Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4188/22.1T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: REGIME PROVISÓRIO DE UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA
NECESSIDADE DA CASA
FATORES DE PONDERAÇÃO
PRINCÍPIO PROBATÓRIO IN DUBIO PRO REO
CONTROLO SOBRE OS MEIOS DE PROVA PELA RELAÇÃO
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 666.º, N.º 2, 931.º, N.º 7, 987.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 793.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O regime provisório de utilização da casa de morada da família deve ser fixado por aplicação dos mesmos factores – e com a ponderação do peso relativo que compita a qualquer deles – que relevam para decidir do seu destino, factores em que releva, como prevalente, o da necessidade dessa casa;
II – O objectivo da lei, ao permitir ao juiz atribuir a casa a um ou a outro dos cônjuges ou ex-cônjuges não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada da família o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto – é antes, o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que seja mais atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar;

III – A imputabilidade objectiva da causa da ruptura do casamento é apenas um factor a ter em conta na formulação do juízo sobre a necessidade da casa e a que deve reconhecer um carácter subalterno, no sentido de que só deve intervir no caso de as necessidades dos cônjuges serem idênticas ou sensivelmente iguais, dado que o fundamento final da atribuição da casa de morada da família não é de fazer um qualquer ajuste de contas assente na imputabilidade, a um ou ambos os cônjuges ou ex-cônjuges, da ruptura ou rompimento da relação matrimonial;

IV – Devendo ter-se por correcta a aplicação a todos os processos sancionatórios públicos do princípio probatório in dubio pro reo, embora com os matizes ou adaptações reclamadas pelo tipo de ilícito e pela diferença da sua ressonância ética, também deve ter-se por segura a sua inaplicabilidade ao processo civil, ainda que o objecto do processo seja constituído por um facto de relevância dupla, i.e., do qual derivem, ou possam derivar, consequências jurídicas que relevem, simultaneamente, no plano penal e no plano estritamente civil;

V – Tratando-se de valorar consequências ou situações jurídicas exclusivamente na sua estrita vertente jurídico-privada, valem, para a prova dos factos correspondentes, as regras de direito probatório formal – que regulam a actividade probatória que, e na medida em que se desenrola no processo – e material – i.e., as normas reguladoras da admissibilidade e valoração da prova – do processo civil, regras de valoração da prova entre as quais se não conta, garantidamente, o princípio probatório in dubio pro reo;

VI – O exercício pela Relação do seu poder de controlo sobre os meios de prova, através da renovação de um ou mais meios de prova só se justifica quando a Relação tiver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou declarante e, portanto, se houver razão fundada para suspeitar da sua falsidade e só deve ter-se por admissível no caso de divergência grave entre o decisor de facto da 1.ª instância e a Relação sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido e a inteligibilidade do depoimento: se tanto o Juiz de Direito como a Relação forem acordes sobre a falta de credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento, a renovação da prova correspondente não deve ter lugar.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator:
Henrique Antunes
Adjuntos:
Cristina Neves
Sílvia Pires

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

AA requereu, na petição inicial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, com processo especial, que propôs Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, contra o seu cônjuge, BB, que, nos termos do n.º 7 do art.º 931.º do CPC, fosse fixado um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, e que essa casa - sita na R. da ..., ... - lhe fosse atribuída.

O requerido opôs-se e pediu que, a final, aquela casa lhe fosse atribuída até à partilha; na resposta, a requerente reiterou o seu pedido.

Ordenada a separação dos requerimentos do processo de divórcio, a Sra. Juíza de Direito por sentença proferida no dia 17 de Maio de 2023 – data em que, no processo principal foi declarada a dissolução, por divórcio por mútuo consentimento, do casamento contraído pelas partes - depois de observar que resultando da factualidade provada de que o Requerente que atualmente não dispõe de outra habitação que não seja a casa de morada de família, a qual lhe tem acautelado a necessidade de habitação, importa julgar procedente o seu pedido de atribuição do uso da casa de morada de família, até à sua venda ou partilha – julgou improcedente o pedido da requerente, AA, e procedente o do requerente, BB, e atribuiu a este o direito à utilização exclusiva da casa de morada da família.

