Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | FONTE RAMOS | ||
| Descritores: | CONTRATO DE SEGURO REGRAS DE INTERPRETAÇÃO RELEVÂNCIA DO CASO CONCRETO MAIOR EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES | ||
| Data do Acordão: | 09/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – CELORICO DA BEIRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 236.º E 237.º, DO CÓDIGO CIVIL ARTIGOS 1.º, 37.º, N.º 1, 44.º, N.º 2, 99.º, 123.º, 128.º DO DL N.º 72/2008, DE 16 DE ABRIL – REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO ARTIGOS 7.º, 10.º E 11.º DO DL N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO – REGIME JURÍDICO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS | ||
| Sumário: | 1. O contrato de seguro é um contrato bilateral, de execução continuada, aleatório e de adesão, pelo qual uma das partes se obriga a cobrir um risco e, no caso da sua concretização, a indemnizar o segurado (ou terceiro lesado) pelos prejuízos sofridos.
2. Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes), com as especificidades decorrentes do RJCCG (instituído pelo DL n.º 446/85, de 25.10) e do RJCS (aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4). 3. Importa atender aos termos do contrato (e da proposta de seguro), aos interesses nele compreendidos e seu mais razoável tratamento, às demais circunstâncias do caso e ao desiderato de alcançar o maior equilíbrio das prestações das partes (art.º 237º do CC). 4. A razoabilidade na interpretação e aplicação das correspondentes normas contratuais e legais, a resposta normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto e aos interesses em presença, liga-se ao entendimento de que é o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo, sendo o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Relator: Fonte Ramos * Sumário do acórdão: * Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. AA e BB instauraram a presente ação declarativa comum contra A..., Companhia de Seguros, S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 10 100 acrescida de IVA à taxa legal, bem como da quantia de € 200 por cada mês em que não se mostrem efetivadas as requeridas reparações, desde a data da sua citação até integral e efetivo pagamento. Alegaram, em síntese: são donos do imóvel indicado no art.º 1º da petição inicial (p. i.), fazendo parte integrante do mesmo o sistema de drenagem de esgotos domésticos referido nos art.ºs 2º e 3º da p. i.; em razão dos factos descritos nos art.ºs 4º e seguintes da p. i., ocorreram diversos danos no dito sistema de drenagem e no seu referido imóvel, cobertos pelo contrato de seguro (“Multirriscos Lar”) celebrado com a Ré aludido no art.º 14º da p. i.. A Ré contestou, referindo que o sinistro participado não tem enquadramento na apólice porquanto os danos ocorreram no logradouro, que não consta da apólice de seguro contratada, nem da proposta de seguro. Concluiu pela improcedência da ação. Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova. Realizado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 13.3.2025, julgou a ação parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar aos AA. a quantia de € 5 350, acrescida de IVA à taxa legal, absolvendo-a do restante pedido. Dizendo-se inconformada, a Ré apelou formulando as seguintes conclusões:[1] 1ª - Sumariando, resultou, tanto dos factos provados como da motivação da matéria de facto provada, o seguinte: (i) Em virtude do volume de precipitação ocorrida ocorreu a saturação e mobilização do solo que rodeia o imóvel; (ii) Em consequência do volume de precipitação, ocorreu o desmoronamento das caixas e paredes do referido sistema de armazenagem e encaminhamento de esgotos e águas residuais domésticas - fossa séptica e poço de secagem - bem como as tubagens que os transportam a partir do interior do imóvel para os sobreditos fossa e poço. 2ª - Daqui decorre clarividente que foi a forte precipitação e o volume de pluviosidade sentida na zona geográfica do imóvel que desencadeou o abatimento do solo, provocando a danificação do sistema de armazenagem e encaminhamento de esgotos e águas residuais domésticas. 