Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/03.8TBSCD-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: PENSÃO DE ALIMENTOS
MAIORIDADE DO FILHO
INTERRUPÇÃO DA FORMAÇÃO ACADÉMICA
Data do Acordão: 06/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 122/2015, DE 01/09; ARTºS 1880º E 1905º C. CIVIL.
Sumário: I – A lei nº 122/2015, de 1 de setembro, clarificou que a obrigação de pagamento da pensão de alimentos se mantém depois da maioridade do filho e até que este perfaça 25 anos de idade, ressalvadas as situações em que o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou quando não seja razoável impor ao progenitor tal obrigação.

II – A alegação singela e linear feita pela A./requerente, em incidente de incumprimento das responsabilidades parentais (prestação de alimentos) deduzido contra o seu progenitor, de que «Após um ano de interregno nos seus estudos, a Requerente decidiu prossegui-los», era perfeitamente compatível com a interpretação de que se tratou de uma mera suspensão da atividade formativa, durante um ano, por causas justificadas, como seja a insuficiência económica ou impossibilidade prática no prosseguimento dos estudos ao nível do ensino superior/universitário, sem mais, no momento da conclusão do ensino secundário.

III – Na verdade, o melhor entendimento/interpretação sobre a “interrupção por livre iniciativa” não pode ser dissociado duma ação do agente consciente, informada e livre de qualquer constrangimento, quer ao nível económico, quer social, pelo que, se o mesmo não tiver condições económico-sociais para prosseguir os estudos no imediato, impondo-se ou sendo incontornável uma suspensão na formação académica por tal motivo, não é caso da ressalva legal de “livre interrupção dos estudos”.

IV – A prolação de despacho de indeferimento liminar, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.

Decisão Texto Integral:   





             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                              

1 – RELATÓRIO

R... instaurou contra seu pai, L..., incidente de incumprimento das responsabilidades parentais (prestação de alimentos), reclamando o pagamento de diversas quantias correspondentes a prestações alimentares desde Outubro de 2020 e despesas efetuadas com os estudos superiores.

Alega para tal que, sendo já maior de idade e tendo ficado previsto no regime de regulação das responsabilidades parentais que o pai ficaria obrigado ao pagamento de alimentos e a comparticipar no pagamento de despesas escolares, entre outras, o pai cessou os pagamentos de alimentos em Agosto de 2019, depois de a requerente, já maior de idade, ter acabado o ensino secundário, sendo certo que «Após um ano de interregno nos seus estudos, a Requerente decidiu prossegui-los».

                                                                          *

Em despacho liminar, a Exma. Juíza de 1ª instância decidiu indeferir liminarmente a petição inicial, por “manifesta improcedência”, tendo-o mais concretamente feito nos seguintes termos:

«(…)

Mais alega que, após um ano de interregno nos seus estudos, decidiu prossegui-los e iniciou estudos superiores em Outubro de 2020, pretendendo que o pai suporte os alimentos e despesas escolares efectuadas desde então.

Dispõe o art. 1905º do CC que:

1 - Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação; a homologação é recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor.

2 - Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.

Ora, de acordo com a alegação efectuada, a requerente interrompeu livremente os seus estudos durante um ano, após ter concluído o secundário, pelo que não pode prevalecer-se do regime de regulação das responsabilidades parentais para exigir do pai o pagamento dos alimentos fixados durante a menoridade a partir do momento em que decidiu retomar os seus estudos e das despesas ora peticionadas, relacionadas com esses estudos, que livremente interrompeu durante cerca de um ano.

Na verdade, e como resulta do aresto citado pela própria requerente, é necessário que a interrupção dos estudos não tenha sido arbitrária e livre e que se verifique a existência de uma causa justificativa dessa interrupção, o que, in casu, surte contrariado pela própria alegação da requerente, na medida em que menciona que “após um ano de interregno nos seus estudos, a requerente decidiu prossegui-los”.

