Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | VIRGÍLIO MATEUS | ||
| Descritores: | COMPRA E VENDA REPRESENTAÇÃO NEGÓCIO CONSIGO MESMO PROCURAÇÃO | ||
| Data do Acordão: | 05/15/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | COMARCA DE TORRES NOVAS – 1º J | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 258ºE 261º DO CC | ||
| Sumário: | O A. conferiu poderes à ré, entre outros, para vender bens imóveis pelo preço e condições que entendesse, e, como o A. os conferiu também no interesse da ré, a ré “moveu-se exactamente dentro do acervo de poderes conferidos” ao vender (embora a si mesma) o imóvel. E, diversamente do que o A. defendera, a procuração não tinha de especificar o imóvel em causa, porque, se assim fosse, a cláusula segundo a qual a ré podia vender imóveis ficava esvaziada de conteúdo. Quer dizer, entendemos nós: o A. consentiu naquela venda efectuada pela ré a si própria, ao conferir os poderes para a venda de imóveis pelo preço e condições que entender, e a ré moveu-se dentro dos poderes conferidos. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM O SEGUINTE: I- Relatório: A... , divorciado, intentou esta acção ordinária aos 10-4-2003 contra B... , divorciada, pedindo a anulação do contrato de compra e venda celebrado pela ré consigo mesma aos 24-10-2002, referente à fracção autónoma designada pela letra "Q" e descrita na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº 01013/140388-Q da freguesia de A-dos-Cunhados, e a restituição dessa fracção ao autor. Para tal alegou, em suma: O A. viveu maritalmente com a ré desde Fev./92 até Março/98 e presta serviço no estrangeiro desde 1980. Passou à ré a procuração notarial de 17-3-95 documentada a fl. 9 a 11 dos autos, conferindo poderes para, com livre e geral administração civil, reger todos os seus bens, mas não lhe deu o consentimento para a celebração daquele contrato. Conferiu poderes para vender imóveis pelo preço e condições que a ré entendesse, mas tal venda não foi especificada na procuração. É proibido o contrato a semet ipso, nos termos do art. 261º do CC. A ré utilizou a sua qualidade de representante voluntária do A. para conseguir para si um benefício ilegítimo, pelo que o contrato deve ser anulado. A ré contestou, pugnando pela improcedência do pedido, para o que alegou: A procuração foi passada de acordo com o previamente combinado entre ambos, pois a propriedade do imóvel (conforme escritura de 8-8-94 a fls. 35) e de outros bens havia sido passada da ré para o nome do A. face a problemas entre a ré e seu ex-cônjuge, e o A., vivendo com a ré, sabia disto. Posteriormente celebraram um contrato-promessa de compra e venda da dita fracção Q (cujo doc. comprovativo veio a ser junto a fls. 390/392). Não pode agora o A. vir invocar o seu não consentimento. Há venire contra factum proprium (art. 334º do CC). O A. assinou os documentos porque assim o entendeu. O A. não tinha bens em seu nome antes de viver em comum com a ré. A procuração é irrevogável e no interesse da mandatária. O negócio consigo mesmo decorre da procuração e do contrato-promessa e a celebração daquele foi o motivo que levou o A. a outorgar a procuração. A fls. 172 foi proferido o saneador, com redacção dos factos assentes A) a J) e da base com 10 quesitos, tendo sido desatendida uma reclamação. A fls. 394 foi junto o comprovativo da dispensa, concedida pela O. A., do sigilo profissional da Ex. ma Advogada aí referida, a fim de poder depor em audiência. Conforme acta de fls. 400 ss, realizou-se a audiência de julgamento, que culminou nas respostas aos ditos quesitos. A fls. 407 foi junta certidão do registo predial. Na sentença a fls. 480 ss, foi a acção julgada improcedente. Da sentença recorre o A., impugnando as decisões de facto e de direito e apresentando a sua alegação as seguintes conclusões: A) Não oferece credibilidade o depoimento de uma testemunha que foi advogada de uma das partes, com respeito aos factos em causa, para mais quando foi Autora dos documentos em causa, pois terá sempre a tendência à defesa dos interesses da sua cliente e do trabalho que executou. B) C) Não tem em face de