Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
328/09.4TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.224, 334, 781 CC, DL Nº 359/91 DE 21/9
Sumário: I - No contrato de crédito ao consumo, é obrigatória a entrega de um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura;

II - A omissão de entrega do exemplar ou a sua entrega em momento diverso do da assinatura do contrato importam a nulidade deste, que, no entanto, só pode ser arguida pelo consumidor;

III - Vista a regra de protecção do consumidor, que subjaz às relações de consumo, não age em abuso do direito o mutuário que invoca a nulidade do mútuo, por falta da entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Banco (…) SA, com sede (…) em Lisboa, intentou contra S (…), residente na Rua (…) Amarelo, Guarda, acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, alegando, em síntese, que:

            No exercício da sua actividade comercial, emprestou à ré as quantias de € 2.522,00, € 6.000,00 e € 1.000,00, que a mesma se obrigou a restituir, acrescida de juros remuneratórios, comissão de gestão, imposto de selo e de prémio de seguro de vida, em prestações mensais e sucessivas.

            Ficou acordado entre as partes que a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implicaria o vencimento imediato de todas as restantes e que a mora daria origem a uma indemnização, a título de cláusula penal.

            A ré deixou de pagar as prestações, ascendendo o seu débito, em 11 de Março de 2009, aos montantes de € 1.745,91, € 5.522,24 e € 891,36, acrescidas de juros vencidos, no montante de € 1.195,74, e de imposto de selo, no valor de € 47,83.

            Pediu, a final, a condenação da ré no pagamento daquelas importâncias, bem como no dos juros vincendos e do imposto de selo sobre estes, até integral liquidação da dívida.

            Regulamente citada, a ré apresentou-se a contestar, arguindo, por um lado, a nulidade dos contratos celebrados, por lhe não ter sido entregue um exemplar dos mesmos no momento da respectiva assinatura, justificando, por outro, o incumprimento na sua situação de sobreendividamento e alegando, finalmente, não serem devidos juros remuneratórios.

            Por se entender ser a questão unicamente de direito, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, na sequência do que o autor juntou articulado de resposta à invocada excepção de nulidade dos contratos.

            Foi proferida, então, sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia global de € 8.159,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento.     

Inconformado, o autor interpôs recurso, alegou e formulou as seguintes conclusões:

            1) A lei portuguesa prevê expressamente a celebração de contratos entre presentes e entre ausentes;

            2) A razão de ser do n.º 1 do artigo 3.º do decreto-lei 359/91, de 21 de Setembro, é permitir ao consumidor o exercício da revogação no período de reflexão a que alude o artigo 8.º do mesmo diploma, que, no caso de contratos entre ausentes, se deve contar a partir da data da recepção do exemplar do contrato pelo consumidor;

            3) De qualquer forma, a invocação da nulidade dos contratos depois do seu cumprimento durante 17, 16 e 12 meses, constitui abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

            4) No caso em apreço, as partes acordaram expressamente regime diverso da simples aplicação da norma do artigo 781.º do Código Civil, sendo certo, de todo o modo, que o acórdão para uniformização de jurisprudência, de 25 de Março de 2009, para além de não ser fonte de direito, não é aqui aplicável;

            5) Foram violados os artigos 224.º, n.º 1, e 334.º, ambos do Código Civil;

            6) O recurso deve ser julgado procedente, o que acarreta a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que julgue a acção inteiramente procedente.

            A ré não respondeu à alegação do autor.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Tendo em conta as conclusões da alegação do apelante, que delimitam o âmbito do recurso, são questões a requerer resolução:

            a) A nulidade dos contratos;

            b) O abuso do direito;

            c) As eventuais consequências da procedência das questões anteriores.

            II. Na decisão recorrida foram dados por assentes os seguintes factos:

1) No exercício da sua actividade comercial, e com destino, segundo informação então prestada pela ré, à reparação em veículo automóvel, o autor, por contrato constante de título particular datado de 15 de Dezembro de 2006, concedeu à ré crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo-lhe, assim, emprestado a importância de € 2.522,00.

2) Nos termos do contrato assim celebrado entre o autor e a ré, aquele emprestou a esta a dita importância de € 2.522,00, com juros à taxa nominal de 16,34% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o valor do prémio do seguro de vida, ser pagos na sede do autor, nos termos acordados, em 36 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Janeiro de 2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

3) De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pela ré ao seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do respectivo vencimento, para uma conta bancária titulada pelo ora autor.

4) Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais.

5) Mais foi acordado entre o autor e a ré que, em caso de mora sobre o montante em débito, acrescia, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada de 16,34%, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 20,34%.