Ora, resultando da própria alegação que a interrupção nos estudos, durante um ano, foi uma opção voluntária da requerente, não é aqui aplicável a solução jurídica vertida no aresto invocado, segundo o qual “Não integra a ressalva legal de livre interrupção dos estudos a circunstância de o filho necessitado de alimentos para a sua formação académica ter suspendido os estudos durante um ano letivo, por não ter capacidade financeira para se deslocar para a universidade onde foi colocado, aguardando nova candidatura para colocação na cidade onde reside com a mãe”.

Confessando a requerente, na petição inicial, que interrompeu voluntariamente os estudos durante cerca de um ano, produzida fica a prova, cujo ónus impenderia sobre o requerido, de que se verifica uma causa de cessação da obrigação alimentar fixada durante a menoridade.

Pelo exposto, indefiro liminarmente a petição inicial, por manifesta improcedência.

Custas a suportar pela requerente – art. 527º do CPC.

Fixo o valor da causa na peticionada quantia de mil quinhentos e sessenta euros e setenta e sete cêntimos – art. 296º, 297º, 299ºe 306º do CPC.

Registe e notifique. »

                                                                          *

É com esta decisão que a A./requerente não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, de cujas alegações extraiu as seguintes conclusões:

...           

Por sua vez, apresentou o R./requerido as suas contra-alegações, no final das quais pugna no sentido de que deve «o presente incidente de incumprimento ser declarado improcedente por não provado, e liminarmente indeferida a douta P.I, por manifesta improcedência, declarando-se que o Requerido nada deve à Requerente.»

                                                                          *

A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

- erro de decisão [ao indeferir liminarmente o incidente de incumprimento, com fundamento na interpretação feita do nº2 do artigo 1905º do Código Civil e sua aplicação ao caso sub judice, a saber, entendendo-se que a interrupção dos estudos teria sido voluntária, arbitrária e livre, o que constituiria causa de cessação da obrigação alimentar fixada durante a menoridade]?

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre entrar sem mais na apreciação da questão supra enunciada, a do erro de decisão [ao indeferir liminarmente o incidente de incumprimento, com fundamento na interpretação feita do nº2 do artigo 1905º do Código Civil e sua aplicação ao caso sub judice, a saber, entendendo-se que a interrupção dos estudos teria sido voluntária, arbitrária e livre, o que constituiria causa de cessação da obrigação alimentar fixada durante a menoridade].

Será assim?

Começaremos por dizer que, quanto a nós, concluir-se pelo desacerto da prolação do indeferimento liminar com um tal fundamento se afigura como isento de dúvida.

Mas, antes de mais, rememoremos brevemente o enquadramento jurídico da situação.

Consabidamente, os pais estão obrigados a contribuir para os alimentos dos filhos (cfr. art. 1878º, nº 1, do C.Civil) e, por isso, cada um dos progenitores tem de contribuir dentro do que lhe for humanamente possível para a alimentação dos filhos e se alguém tiver de fazer sacrifícios ou passar necessidades, tal situação deve onerar, em regra, os progenitores.

Esta oneração colocada a cargo dos progenitores funda-se no facto dos filhos enquanto menores, e logo após a maioridade, serem seres humanos em formação e desenvolvimento e da circunstância do seu futuro depender, em regra, desta formação e deste desenvolvimento; em contrapartida, os progenitores já passaram por essa fase e embora possam melhorar as suas vidas e fazer, eventualmente, hoje o que não fizeram nessas idades, já nada podem fazer para alterar o passado.

 Daí que o interesse dos filhos deva prevalecer por ser atual e prioritário em relação ao interesse dos progenitores.

De referir igualmente e desde já, que a Lei nº 122/2015, de 1/9 alterou o paradigma probatório nesta temática.