tal testemunho, o Tribunal por onde justificar convenientemente e demonstrando bom sendo, o facto de com base no mesmo e apenas nesse ter dado como provados os factos constantes dos quesitos 2, 3, 4, 5 e 7.D) Existe contradição na fundamentação do Tribunal para dar como provados os factos que assim o foram, e o que resulta efectivamente do depoimento da testemunha C... , é claro o equivoco do Tribunal pois, basta comprar o extracto de tal depoimento passado pelo Tribunal a quo para a respectiva fundamentação e o que disse efectivamente a testemunha para perceber que existiu erro na respectiva apreciação.E) Não podiam por isso ter sido dados como provados os factos 2, 3, 4, 5 e 7 por falta de conteúdo de prova testemunhal para o efeito, encontrando-se nessa parte viciada a decisão jurisdicional por ter aplicado o direito a factos erróneos.F) Por outro lado, baseou o Tribunal a razão de não dar como provado o facto constante do quesito primeiro, na incompatibilidade que a formação da convicção do Tribunal ditou em face de ter absorvido a tese da Ré. Acontece que, sobre o que supra se expôs, e após se colocar em evidência a confirmação, que as testemunhas D... e E... revelaram relativamente ao conteúdo do facto constante do quesito 1, parece inequívoco que deveria o mesmo ter sido dado como provado.G) Parece assim, ao Autor que a decisão correcta do Tribunal a quo seria com base na prova testemunhal supra evidenciada, dar como provado o conteúdo do facto constante do quesito 1 e dar como não provado o conteúdo dos quesitos 2, 3, 4, 5 e 7.H) Não é aceitável a tese do Tribunal a quo relativa ao facto de não se entender como obrigatória a descrição na procuração, do imóvel objecto da outorga de poderes, com justificação no facto de que dessa forma ficaria a referida clausula vazia de conteúdo.I) Tal raciocínio não é minimamente aceitável quando se sabe que as procuração são actos notariais, elaborados a pedido das partes, em que o respectivo notário apenas atesta da veracidade das pessoas que sobre si são levada a proferir determinadas declarações, não atestando mais do que isso, como por exemplo a lógica e aplicabilidade ou exequibilidade das declarações proferidas. J) É claramente revelador do abuso da procuração em causa e da boa fé do Autor, o facto da mesma conter poderes com referência à alienação de quaisquer bens imóveis, sendo que em causa apenas se coloca, mesmo na tese da Ré, apenas um bem. L) Não podia o Tribunal fazer tábua rasa da alegação de falsidade do contrato-promessa relativo ao imóvel do qual se pretende a anulação do respectivo negócio, quando se faz referencia para mais à existência de processo crime relativamente ao mesmo. Pois ou de todo não considera tal facto para a decisão da causa, ou a considerá-lo sempre teria de suspender a causa, por existência de causa prejudicial. M) Para mais, e com maior acuidade se alvitra que não é de todo o exequível, admissível, aceitável e sequer legal e constitucional que uma pessoa confira poderes genéricos de venda e oneração de quaisquer bens, conferindo irrevogabilidade ao referido mandato.N) Tal circunstância de conferir poderes genérico de alienação de imóveis no âmbito de uma procuração irrevogável implica a possibilidade de alienação de uma faculdade pessoal ad aeterno, o que é claramente ofensivo da dignidade da pessoa humana.O) É de todo inconstitucional a interpretação da lei que admita tal possibilidade, por ofensa ao disposto nos artigos artigos 26.º, n.ºs 1 e 4 e 62.º da CRP.P) Refira-se ainda que não existia, no caso, qualquer relação subjacente ao mandato de representação que suportasse o carácter de irrevogabilidade à procuração em causa, conforme decorre do já vertido no acórdão de 29 de Abril de 2004 do TRL, secção cível, recurso n.º 2456/04-6, já junta cópia do mesmo aos autos.A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação. Correram os vistos legais. Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