6) O autor é uma instituição de crédito.

7) A ré, das prestações referidas, não pagou a 18.ª prestação e seguintes, vencida, a primeira, em 10 de Junho de 2008, vencendo-se então todas.

8) Na verdade, a ré não providenciou às transferências bancárias – que não foram feitas – para pagamento das ditas prestações nem ela, ou quem quer que fosse por ela, as pagou ao autor.

9) Conforme expressamente consta do referido contrato, o valor de cada prestação era de € 91,89.

10) Assim, o total das prestações em débito pela ré ao autor ascende a € 1.745,91.

11) Sucedeu, ainda, que, o autor concedeu à ré, por contrato constante de título particular datado de 11 de Janeiro de 2007, crédito pessoal directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado à ré mais a importância de € 6.000,00.

12) Nos termos do contrato assim celebrado entre o autor e a ré, aquele emprestou a esta mais a dita importância de € 6.000,00, com juros à taxa nominal de 15% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão com imposto de selo incluído, o imposto de selo de abertura de crédito e os prémios dos seguros de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 48 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Fevereiro de 2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

3) De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pela ré ao seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para uma conta bancária titulada pelo ora autor.

14) Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.

15) Mais foi acordado entre o autor e a ré que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 15% –, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 19%.

16) Sucede que a ré, das prestações referidas, não pagou a 17.ª prestação e seguintes, vencida, a primeira, em 10 de Junho de 2008, vencendo-se então todas.

17) Na verdade, a ré não providenciou às transferências bancárias referidas – que não foram feitas – para pagamento das ditas prestações, nem ela, ou quem quer que fosse por ela, as pagou ao autor.

18) Conforme expressamente consta do referido contrato o valor de cada prestação era de € 172,57.

19) Assim, o total das prestações em débito pela ré ao autor, em relação ao contrato agora referido, ascende a € 5.522,24.

20) Sucedeu, ainda, que o autor concedeu à ré, por contrato constante de título particular datado de 28 de Março de 2007, crédito pessoal directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo, assim, emprestado à ré mais a importância de € 1.000,00.

21) Nos termos do contrato assim celebrado entre o autor e a ré, aquele emprestou a esta mais a dita importância de Euros 1.000,00, com juros à taxa nominal de 15% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros referidos, bem como a comissão de gestão com imposto de selo incluído, o imposto de selo de abertura de crédito e os prémios dos seguros de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 36 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Maio de 2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.

22) De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga – conforme ordem irrevogável logo dada pela ré ao seu Banco – mediante transferências bancárias a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para uma conta bancária titulada pelo ora autor.

Tribunal Judicial da Guarda

23) Conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.

24) Mais foi acordado entre o A. e a ré que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 15% –, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 19%.

25) Sucede que a ré, das prestações referidas, não pagou a 13.ª prestação e seguintes, vencida, a primeira, em 10 de Maio de 2008, vencendo-se então todas.

26) Na verdade, a ré não providenciou às transferências bancárias referidas – que não foram feitas – para pagamento das ditas prestações, nem ela, ou quem quer que fosse por ela, as pagou ao autor.

27) Conforme expressamente consta do referido contrato, o valor de cada prestação era de € 37,14.

28) Assim, o total das prestações em débito pela ré ao autor, em relação ao contrato agora referido, ascende a € 891,36.

29) O primeiro contrato de mútuo celebrado entre o autor e a ré foi assinado em 15 de Dezembro de 2006 e enviado pelo autor à ré, após assinatura, em 18 de Dezembro de 2006.

30) O segundo contrato de mútuo celebrado entre o autor e a ré foi assinado em 11 de Janeiro de 2007 e enviado pelo autor à ré, após assinatura, em 26 de Janeiro de 2007.

31) O terceiro contrato de mútuo celebrado entre o autor e a ré foi assinado em 28 de Março de 2007 e enviado pelo autor à ré, após assinatura, em 9 de Abril de 2007.

32) Os exemplares dos três contratos destinados ao consumidor só chegaram às mãos da ré depois de remetidos ao autor e devolvidos por este, depois de assinados.

III. O direito:

a) A nulidade dos contratos

A classificação dos negócios jurídicos (três, no caso) celebrados entre o autor e a ré efectuada na sentença não merecerá grande discussão, não por nenhuma discordância se ter manifestado nesse domínio, mas porque a clareza da matéria de facto se adapta na perfeição à tipificação legal assinalada.

Trata-se, na verdade, de contratos de mútuo, na variante de crédito ao consumo, com previsão no artigo 1142.º do Código Civil e no Decreto-lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, mormente no seu artigo 2.º.

