes, de assistente ou de partes civis em processo penal ou na qualidade de arguidos sobre a sua identidade ou antecedentes criminais, nem foram ajuramentados. Assim, e com a alteração que deu origem à actual redacção do artigo 97º do Código do Notariado, defendia-se que essa conduta não seria susceptível de integrar qualquer tipo legal de crime.

Há ainda quem defenda que as falsas declarações podem integrar, em abstracto, a prática de um crime de falsas declarações previsto e punido nos termos dos artigos 97º do Código Notariado e artigo 360°, n° 1, do Código Penal, por ser essa a interpretação quer com recurso ao elemento sistemático, quer quanto ao elemento histórico.

Há também quem defenda que tal actuação configura a prática de um crime de falsificação (ideológica de documentos), prevista e punida nos termos do artigo 256º do Código Penal.

Importa ainda referir que a mesma actuação imputada às arguidas não as poderá fazer incorrer, em concurso efectivo de infracções na prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1, al. d) do Código Penal e na prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo artigo 360º do Código Penal e artigo 83º, n.º 2 e 97º do Código do Notariado

Pese embora o nosso entendimento, e não ignorando a flutuação jurisprudencial nesta matéria, e que por nós tem sido perfilhado em várias decisões, que o artigo 97º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, contém a previsão de um tipo legal de crime autónomo que remete para as penas da falsidade de testemunho previstas no artigo 360°, n.° 1 do Código Penal, somos de admitir, pela bondade dos fundamentos aduzidos no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012 e pelos fundamentos supra expostos, que a norma incriminadora não é certa, uma vez que não remete para um tipo de crime específico.
Por todo o exposto, e considerando-se a inconstitucionalidade do artigo 97º do Código do Notariado por violação do artigo 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, determina-se a não pronúncia das arguidas D... e E... , quanto aos factos constantes do requerimento de abertura de instrução de fls. 201 e ss.., assim se determinando o oportuno arquivamento dos autos nesta parte.

*

Dos autos, não resultaram indícios que permitissem concluir de forma suficiente pela verificação dos elementos típicos dos crimes imputados aos arguidos, os elementos constantes dos autos não se mostram suficientes, a nosso ver, para alicerçar uma acusação ou, um despacho de pronúncia, sendo mais provável, em sede de julgamento uma absolvição do que uma condenação dos arguidos quanto aos factos constantes dos requerimentos de abertura de instrução.

Os elementos são frágeis e pouco consistentes e não se mostram suficientes para, em sede de julgamento, alicerçar uma condenação, pelo que se decide pela não pronúncia dos arguidos A... , B... e C... , assim se determinando o oportuno arquivamento dos autos nesta parte, nos termos do disposto no artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

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Pela instrução é devida taxa de justiça, da responsabilidade da assistente A... , a qual se fixa em duas UC e da responsabilidade da assistente D... , a qual se fixa em três UC’s.

Notifique.

Inconformada parcialmente com a decisão instrutória de não pronúncia, dele veio recorrer a assistente A... , condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões:

A.

Após  encerrado  o  Inquérito  veio  o  Ministério  Público  determinar  o  arquivamento  dos  autos,  e  por  não  se  conformar  com  a  decisão  de  arquivamento  proferida,  veio  a  ofendida   A... ,  também  constituída  Assistente,  requerer  a  abertura  de  instrução,  requerendo  a  pronúncia  das  arguidas   E...  e   D... ,  por  fortes  e  seguros  indícios  existentes  de  as  mesmas  terem  cometido,  em  autoria  e  comparticipação,  um  crime  de  falsificação  de  documento,  p. e p. na  alínea  d)  do  n.º 1  do  art.º  256.º  do  Código  Penal  e  um  crime  de  falsas  declarações  p.  e  p.  no  artigo  360.º  n.º 1  do  C.P.  e  artigo  83.º  n.º  2  e  97.º  do  Código  do  Notariado.

Dos  Factos

B.