É esta decisão que a requerente impugna no recurso – no qual pede a sua revogação e a sua substituição por outra que lhe atribua a utilização exclusiva da casa de mora da família ou, subsidiariamente a renovação das suas declarações de parte e do depoimento da testemunha CC – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

I - A Recorrente considera, na linha do arrazoado infra oferecido e naturalmente ressalvado o devido e máximo respeito pela posição sustentada na sentença recorrida, ter o Digníssimo Tribunal a quo andado mal no que tange à decisão sobre os factos seguidamente elencados e, bem assim, no tocante à decisão sobre a matéria de Direito;

II - Em primeiro lugar, considera a Recorrente terem sido incorrectamente julgados, pelo Digníssimo Tribunal a quo, os seguintes factos, in casu dados como não provados:

- 1. Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...);

- 14. Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes;

- 16. A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente” a qual recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família; e

- 17. A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos.

III - Com efeito, entende a Recorrente que a análise crítica e conjugada dos elementos probatórios infra elencados à luz e sob o crivo das regras de direito probatório, da experiência comum, da lógica e da normalidade das coisas, conjugados entre si e com os demais factos in casu dados como provados e, por inerência, com os elementos probatórios subjacentes a tal julgamento, impõe decisão diametralmente oposta sobre a factualidade supra elencada, a saber:

- as declarações de parte da Recorrente;

- o depoimento das testemunhas CC, DD e EE; e

- a cópia da douta acusação deduzida pelo Ministério Público, de fls....

IV - Em primeiro lugar, temos que o fundamento maior, e mais óbvio, para a atribuição à Recorrente da casa de morada de família sub judice reside no facto de esta ter sido, ao longo de 5 (cinco) décadas, vítima do crime de violência doméstica [p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal] contra si barbaramente perpetrado pelo Recorrido precisamente naquela casa, da qual a Recorrente teve de fugir, após expressa recomendação por parte das autoridades policiais (cfr. facto 5 in casu dado como provado), tudo como ressuma da douta acusação pública prolatada pelo Digníssimo Ministério Público, constante de fls..., cuja factualidade foi, in casu, plenamente confirmada pela Recorrente e pela testemunha CC (cfr. passagens dos correlatos depoimentos supra citadas em sede de motivação) e, bem assim, pela testemunha DD (esta última, na parte de que tinha conhecimento directo);

V - A isso acrescendo o facto de a Recorrente e a testemunha CC haverem, outrossim, confirmado mais factos relevantes, tais como a delicada situação clínica da Recorrente e a ajuda a esta prestada pelos seus filhos, todos eles militando a favor da conclusão de que é a Recorrente que se encontra em situação de mais premente necessidade da casa de morada de família sub judice;

VI - Com efeito, das passagens das declarações de parte da Recorrente e dos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE (supra citadas em sede de motivação de recurso e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais) e, outrossim, da análise da douta acusação pública de fls... ressuma que, bem ao invés da posição sustentada pelo Digníssimo Tribunal a quo na sentença recorrida [que considera in casu anódina a douta acusação pública de fls... porque “não está demonstrada por sentença condenatória e transitada em julgado, pelo que até esse momento não vimos forma de contornar o princípio da presunção de inocência” (sic)], esta última tem uma potencialidade probatória cuja relevância se afigura de meridiana clareza, maxime quando conjugada com a demais prova in casu produzida;

VII - Isto porque não estamos, in casu, perante uma qualquer questão prejudicial destes autos,  em tampouco pretendia a Recorrente ver o Recorrido aqui criminalmente condenado pela prática do crime de violência doméstica que lhe foi (correcta e justamente) imputado no âmbito do processo-crime que, com o n.º 983/22...., corre termos no Juízo Local Criminal ... - Juiz ... - Tribunal Judicial da Comarca de Viseu; bem pelo contrário, o que nesta sede está em causa é a análise, na perspectiva civil, do comportamento pretérito de um cônjuge relativamente ao outro e, portanto, enquanto critério de decisão de atribuição da casa de morada de família (quer em caso de paridade das necessidades dos ex-cônjuges quer em caso de inexistência de tal paridade);

VIII - O que vale por dizer que a douta acusação pública in casu prolatada pelo Digníssimo Ministério Público (que, ex vi do disposto no artigo 283.º, n.º2, do Código de Processo e como é doutrinal e jurisprudencialmente incontestado, só deduz acusação quando entende que os indícios da prática do crime são suficientes e deles resulta uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança) não pode ser desconsiderada como um documento juridicamente anódino pelo facto de a factualidade nela plasmada não ter sido ainda demonstrada por sentença condenatória e transitada em julgado, como fez o Digníssimo Tribunal a quo na sentença recorrida;