Como decorre dos pontos 1 e 2, 11 e 12 e 20 e 21 dos factos dados por assentes na sentença, o autor emprestou à ré determinadas importâncias em dinheiro, para satisfação de necessidades alheias à actividade comercial ou profissional, que esta se obrigou a restituir em prazo logo fixado, acrescidas de juros remuneratórios e de certas despesas.

Os elementos típicos do contrato – a concessão de crédito, a qualidade de consumidor da pessoa a quem o crédito foi concedido e a obrigação de restituição – patenteiam-se em toda a sua exuberância.

Por aqui, nada a objectar.

O problema que se levanta é o da validade dos contratos, que a sentença considerou inquinados de vício de forma, por inobservância do formalismo a que alude a segunda parte do n.º 1 do artigo 6.º do DL 359/91, mas que o apelante entende válidos, por apelo à figura dos contratos entre ausentes.

Na lógica da sentença, sustentada, em actualizada jurisprudência, o DL 359/91 é um diploma virado para a protecção do consumidor, como bem decorre do seu preâmbulo, pelo que a disposição do n.º 1 do seu artigo 6.º, nomeadamente na parte em que determina a entrega de um exemplar do contrato de crédito ao consumidor no momento da respectiva assinatura, tem de ser considerada imperativa, só assim, aliás, se imprimindo consistência prática à necessidade de reflexão estabelecida no n.º 1 do artigo 8.º.

O raciocínio do apelante é muito diferente. Na sua tese, a entrega de um exemplar do contrato ao consumidor no momento da assinatura pressupõe que se trate de um contrato celebrado presencialmente. Tratando-se, porém, de contrato entre ausentes, que a lei prevê, a entrega do exemplar terá de ocorrer depois da assinatura, mas nem assim fica prejudicado o período de reflexão do consumidor, que se inicia, apenas, depois da recepção daquele, em conformidade, de resto, com o disposto no n.º 1 do artigo 224.º do Código Civil, que atribui eficácia à declaração quando este chega ao poder do destinatário.

De que lado está a razão? Crê-se que do lado da sentença.

Como nela bem se discorreu, o DL 359/91 é um diploma que tem na sua génese preocupações de ordem social, visando, declaradamente, a protecção do consumidor, elo mais fraco, no fundo, de uma cadeia que, no âmbito mais vasto das relações económicas e do funcionamento do mercado, envolve, não apenas, a sua pessoa e a da entidade concedente de crédito, mas, também, todo um conjunto de mecanismos (de natureza publicitária, mas não só) tendentes a criar necessidades e a dar uma imagem de facilidade no pagamento do crédito concedido.

Quem nunca assistiu, em locais de grande afluência de público (centros comerciais e estações de caminho de ferro, por exemplo), às insistências sobre quem passa, feitas por determinadas instituições bancárias, para que adquiram um cartão de crédito, ainda que não disponham de fundos nesse ou em qualquer outro organismo da mesma natureza?

Foram estas e outras actividades do género, susceptíveis de fazer alastrar de forma descontrolada o endividamento das pessoas e das famílias, que levaram o legislador a intervir, disciplinando e restringindo, de modo a evitar abusos resultantes da evidente posição dominante ocupada pelas entidades do sector do crédito, ou, como escreve Gravato Morais (citado no acórdão do STJ, de 22.06.2005, CJ/STJ, Ano XIII, Tomo II, página 134), estabelecendo regras que tutelem, de modo efectivo e substancial, os interesses do consumidor em relação às instituições de crédito.

Nessa medida, se impôs a redução a escrito do contrato de crédito e a entrega de um exemplar do mesmo ao consumidor no momento da assinatura (n.º 1 do artigo 6.º), se fulminou com a nulidade a inobservância dessas prescrições (n.º 1 do artigo 6.º), se presumiu a sua falta imputável ao credor e se deixou na disponibilidade do devedor a invocação da invalidade (n.º 4 do artigo 7.º).

Procurou-se, em resumo, dotar o consumidor de meios legais que lhe permitissem escapar da teia tantas vezes montada em seu torno.

Nas palavras, ainda, de Gravato Morais, uma das formas mais eficazes e peculiares da tutela do consumidor é a faculdade de revogação da declaração negocial referente ao contrato de crédito, de forma a impedir a produção dos seus efeitos (local citado).