Em  Fevereiro  de  2012  a  arguida   D...  e  a  arguida   E...  compareceram  na  conservatória  do  Registo  Civil  de  Viseu.

C.

E  no  âmbito  de  Procedimento  Simplificado  de  Habilitação  de  Herdeiros,  a  arguida   D...  declarou  perante  a  senhora  oficial  adjunta  da  conservadora  do  Registo  Civil  de  Viseu  que  a  sua  mãe  e  o  seu  irmão  mais  velho  não  tinham  disponibilidade  para  assumir  o  cargo  de  cabeça  de  casal,  declarando  ser  a  arguida   D...  a  cabeça  de  casal  da  herança  ilíquida  e  indivisa  aberta  por  óbito  de   K... ,  até  por  tera  consentimento  de  todos  os  herdeiros.

D.

A  arguida   D...  não  só  bem  sabia  que  tais  factos  eram  falsos (Já  que  nem  a  mãe,  nem  o  irmão  mais  velho  haviam  manifestado  qualquer indisponibilidade)  como  bem  sabia  que  não  era  ela  a  cabeça  de  casal  nem  tinha  o  consentimento  de  todos  os  herdeiros  para  assumir  tal  cargo.

E.

Ademais,  efetuou  mesmo  declarações  em  tal  qualidade  na  dita  Escritura  de  Habilitação  de  Herdeiros.

F.

A  arguida  declarou  perante  Oficial  Público  e  fez,  por  isso,  constar  de  Escritura  Pública  (documento  autêntico)  a  existência  de  um  facto  -  a  arguida   D...  reunir  as  condições  legais  para  ser  cabeça  de  casal  -  que  bem  sabiam  que  não  correspondia  à  verdade.

G.

A  arguida  agiu  livre,  voluntária  e  conscientemente  ao  outorgar  na  escritura  pública  nos  termos  supra  referidos,  o  que  fez  com  vista  a  criar  um  documento  a  que  fosse  atribuída  fé  pública,  sabendo  que  o  que  declarava  e  fazia  constar  no  mesmo  era  juridicamente  relevante  e  não  correspondia  à  verdade  e  quis  fazer  constar  desse  documento  esse  facto  falso.

H.

A  arguida  sabia  que,  dessa  forma,  obtinham  para  si  um  benefício  ilegítimo  a  que  não  tinha  direito  traduzido  na  nomeação  da  arguida   D...  como  cabeça  de  casal  da  herança,  facto  com  relevância  jurídica,  e  inscrito  em  documento  que  produziu  uma  alteração  no  mundo  do  Direito,  tendo  passado  a  ser  a  arguida   D...  durante  algum  tempo,  a  legal  administradora  da  herança  e  de  todos  os  bens  que  integram  o  acervo  hereditário.

I.

Impossibilitando  ainda  que  a  pessoa  com  direito  legal  de  ocupar  tal  cargo  o  pudesse  ter  de  imediato  feito  e  pudesse  ter  passado  a  assumir  desde  logo  a  administração  dos  bens  da  herança,  nomeadamente  junto  de  Bancos  e  das  repartições  de  finanças  e  de  registo  predial.

J.

A  arguida  tinha  assim  consciência  que  a  sua  conduta  era  proibida  e  punida  pela  lei  penal,  não  obstante,  agiu  livre  e  conscientemente,  tendo  a  sua  vontade  determinada  para  a  prossecução  da  conduta  acima  descrita.

K.

A  arguida  prestou  declarações  e  afirmações  que  sabiam  serem  falsas,  decorrendo  daí  prejuízo  para  terceiros,  no  entanto,  não  se  coibiu  de  informar  e  declarar  perante  a  Oficial  da  conservatória  do  Registo  Civil  de  Viseu  que  por  acordo,  inexistente,  de  todos  os  herdeiros,  seria  a  arguida   D...  o  cabeça  de  casal.

L.

Ora,  mediante  um  juízo  de  interpretação,  quer  com  recurso  ao  elemento  sistemático,  quer  com  recurso  ao  elemento  histórico,  rejeita­se  a  consideração  de  base  do  supra  referido  Despacho  de  Não  Pronúncia,  deve  considerar-se  que  as  falsas  declarações  prestadas,  in  casu,  integram  um  crime  de  falsas  declarações  p.  e  p.  nos  termos  dos  artigos  97.º  do  Código  do  Notariado  e  360.º  n.º 1  do  Código  Penal.

M.

Como  deve  também  considerar-se  conforme  à  constituição  a  norma  incriminadora  constante  do  artº 97º  do  Código  do  Notariado.

N.

De  facto  tendo  a  primeira  formulação  da  norma  incrlrntnatórla  surgido  na  versão  originária  do  Código  do  Notariado,  aprovado  pelo  Decreto  -  Lei  n.º  47619,  de  31  de  Março  de  1967  -  logo,  um  diploma  anterior  à  constituição  de  1976  -  o  vício  de  constitucionalidade  orgânica  estará  afastado,  desde  que  possa  ser  convincentemente  alegada  uma  linha  de  continuidade  na  evolução  legislativa  posterior,  uma  correspondência  substancial  do  conteúdo  regulador  da  disposição  originária  com  o  das  normas  resultantes  das  alterações  posteriores.

O.

Efetivamente,  jurisprudência  existe  neste  sentido  (cf.  por  exemplo,  o  Acórdão  n.º  114/2008).

P.

Esta  questão  foi  já  apreciada  e  desenvolvida  no  Acórdão  n.º  340/2005,  que,  considerando  não  inovatório  o  regime  do  artigo  97.º  do  Código  do  Notariado,  decidiu,  em  aplicação  daquela  orientação,  não  julgar  organicamente  inconstitucional  a  norma  em  causa.

Q.

O  mencionado  aresto  começou  por  comparar  as  pequenas  diferenças  de  redação  entre  o  artigo  107.º  da  versão  originária  do  Código  do Notariado  e  o  atual  artigo  97.º  do  mesmo  diploma,  no  que  concerne  à  fixação  dos  elementos  de  incriminação,  tendo  concluído  que  essas  alterações  «não  se  afiguram  relevantes,  parecendo  resultar  de  mera  alteração  de  estilo  sem  aptidão  para  consubstanciar  uma  modificação  do  conteúdo  da  norma  que  no  preceito  se  contém».

R.

Pelo  que  dessas  diferenças  -  todas,  praticamente,  atinentes  às  formas  verbais  ou  aos  referentes  terminológicos  utilizados  -  não  resulta  uma  alteração  do  comportamento  punido,  sendo  exatamente  o  mesmo,  em  todos  os  elementos  constitutivos,  o  tipo  de  conduta  que  se  incrimina.

S.

Mas  as  duas  normas  também  divergem  no  que  diz  respeito  à  determinação  da  pena  aplicável  à  conduta  nelas  tipificadas.  Embora  ambas  se  sirvam  de  uma  técnica  remissiva,  para  outra  norma  sancionadora,  o  artigo  107.º  fá-lo  para  as  "penas  aplicáveis  ao  crime  de  falsidade",  ao  passo  que  o  artigo  97.º  prescreve  que  os  agentes  incorrem  "nas  penas  aplicáveis  ao  crime  de  falsas  declarações  perante  oficial  público".

T.

Não  obstante,  em  apreciação  desta  alteração,  também  do  ponto  de  vista  do  seu  alcance  inovatório,  o  Acórdão  n.  º  340/2005  relacionou-a  pertinentemente  com  mudanças  de  sistematização  e  de  enquadramento  normativos,  no  âmbito  do  Código  Penal,  tal  como  refere.  (Cf.  Acórdão  n.º  340/2005).

U.

Para  além  do  crime  de  falsas  declarações,  veio  a  ora  Requerente  denunciar  as  arguidas  pela  prática  de  um  crime  de  falsificação  de documento,  previsto  no  art.  256.º,  do  Código  Penal,  pune  com  pena  de  prisão  até  três  anos  ou  com  pena  de  multa:  "1  -  quem,  com  intenção  de  causar  prejuízo  a  outra  pessoa  ou  ao  Estado,  de  obter  para  si  ou  para  outra  pessoa  benefício  ilegítimo,  ou  de  preparar,  facilitar,  executar  ou  encobrir  outro  crime (...)  d)  Fizer  constar  falsamente  de  documento  ou  de  qualquer  dos  seus  componentes  facto  juridicamente  relevante (...)."

V.

O  artigo  255.º  do  Código  Penal  define  documento  como  "a  declaração  corporizada  em  escrito,  ou  registada  em  disco,  fita  gravada  ou  qualquer  outro  meio  técnico,  inteligível  para  a  generalidade  das  pessoas  ou  para  um  certo  círculo  de  pessoas,  que,  permitindo  reconhecer  o  emitente,  é  idónea  para  provar  facto  juridicamente  relevante,  quer  tal  destino  lhe  seja  dado  no  momento  da  sua  emissão  quer  posteriormente;  e  bem  assim  o  sinal  materialmente  feito,  dado  ou  posto  numa  coisa  para  provar  facto  juridicamente  relevante  e  que  permite  reconhecer  à  generalidade  das  pessoas  ou  a  um  certo  círculo  de  pessoas  o  seu  destino  e  a  prova  que  dele  resulta.”

W.

O  artigo  256.º  n.º 1  do  Código  Penal  indica  como  elemento  do  tipo  subjetivo,  a  intenção  por  parte  do  agente  de  “causar  prejuízo  a  outra  pessoa  ou  ao  Estado,  de  obter  para  si  ou  para  outra  pessoa  benefício  ilegítimo,  ou  de  preparar,  facilitar,  executar  ou  encobrir  outro  crime”.

X.

Sendo  que  constitui  benefício  ilegítimo  toda  a  vantagem  (patrimonial  ou  não  patrimonial) que  se  alcance  através  do  ato  de  falsificação  ou  do  ato  de  utilização  do  documento  falsificado.

Y.

Deste  modo,  o  crime  de  falsificação  de  documentos  visa  proteger  como  bem  jurídico  a  segurança  e  a  credibilidade  no  tráfico  jurídico.

Z.

A  arguida  agindo  livre,  voluntária  e  conscientemente  ao  outorgar  na  escritura  pública  nos  termos  supra  referidos,  o  que  fez  com  vista  a  criar  um  documento  a  que  fosse  atribuída  fé  pública,  sabendo  que  o  que  declarava  e  fazia  constar  no  mesmo  era  juridicamente  relevante  e  não  correspondia  à  verdade,  logrando  assim  constituir  a  arguida   D...  na  qualidade  de  cabeça  de  casal  da  herança  utquroa  e  indivisa  aberta  pelo  óbito  de   K... ,  de  modo  a  permitir  que  esta  pudesse  movimentar  as  contas  bancárias  da  herança  e  administrar  os  demais  bens  móveis  e  imóveis  da  mesma.

AA.

Bem  como  por  forma  a  impossibilitar  que  quer  a  ora  Requerente,  na  qualidade  de  esposa  do  falecido,  ou  o  seu  irmão  mais  velho,  na  qualidade  de  herdeiro,  pudessem  assumir  o  cargo  de  cabeça  de  casal.

BB.

E  tanto  assim  é  que  a  arguida   D... ,  fazendo  uso  da  qualidade  de  cabeça  de  casal  que  tal  escritura  lhe  conferiu,  praticou  atos  junto  de  contas  bancárias  pertencentes  à  herança  na  Caixa  Geral  de  Depósitos  que  lhe  estavam  vedados,  bem  como  junto  da  Repartição  de  Finanças  ali  fez  constar  a  sua  qualidade  de  cabeça  de  casal  e  identificou  os  bens  da  herança  para  efeitos  fiscais  através  da  declaração  Modelo  01  de  imposto  de  selo.