3ª - Confrontado perante a presente factualidade e respetiva subsunção da mesma ao contrato de seguro celebrado, o Tribunal recorrido concluiu que, “Na nossa perspetiva, o abatimento do solo (jardim) sobre o sistema de drenagem de esgotos domésticos por ação da chuva tem cabimento no ponto 4 da cláusula 4ª do contrato de seguro por ser esse o sentido razoável do teor da referida cláusula, com o qual os AA., enquanto tomadores de seguro, poderiam razoavelmente contar, integrando-se na noção comumente comungada de «fenómeno geológico que provoque aluimento» a erosão dos solos resultante de ação da precipitação. Assim, conclui-se que o sinistro tem enquadramento no risco coberto pelo contrato de seguro, impendendo sobre a R., por imposição contratual, realizar a prestação devida, ou seja, pagamento dos danos, cf. o disposto no art.º 128.º do DL n.º 72/2008 que, in casu, se cifram em € 4 600 acrescida de IVA, cf. o disposto no art.º 1º, n.º 1, al. a), art.º 2º, n.º 1, al. a) e 4º, n.º 1 do Código do IVA. Ademais, há a considerar o ponto 19 da cláusula 4ª que, regendo sobre a demolição e remoção de escombros, garante o pagamento das despesas razoavelmente efetuadas com a demolição e remoção dos escombros provocados pela ocorrência de um sinistro coberto pelo presente contrato, incluindo a mudança de escombros para vazadouro. Ora, dúvidas inexistem que a danificação do sistema de drenagem que o torna inoperacional gera escombros, rectius, a amálgama inútil dos seus componentes. E, uma vez que se está perante um sinistro coberto pelo contrato, deverá a R. realizar a realizar a prestação devida, ou seja, o pagamento da quantia necessária à sua remoção, cf. o disposto no art.º 128º do DL n.º 72/2008 que, in casu, se cifra em € 750 acrescida de IVA, cf. o disposto no art.º 1º, n.º 1, al. a), art.º 2º, n.º 1, al. a) e 4º, n.º 1 do Código do IVA.”. 4ª - O Tribunal de 1ª instância andou mal ao ter desvirtuado completamente a noção e alcance da cláusula contratual invocada - ponto 4 da cláusula 4ª do contrato de seguro celebrado – aplicando de forma errónea a cobertura de Aluimento de Terras ao sinistro em discussão nos presentes autos. 5ª - A cobertura de aluimento de terras cobre os danos provocados aos bens seguros em consequência direta de fenómenos geológicos que provoquem aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamento de terrenos. 6ª - A erosão do terreno devido à passagem de águas pluviais não é um fenómeno geológico e não se tratando de um fenómeno geológico não faz acionar a cobertura de aluimento de terras. 7ª - A interpretação da cláusula, tal como se encontra prevista no contrato, não poderá ser entendida, no sentido de qualquer movimento de terras bastará para o funcionamento da cobertura, pois que a previsão da norma contratual não está construída com base em conjunções disjuntivas, ou seja, ela não determina que a apólice garante danos provocados por fenómenos geológicos ou danos provocados por aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimentos de terrenos. 8ª - O movimento de terras apenas é relevante, para efeitos de subsunção à garantia contratual de “aluimento de terras”, se foi resultado de um fenómeno geológico e motivado por este. 9ª - A apólice em apreço garante o risco de verificação de aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimentos de terrenos, desde que eles constituam consequência de fenómenos geológicos. 10ª - No caso dos autos não estamos perante qualquer fenómeno geológico, constando inequívoco da sentença recorrida que, na origem do abatimento das terras, que danificou o sistema de drenagem dos esgotos domésticos, esteve a acção da chuva. 11º - Isto é, estamos perante um fenómeno meteorológico e não geológico, ao contrário do que foi o entendimento do Tribunal recorrido. 12ª - Um fenómeno meteorológico/atmosférico como chuva, granizo, neve, vento, tempestades, furacões, tornados, inundações, secas, onda de calor (ou frio), geada, traduzem-se em agentes substancialmente diferentes de fenómenos geológicos (como por exemplo, terramotos, vulcões, erosão, tsunamis, dobramentos, sedimentação, intemperismo, glaciações, geiseres, falhas geológicas, subdução, formação de ilhas). 13ª - A precipitação é relativa ao domínio das condições meteorológicas e, embora possa coexistir durante a ação de fenómenos geológicos, não se traduz num deles (já que estes fenómenos dão-se ao nível do núcleo, do manto ou da crosta terrestre). 14ª - Caso diverso seria, caso a garantia contratual contratada fosse apenas de “aluimento de terras” sem dependência de um “fenómeno geológico” e que as partes tivessem acordado que aquela verificar-se-ia quando devida a causas naturais ou causas ambientais (abrangendo estas quer fenómenos geológicos quer movimentos de terras com origem em situações de natureza meteorológica). 