IX - De outro modo, fica este incidente de atribuição de casa de morada de família num limbo processual do qual não há saída possível, a menos que fosse de admitir como válida e juridicamente viável a possibilidade de a Recorrente o deduzir só após a prolação de tal sentença condenatória do Recorrido, transitada em julgado, o que naturalmente não se aceita e que se afigura, in casu, tanto mais anacrónico se não olvidarmos ter o Digníssimo Tribunal a quo dado como provado que a Recorrente dela foi forçada a sair na sequência de expressa recomendação das autoridades policiais e, portanto, para sua segurança [vide, neste sentido e por todos, a posição sustentada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa no douto aresto proferido em 13 de Abril de 2021 (como evidentes similitudes com a realidade que consubstancia o objecto destes autos), supra citada em sede de motivação de recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais];

X - A tão ponderoso fundamento (de per si determinante para ser atribuída à Recorrente a casa de morada de família, como resulta da jurisprudência supra citada), in casu plenamente demonstrado (pelos motivos supra aduzidos), acrescem outrossim três outros factores igualmente relevantes e determinantes, in casu igual e plenamente demonstrados (pelos motivos supra aduzidos), rectius: o delicado estado de saúde da Recorrente, que recrudesceu após ter sido forçada a abandonar a casa de morada de família sub judice; a situação económico-financeira da Recorrente é consideravelmente pior do que a situação económico-financeira do Recorrido, que continua a sua actividade comercial de venda de lenha, invariavelmente remunerada sem emissão, por este, de qualquer tipo de recibo aos correlatos clientes, e o facto de, ante os seus (mui) parcos rendimentos e a consequente impossibilidade de prover à satisfação das suas necessidades básicas, agudizada pelo seu delicado estado de saúde, a Recorrente se ter visto obrigada a suportar a humilhação de ser sustentada pelos seus filhos, que a têm vindo a ajudar na medida das suas possibilidades;

XI - Por tudo isto, dúvidas não remanescem de que é a Recorrente que se encontra em situação de mais premente necessidade da casa de morada de família sub judice, sendo, por isso, de elementar Justiça que a mesma lhe seja, in casu, atribuída;

XII - Destarte, deve a decisão sobre a matéria de facto ser alterada em conformidade pelo Digníssimo Tribunal ad quem, nos seguintes moldes:

- Eliminando-se da matéria de facto não provada os seguintes factos:

- 1. Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...);

- 14. Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes;

- 16. A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente” a qual recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família; e

- 17. A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos.

- Aditando-se à matéria de facto provada os seguintes factos:

- 1. Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...);

- 14. Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes;

- 16. A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente” a qual recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família; e

- 17. A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos.

XIII - Ademais, ao decidir nos moldes ora impugnados, o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e  aplicou incorrectamente, entre outras, as normas ínsitas nos artigos 1793.º, 2003.º, n.º1 e 2009.º, n.º1,

alínea a), todos do Código Civil, normas que deveriam ter sido interpretadas no sentido de ser a Recorrente que se encontra em situação de mais premente necessidade da casa de morada de família sub judice;

XIV - Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, substituída por uma decisão que julgue integralmente procedente o pedido de atribuição de casa de morada de família in casu deduzido pela Recorrente, atribuindo-lhe o direito à utilização exclusiva da casa de morada de família sub judice e, concomitantemente, julgue integralmente improcedente o pedido de atribuição de casa de morada de família in casu deduzido pelo Recorrido;

XV - Na eventualidade de assim não se entender, o que só por mero dever de patrocínio se aventa,  sempre se dirá que, com o fito de dissipar a fundada dúvida sobre o alcance da prova realizada em 1ª. instância e, assim, estar em condições de firmar convicção mais segura sobre os factos ora impugnados nesta sede recursória - in casu dados como não provados pelo Digníssimo Tribunal a quo - (o que, frisa- se, só por mero dever de patrocínio se alvitra), se impõe, ex vi do disposto no artigo 662.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo Civil, ordenar este Digníssimo Tribunal ad quem a prestação de declarações de parte da Recorrente e, bem assim, da testemunha CC, meios de prova que reputa de relevante para a boa decisão da presente causa, maxime para efeitos de apreciação dos factos cujo conhecimento entendeu o Digníssimo Tribunal a quo ter ficado “prejudicado” pela inexistência de sentença condenatória do Recorrido, com trânsito em julgado, pela prática do crime de violência doméstica que lhe foi imputada pelo Digníssimo Ministério Público na douta acusação pública de fls... (na linha da posição sustentada por Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Processo Civil, 2014, 2.ª Edição, Almedina Editora, pp.230 e ss., supra citada em sede de motivação de recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais);