CC.

Cumpre  ainda  esclarecer  que,  ainda  assim,  e  em  qualquer  caso,  o  crime  de  falsificação  de  documento  trata-se  de  um  crime  de  perigo  abstrato,  sendo  que,  para  que  o  tipo  legal  esteja  preenchido  não  é  necessário  que,  em  concreto,  se  verifique  aquele  perigo (de  violação  do  bem  jurídico);  basta  que  se  conclua,  a  nível  abstrato,  que  a  falsificação  daquele  documento  é  uma  conduta  passível  de  lesão  do  bem  jurídico  criminal  aqui  protegido;  basta  que  exista  uma  probabilidade  de  lesão  da  confiança  e  segurança,  que  toda  a  sociedade  deposita  nos  documentos  e,  portanto,  no  tráfico  jurídico.

DD.

Ora,  ao  nível  do  tipo  objetivo,  o  documento  é  falso  quando  não  corresponde  à  realidade,  como  ocorre  com  o  fabrico  de  documentos  falsos  e  a  alteração  de  documentos  verdadeiros  (falsificações  materiais),  e  como  ocorre  com  a  falsificação  do  conteúdo  de  documento  verdadeiro  (falsificação  intelectual),  nesta  última,  a  declaração  é  conforme  com  a  vontade,  todavia  contra  a  verdade  dos  factos  -  contra  a  vontade  real  -  como  ensina  Helena  Moniz.

EE.

Resulta  pois  da  factualidade  acima  referida  que  a  arguida  declarou  perante  Oficial  Público  e  fez  constar  de  Escritura  Pública  a  existência  de  um  facto  -  a  arguida   D...  ser  cabeça  de  casal  -  que  não  correspondia  à  verdade.

FF.

Em  concreto,  o  ato  permitiu  uma  alteração  no  mundo  do  Direito,  traduzida  na  nomeação  da  arguida   D...  como  cabeça  de  casal  da  herança,  com  o  consequente  benefício,  que  no  caso  tem  relevância  patrimonial  direta,  traduzido-se  no  facto  de  ter  passado  a  ser  esta,  durante  algum  tempo,  a  legal  administradora  dos  bens  da  herança,  t.  é.,  se  traduziu  num  benefício  (poderes  de  administração  da  herança) que  de  outra  forma  não  lograriam,  com  a  intenção  de  causar  prejuízo  a  outras  pessoas.

GG.

Relativamente  ao  concurso  de  crimes  esclarece  o  art.  30.º  do  Código  Penal,  um  princípio  geral  de  solução,  o  qual  define  que  o  número  de  crimes  determina-se  pelo  número  de  tipos  de  crime  efetivamente  cometidos,  ou  pelo  número  de  vezes  que  o  mesmo  tipo  de  crime  é  preenchido  pela  conduta  do  agente.

HH.

Ora,  o  critério  determinante  do  concurso  é,  assim,  no  plano  da  indicação  legislativa,  o  que  resulta  da  consideração  dos  tipos  legais  violados,  e  efetivamente  violados,  o  que  aponta  decisivamente  para  a  consagração  de  um  critério  teleológico  referido  ao  bem  jurídico.

II.

Pelo  que  o  critério  teleológico  que  a  lei  acolhe  no  tratamento  do  concurso  de  crimes,  condensado  na  referência  a  crimes  «efetivamente  cometidos»,  é  adequado  a  delimitar  os  casos  de  concurso  efetivo  (pluralidade  de  crimes  através  de  uma  mesma  ação  ou  de  várias  ações)  das  situações  em  que,  não  obstante  a  pluralidade  de  tipos  de  crime  eventualmente  preenchidos,  não  existe  efetivo  concurso  de  crimes  tos  casos  de  concurso  aparente  e  de  crime  continuado.

