Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
127458/16.7YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: INJUNÇÃO
INEPTIDÃO
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
ACTOS INCOMPATÍVEIS
Data do Acordão: 05/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTS.186 CPC, DL Nº 269/98 DE 17), ARTS. 312, 313, 314, 317 B) CC
Sumário:
1.- A injunção serve objetivos de celeridade e de simplificação, sem quebra da certeza e da segurança jurídicas. Nela, o requerente expõe sucintamente os factos que fundamentam a pretensão.
2.- A alegação de que no âmbito da sua atividade, a Requerente foi contratada pelo Requerido para lhe vender rações, fornecimento facturado, no valor contabilizado e interpelado este para pagar, não o fez, torna válida aquela petição para sustentar o pedido deste valor.
3.- A prescrição presuntiva cria a favor do devedor a presunção de que cumpriu.
4.- O objetivo dela é o de proteger o devedor da dificuldade de prova e corresponde, em regra, a dívidas que se pagam em prazos curtos e sem que ao devedor seja entregue documento de quitação, ou sem que seja corrente conservá-lo.
5.- Os “actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”, a que se refere o artigo 314º do Código Civil, podem traduzir-se, como no caso, na alegação de que não contratou os fornecimentos reclamados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M (…) apresentou injunção, depois transmutada em processo especial de cumprimento de obrigações pecuniárias, contra J (…), pedindo a condenação deste a pagar-lhe 13.143,10€, sendo 7.517,31€ a título de capital em dívida, 5.523,79€ de juros vencidos, às taxas dos juros comerciais, e 102,00€ de taxa de justiça.
A Autora alega, em síntese:
No exercício da sua atividade comercial, vendeu ao Requerido, também comerciante, os produtos descritos nas faturas que apresenta, datadas e vencidas nos dias 18/09/2007, 28/09/2007, 04/10/2007, 16/10/2007, 25/10/2007, 08/11/2007, 08/11/2007, 12/12/2007, 29/12/2007, 29/12/2007, 18/01/2008 e 20/02/2008.
As referidas faturas foram entregues ao Requerido e deviam ter sido pagas nas respetivas datas de emissão.
O Requerido não as liquidou, apesar de várias vezes instado para tal.
O Requerido deduziu oposição, dizendo em síntese:
A injunção é inepta porque não identifica o valor em dívida associado a cada fatura, nem identifica a taxa utilizada na contabilização dos juros vencidos.
É parte ilegítima porque não realizou negócio com a Requerente nas datas apostas nas faturas, tendo cessado a sua atividade individual em Junho de 2007; depois disso passou a gerente de sociedade, conhecida da Requerente; as transações em nome individual com a Requerente foram feitas até final de 2006 e tudo foi pago.
Decorrido o prazo legal previsto no artº 317º, al. b) do Código Civil, verifica-se a prescrição da alegada dívida.
Verifica-se também a prescrição dos juros de mora, nos termos do artº 310º, al. d), do Código Civil.
A Requerente respondeu às exceções.
De seguida, o Tribunal proferiu despacho, julgando improcedentes as exceções da ineptidão do requerimento, da ilegitimidade e da prescrição presuntiva.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a ação, absolvendo o Requerido do pedido.
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Inconformado, o Requerido recorreu do despacho interlocutório e apresenta as seguintes conclusões:
1. Da Ineptidão da injunção. Não consta do requerimento o valor de cada factura
que o A. alega estarem em dívida; nem a taxa de juro utilizada para contabilizar os juros peticionados.
2. O recorrente ficou impedido de se pronunciar sobre os valores em causa, quer o valor de cada factura, quer sobre a operação aritmética realizada pela A. para alcançar os juros a elas associados e constantes do pedido.
3. O artº 10, nº 2, al. e) do D.L. nº 269/98 impõe que o requerimento inicial discrimine o valor do capital em dívida, não seja indicado apenas o valor total.
4. Tal facto impede o recorrente de ter conhecimento cabal da causa de pedir e,
consequentemente, impede o exercício, pelo recorrente, do contraditório em relação à totalidade do pedido.
5. Termos pelos quais deve a presente injunção ser declarada inepta por violação
do disposto no artº 3, nº 1, artº 186, nº 1 e nº 2, al. a) e artº 278, nº 1, al. b), todos do CPC e consequentemente ser o recorrente absolvido da instância nos termos e para os devidos efeitos legais.
6. Da Prescrição. O recorrente alegou o decurso do prazo de dois anos após a alegada venda dos bens, que na data em que alegadamente as facturas foram emitidas não era comerciante, que toda a mercadoria fornecida pela A. foi paga.
7. Pelo que nos termos do artº 317, al. b) do Código Civil as facturas descritas pela A. na injunção se encontram já prescritas, com as necessárias consequências legais.
8. Da Prova no processo de injunção. Estabelece o nº 4 do artº 3 do D.L. nº 269/98 que a prova (das partes) é oferecida na audiência.