15ª - A ocorrência de chuvas intensas e frequentes, não é considerada um fenómeno geológico, a existência de chuvas não se reconduz àquilo que é comumente entendido por fenómeno geológico. 16ª - Encontrando-nos perante noções diametralmente diversas, não poderia o Tribunal recorrido ter aplicado a cobertura de aluimento de terras, uma vez que esta garante somente os danos causados aos bens seguros, em consequência direta de fenómenos geológicos que provoquem aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimentos de terrenos, ou seja, as consequências têm de ter na sua génese um fenómeno geológico, e não um fenómeno meteorológico. 17ª - O Tribunal andou mal ao ter considerado que o sinistro em discussão nos presentes autos tinha enquadramento no contrato de seguro celebrado por aplicação da Cláusula 4.ª ponto 4. – Aluimento de Terras – a qual, como acima se demonstrou não prevê que a origem do abatimento do solo tenha ínsito um fenómeno meteorológico como sucedeu no sinistro dos presentes autos. 18ª - O aluimento de terras em consequência de fenómenos geológicos, provém de uma ação nova e rara associada à geodinâmica da crosta terrestre, pelo que, sempre seria de não enquadrar no âmbito dessa cobertura quaisquer danos que tenham sido causados por ação da chuva. 19ª - Estas chuvas, ainda que tenham origem numa causa natural e ambiental, não constituem um fenómeno geológico, entendido este por uma modificação geodinâmica da crosta terrestre (interna ou externa), como por exemplo, erupções, os movimentos das placas tectónicas, os tsunamis, a formação de rochas, etc. 20ª - Não tendo existido qualquer fenómeno geológico, não sendo os danos verificados no sistema de drenagem de esgotos oriundos de qualquer fenómeno geológico, não se verificou qualquer risco para efeitos de acionamento do contrato de seguro celebrado entre AA. e a Recorrente. 21ª - A responsabilidade relativa ao evento em causa não tem enquadramento no contrato de seguro celebrado com a Recorrente e, por isso, a procedência da ação sempre implica uma clara violação do disposto nas cláusulas do contrato de seguro, bem como o disposto nos artigos 1º, 24º, 37º, n.º 2, alínea d); 44º, n.º 1 e 3 e 110º do DL n.º 72/2008, de 16.4 [Regime Jurídico do Contrato de Seguro]); 236º e 342º do Código Civil; e 10º e 11º do DL n.º 446/85, de 25.10. 22ª - A decisão proferida pelo Tribunal a quo, no tocante à matéria de direito, merece censura, devendo ser revertida, revogada e substituída por uma decisão que considere inaplicável a cláusula de aluimento de terras ao sinistro em apreço, devendo, antes, considerar-se que o mesmo não se encontra coberto pelo contrato de seguro celebrado - absolvendo-se a Recorrente de todos os pedidos contra si formulados. Os AA. responderam concluindo pela improcedência do recurso. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir se o evento/sinistro é ou não subsumível (na parte acolhida pela decisão recorrida) num dos riscos que as partes acordaram transferir ao celebrarem o contrato de seguro. * II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: 1) O prédio misto composto por cave e rés-do-chão com jardim anexo, destinado à habitação, de tipologia T3, inscrito na matriz predial da Freguesia ... sob os artigos ...96º rústico e ...48º urbano e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...19, encontra-se registado como sendo propriedade dos AA., com a licença de utilização n.º ...6 de 22/4/2024. 2) No imóvel referido em 1) encontra-se instalado o sistema de drenagem de esgotos domésticos, que tem início na parte habitacional do imóvel, dirigindo-se de seguida para uma fossa séptica, com poço absorvente anexo, executados no logradouro do imóvel destinado à habitação em referência, sob o jardim aí existente. 3) Nas imediações do imóvel referido em 1) não existe rede pública de saneamento de águas residuais. 4) Em virtude do volume de precipitação ocorrida nos primeiros 15 dias do mês de dezembro de 2022, ocorreu a saturação e mobilização do solo que rodeia o imóvel descrito em 1), na zona do jardim. 5) Em consequência do descrito em 4), em data não concretamente apurada mas no hiato temporal aí referido, ocorreu o desmoronamento das caixas e paredes do referido sistema de armazenagem e encaminhamento de esgotos e águas residuais domésticas - fossa séptica e poço de secagem - bem como as tubagens que os transportam a partir do interior do imóvel para os sobreditos fossa e poço, e, ainda, a destruição das escadas de acesso, passeio e muro que se encontram no jardim do imóvel e em cima e ao lado, respetivamente, da fossa e do poço de secagem. 