JJ.

Ora,  quanto  ao  crime  de  falsificação  de  documento  in  casu,  p.  e  p.  pelo  art. 256º  do  Código  Penal  está  construído  como  crime  de  perigo  abstrato,  em  que  a  lei  previne  o  risco  de  uma  lesão  que  coincide  com  a  própria  atividade  proibida,  sendo  que  a  realização  do  tipo  basta-se  com  a  mera  colocação  em  perigo  de  bens  jurídicos  e  pode  consistir  simplesmente  no  motivo  da  proibição.

KK.

Neste  crime,  a  justificação  da  tutela  penal  e  a  carência  de  pena  estão,  assim,  ligadas  à  perigosidade  típica  para  bens  jurídico  oenaimente  tutelados  que  podem  ser  afetados  pela  simples  detenção  -  os  valores  da  ordem,  segurança  e  a  credibilidade  no  tráfico  jurídico  probatório,  no  que  respeita  à  prova  documental.

LL.

Basta  que  exista  uma  probabilidade  de  lesão  da  confiança  e  segurança,  que  toda  a  sociedade  deposita  nos  documentos  e,  portanto,  no  tráfico  jurídico,  fazendo  reverter  para  um  campo  de  risco  de  afetação.

MM.

Quanto  ao  crime  de  falsas  declarações  p.  e  p.  pelo  art.  360.º  C.  Penal  o  interesse  imediato  que  a  lei  penal  quis  proteger  é  a  boa  administração  da  justiça,  i.  é  proteger  a  administração  da  Justiça  como  função  do  Estado,  traduzindo  o  interesse  público  na  obtenção  de  declarações  conformes  à  verdade  no  âmbito  de  processos  judiciais  ou  análogos,  na  medida  em  que  constituem  suporte  para  a  decisão  futura.

NN.

Pelo  que  ocorrerá  lesão  de  tal  bem  jurídico  quando  alguém  faz  uma  declaração  (falsa)  em  oposição  à  realidade  verificada  e  demonstrável.

OO.

O  crime  de  falsas  declarações  tutela  interesses  ou  bens  jurídicos  de  cariz individual,  não  obstante,  tutela  um  valor  supra  individual, designadamente  a  realização  da  justiça.

PP.

Assim,  a  razão  teleológica  para  determinar  as  normas  efetivamente  violadas  ou  os  crimes  efetivamente  cometidos,  que  só  pode  encontrar­se  na  referência  a  bens  jurídicos  que  sejam  efetivamente  violados  e  distintos,  é  verificada  ln  casu.,  uma  vez  face  o  exposto,  facilmente  se  identifica  que  os  bens  jurídicos  protegidos  são  distintos  num  e  outro  dos  crimes.

OO.

Pelo  exposto,  cometeu  cada  uma  das  arguidas,  em  coautoria,  em coautoria  material,  um  crime  de  falsificação  de  documento,  p.  e  p.  no artigo  256.º  n.º  1  alínea  d)  do  CP  e  um  crime  de  falsas  declarações  p.  e  p.  no  artigo  360.º  do  C.P.  e  artigo  83.º  n.º 2  e  97.º  do  Código  do  Notariado.

Nestes  termos,  e  nos  melhores  de  direito  que  V/  Exas.  doutamente  suprirão,  deverão  as alegações  de  recurso  apresentadas  ser  julgadas  procedentes  e  consequentemente,  revogada  a  decisão  de  não  pronúncia  e  substituída  por  outra  que  pronuncie  a  arguida  D...   pelos  factos  e  incriminação  constante  do  requerimento  de  abertura  de  instrução,  assim  se  fazendo  como  sempre JUSTIÇA

Foi proferido despacho de admissão do recurso.

Notificados, o Ministério Público e a arguida D... responderam ao recurso, concluindo que deve improceder.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.

Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.