9. O recorrente juntou aos autos, com a oposição, documentos que não foram contestados pela A..
10. Encontrando-se ainda em tempo para apresentar prova sobre esse facto em audiência, não se pode considerar matéria assente esse facto.
11. Pelo que viola o despacho recorrido o disposto no artº 3, nº 4 do D.L. nº 269/98, devendo-se dar o mesmo por não provado e não escrito.
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A Requerente contra- alegou, defendendo a correção do decidido.
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Inconformada quanto à decisão final, a Requerente recorreu da sentença e apresenta as seguintes conclusões (mantemos a numeração original):
(…)
Pelo que, e por todo o exposto, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente, por provada, a ação em questão, condenado o R. nos termos peticionados na mesma, pois, só por essa via, se poderá dizer que foi analisada e valorada correctamente a prova produzida em julgamento.
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O Requerido não alegou.
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As questões a decidir são as seguintes:
A ineptidão da injunção.
A prescrição presuntiva do pagamento.
A consideração da qualidade de comerciante.
No mérito, a questão a decidir é essencialmente factual e passa por julgar a divergência quanto à valoração da prova, indagando sobre a pessoa que se relacionou com a Requerente, no período em questão, procurando saber se ela é o Requerido ou a sociedade que este constituiu. (Devemos notar que a decisão jurídica apenas resultará alterada por força da modificação da matéria de facto, como a própria Recorrente alega.)
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Os factos considerados provados foram os seguintes:
1- A Requerente em, pelo menos 2006-2008, dedicava-se à comercialização de aves, rações, cereais e gás.
2 - No exercício da sua atividade, a Requerente forneceu ao Requerido e à sociedade M (…) Lda, de que este era sócio gerente, produtos da sua atividade.
3. A sociedade M (…) Lda, foi constituída em abril de 2007 e foi dissolvida em abril de 2008.
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O Tribunal considerou não provado que a Requerente forneceu ao Requerido, em nome individual, no período em questão, os produtos faturados.
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A ineptidão da injunção.
A presente ação é uma acção especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a qual segue o regime especial instituído pelo DL nº 269/98 de 1.9.
O artigo 1º, nº 1, do referido regime diz-nos: “Na petição, o autor exporá sucintamente a sua pretensão e os respectivos fundamentos…”
E no artigo 3º, nº 1: “Se a acção tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.”
Na falta de regime especial sobre essas nulidades, vale o regime geral constante do Código de Processo Civil, onde se encontra o artigo 186º e que preceitua:
1. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
A causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida.
Ela consubstancia-se nos concretos factos com relevância jurídica.
O réu necessita de os conhecer para poder defender-se e assim também se delimita o conhecimento do juiz.
Por ser assim, o nº 3 do artigo 186º diz que, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão, não se julgará procedente a arguição quando se verificar que a petição inicial foi convenientemente interpretada.
Também tem sido entendimento pacífico de que só a falta absoluta de factos, não a deficiência na sua articulação, integra aquela ineptidão. (Ver o acórdão desta Relação, de 21.3.2013, no processo 69464/12.6YIPRT.C1, em www.dgsi.pt.)
O Requerido defende a ineptidão da petição na consideração de que esta não identifica o valor em dívida associado a cada fatura e não identifica a taxa utilizada na contabilização dos juros vencidos.
Lembremos o que a Requerente introduziu na injunção:
Identificou o contrato como de fornecimento de bens.
Datou os fornecimentos por referência às faturas.
E mais alegou que as partes se dedicam à venda de rações, tendo, no âmbito da sua actividade, sido contratada pelo Requerido para fornecimentos que estão titulados em certas faturas; os bens foram colocados à disposição do Requerido.
Não obstante a faturação e as interpelações ao Requerido, para que este efectuasse o pagamento, este não pagou os valores faturados.
O Requerido nunca reclamou nem devolveu os bens que lhe foram fornecidos.
Lembremos que a injunção serve objectivos de celeridade e de simplificação, sem quebra da certeza e da segurança do direito, sendo certo que o requerente do procedimento tem de expor a sua pretensão e respectivos fundamentos no impresso próprio para o efeito.
Neste contexto, haverá necessidade de aligeirar os requisitos formais, com razoabilidade, de forma a salvaguardar suficientemente os interesses do demandado.
Face a este enquadramento, devemos entender que no caso está articulado o facto jurídico essencial. Não há uma absoluta falta de factos.
A provar-se que ocorreram os fornecimentos, a pedido do Requerido, em nome individual, por dado preço, tal é suficiente para se considerar apoiado o direito que a Autora pretende fazer valer.
Cada um dos fornecimentos feitos deve ser entendido como facto instrumental da cobrança geral, que não deixa de ser sujeito a julgamento.
E nada impede, quanto a estes concretos fornecimentos, remeter para cada uma das faturas documentadas.
Os termos da petição inicial, delimitando o objeto da causa, devem permitir o eficaz exercício do contraditório. Daí que, havendo contestação, se o réu compreendeu o pedido e a causa de pedir, parte-se do princípio que pôde exercer o seu direito de defesa, não se julgando inepta a petição inicial.