6) Como consequência do descrito em 5), o sistema de drenagem referido em 2) ficou inoperacional, não permitindo o escoamento das águas residuais provenientes da parte habitacional do imóvel referido em 1) para a fossa séptica e poço. 7) A reconstrução do sistema aludido em 2) importa o custo de € 4 600, em mão de obra e materiais, sem considerar o IVA. 8) A reconstrução do muro, escadas, passeio em calçada e jardim existentes sobre o mesmo sistema importa um custo de € 4 750, em mão de obra e materiais, sem considerar o IVA. 9) O encaminhamento dos resíduos provenientes das obras de reconstrução referidas em 7) e 8) importará o custo de € 750, sem IVA. 10) A 22.5.2009 foi celebrado entre os AA., na qualidade de tomadores de seguro e a Ré, na qualidade de seguradora, um contrato denominado “Seguro Multirriscos Habitação” titulado pela apólice n.º ...41, tendo por objeto o imóvel referido em 1). 11) Do contrato de seguro referido em 10) consta que: a. Cláusula 2ª - «(…) Sempre que se contrate um capital para a sua cobertura, ficarão garantidos os bens correspondentes aos seguintes elementos: A. EDIFÍCIO E/OU FRACÇÃO DE EDIFÍCIO Entende-se como tal: 1. A estrutura, paredes, cobertura, tetos, pavimentos, portas, janelas, armários encastrados e outros elementos de construção; 2. As dependências anexas, como sejam as garagens, adegas e arrecadações, sempre que integrados no mesmo edifício ou fração segura e construídos com os mesmos materiais; 3. As instalações fixas de aquecimento, ar condicionado, água, eletricidade, gás, telefónicas, sistemas de comunicação interna, alarmes e similares» (…); b. Cláusula 4ª - «(…) 4. Aluimento de Terras; 5. Fenómenos Sísmicos; 19. Demolição e Remoção de Escombros; 24. Restauração Estética de Elementos do Edifício;(…)»; c. Cláusula 5ª - «(…) 3. INUNDAÇÕES Danos sofridos pelos bens seguros em consequência direta de: 3.1. Tromba de água ou queda de chuvas torrenciais, precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos no pluviómetro.; 4. ALUIMENTO DE TERRAS 4.1. Os danos causados aos bens seguros, em consequência direta de fenómenos geológicos que provoquem aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimentos de terrenos. 6. DANOS POR ÁGUA 6.1. Danos sofridos pelos bens seguros, em consequência direta de rotura, defeito, entupimento ou transbordamentos súbitos e imprevistos, da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes os sistemas de esgoto de águas pluviais, assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos do mesmo edifício ou fração e respetivas ligações. 19. DEMOLIÇÃO E REMOÇÃO DE ESCOMBROS 19.1. Garantindo o pagamento das despesas razoavelmente efetuadas com a demolição e a remoção de escombros provocados pela ocorrência de um sinistro coberto pelo presente contrato, incluindo a mudança de escombros para o vazadouro mais próximo.; 23. ENCARGOS COM A HABITAÇÃO SEGURA 23.1. Através desta cobertura o segurador garante o pagamento de uma indemnização complementar compensatória para fazer face ao pagamento de encargos que o Segurado tenha que continuar a suportar com a habitação segura apesar do sinistro e da consequente inabitabilidade do local de risco. 23.2. Esta cobertura só produzirá efeito se o edifício ou fração se encontrar seguro pela Apólice e desde que a sua inabitabilidade resulte da verificação de qualquer dos seguintes eventos: Incêndio, Queda de Raio e Explosão; Tempestades; Inundações; Aluimento de Terras; Fenómenos Sísmicos. 24. RESTAURAÇÃO ESTÉTICA DE ELEMENTOS DE EDIFÍCIO 24.1. A presente Condição Especial não se aplica aos factos ou sinistros abrangidos pela cobertura obrigatória de Incêndio. Em consequência da verificação dos riscos de “Fenómenos da natureza”, “Danos por água” e “Furto ou Roubo”, desde que cobertos pela apólice, o segurador indemnizará as despesas adicionais em que o Segurado tenha que incorrer para salvaguarda da continuidade e harmonia estética do edifício. 24.2. A restauração compreenderá os elementos diretamente afetados, ficando limitada ao compartimento em que se encontrem. Por compartimento e sua delimitação entende-se a existência de vãos de porta, ainda que a porta não exista ou não tenha sido colocada.» d. Cláusula 6ª - «(…) Para além das exclusões específicas constantes de cada uma das garantias, não ficam cobertos em caso algum, salvo se existir convenção expressa em contrário: Danos em muros de contenção de terras, delimitação e/ou separação da propriedade, cercas, portões, e todas as demais vedações do edifício; logradouros, caminhos e outras superfícies em ladrilhos, pedra, asfalto; piscinas, jardins, campos de jogos e outras áreas de lazer.» 