***

II. Apreciação do Recurso

Como é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Assim, o recurso interposto suscita as questões de saber se as declarações falsas prestadas perante notário (em escritura de Fevereiro de 2012) integram a prática de um crime previsto no artigo 97º do Código de Notariado e de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, devendo por consequência a arguida D... ser pronunciada pela autoria de tais crimes.

No despacho recorrido, seguindo a jurisprudência constitucional já existente sobre a matéria, considerou-se que o artigo 97º do Código de Notariado padecia de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da legalidade e igualdade como também se considerou que a actuação da arguida de declarar facto não correspondente a realidade perante notário e para constar em escritura pública não era susceptível de integrar o crime de falsificação de documento previsto no artigo 256º do Código Penal, razões que determinaram a prolação de despacho de não pronúncia.

Entretanto, o Tribunal Constitucional no acórdão 96/2015, publicado no DR Iª série de 3 de Março de 2015, veio a declarar a inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral do artigo 97º do Código de Notariado.

Não deixou de equacionar também a questão da inconstitucionalidade material que apenas não foi declarada face à recente inclusão no Código Penal de um crime de falsas declarações, como resulta do trecho que a seguir se transcreve e que como veremos tem total pertinência também para a análise sobre se os factos em causa podem integrar o crime de falsificação de documento do artigo 256º do Código Penal:

“Verificando-se haver, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, mais de três decisões deste Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 97.º do Código do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto, encontra-se preenchido o pressuposto da generalização do juízo de inconstitucionalidade, previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.

Todavia, importa ter em atenção que o campo da tutela penal da autonomia intencional do Estado e da responsabilidade criminal por falsas declarações perante autoridade pública ou funcionário público no exercício de funções, ponderado nos julgamentos subjacentes ao impulso de generalização em apreço a partir dos dados dos casos vertentes, sofreu modificação superveniente relevante, na perspetiva problemática ancorada na dimensão material do princípio da legalidade penal.

A Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, aditou ao Código Penal o artigo 348.º-A, com a epígrafe “Falsas declarações”, prevendo no seu n.º 1 a punição com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, de “quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”, cabendo, nos termos do n.º 2 do preceito, moldura penal agravada – pena de prisão até dois anos ou pena de multa – “se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico”.

Como pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 75/XII, que conduziu à aprovação do diploma, a intenção do legislador foi, aqui, não apenas a de “clarificar o tipo do crime de falsa declarações, que deixa de se confinar às declarações recebidas como meio de prova em processo judiciário, ou equivalente, passando a constituir ilícito criminal igualmente as falsas declarações que sejam prestadas perante autoridade pública ou funcionário público no exercício das suas funções e se destinem a produzir efeitos jurídicos”, mas, igualmente, a de dar “conteúdo normativo às múltiplas remissões feitas na legislação avulsa para este tipo de crime”. Denota-se, assim, o propósito de superar a notada ausência de um crime geral de falsas declarações perante entidades públicas, suscetível de dar conteúdo material às diversas normas que remetem a punição das condutas nelas referidas para um tipo de falsas declarações (alertando para essa necessidade, cfr. Paulo Dá Mesquita, “Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública”, Revista do Ministério Público, n.º 134, abril/junho 2013, pp. 79-116, em especial pp. 100-101; note-se que o Autor defendeu, a par da criação de um “tipo genérico de falsas declarações”, uma intervenção legislativa ao nível das normas jurídicas remissivas).

Face a estes dados, coloca-se a interrogação sobre se a remissão feita pelo artigo 97.º do Código do Notariado, ora em questão, pode encontrar correspondência nesta nova norma, que assume como epígrafe a mesma expressão ali utilizada. A resposta deve ser positiva.

Sem cuidar de saber se a conduta do outorgante em escritura de justificação notarial que preste ou confirme declarações falsas se subsume ao crime agora constante do artigo 348.º-A - questão aqui irrelevante, por estar em jogo o reenvio para as “penas aplicáveis”, e não para os pressupostos da punição – resulta viável entender que a remissão operada pelo artigo 97.º do Código do Notariado, em exame, deve considerar-se feita para o novo artigo 348.º-A do Código Penal.