Sendo assim, como é, ou seja, inexistindo dúvidas de ser a protecção do consumidor a finalidade querida pelo falado diploma, o disposto no n.º 1 do seu artigo 6.º “é mesmo para aplicar, sempre, à letra e na sua plenitude: é no preciso momento em que assina o contrato – altura em que se inicia o período de reflexão de 7 dias que o artigo 8.º, n.º 1, lhe assegura – que o mutuário deve receber um exemplar do mesmo, por forma a estar em condições de efectivamente ponderar, durante todo esse período de tempo, as consequências desse compromisso, e, assim, de exercer ou deixar de exercer esclarecidamente o direito potestativo extintivo de arrependimento que aquela disposição legal lhe confere” (acórdão do STJ, acima referido).

Não colhe, pois, a tese do apelante, antes exposta. A aplicação ao crédito ao consumo dos princípios dos contratos entre ausentes (caso em que, como diz o apelante, o período de reflexão se iniciaria com o recebimento do exemplar assinado) deixaria sumamente desprotegido o consumidor, que se veria privado da possibilidade de esclarecer, no momento da assinatura, eventuais dúvidas que lhe tivessem surgido e a quem faltariam, por conseguinte, os elementos necessários a uma ponderada reflexão sobre os compromissos que assumira.

Admitir uma tal teoria era subverter o regime especial do crédito ao consumo, esvaziando-o, afinal, daquilo que tem de mais significativo no que tange à defesa dos interesses dos consumidores.

A previsão do n.º 1 do artigo 6.º é, indubitavelmente, de natureza imperativa, não admitindo desvios ou concessões.

Neste sentido, aliás, se tem vindo a pronunciar, em termos largamente maioritários, a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, designadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, de que se citam, a título exemplificativo, para além do já mencionado, os acórdãos de 30.10.2007, 28.04.2009, 02.06.2009, 07.07.2009 e 01.01.2010 (processos 07A3048, 2/091YFLSB, 99B387, 6773/04.4TVLSB.S1 e SJ201001070037987), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt.

Ora, deflui, com toda a clareza, da matéria de facto provada que não foi entregue à ré um exemplar de cada qual dos contratos em causa nos autos no momento da respectiva assinatura; o autor remeteu-os à ré, em branco (no local das assinaturas), esta assinou-os na parte que lhe dizia respeito e devolveu-os àquele e o autor, depois de assinar, enviou um exemplar de cada à ré.

Não tendo os exemplares sido entregues no momento da assinatura e invocada a nulidade pela parte que o podia fazer, os contratos são nulos, como correctamente de declarou na sentença.

A questão suscitada improcede.

b) O abuso do direito

Diz o apelante que a consideração da nulidade dos contratos não obsta à procedência da acção, porquanto a ré/recorrida, ao arguir a invalidade já numa fase adiantada do cumprimento dos contratos, agiu em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

É verdade que a ré só invocou a nulidade depois de ter pago 17 das 36 prestações de um dos contratos, 16 das 48 de outro e 12 das 36 do terceiro.

            Mas estaremos perante abuso do direito?

            Segundo o artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

            No direito anterior ao actual Código Civil a figura já era conhecida e admitida, apesar de se não achar expressamente prevista.

            A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido; basta que os atinja. Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou na sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso (Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 334.º do seu Código Civil Anotado).

            A mesma é a posição dos Professores Manuel de Andrade e Vaz Serra, quando falam em direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” (Teoria Geral das Obrigações, página 63, e BMJ 85, página 253, respectivamente).

            Segundo, ainda, o Prof. Antunes Varela, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Com a fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334.º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos que são muito marcados pela sua função social. A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando uma determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, páginas 537/538).

            O Prof. Menezes Cordeiro, por sua vez, considera existir venire contra factum proprium numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificadamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificadamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue (Da Boa Fé no Direito Civil, volume II, página 747).

            Na jurisprudência, que é abundantíssima, podem ver-se, em coincidência de opiniões, e como exemplos mais recentes, os acórdãos do STJ de 04.04.2006, 24.01.2008, 07.02.2008 e 28.02.2008 (CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo II, página 33, e Ano XVI, Tomo I, páginas 62, 77 e 122, respectivamente).

            A lei não enuncia as consequências do abuso do direito, tendo vindo a entender-se que a sanção varia consoante os casos, podendo compreender a indemnização, a nulidade do negócio, a validade do acto nulo ou a ineficácia da conduta; os efeitos, diz o Prof. Antunes Varela, serão os correspondentes à forma de actuação do titular (local citado).

            Com base nele, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados).

            Refira-se, finalmente, que os tribunais, mesmo na fase de recurso, podem conhecer oficiosamente o abuso do direito (acórdãos do STJ de 21.01.1993 e 21.09.1993, in BMJ 423, página 422 e CJ do Supremo, Ano I, Tomo III, página 19, e de 04.04.06, acima mencionado).