XVI - Assim, em face do arrazoado supra concluído, vem a Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 662.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo Civil, requerer a este Digníssimo Tribunal ad quem ordene a renovação dos meios de prova supra mencionados;

XVII - Termos em que deve ser anulada a sentença prolatada pelo Digníssimo Tribunal a quo e, nessa conformidade, substituída por uma decisão que ordene a renovação de prova supra impetrada e, em consequência, ordene o reenvio dos autos à 1.ª instância para conhecer e julgar os factos cujo conhecimento entendeu o Digníssimo Tribunal a quo ter ficado “prejudicado” pela inexistência de sentença condenatória do Recorrido, com trânsito em julgado, pela prática do crime de violência doméstica que lhe foi imputada pelo Digníssimo Ministério Público na douta acusação pública de fls...,

O apelado, na resposta ao recurso, concluiu pela sua improcedência.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nestes termos.

2.1. Factos provados.

1) Os Requerentes casaram um com o outro a 16 de novembro de 1969, sem convenção antenupcial.

2) Desse casamento nasceram três filhos, todos maiores de idade: FF, GG e CC.

3) O casal viveu sob o mesmo teto, na casa de morada da família fixada na Rua ..., ..., ....

4) No dia 18 de agosto de 2022, a Autora apresentou queixa junto da PSP contra o Réu, a qual deu origem ao Inquérito n.º 983/22...., que corre termos no DIAP ....

5) No dia 27 de agosto de 2022, a Autora foi aconselhada pelo OPC que registou a sua queixa, de que deveria sair de casa, o que fez, passando a residir no apartamento tipologia T1 sito na Rua ..., ..., ..., ..., ..., na companhia da sua filha CC e o animal de estimação desta.

6) A casa referida em 5) é da propriedade dos Requerentes (e foi relacionada na Relação de Bens junta à Ação de Divórcio, como bem comum do casal).

7) A Requerente instaurou a .../.../2022 contra o Requerente Ação de Divórcio sem o Consentimento do outro Cônjuge.

8) Tal Ação de Divórcio foi convolada para Ação de Divórcio Por Mútuo Consentimento, na qual foi apresentada a Relação de Bens comuns do casal, onde foi relacionado o imóvel referente à casa de morada de família e a fração autónoma onde a Requerente se encontra a residir.

9) A Requerente dorme no quarto e a sua filha CC dorme num colchão no chão da sala.

10) A Requerente aufere uma pensão de velhice no montante mensal de €329,15.

11) O Requerente aufere de montante concreto não apurado, mas superior a € 400,00 e ainda tem uma atividade empresarial (relacionada com a venda de lenha/madeira) onde auferirá outros rendimentos, cujo montante não se logrou apurar.

12) CC, filha do casal, enviou ao Requerente, seu pai, uma missiva datada de 27 de setembro de 2023, através da qual declarou que na qualidade de arrendatária da fração identificada no ponto 5) vem proceder à denúncia do contrato de arrendamento, celebrado a 1 de maio de 2018, com efeitos a partir de 31 de janeiro de 2023, e informou que, “Atendendo à alteração das circunstâncias, visto que a minha mãe não tem meios de subsistência capazes e suficientes para prover ao seu sustento, dou, sem efeito, a compensação de créditos que lhe foi comunicada por carta que lhe foi dirigida no passado dia 30 de agosto de 2022. Informo que a renda da fracção supra identificada, respeitante ao mês de setembro de 2022 foi paga à minha mãe, AA, bem como, serão liquidadas as dos meses subsequentes até janeiro de 2023 inclusive. (…)”.

13) Após a separação do casal, o Requerente ficou a residir na casa de morada de família, identificada no ponto 3.

14) A filha do casal, CC (de 43 anos de idade, consultora comercial de um laboratório farmacêutico), pagava a quantia mensal de € 300,00 a título de renda.

15) A filha do casal, CC, tem uma boa relação com a Requerente, ao contrário do que mantém com o Requerente.