12) A 01.4.2024, os AA., remeteram à Ré um email com o seguinte teor: a. «Com os meus cumprimentos, sou a contactar V.ªs Exas em representação dos Srs. AA, contribuinte fiscal n.°199 654 310M e marido BB, contribuinte fiscal n.º...86, proprietários do imóvel destinado à habitação inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...48º, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número ...19º, vos transmitir o seguinte: 1. Em virtude da forte precipitação que se fez sentir em 13/12/2022 no município ..., com maior volumetria na Quinta ..., ocorreu o desmoronamento do sistema de armazenagem e depuramento de esgotos e águas residuais domésticas, vulgo fossa séptica que está integrado no imóvel destinado à habitação dos meus constituintes que é objeto de contrato de seguro Multiriscos Habitação titulado pela apólice identificada em epigrafe. Devido à destruição do referido sistema de saneamento e esgotos os meus clientes vêem-se praticamente impossibilitados de residir no imóvel, uma vez que a existência e encaminhamento do respetivo efluente decorre da utilização e uso normal do imóvel objeto do contrato de Multiriscos Habitação, que denominam "Multiriscos Lar", subjacente à sobredita apólice. 3. Assim, por força do disposto nos n.° 1, última parte, n.° 2, n.° 3, última parte, estes da Cláusula 2ª, e pontos 6.1 e 19.1 da Cláusula 5ª todos das Condições Gerais do sobredito contrato de seguro, sou a solicitar o pagamento da quantia de 10 100 € (dez mil e cem euros), acrescidos do IVA legal, relativos ao custo da reconstrução da sobredita fossa séptica, sem prejuízo de se vindicarem ulteriormente os danos derivados da privação do uso do imóvel caso haja necessidade de recurso à via judicial.» 13) A Ré transmitiu aos AA. que não iria proceder ao pagamento da quantia peticionada por considerar que o evento descrito não se encontra coberto pelo contrato referido em 10). 2. E deu como não provado: a) O valor locativo do imóvel referido em 1) ascende a € 500. 3. Cumpre apreciar e decidir. O contrato de seguro é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[2] É um contrato sinalagmático, oneroso, de execução continuada, aleatório e - em regra - de adesão.[3] 4. Para a delimitação do objeto do contrato de seguro há que interpretar as condições gerais, especiais e particulares, que o constituem e que constam da apólice do contrato (cf. art.º 37º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro/RJCS, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4) e, porventura, ainda, da própria proposta do seguro. Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil/CC (art.ºs 236º e seguintes), com as especificidades decorrentes, v. g., dos art.ºs 7º, 10º e 11º do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais/RJCCG (instituído pelo DL n.º 446/85, de 25.10) e do citado regime jurídico do Contrato de Seguro.[4] E por isso é que a sua interpretação haverá de ser feita em conformidade com as regras de interpretação dos negócios jurídicos. Seja nas cláusulas contratuais gerais e especiais do seguro, sejas nas cláusulas particulares, estas individualmente contratadas, deve seguir-se a regra do art.º 236º, n.º 1, do CC, onde se consagra uma teoria objetivista, na modalidade da chamada doutrina da impressão do destinatário, para a qual é relevante o sentido que um declaratário normal possa deduzir do comportamento do declarante, supondo-se aquele uma pessoa normalmente diligente e experiente e devendo atender-se aos termos do negócio, aos interesses nele compreendidos, ao seu mais razoável tratamento, ao objetivo do declarante e às demais circunstâncias do caso concreto. E prevê o art.º 237º do CC que em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações. 5. O contrato que, por certo, mais questões suscita quanto à sua interpretação e integração é o contrato de seguro, e a definição dos riscos assumidos (as cláusulas que definem ou delimitam claramente o risco seguro e o compromisso do segurador) é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado respetivo.[5] Na interpretação do contrato de seguro o intérprete poderá/deverá socorrer-se de outros elementos interpretativos que não a apólice, sendo que limitar a análise do contrato de seguro à apólice seria denegar proteção à parte mais fraca.