Na verdade, antes do contributo legislativo aportado por tal diploma legal, «Embora não houvesse dúvidas de que a obrigação de prestação de alimentos fixada a filho menor não se extinguia automaticamente com a maioridade deste (cfr. art. 989.º, n.º 2, do NCPC; arts. 1880.º e 2013.º, do CCiv), na prática, a subsistência dessa obrigação dependia de um impulso processual do filho, já maior, que, em processo especial instaurado contra o progenitor, tinha de demonstrar não ter ainda completado a sua formação profissional e estarem reunidos os demais pressupostos do art. 1880.º do CCiv. Isto porque se considerava que o pedido de alimentos em processo pendente ou formulado na instância renovada de processo findo apenas podia ser apreciado até ao momento da maioridade.

O n.º 2 aditado ao art. 1905.º do CCiv dispensa o filho maior de alegar e provar tais pressupostos até que complete 25 anos de idade, competindo ao progenitor, atingida a maioridade do seu filho, requerer contra este a cessação ou alteração dos alimentos, nos termos previstos na parte final daquele normativo, uma vez que a continuação da prestação de alimentos para além desse momento é agora automática. É, pois, ao progenitor obrigado que cabe o ónus de alegar e provar os pressupostos que tornam inexigível a permanência da obrigação alimentar.»[2]

Isto é, com a alteração introduzida no art. 1905º do C. Civil, mediante o aditamento do nº 2 pela Lei nº 122/2015, os filhos passaram a ter automaticamente direito à pensão de alimentos que lhes foi fixada durante a menoridade, e até que completem 25 anos, sendo que esta obrigatoriedade de pagamento da prestação de alimentos só cessa (i) se o filho maior já tiver completado a sua educação ou formação profissional, (ii) no caso de essa educação ou formação ter sido interrompida por livre iniciativa do filho ou se (iii) o obrigado a alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.

Mais concretamente, estatui-se pela seguinte forma no atualmente vigente art. 1905º do C.Civil, com a epígrafe de “Alimentos devidos ao filho em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento”:

«1 - Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação; a homologação é recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor.

2 - Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.» [sublinhado nosso]

 Mas o que é que se deve entender/interpretar como constituindo a ressalva legal da «formação ter sido interrompida por livre iniciativa do filho»?

Na decisão recorrida foi entendido que a interrupção dos estudos por parte da A./requerente, ora recorrente, tinha sido voluntária, arbitrária e livre, o que constituiria causa de cessação da obrigação alimentar fixada durante a menoridade.

Sucede que a A./requerente, ora recorrente, apenas havia literalmente alegado no seu articulado/“incidente de incumprimento” que:

«3º

O aqui Requerido cessou os pagamentos da pensão de alimentos em Agosto de 2019, data em que efetuou a última entrega à Requerente (a quem eram já efectuados directamente havia algum tempo), porventura pelo facto de esta ser já maior e ter concluído no mês anterior o ensino secundário.

Contudo,

Após um ano de interregno nos seus estudos, a Requerente decidiu prossegui-los, tendo procedido à candidatura de acesso ao curso de Psicologia (Licenciatura), ministrado pelo Instituto Piaget, CRL, em Viseu, no dia 19 de Agosto de 2020, suportando para tanto uma despesa de 80,00 € (cfr. cópia do respetivo recibo que ora se junta como Doc.1).» [sublinhado nosso]

Será então que deve a expressão “livremente interrompido” contida no nº2 do art. 1905º do C.Civil ser interpretada no sentido de que qualquer suspensão do processo educativo é causa de cessação da obrigação alimentar fixada durante a menoridade?

Salvo o devido respeito, parece-nos claramente que não.

Com efeito, s.m.j., a alegação singela e linear feita pela A./requerente, ora recorrente era perfeitamente compatível com a interpretação de que se tratou de uma mera suspensão da atividade formativa, durante um ano, por causas justificadas, como seja a insuficiência económica ou impossibilidade prática no prosseguimento dos estudos ao nível do ensino superior/universitário, sem mais, no momento da conclusão do ensino secundário.

É que, o melhor entendimento/interpretação sobre a “interrupção por livre iniciativa” não nos parece que possa ser dissociado duma ação do agente consciente, informada e livre de qualquer constrangimento, quer ao nível económico, quer social.

Pelo que, se o mesmo não tiver condições económico-sociais para prosseguir os estudos no imediato, impondo-se ou sendo incontornável uma suspensão na formação académica por tal motivo, parece-nos que não é caso da ressalva legal de “livre interrupção dos estudos”!

Neste sentido, e para um aresto relativo a situação com evidente paralelismo com a aqui ajuizada, já foi sustentado em douto aresto o seguinte:

«Apurado que a Recorrente descontinuou os seus estudos universitários durante um ano por não dispor de capacidade financeira para se deslocar para G…, em cuja universidade foi colocada, fica enjeitada a conclusão de que interrompeu livremente os estudos.»[3]

Ademais, competindo o ónus da prova da verificação desta ressalva legal ao progenitor da A./requerente, ora recorrente, isto é, ao R./requerido/recorrido, tal significa e implica que sempre caberia a este último o ónus de alegar e provar que o processo de educação ou formação profissional da A./requerente foi voluntariamente interrompido, ilidindo, dessa forma, a presunção legal da necessidade de alimentos do filho maior, com idade compreendida entre os 18 e os 25 anos, para completar a sua formação profissional, conforme já supra aludido.

Ora se assim é, tudo aconselhava a deixar a apreciação e decisão sobre a verificação dos pressupostos da situação de incumprimento da prestação alimentícia por parte do progenitor da A./requerente, para momento subsequente ao exercício do contraditório por parte deste [R./requerido/recorrido], donde, também a esta luz, se conclui pelo desacerto da decisão recorrida.

O que surge reforçado na situação vertente pela decisiva razão de que uma decisão de indeferimento liminar deve ser reservada e circunscrita às situações em que se conclui desde logo e insofismavelmente no sentido de ser manifesta e absolutamente  indiscutível a improcedência da pretensão trazida a juízo.

Na verdade, «Havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz indeferir liminarmente a petição, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito.»[4] 

Dito de outra forma: «um despacho de indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.»[5]

Em reforço e complemento desta linha de entendimento, foi ainda sustentado no aresto por último citado o seguinte:

«(…)

Tal como consta do Ac. da R.E. de 02/10/1986, C.J., XI, 4º, 283, o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido», se a evidência da improcedência tiver um «caráter absoluto e objectivo, para poder sê-lo», se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.

No Ac. do S. T. J. de 05.03.1987, BMJ 365º, 562, decidiu-se que só será possível o indeferimento «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais.».

No Ac. do S.T.A. de 17.102018, Proc. n.º 646/17.8BEAVR 0121/18 (Casimiro Gonçalves), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «o indeferimento liminar, por manifesta improcedência, só deve decretar-se quando tal improcedência for evidente em termos de o seguimento do respectivo processo carecer, em absoluto, de razão de ser.»»

O que tudo serve para dizer que o indeferimento liminar de uma pretensão trazida a juízo, por manifesta improcedência, nos termos do disposto no art. 590º, nº1 do n.C.P.Civil, só deverá justificar-se em situações de evidente e absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, isto é, quando se não tiver na doutrina ou jurisprudência quem os defenda.

O que já vimos não ser o caso…

Com efeito, o que s.m.j., poderia legitimamente ser invocado na situação vertente era que tinha havido uma deficiente articulação ou exposição da pretensão por parte da A./requerente, ou que a situação por ela exposta estava carecida de esclarecimento – no sentido de ser melhor explicitada ou concretizada – o que, salvo o devido respeito, só de forma mais cabal e curial seria percetível após a apresentação da respetiva posição pela contraparte, mas tal remete-nos, então, para a necessidade ou conveniência do proferimento de um despacho de aperfeiçoamento, situação sobre a qual diretamente preceitua o nº4 do citado art. 590º do n.C.P.Civil [aqui aplicável ex vi do disposto no art. 33º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[6]] nos seguintes termos:

«4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»

Sendo certo que ao dizer-se que «“incumbe ainda ao Juiz convidar as partes” (…) este convite corresponde hoje ao exercício dum poder vinculado. Por isso, o seu não exercício pode fundar uma arguição de nulidade nos termos do art. 195 (…)»[7]

Assim sendo, a subsistir uma necessidade de esclarecimento quanto a qualquer desses aspetos, a mesma mais curialmente poderá e deverá ser suprida em subsequente momento processual, mais concretamente, em obediência ao dever de gestão processual (cf. art. 6º do n.C.P.Civil), poderá e deverá o juiz oportunamente convidar a A./requerente a esclarecer – explicitar e/ou concretizar – as circunstâncias e motivações da interrupção da sua formação académica pelo referido período de 1 ano (cf., o disposto no já citado art. 590º, nº4 do n.C.P.Civil, aqui aplicável).

O que tudo serve para dizer que os autos devem prosseguir por ora, tendo sido prematura a decisão de imediato indeferimento liminar, decisão esta que deve assim ser revogada.

Nestes termos procedendo o recurso.

                                                                                         *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A lei nº 122/2015, de 1 de setembro, clarificou que a obrigação de pagamento da pensão de alimentos se mantém depois da maioridade do filho e até que este perfaça 25 anos de idade, ressalvadas as situações em que o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou quando não seja razoável impor ao progenitor tal obrigação.

II – A alegação singela e linear feita pela A./requerente, em incidente de incumprimento das responsabilidades parentais (prestação de alimentos) deduzido contra o seu progenitor, de que «Após um ano de interregno nos seus estudos, a Requerente decidiu prossegui-los», era perfeitamente compatível com a interpretação de que se tratou de uma mera suspensão da atividade formativa, durante um ano, por causas justificadas, como seja a insuficiência económica ou impossibilidade prática no prosseguimento dos estudos ao nível do ensino superior/universitário, sem mais, no momento da conclusão do ensino secundário.

III – Na verdade, o melhor entendimento/interpretação sobre a “interrupção por livre iniciativa” não pode ser dissociado duma ação do agente consciente, informada e livre de qualquer constrangimento, quer ao nível económico, quer social, pelo que, se o mesmo não tiver condições económico-sociais para prosseguir os estudos no imediato, impondo-se ou sendo incontornável uma suspensão na formação académica por tal motivo, não é caso da ressalva legal de “livre interrupção dos estudos”.

IV – A prolação de despacho de indeferimento liminar, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.

                                                                                         *

6 - DISPOSITIVO

               Pelo exposto, decidem a final julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que dê a sequência processual no quadro do previsto no art. 41º, nº3 do RGPTC, prosseguindo os autos a normal tramitação, sem prejuízo de oportunamente ser convidada a A./requerente a esclarecer – explicitar e/ou concretizar – as circunstâncias e motivações da interrupção da sua formação académica, sendo disso caso.

               Custas pela parte vencida a final.

                                                                                         Coimbra, 1 de Junho de 2021  

                                                                          Luís Filipe Cravo

                                                                      Fernando Monteiro

                                                                         Ana Márcia Vieira


***



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira
 
[2] Citámos J. H. DELGADO DE CARVALHO, “O novo regime de alimentos devidos a filho maior ou emancipado; contributo para a interpretação da Lei n.º 122/2015, de 1/9 (2)”, a págs. 2-3, in Blog do IPPC, acessível através de https://blogippc.blogspot.com/2015/09/o-novo-regime-de-alimentos-devidos_28.html.


[3] Trata-se do acórdão do TRP de 27.04.2017, proferido no proc. nº 395/12.3TBVLC-H.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, aliás, citado nas alegações recursivas.
[4] Assim no acórdão do TRG de 31.01.2019, proferido no proc. nº 621/17.2T8FAF.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[5] Citámos agora o acórdão do TRL de 04.02.2020, proferido no proc. nº 959/13.8TBALQ-A.L1­7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[6] Aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, doravante “RGPTC”.
[7] Citámos agora JOSÉ LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, a págs. 635.