16) O Requerente guarda, num estaleiro, os utensílios e máquinas de trabalho, que utilizava no seu negócio e onde guarda os utensílios respeitantes ao seu negócio de lenha.

17) Contra o Requerente, a 30 de setembro de 2022, foi deduzida Acusação Pública, no âmbito do processo crime identificado no ponto 4, ao qual foi imputada a prática de factos suscetíveis de integrar o de crime de violência doméstica, praticado no interior da casa de família do casal (e da qual constam imputados os factos constantes do elenco dos factos dados como não provados), e um crime de detenção de arma proibida, tendo-lhe sido apreendida uma espingarda de caça e cartuchos, estando o Requerente a aguardar julgamento sujeito a Termo de Identidade e Residência prestado e a Requerente foi inserida no programa de teleassistência.

18) A Requerente procedeu ao pagamento da fatura emitida a 17.10.2022 pelos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de ..., referente a consumos realizados entre 05.setembro.2022 a 11.outubro.2022 na casa de morada de família, no montante de €23,08.

19) A Requerente procedeu ao pagamento do montante de €17,29 por conta dos serviços de água referentes à morada de casa de família, cuja fatura foi emitida em nome da Requerente.

20) A Requerente procedeu ao pagamento de serviços eletrónicos referentes à morada da casa de família no montante de €69,56, no dia 22 de novembro de 2022, cujo recibo foi a Requerente identificada como cliente.

21) A Requerente procedeu ao pagamento do IMI, cujo limite de pagamento era 30 de novembro de 2022, referente à casa de morada de família, e cujo documento de cobrança foi emitido em nome da Requerente.

22) O Requerente a 28 de novembro de 2022 celebrou novo contrato de fornecimento de água e serviço de saneamento para a casa de morada de família uma vez que a Requerente mandou cortar tais serviços.

23) O Requerente a 24 de novembro de 2022 celebrou a novo contrato com a Meo para fornecimento de serviços telefónicos/eletrónicos referentes à casa de morada de família uma vez que a Requerente mandou cortar tais serviços.

2.2. Factos não provados.

1. Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa e filhos.

2. Desde o início do casamento que o Requerente bate na Requerente, dando-lhe murros e pontapés, atirava-lhe com objetos, tachos e copos, mandava-a contra a parede e para o chão e batia-lhe com um cinto, inclusive quando estava grávida.

3. Apertava-lhe o pescoço e tapava-lhe a boca para que a Requerente não gritasse.

4. Há mais de vinte anos que, apesar de viverem na mesma casa, não partilham quarto, cama e não têm relações sexuais.

5. O Requerente de forma agressiva obrigou a Requerente a ir para outro quarto, dizendo-lhe que ali não estava a fazer nada.

6. A Requerente dorme num quarto sozinha, com a porta fechada à chave, com medo de ser agredida e maltratada pelo Requerente.

7. Em início de junho de 2022 a Requerente foi agredida pelo Requerente, que a agarrou pelo pescoço, atirou-a contra o chão.

8. A Requerente ficou cheia de nódoas negras nas pernas, peito e pescoço.

9. Começou a gritar e a tentar fugir de casa, tendo sido impedida pelo Requerente que fechou a porta e tapou-lhe a boca para que não gritasse.

10. De seguida, tirou-lhe o telemóvel para que a Requerente não ligasse a ninguém e pedisse ajuda, só lho devolvendo três ou quatro horas depois.

11. No dia 18 de agosto de 2022, por volta das nove horas, na cozinha, o Requerente acusou a Requerente de lhe “roubar” dois mil e setecentos Euros.

12. Chamou a Requerente de puta, vaca, ameaçando-a que lhe dava um tiro, repetindo várias vezes que queria o dinheiro, desconhecendo a Requerente a que dinheiro se referia.

13. Já em meados 2019 o Requerente tinha acusado a Requerente de lhe “roubar” dois mil Euros, que tinha sido ela ou a filha CC, chamando-a puta e vaca.

14. Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte, que lhe dava um tiro e que de seguida se matava, ameaça que já tinha proferido diversas vezes.

15. Estava em Portugal o filho de ambos que vive no Brasil, GG, que estava a passar férias com a sua família na residência dos Requerentes, que, perante estes factos que presenciou, insistiu com a Requerente para que fossem à PSP apresentar queixa.

16. A Requerente sofre, desde há muito tempo, de “Perturbação Depressiva Recorrente” a qual recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família.