            A circunstância de a recorrida ter cumprido     em quase metade um dos contratos e em 1/3 os restantes dois significará, usando a expressão do Prof. Antunes Varela, que fez crer à contraparte que não iria lançar mão da arguição da nulidade, incorrendo, nessa medida, em abuso do direito?

            Não parece que assim seja. Como se escreveu no acórdão do Supremo, de 30.10.2007, referido a propósito da questão da nulidade, que contempla uma situação em tudo semelhante à presente, “na ponderação de saber se houve abuso do direito (…) o tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor (…) e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a autora, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma, os princípios da boa fé”.

            É a consideração da primazia, no fundo, da tutela dos interesses do consumidor sobre os do financiador que, como se salientou, ainda, no mesmo acórdão, dispõe de um arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade contra o qual a possibilidade de defesa do devedor é praticamente inglória.

            Quem, de facto, violou a relação de boa fé e de confiança que deve existir entre quem contrata foi o autor, que, não obstante saber que tinha de fornecer um exemplar dos contratos à ré no momento da respectiva assinatura (para isso, tem um gabinete jurídico devidamente apetrechado), informando-a, no acto, das suas incidências e possíveis consequências, se colocou à margem da questão, preocupada, unicamente, com os lucros que o financiamento lhe poderia proporcionar.

            A ré é uma pessoa humilde e sem grandes possibilidades económicas, como o demonstra, manifestamente, o facto de ter obtido a concessão do benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa do pagamento de taxa de justiça e de nomeação de patrono; provavelmente, também, mal informada e esclarecida, caso contrário não teria contraído três créditos, quase em simultâneo (o primeiro, em Dezembro de 2006, o segundo, em Janeiro de 2007, e o terceiro, em Março do mesmo ano), que, apesar de não serem de valor elevado (não chegam a € 10.000,00), lhe absorviam uma parte seguramente não despicienda dos seus rendimentos (um pouco mais de € 300,00 por mês).

            Neste condicionalismo, cabia ao apelante, que não ignora as dificuldades que uma significativa parte da população vem atravessando (até pelo inusitado volume de acções que tem em curso nos tribunais portugueses para tentativa de cobrança dos financiamentos que faz), alertar a apelada, antes da assinatura dos contratos, para a eventualidade de não poder cumprir as obrigações assumidas.

            Primou pela ausência, em infracção à lei e ao princípio da boa fé contratual.

            Não choca, por isso (não é clamorosamente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico dominante), a actuação da ré, que, não esclarecida, em tempo oportuno, por quem tinha a obrigação de o fazer, invoca a nulidade dos contratos depois do seu cumprimento parcial, quando, com toda a probabilidade, foi elucidada dos direitos que lhe assistiam pelo ex.mo patrono que lhe foi nomeado no âmbito do apoio judiciário.

            Voltando ao referido acórdão do Supremo, de 30.10.2007, não fora a actuação do autor, incompatível com a ponderação e salvaguarda dos direitos da ré consumidora, não poderia esta invocar a nulidade do contrato.

            Concluindo, improcede, também, a questão do abuso do direito.

            c) As consequências               

            Declarada a nulidade dos contratos, decidiu-se na sentença, com fundamento no disposto no artigo 289.º e nos artigos 1269.º e seguintes, todos do Código Civil, que a ré deveria restituir à autora as importâncias mutuadas, deduzidas do valor das prestações já pagas, mas acrescidas de juros, à taxa legal, a contar da citação.

            A recorrente não impugnou a decisão, enquanto baseada na nulidade dos contratos de crédito ao consumo. O seu ataque dirigiu-se exclusivamente à declaração de nulidade, tanto por via directa (contestação da mesma) como indirecta (através do abuso do direito).

            Tendo improcedido as questões concretamente suscitadas, não há que apreciar a correcção do decidido relativamente às consequências extraídas da declaração de nulidade.

            Inútil é, também, a apreciação da conclusão 4.ª (pretenso acordo de regime diferente do estabelecido no artigo 781.º do Código Civil), que só faria sentido para a hipótese de não se considerarem nulos os contratos.

            IV. Em síntese:

1) No contrato de crédito ao consumo, é obrigatória a entrega de um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura;

2) A omissão de entrega do exemplar ou a sua entrega em momento diverso do da assinatura do contrato importam a nulidade deste, que, no entanto, só pode ser arguida pelo consumidor;

3) Vista a regra de protecção do consumidor, que subjaz às relações de consumo, não age em abuso do direito o mutuário que invoca a nulidade do mútuo, por falta da entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato.

V. Decisão:

Em face do que se deixou exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por consequência, em confirmar a decisão apelada.

Custas pelo recorrente.