[6] 6. No seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros (art.º 44º, n.º 2 do RJCS). O sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato (art.º 99º). O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (art.º 123º). A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (art.º 128º). 7. As partes não divergem quanto à qualificação da relação contratual estabelecida entre si – o contrato de seguro referido em II. 1. 10), supra, regulado pelas respetivas cláusulas e pelo RJCS (preceituando o art.º 1º que “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”). Também não se questiona a ocorrência de um sinistro (e respetivos danos) que incidiu sobre o imóvel mencionado em II. 1. 1) a 3), supra. Tendo o Tribunal a quo considerado excluída da cobertura do seguro parte dos danos verificados, importa reapreciar o que se teve por incluído e que a Ré/recorrente (também) diz afastado das coberturas contratuais. 8. Expendeu e concluiu o Mm.º Juiz do Tribunal a quo: - Estamos perante danos ocorridos no sistema de drenagem de esgotos domésticos, que tem início na parte habitacional do imóvel, dirigindo-se de seguida para uma fossa séptica, com poço absorvente anexo, executados no logradouro do imóvel destinado à habitação em referência, sob o jardim aí existente e danos ocorridos nesse jardim. - O sistema de drenagem de esgotos domésticos subsume-se à noção de edifício avançada na cláusula 3ª das condições gerais (noção contratual), mormente o seu ponto “A. 3.”. Para tanto, basta atentar no teor da referida cláusula, que através de um elenco exemplificativo e aberto, faz alusão às instalações fixas que via de regra compõem qualquer imóvel - aquecimento, ar condicionado, água, eletricidade (…) - pelo que estando essas incluídas, também a instalação de drenagem de esgotos o estará por ser esse o sentido razoável de tal cláusula - cf. II. 1. 11) a., supra. - Não foi contratualizada a cobertura do risco quanto ao logradouro. - Relativamente aos danos causados no sistema de drenagem de esgotos, considera-se que o abatimento do solo (jardim) sobre o sistema de drenagem de esgotos domésticos por ação da chuva tem cabimento no ponto 4 da cláusula 4ª do contrato de seguro por ser esse o sentido razoável do teor da referida cláusula, com o qual os AA., enquanto tomadores de seguro, poderiam (razoavelmente) contar, integrando-se na noção comumente comungada de «fenómeno geológico que provoque aluimento» a erosão dos solos resultante de ação da precipitação. - Assim, impende sobre a Ré realizar a prestação devida (inclusive, pagamento de despesas com a remoção dos escombros) e respetivo IVA - cf. II. 1. 7), 9) e 11), supra e art.ºs 128º do RJCS e 1º, n.º 1, alínea a), 2º, n.º 1, alínea a) e 4º, n.º 1, do Código do IVA. 9. O Tribunal a quo respondeu afirmativamente ao primeiro dos temas da prova, pois considerou que o sistema de drenagem de esgotos domésticos faz parte integrante do imóvel descrito em II. 1. 1), supra. Ante os danos no dito sistema, importava verificar se são enquadráveis no âmbito da cobertura do contrato de seguro, em particular, no clausulado mencionado em II. 1. 11), supra. A 1ª instância concluiu pela sua inclusão, dizendo que a erosão dos solos resultante de ação da precipitação integra-se na noção comumente comungada de «fenómeno geológico que provoque aluimento». 10. Prosseguindo. Fenómeno geológico é um evento ou processo natural que ocorre na crosta terrestre ou no seu interior, podendo ser causado por forças internas do planeta ou por processos externos. Estes fenómenos podem ser eventos abruptos como terramotos, “tsunamis” e erupções vulcânicas, ou processos mais lentos como, por exemplo, a formação de montanhas, a erosão e a sedimentação. Fenómeno meteorológico é um evento que ocorre na atmosfera, associado ao tempo e clima - v. g., precipitação (sob a forma de chuva, granizo/saraiva, neve e orvalho), trovoadas, ventos fortes e tempestades. 11. Na situação em análise, em razão da precipitação ocorrida na primeira metade do mês de dezembro/2022, ocorreu a saturação e mobilização do solo que rodeia o imóvel em causa, com o desmoronamento das caixas e paredes do aludido sistema de armazenagem e encaminhamento de esgotos e águas residuais domésticas, bem como as tubagens que os transportam a partir do interior do imóvel para a fossa séptica e o poço de secagem, o que determinou que o sistema de drenagem de esgotos domésticos referido em II. 1. 