Neste contexto, entendemos que a Requerente dá cumprimento às exigências legais, não ocorrendo ineptidão do requerimento inicial.
Acresce que o Requerido interpretou convenientemente o requerimento de injunção.
Pelo exposto julga-se improcedente a arguida ineptidão da injunção.
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A prescrição presuntiva do pagamento.
As prescrições presuntivas encontram-se previstas nos arts. 312º a 317º do Código Civil.
O art.312º refere que “as prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de cumprimento”.
O art.313º prescreve: “1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão; 2. A confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito”.
De acordo com o art. 314º, “Considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.
Dispõe, finalmente, o art.317º, b), que “prescrevem no prazo de dois anos (…) os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio”….
Fundando-se na presunção de cumprimento, ela não confere ao devedor o poder de se opor ao exercício do direito correspondente à prestação que lhe compete, como acontece na prescrição extintiva.
A razão de ser da prescrição presuntiva tem a ver com a natureza das obrigações em causa, dizendo respeito a créditos gerados pelo exercício de actividades comerciais e de prestação de serviços, cujos pagamentos são normalmente reclamados pelos credores em prazos curtos e em que os devedores também pagam em prazo curto, sem exigirem recibo de quitação ou não guardando este recibo durante muito tempo.
A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo pode ser ilidida por prova em contrário do credor, limitada à confissão do devedor.
Esta confissão pode ser judicial ou extrajudicial, neste caso só se tiver sido reduzida a escrito. Ela pode ser expressa ou tácita, verificando-se esta última se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou se praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento. (Com interesse, ver acórdãos do STJ, de 22.01.2009, no processo 08B3032, e de 19.05.2010, no processo 1380/07, em www.dgsi.pt.)
São vários os exemplos desta prática incompatível, salientando-se os casos em que o réu devedor nega a dívida, discute o seu montante, não alega com clareza que pagou a concreta dívida reclamada e reconhece não ter cumprido a obrigação.
Para poder invocar a prescrição presuntiva o réu deve alegar que deveu, mas já pagou.
No caso, consideremos que o Requerido nega a dívida, remetendo-a para a sociedade que passou a explorar o estabelecimento.
Negando a dívida, ele não a pode ter pago.
Pelo exposto, improcede a invocada exceção da prescrição.
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A consideração da qualidade de comerciante.
O Requerido defende no seu recurso que o Tribunal não podia assentar, sem produção da prova, a sua qualidade de comerciante.
Todavia, o despacho em causa, de 29.3.2017, ao analisar a prescrição presuntiva, não assentou que o Requerido é comerciante.
Sem prejuízo do essencial do referido despacho (a negação da dívida é incompatível com a alegação do pagamento), o Tribunal utilizou ainda um argumento subsidiário, dizendo: “Mais se refira que as alegadas vendas ao mesmo o terão sido enquanto comerciante pelo que sempre estaria afastada a aplicação da al. b) do art. 317º do Cód. Civil.”
Perante o essencial, esta afirmação, não estando ainda fixados os factos, é inócua.
Sendo assim, não foi violado qualquer direito à prova daquela qualidade.
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A reapreciação da matéria de facto.
Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil (doravante CPC)).
Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (A.Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)
Lembremos que a aplicação do regime processual em sede de modificação da decisão da matéria de facto conta necessariamente com a circunstância de que existem factores ligados aos depoimentos que, sendo passíveis de influir na formação da convicção, não passam nem para a gravação nem para a respectiva transcrição. É a imediação da prova que permite detetar diferenças entre os depoimentos, tornando possível perceber a sua maior ou menor credibilidade.
Não deixa ainda de ser pertinente ter em mente, como assinala o acórdão de 3.12.2013, desta Relação, no processo 194/09.0TBPBL.C1, em www.dgsi.pt, “quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.”
No caso, os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação estão sujeitos à livre apreciação do julgador.
Reapreciadas as provas documental e testemunhal, a nossa convicção vai em sentido essencialmente idêntico ao formado pelo tribunal recorrido, sendo que a dúvida é decidida contra a parte onerada com a prova (arts.346º do Código Civil (CC) e 414º do Código de Processo Civil (CPC)).
Consideremos em particular:
(…)
Como explicou a Julgadora, o que temos por aceitável, se a credibilidade merecida é idêntica para com todos, o que fica é uma dúvida insanável que tem de ser resolvida contra quem tem o ónus da prova (art.346º do Código Civil).
Por tudo isto, não encontramos razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgando assim improcedente a impugnação feita pela Recorrente.
*
Em consequência, com os factos assentes, não tendo sido colocada qualquer outra questão, especificamente jurídica, deve manter-se o decidido.
Lendo os factos provados não resulta que as mercadorias a que respeitam as faturas referidas na injunção tenham sido fornecidas ao Requerido, enquanto comerciante em nome individual, podendo o fornecimento ter sido feito à sociedade M(…), Lda.
*
Decisão.
Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Coimbra, 2018-05-22
Fernando Monteiro ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira