Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/10.8IDCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
INSOLVÊNCIA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 146.º, N.º 2, E 160.º, N.º 2, DO CSC; ARTIGOS 127.º E 128.º DO CP
Sumário: I - Só a extinção das sociedades - que ocorre com o registo do encerramento da respectiva liquidação e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final (se e quando o mesmo tiver lugar) -, e não a sua dissolução, é equiparável à morte das pessoas singulares.

II - Assim, a dissolução de uma sociedade comercial não determina a extinção da responsabilidade do ente colectivo pelo pagamento da multa em que foi condenado, decorrente de infracção praticada antes do acto referido.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 39/10.8IDCBR do (entretanto extinto) Tribunal Judicial de Tábua, foi a arguida A..., Lda., condenada de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos arts 105º do RGIT e 30º nº 2 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (o que perfaz a soma de €600).

2. Transitada em julgado que foi tal condenação, e sem que ali se tivesse logrado obter o pagamento da referida multa (dos presentes autos de recurso em separado não demonstram que tivesse sido paga), na sequência de despachos judicias proferidos, foi junta aos autos certidão do registo comercial actualizado da sociedade arguida (da qual resulta que esta, por sentença proferida no Processo nº 59/12.8TBTBU do Tribunal Judicial de Tábua, foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado no dia 04.06.2012), bem como certidão da acta da assembleia de credores, sendo que nesta última certidão (que acompanha a referida acta), emitida em 24.10.2013, consta ainda certificado que “em 05.03.2013, em assembleia de Credores, foi votado favoravelmente o plano de insolvência e a imediata liquidação do activo insolvente, a qual ainda não está concretizada”.

3. Na vista que lhe foi aberta, o Ministério Público, promoveu que os autos aguardassem a liquidação e registo do encerramento da liquidação.

4. Conclusos que lhe foram os autos, a Ex.ma Juiz, em 30.10.2013, proferiu o despacho de fls. 19 a 22vº destes autos de recurso em separado (correspondente a fls. 814 a 817 vº dos autos principais), despacho esse que aqui se tem por inteiramente reproduzido, e onde, depois de dar nota das divisões jurisprudenciais acerca da aplicação do artº 127º nº 1 do Código Penal, às pessoas colectivas declaradas falidas ou insolventes, e de tecer longas considerações doutrinais acerca da responsabilidade criminal das pessoas colectivas depois de entrarem em processo insolvencial ou falimentar, terminou decidindo do seguinte modo:

“Nestes termos e com estes fundamentos, julgo extinta a responsabilidade criminal da arguida A..., Lda.

(…).”

5. Inconformado com o assim decidido, veio o Ministério Público apresentar recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

A. Nos presentes autos a sociedade arguida foi condenada por sentença datada de 13.04.2012, transitada em julgado em 03.05.2012, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º do R.G.I.T. (aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 05 de Junho) e 30.°, n.° 2 do Código Penal;

B. No âmbito do processo n.° 59/04.0TBTBU que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Tábua foi esta sociedade declarada insolvente por sentença datada de 26.04.2012;

C. Por despacho datado de 30.10.2013 o Tribunal a quo declarou extinta a responsabilidade criminal desta sociedade, arguida nos presentes autos, sem que constasse dos autos informação sobre o registo do encerramento da liquidação desta, antes pelo contrário, conforme se lê da certidão comercial junta aos autos;

D. O Código Penal consagra no artigo 11.º a responsabilidade das pessoas coletivas, sendo que o artigo 7.° do R.G.I.T. também consagra a responsabilização destes entes; e que o artigo 127.º, n.° 1 do Código Penal consagra como causa de extinta da pessoa singular a morte;

E. Ao apelar à similitude de situações (aplicando a mesma linha de pensamento e raciocínio) não poderemos olvidar que a extinção da pessoa coletiva (o `sistema organizativo’ de que fala o Tribunal a quo) — uma criação instrumental do mundo normativo — não determina automaticamente a extinção da sua responsabilidade criminal;

F. No caso das sociedades comerciais, o substrato patrimonial e pessoal das mesmas desaparece com o termo da sua personalidade jurídica que ocorrerá apenas aquando do registo do encerramento da liquidação, conforme consta do artigo 160.°, n.° 2 do Código das Sociedades Comerciais;

G. Pelo que a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extingue com a declaração de insolvência, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir sobre a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada;

H. Nos presentes autos consta informação de que o processo de insolvência se encontra em fase de liquidação, pelo que ainda subsiste a sociedade arguida não se encontra juridicamente extinta (fls. 809 e seguintes);

I. Na verdade, não se pode considerar que a sociedade arguida se encontra juridicamente extinta e muito menos que a mesma já não é criminalmente responsável;