II- Fundamentos: De facto: Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos, acrescentando-se porém a sua numeração e pequenas precisões formais, rectificando-se no 6º a quantia em euros conforme doc. autêntico junto a fls. 14 a 16 com a petição (a indicação de 66.349,64 euros provém de lapso evidente do art. 8º da p. i.) e completando-se o último facto provado com o conteúdo do doc. de fl. 390/392 para que remeteu: 1. O Autor e a Ré viveram maritalmente entre Fevereiro de 1992 e Março de 1998. Analisemos as questões postas através das conclusões da alegação do recurso, posto que tais conclusões demarcam o âmbito deste. 1ª Questão: Na conclusão H, o apelante discorda da posição do tribunal por na sentença se defender que é incorrecto entender-se como obrigatória a descrição na procuração, do imóvel objecto da outorga de poderes, com justificação no facto de que dessa forma ficaria a referida cláusula vazia de conteúdo, ou seja, a cláusula segundo a qual o A. conferia poderes à ré para «comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender». A decisão recorrida ter-se-á fundado no disposto no art. 261º nº1 do CC (único preceito legal aí citado além do art. 258º). E como daquele preceito se podem extrair várias normas, à falta de melhor especificação e tendo a acção sido julgada improcedente crê-se que o tribunal considerou o contrato de compra e venda válido por “o representado ter especificadamente consentido na celebração”, porquanto o tribunal citou a cláusula concedendo poderes para “comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender”, bem como a cláusula de que «Estes poderes são conferidos também no interesse da mandatária pelo que esta procuração é irrevogável...», e concluiu «ser evidente que, a Ré, «procuradora», ao proceder à alienação, moveu-se exactamente dentro do acervo dos poderes que lhe haviam sido conferidos...». Na verdade, lê-se na fundamentação da sentença que «a Ré, procuradora, ao proceder à alienação, moveu-se exactamente dentro do acervo dos poderes que lhe haviam sido conferidos - vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições que entender, bens imóveis». Só que da procuração, ou seja do provado, não consta qualquer cláusula conferindo à ré poderes representativos para vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições que entender, bens imóveis! A inclusão dessa eventualidade nos poderes conferidos (a venda pela procuradora a si mesma) não se extrai do clausulado da procuração segundo as regras legais de interpretação: não há qualquer correspondência no texto (v. art. 236º a 238º do CC). O raciocínio, se bem o entendemos, terá sido este: como o A. conferiu poderes à ré, entre outros, para vender bens imóveis pelo preço e condições que entender e como o A. os conferiu também no interesse da ré, a ré “moveu-se exactamente dentro do acervo de poderes conferidos” ao vender (embora a si mesma) o imóvel. E, diversamente do que o A. defendera, a procuração não tinha de especificar o imóvel em causa, porque, se assim fosse, a cláusula segundo a qual a ré podia vender imóveis ficava esvaziada de conteúdo. Quer dizer, entendemos nós: o A. consentiu naquela venda efectuada pela ré a si própria, ao conferir os poderes para a venda de imóveis pelo preço e condições que entender, e a ré moveu-se dentro dos poderes conferidos. Esse, ao que nos parece, o raciocínio vertido na sentença. A questão volver-se-ia assim em saber se—de acordo com a sentença—a acção devia improceder por ter havido consentimento para o negócio consigo mesmo, consentimento a cuja conclusão se chegava pela redacção da dita cláusula (concessão de poderes para vender imóveis...) sem necessidade de na dação de poderes se especificar o imóvel que depois a ré comprou para si, ou se—de acordo com a posição do apelante—a acção deve proceder porque para se concluir pelo consentimento no NCM ( [2] ) era necessário que na procuração se especificasse o imóvel a vender que depois a ré comprou para si. No nosso entender, a posição defendida pelo apelante não é a correcta, nem o fundamento de improcedência da acção pode ser aquele que parece ressumar da fundamentação de direito da sentença. Ou seja: o consentimento, a ter existido, não se bastaria com a especificação do imóvel a vender, nem o fundamento para a improcedência (não anulação do NCM) consiste em ter havido consentimento para o NCM. O que passamos a justificar. Há representação quando uma pessoa, investida de poderes para o efeito, age em nome e no interesse de outra. A procuração promove a concessão de poderes de representação. Mas é possível que o representante aja também no seu próprio interesse, munido ou não de procuração in rem suam, ou aja também no interesse de 3º. O dador de poderes de representação pode consentir especificadamente que o representante aja também no seu próprio interesse, seja através de procuração in rem suam, seja através da relação de gestão (negócio causal ou subjacente à procuração), hipóteses em que o representado não se pode mais tarde valer de qualquer conflito de interesses daí resultante porque ele próprio assumiu ou afastou o risco de lesão do seu interesse. Se o dador de poderes não consentiu especificadamente em que o representante aja também no seu próprio interesse e este assim agiu, o caso pode mudar de figura, pois a lei presume que houve conflito de interesses e dá à pessoa em nome da qual se agiu a possibilidade de fazer prevalecer o seu interesse (ainda que apenas potencialmente lesado), promovendo a anulação do negócio celebrado pelo procurador, ou considerando-o ineficaz perante si representado, até que este o ratifique, se quiser. Em sede de representação (actuação em nome de outrem), a lei regula os conflitos de interesses entre representante e representado nos casos de: NCM (art. 261º), representação sem poderes (art. 268º) e abuso de representação (art. 269º), cominando no 1º caso a sanção de anulabilidade e nos dois restantes a de ineficácia, aliás sob requisitos diferentes. No NCM em sentido estrito, a pessoa age simultaneamente em nome próprio e como representante, enquanto na dupla representação ou representação plural a pessoa age em representação (orgânica ou voluntária) de duas partes. A relação de representação (entre representante e representado) está destinada por natureza a operar nas relações com terceiros, i. é, destinada naturalmente a que o representante celebre contrato ou negócio unilateral ou pratique acto jurídico com terceiro e não consigo próprio ( [3] . Daí que, em regra, o NCM seja anulável, ou seja: o NCM só se considera válido se e enquanto o representado não obtiver a sua anulação. Com efeito, preceitua o art. 261º nº1 do CC: «É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses». A regra é pois a da anulabilidade. Mas o preceito abre duas excepções: 1ª) ter o representado especificadamente autorizado, consentido na celebração do NCM; 2ª) quando o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses. Quanto à 1ª, não basta uma autorização genérica, do tipo “autorizo o procurador a celebrar negócios consigo mesmo”. Mas também não se vai ao ponto de exigir a fixação das condições do negócio consentido; a autorização não carece de pré-determinar as condições do contrato a celebrar. O que a lei pretende é apenas a individualização (especificação) do NCM, de modo que é suficiente a autorização especial, do tipo “autorizo o meu procurador A a fazer a partilha da herança x consigo mesmo” ou “ a celebrar a compra e venda dos meus prédios consigo mesmo” ou “do prédio x consigo mesmo” ( [4] ). Só assim, e desde logo assim, há a garantia de que o representado formou consciência dos riscos que corre com a procuração. Ainda que no instrumento dito procuração (ou noutro) se tivessem individualizado os imóveis em relação aos quais se atribuíam à ré poderes de gestão e de venda, isso não bastava para se considerar ter havido consentimento no NCM. É que, na falta de outra especificação, se deve entender que a dação de poderes de representação era destinada a operar nas relações com terceiros e não em NCM. E assim é porque em nenhum instrumento idóneo se mostra ter o A. autorizado a ré a celebrar algum NCM. E a autorização nunca poderia ser posterior ao NCM. Refere a sentença que, a não se entender deste modo a dita cláusula, esta fica esvaziada de conteúdo. Mas assim não é porque a ré poderia, nos termos da autorização genérica contida no instrumento da procuração, vender os imóveis em nome do A. e a qualquer 3º em vez de a ré comprar para si, hipótese aquela em que não se pode afirmar que a cláusula ficava sem conteúdo. Posto isto, porque não vem provado o consentimento do A. em que a ré celebrasse o NCM, o NCM celebrado só não é de anular se se verificar a 2ª excepção, ou seja, se se concluir que o negócio exclui por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses. Ao sancionar a celebração do NCM com a anulabilidade, a lei presume haver entre representante e representado um conflito de interesses, com sacrifício do interesse do representado. Mas a lei prevê a hipótese de assim não ocorrer, permitindo ao representante que o prove, caso em que não actua aquela sanção. Ao comprar, o representante realiza um seu interesse; ao vender em nome do representado, realiza um interesse deste. Mas nem sempre a existência desses interesses implica haver entre eles conflito ou colisão, ou seja, sacrifício do interesse do representado à custa da prossecução do interesse do representante que negociou consigo mesmo. Só se o provado puder levar a concluir que inexistiu a possibilidade de tal conflito ou colisão é que ao NCM não deverá ser aplicada a sanção de anulação. No caso estará afastada a possibilidade de tal conflito? Afigura-se-nos que no caso a natureza do negócio afasta a possibilidade de tal conflito ou colisão de interesses. A natureza de negócio que afaste a possibilidade de conflito de interesses não se resume à gratuitidade, v. g. aos casos de doação feita pelo representante ao representado. O que releva é que se conclua do negócio não poder o representante ter-se valido da sua qualidade para extrair benefícios a seu favor (ou de outrem), com lesão para o representado (ou um dos representados, conforme a modalidade de NCM), como em princípio é de concluir por exemplo nos casos em que: (a) haja predeterminação do conteúdo do NCM de modo a só ficar ao critério do representante a escolha do outro contraente [5] , v. g. o empregado da bilheteira compra para si próprio um dos bilhetes para o espectáculo; (b) se trate de cumprimento de uma obrigação; (c) se trate de doação feita pelo representante ao representado [6] . Como veremos, a hipótese (b) é a que se verifica no caso dos autos. Também na doutrina do Prof. C. A. Mota Pinto se apresentam exemplos semelhantes: compra e venda de produtos tabelados ou com preço de venda ao público anunciado (v. g. a dita compra de bilhete pelo empregado); a compra e venda em cumprimento de contrato-promessa anterior; cumprimento de obrigação; o caso em que o NCM só traz vantagens para o representado (v. g. doações) ( [7] ). Ora, está provado que o A. e a R. celebraram o contrato promessa de compra e venda datado de 26-3-1998 e com as suas assinaturas reconhecidas notarialmente, documentado a fls. 390 a 392, nos termos do qual o ora A. prometeu vender à ora ré e esta prometeu comprar-lhe o prédio referido em 6 (dita fracção Q) pelo preço de 12 500 contos, dando o A. quitação de 12 400 contos já recebidos e aí clausulando em 7º que «a escritura de compra e venda será efectuada em nome da segunda outorgante (a ré) ou de quem esta designar». Restantes questões: Em relação às conclusões H e I ainda cumpre dizer-se que o NCM é, no caso, válido independentemente de na procuração não ter sido identificado o imóvel que depois veio a ser objecto desse NCM celebrado. É o que já se explicou ao tratar-se da 1ª questão. Ainda quanto à conclusão I, verifica-se que o recorrente tem defeituoso entendimento sobre as funções notariais. A função do notário não consiste em (só) atestar “a veracidade das pessoas...”. O notário, em suma, zela pela legalidade dos actos negociais que lhe cabe lavrar, pode aconselhar nesse âmbito os interessados para que estes outorguem os actos dentro dos parâmetros legais, certifica-se da capacidade e consciência dos declarantes, etc. Quanto a J), não se pode concluir que a ré tenha abusado da procuração ou da boa fé do A. por a procuração conter referência à alienação de imóveis sem os identificar, como resulta do que já acima se expôs sobre a 1ª questão e considerando que o caso entra na margem de risco própria de quem se propõe agir através de representante passando procuração livremente. Quanto a L), o provado não sustenta a ideia de falsidade do contrato-promessa, nem o processo-crime constitui causa prejudicial a considerar para a suspensão da instância cível. Aliás, não consta pronúncia da 1ª instância na sentença sobre tal questão, nem vem arguida nulidade por falta dessa pronúncia. Quanto a M), N) e O), cumpre dizer que se o A. conferiu os poderes como constam da procuração, tal é imputável ao A., mais: imputável unicamente ao A. é que a procuração é negócio unilateral, no caso de sua exclusiva outorga. E os poucos anos que decorreram entre tal outorga e a celebração do contrato-promessa e do contrato definitivo não permitem concluir pela “alienação de uma faculdade pessoal ad aeternum”. Não se vislumbra qualquer ofensa às normas ou princípios da Constituição da República e, ainda que por mera hipótese houvesse alguma tal ofensa, esta seria apenas imputável ao dador de poderes, o A. Quanto a P), conclusão segundo a qual não existia, no caso, qualquer relação subjacente ao mandato de representação que suportasse o carácter de irrevogabilidade à procuração em causa, desde logo se verifica haver alguma confusão no modo como o apelante se exprime, tornando praticamente ininteligível o fundamento argumentativo. É que procuração não se confunde com mandato. E há mandato com representação e mandato sem representação. Mas o que é para o apelante um «mandato de representação» é algo que fica por explicar. Por outro lado, a uma procuração pode não subjazer um contrato de mandato mas sim outro contrato ou negócio (e no caso o instrumento de procuração não contém qualquer contrato de mandato pois que se trata de negócio unilateral, assinado aquele apenas pelo A. único declarante). De resto, nem a causa configura alguma questão baseada em que o A. tenha revogado a procuração ou tenha pretendido revogá-la, nem se trata de questão posta em apreciação na sentença recorrida: é antes uma questão nova e não de conhecimento oficioso, que portanto extravasa o âmbito do recurso, e aliás de contornos ininteligíveis como se referiu. Em face das conclusões da alegação, não se verifica algum fundamento para revogação ou anulação da sentença.
III- Decisão: Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão impugnada embora por diferente fundamento. Custas pelo apelante. ------------------------ [1]Estes parágrafos são, quase ipsis verbis, transcrição dos primeiros dois parágrafos da 1ª coluna a fl. 124, tomo II, da CJ/STJ de 2003, do texto do Ac. STJ de 26-6-2003 aí publicado a fls. 122 ss, incluindo a cláusula com a expressão « vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições...», cláusula que no caso do Ac. tinha realmente essa redacção como resulta do relatório publicado, mas que não tem correspondência com o provado no presente processo. O caso do Ac. tem contornos factuais diversos e há que ter-se cuidado com a transposição das soluções. Tal Ac. não aparece citado na sentença. A sentença devia ter encarado a exacta situação factual a julgar. [2] Assim se designará no texto, por brevidade, o negócio consigo mesmo. [3] Assim, Jorge Duarte Pinheiro, O NCM, in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor I. G. Telles, IV, pág. 143.) [4] Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., p. 164, e I. G. Telles, aí citado na nota 90. Referem P. de Lima e A. Varela, in CC Anot., I, p. 242 s: «O consentimento tem de especificar o acto que se autoriza, pois só assim há a garantia de que o representado tem consciência do risco que corre». [5] Algo há-de ficar ao critério do representante, caso contrário tratar-se-ia de núncio (simples transmitente da declaração de outrem). O representante não transmite, antes emite uma declaração em nome de outrem, e daí que a falta ou vícios da vontade se hão-de verificar em princípio na pessoa do representante e não do representado. [6] Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., p. 165 s [7] Cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 2005, nota 769 a p. 552. |