2), supra, ficasse inoperacional, não permitindo o escoamento das águas residuais provenientes da parte habitacional do imóvel para a fossa séptica e poço - cf. II. 1. 4), 5) e 6), supra. E decorre do contrato de seguro [cf. II. 1. 11), supra]: - As instalações fixas de água integram o edifício/imóvel seguro. - Compreendem-se na cobertura da apólice os danos causados aos bens seguros, nomeadamente, em consequência direta de fenómenos geológicos que provoquem aluimentos e deslizamentos de terrenos e em consequência direta de rotura, defeito, entupimento ou transbordamentos súbitos e imprevistos, da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes os sistemas de esgoto de águas pluviais, assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos do mesmo edifício ou fração e respetivas ligações. 12. Perante o descrito enquadramento fáctico e normativo, afigura-se que se justifica manter a solução encontrada na 1ª instância, que enquadrou os danos sobrevindos nas coberturas da apólice em causa. Na verdade, os danos sofridos pelas coisas objeto do contrato de seguro estão, ou aparentam estar, inextricavelmente ligados a fenómenos de natureza meteorológica e geológica, fenómenos esses aparentemente interligados/conjugados entre si [e sem que tenha sido possível apurar ou explicitar, cabalmente, as circunstâncias de tais ocorrências - cf., por exemplo, o relatório pericial de fls. 105, máxime, quanto às respostas aos quesitos 8), 12) e 13)][7]; acresce que todo o sistema de drenagem de esgotos dito em II. 1. 2), supra, terá sido muito provavelmente afetado pelo volume de precipitação ao longo do período de tempo considerado e, quiçá, por fatores ligados à respetiva construção (eventuais deficiências construtivas derivadas da forma/procedimento e lugar da respetiva implantação), mas que não foram equacionados e/ou questionados.[8] Assim, face à realidade alegada e apurada e à necessária razoabilidade (na interpretação e aplicação das correspondentes normas contratuais e legais), conforme se referiu em II. 1. 4) e 5), supra, resta confirmar a parcial procedência da ação. 13. Esta, cremos, a solução exigida pelo direito enquanto validade normativa, uma resposta normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto[9] e aos interesses em presença, sabendo-se que “o objeto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objetivação cultural (...), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (...), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico”.[10] 14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso. * III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela Ré/apelante. * 16.9.2025
[2] Vide, entre outros, Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, Principia, 2006, pág. 73 e José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 20, e os acórdãos do STJ de 02.10.1997 e 10.12.1997 in CJ-STJ, ano V, 3, págs. 45 e 158. [5] Cf., entre outros, J. C. Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, 2009, págs. 93 e seguintes e o acórdão da RC de 15.10.2013-processo 73/12.3TBLRA.C1, publicado no “site” da dgsi. Sobre a matéria dos pontos II. 4. e 5., cf., entre outros, acórdão da RC de 09.10.2018-processo 335/17.3T8GRD.C1, publicado no “site” da dgsi. [7] A própria Ré, na alegação de recurso, também refere: “(...) a precipitação é relativa ao domínio das condições meteorológicas e, embora possa coexistir durante a ação de fenómenos geológicos (...)”; “(...) quer movimentos de terras com origem em situações de natureza meteorológica (...)”. [8] Relativamente a situação em que relevaram as “deficiências de construção”, cf. acórdão do STJ de 05.5.2018-processo 4077/14.3T8VNF.G1.S1 [com o sumário: «I - Para efeitos de um seguro de danos referente a uma habitação que garante os danos sofridos em virtude de aluimento de terras em consequência de fenómenos geológicos – i. e. de uma ação nova e rara associada à geodinâmica da crosta terrestre –, é de excluir do âmbito dessa cobertura um desabamento que haja sido causado por deficiências construtivas da moradia dos recorridos. II - A interpretação referida em I. corresponde àquela que um declaratário normal adotaria, pois um fenómeno geológico não pode ser equiparado a deficiências de construção.» - sublinhado nosso], publicado no “site” da dgsi. [10] Vide A. Castanheira Neves, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, 118º, págs. 257 e seguinte. |