J. Pelo que foram violados aquando da emanação do Despacho judicial de fls. 814 e seguintes dos autos os artigos 141.°, n.° 1, alínea e), 146.°, n.° 2 e 160.°, n.° 2, do C.S.C., artigos 11.º, 127.°, n.° 2 e 128.° do Código Penal e artigos 7.° e 105.° do R.G.I.T.. e artigo 475º do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos demais de Direito o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 141.°, n.° 1., alínea e), 146.°, n..° 2 e 160.°, n.° 2, do C.S.C., artigos 11°, 127.°, n.° 2 e 128.° do Código Penal e artigos 7º e 105.° do R.G.I.T.. e artigo 475º do Código de Processo Penal, aquando da emissão do Despacho que declarou a extinção da responsabilidade criminal da sociedade arguida ‘ A..., Lda.’, a fls. 814 e seguintes dos autos, pelo que deverá ser o mesmo revogado, julgando o recurso ora interposto procedente e alterada a Decisão proferida pelo Tribunal a quo, no sentido de considerar que a responsabilidade criminal da sociedade arguida não se encontra extinta.”

6. Por despacho proferido em 26.03.2014, foi o recurso admitido a subir imediatamente, em separado com efeito devolutivo. Nessa mesma altura, a Ex.ma Juiz sustentou o despacho recorrido, referindo que o facto fundamento onde radicou a equiparação ao facto morte decisão recorrida não residiu na declaração de insolvência, mas a situação insolvencial com posterior ingresso em processo de liquidação.

7. Não foi apresentada resposta ao recurso.

8. Depois de instruídos com as peças indicadas pela Ex.ma Juiz, foram os autos remetidos a esta Relação.

9. Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto (a fls. 34 e 35), sufragando a argumentação evidenciada pelo magistrado do Ministério Público de 1ª instância e acrescentado ainda à jurisprudência ali citada o recente acórdão desta Relação de Coimbra de 22.10.2014, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder, alterando-se a decisão recorrida nos termos propostos.

10. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

11. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Assim, atento o teor das conclusões, a questão a decidir consiste em saber se para a declaração da extinção da responsabilidade criminal do ente colectivo basta a declaração judicial da sua insolvência ou, havendo processo de liquidação da respectiva massa da insolvente, se torna necessário aguardar pelo registo do encerramento dessa liquidação.

Sendo certo que existem correntes jurisprudenciais que apontam para cada um dos lados, a jurisprudência maioritária dos tribunais comuns envereda para a segunda posição, a qual aliás, segue, de perto o que estabelece o nº 2 do artigo 160º do CSC, normativo esse, na parte que para aqui tem relevância, tem a seguinte redacção: “A sociedade considera-se extinta (…), pelo registo do encerramento da liquidação”.

Aderimos nós também àqueles que, tendo em conta esse mesmo preceito, consideram que a “morte” da pessoa colectiva só ocorre com o registo do encerramento da liquidação, não existindo, para efeitos do artigo 127º do Código Penal, qualquer analogia entre a morte de pessoa física e a declaração de insolvência de uma sociedade.

A extinção de uma sociedade comercial, que é a única realidade conceptual e normativa que pode ser equiparada àquela morte, não ocorre com a sua dissolução, mas sim com o registo do encerramento da respectiva liquidação (cfr. artigo 160.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, doravante CSC) e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final, se e quando o mesmo tiver lugar (cfr. artigo 234.º n.º3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE).

Antes de algum destes registos, a sociedade comercial, mesmo que dissolvida (por insolvência ou qualquer outro fundamento – cfr. artigo 141.º, n.º 1 do CSC), continua a ter personalidade jurídica, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (cfr. artigo 146.º, n.º 2 do CSC).

Aliás, os efeitos da dissolução da sociedade na sequência da declaração de insolvência repercutem-se, essencialmente, sobre o funcionamento dos seus órgãos sociais, cujos poderes ficam limitados ou são transferidos para o administrador da insolvência (artigos 81º, 82º e 156º do CIRE), mas, a sociedade mantém, nos termos já referidos, a sua personalidade jurídica. Isto, note-se, ao contrário do que se passa com as pessoas singulares em que a morte das mesmas implica, sempre e necessariamente, a cessação da respectiva personalidade jurídica  (cfr. artigo 68º, nº 1, do Código Civil.

Como refere Raul Ventura (in Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, 4ª Reimpressão da 1ª edição, de 1987, Almedina, pág. 16), a dissolução de uma sociedade “é a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, consistente em ela entrar na fase de liquidação”. Ou seja, com a dissolução a sociedade entra numa outra fase em que o seu objecto deixa de ser prosseguido para se predeterminar à liquidação e partilha do respectivo património ou, no caso da insolvência, embora possa manter-se em actividade, ainda que sob a supervisão do administrador judicial (artigo 226º do CIRE), só não entrará nessa fase se os respectivos credores optarem pela sua recuperação - artigo 234º, nº 1 e 2 do CIRE.