De facto, por um lado, trata-se do único tipo legal de crime constante do Código Penal que contém na sua epígrafe a expressão “falsas declarações”, a qual passou ainda a constar da designação da secção em que o artigo se insere - “Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública” -, por força de alteração sistemática igualmente operada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro. Por outro lado, dos seus elementos constitutivos faz parte a conduta que consiste em declarar falsamente à autoridade pública, mesmo que circunscrita às declarações que tenham como objeto a identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios.

Nessa medida, a partir do aditamento ao Código Penal do artigo 348.ºA, não são mais invocáveis os argumentos, em que se baseou o juízo constante do Acórdão n.º 379/2012, no sentido de que o tipo legal de crime para que o artigo 97.º remete “não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça (...). O estabelecimento de correspondência entre a fórmula ‘crime de falsas declarações perante oficial público’ e um determinado tipo legal de crime é, assim, tarefa interpretativa, que, no entanto, se depara com dificuldades e incertezas incompatíveis com o princípio da legalidade, na vertente de nula poena sine lege certa. (...) Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações. Do catálogo tipificados não faz parte nenhum com esta designação. (...) Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado”.

O Tribunal Constitucional entendeu, não obstante os acórdãos fundamento terem declarado a inconstitucionalidade material, que nada obstava à declaração com força geral da inconstitucionalidade com fundamento diferente, como fez.

Obviamente porque a referida alteração ao Código Penal é posterior ao facto em apreço não lhe pode ser aplicável, como igualmente não é aplicável a norma declarada inconstitucional.

Resta equacionar se a conduta em causa será susceptível de integrar a prática de crime de falsificação de documento, como pretende o recorrente.

Já anteriormente tomámos posição sobre tal questão na senda de anteriores acórdãos desta Relação, negando a possibilidade de falsa declaração perante notário poder integrar tal tipo de crime.

No acórdão que relatámos proferido no processo 18/10.5TATND, publicado em 26.3.2014, citando parecer de Paulo Dá Mesquita enviado ao Ministério da Justiça para ser tido em consideração na reforma de 2013 do Código Penal (também citado pelo TC) referimos entre o mais que:

Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …»

Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.

Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação  …»

Daí que no caso do arguido que, por exemplo, presta falsas declarações sobre factos juridicamente relevantes e relativamente aos quais tem o dever de depor com verdade, ao que se sabe, nunca foi problematizada a eventual integração de um crime de falsificação por via de as mesmas constarem de auto com força de documento autêntico.

Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.

Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro.

(…)

Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).»

E citando o acórdão desta Relação relatado pela Exmª Desembargadora Maria José Nogueira, de 18.12.2013, publicado em www.dgsi.pt mais referimos que:

“Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores».

De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe:

«1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» [destaques nossos].

Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado."

Mais mencionamos que posteriormente esta mesma orientação foi seguida nos Acórdãos de 19.02.2014, da mesma Relatora e do Relator, Exmº Desembargador Luís Coimbra, mas já anteriormente no Acórdão de 19.06.2013 do Exmº Desembargador Brízida Martins havia decidido no mesmo sentido nesta Relação.

Em suma e sintetizando, o segmento normativo da alínea d) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal "fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante" apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade que exige concomitantemente a feitura do documento.

Com efeito, o que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito.

Do que decorre que a acção dos arguidos de declararem factos falsos para constarem em escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação (…).

Continuamos a defender a presente tese pelo que há que concluir que o recurso não merece provimento, devendo ser mantida a decisão instrutória de não pronúncia.


***

III. Decisão

Pelo exposto acordam em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, manter a decisão instrutória de não pronúncia.

Pelo seu decaimento em recurso vai a assistente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em três UC.


***

Coimbra, 18 de Março de 2015
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora).

(Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)

(José Eduardo Fernandes Martins)