Assim, só a extinção das sociedades, que ocorre com o registo do encerramento da respectiva liquidação e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final (se e quando o mesmo tiver lugar), é equiparável à morte das pessoas singulares, e não a dissolução daquelas. E isso tem óbvios efeitos na manutenção da responsabilidade criminal pelos delitos anteriormente praticados, a qual não pode, por isso mesmo, ser declarada extinta antes de cessada a personalidade da entidade que praticou esses ilícitos.

Daí que a dissolução de uma sociedade comercial, ao contrário do defendido na decisão recorrida, não possa ser equiparada à morte de uma pessoa individual e, nessa medida, não possa igualmente determinar a extinção da sua responsabilidade pelo pagamento da multa por que foi condenada nos presentes autos decorrente de infracção praticada antes dessa dissolução.

Esta, de resto, embora de sobremaneira reportada a casos em que tinha sido declarado extinto o procedimento criminal, tem sido a posição dominante da jurisprudência nos tribunais comuns (cfr. entre outros o que decorre dos seguintes acórdãos):

 Ac. do STJ de 12-10-2006, proc.º n.º 0692930, Pereira Madeira;

 Desta Relação de Coimbra:

Ac. de 25-6-1996, Col. de Jur. Ano XXI, tomo 3, pág. 40;

Ac. de 06.03.2013, proc. nº 356/06.1TACNT.C1, rel. Brizida Martins;

 Da Relação do Porto:

- Ac. de 05-03-2003, proc.º n.º 0210379, rel. Fernando Batista;

- Ac. de 28-05-2003, proc.º n.º 0310495, rel. Borges Martins;

- Ac. de 10-03-2004, proc.º n.º 0315960, rel. Borges Martins;

- Ac. de 08-07-2004, proc.º n.º 0441488, rel. Agostinho Freitas;

- Ac. de 06-10-2004, proc.º n.º 0413650, rel. André Silva;

- Ac. de 13-10-2004, proc.º n.º 0414013, rel. Fernando Monterroso;

- Ac. de 28-09-2005, proc.º n.º 0510726, rel. Alves Fernandes;

- Ac. de 21-12-2005, proc.º n.º 0416352, rel. Ângelo Morais;

- Ac. de 09-05-2007, proc.º n.º 0710903, rel. António Eleutério;

- Ac. de 27-06-2007, proc.º n.º 0742535, rel. Ernesto Nascimento;

- Ac. de 12-09-2007, proc.º n.º 0741140, rel. Pinto Monteiro;

- Ac de 06.06.2012, proc. 176/01.0TBVCD-B.P1, rel. Maria Leonor Esteves.

Ac da Relação de Guimarães de 09.02.2009, proc. 2701/08.1, rel. Cruz Bucho.

Além disso, tal como referido pelo Exmo Procurador-Geral Ajunto aquando da emissão do seu parecer, também muito recentemente esta Relação de Coimbra, no acórdão de 22.10.2014 (rel. Cacilda Sena), foi dado por assente e se decidiu, nos seguintes termos sumariados e constantes do site www.dgsi.pt/jtrc:

1. A declaração de insolvência não extingue de per si a sociedade; tão só priva-a do poder de administrar e de dispor de bens que, a partir daquele momento, passam a integrar a massa falida que é administrada pelo liquidatário judicial.

2. Assim, após a declaração de insolvência as sociedades comerciais mantêm personalidade judiciária; esta só se extingue com o registo do encerramento da liquidação.

No seguimento desta maioritária esteira jurisprudencial, continuamos a considerar que as sociedades comerciais, por força do que estabelece o já citado artigo 160º nº 2 do CSC, mesmo após a declaração de insolvência, mantêm personalidade jurídica, a qual só se extingue com o registo do encerramento da liquidação.

Assim, e reproduzindo aqui o remate final consignado, antes do respectivo dispositivo, no já referido acórdão desta Relação de Coimbra de 22.10.2014, “não se vê como defender, como se fez no despacho recorrido, que o início da liquidação extingue a responsabilidade criminal da pessoa colectiva, digamos que a partir daí a pessoa colectiva está moribunda, ou mantém uma vida assistida, mas ainda não morreu, o seu “decesso” só ocorrerá com o acto formal de registo de liquidação do património que corresponde ao registo de óbito das pessoas singulares”.

É, pois, de conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro no sentido de aguardar o registo do encerramento da liquidação.

III  DISPOSITIVO:

Nos termos e fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, em vez de declarar já extinta a responsabilidade criminal da arguida sociedade, aguarde o registo do encerramento da liquidação.

Sem custas.

                                                     *

Coimbra, 17 de Dezembro de 2014



(Luís Coimbra - relator)

(Alcina Costa Ribeiro - adjunto)