17. A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos.

18. O Requerente amanha o quintal existente na casa de morada de família.

2.3. A Sra. Juíza de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1. e 2.2., esta motivação:

(…).

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1ª parte, 3 a 5 do CPC).

A decisão impugnada no recurso – como linearmente decorre do seu segmento dispositivo – é a que, no contexto do processo especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, entretanto convolado para o processo especial, de jurisdição voluntária de divórcio por mútuo consentimento, atribuiu ao apelado a utilização exclusiva da casa de morada da família. Mas pergunta-se: atribuição definitiva ou meramente provisória?

A decisão judicial é o acto através do qual o tribunal extrai da matéria de direito e de facto apreciada uma consequência jurídica. Trata-se, naturalmente, do principal acto processual do tribunal, no qual julga, seja por iniciativa própria seja em resposta a um pedido da parte, uma qualquer questão que lhe compete apreciar. Como qualquer acto processual, a decisão judicial está sujeita às inelimináveis deficiências de linguagem como meio de veiculação do pensamento. Só esta constatação seria suficiente para tornar patente a necessidade da sua interpretação. Mesmo quando o seu sentido pareça estar bem à vista, deve essa primeira impressão, colhida uti oculi, ser contrastada por uma séria reflexão e só depois disso se poderá ter como realmente claro e de plana inteligência a decisão considerada.

São múltiplos os casos em que a controvérsia gravita, precisamente, em torno da interpretação da sentença: na individualização dos limites, objectivos e subjectivos, da res judicata, ou simplesmente do seu valor como precedente – e na sua execução.

Devendo ter-se por adquirido que a interpretação da decisão judicial não tem por objecto a reconstrução da mens judicis – mas a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente, resta saber a que princípios regulativos deve obedecer essa actividade interpretativa.

Visando a interpretação da decisão determinar o seu sentido juridicamente relevante, segue-se que a questão da interpretação do acto-decisão surge absorvida no problema mais vasto da interpretação do acto jurídico. Neste contexto, compreende-se o procedimento de assimilação da decisão judicial a outras categorias de actos jurídicos, de modo a possibilitar o uso de instrumentos interpretativos para eles dispostos no direito positivo.

Nem noutro sentido se orienta a jurisprudência, que, partindo da caracterização da decisão judicial como acto jurídico receptício, tem sustentado, de forma repetida, que à interpretação da sentença devem aplicar-se os critérios definidos no art.º 236.º do Código Civil, aplicável, por força de remissão expressa, também a actos não negociais, portanto, a actos puramente funcionais que não possam considerar-se actos marcados pela liberdade de celebração (art.º 295.º do Código Civil)[1] .

Por aplicação deste critério, a decisão judicial deve ser interpretada de acordo com o sentido que o declaratário normal, colocado na posição real do declaratário – a parte – possa deduzir do seu contexto[2]. Nestas condições, a violação das regras de interpretação da decisão judicial resolve-se num error in judicando e não num vício de actividade e a tarefa interpretativa releva, não da quaestio facti, antes se reconduzindo à questão-de-direito.     

Dado que a tarefa interpretativa se dirige à individualização do sentido preceptivo da decisão, a interpretação deve incidir, preferencialmente, sobre a decisão em sentido estrito, quer dizer, sobre a parte decisória ou dispositiva, na qual se contém a decisão de condenação ou de absolvição (art.º 607.º, n.º 3, in fine, do CPC). Todavia, como a decisão se encontra sempre referenciada a certos fundamentos, visto que é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, é licito recorrer à motivação da decisão para se estabelecer o exacto significado do decisum, da estatuição que encerra. Pode-se, mesmo, ir mais longe: se a decisão representa o conclusuum de um procedimento, ela pode ser interpretada à luz da globalidade dos actos que a precederam, quer se trate de actos das partes ou de actos do tribunal.

Ora, no caso, vê-se, claramente dos fundamentos da decisão impugnada que a utilização da casa de morada da família foi atribuída ao apelado provisoriamente – até á sua venda ou partilha. É que o literalmente decorre, v.g, deste troço daqueles fundamentos: resultando da factualidade provada de que o Requerente que atualmente não dispõe de outra habitação que não seja a casa de morada de família, a qual lhe tem acautelado a necessidade de habitação, importa julgar procedente o seu pedido de atribuição do uso da casa de morada de família, até à sua venda ou partilha. Conclusão que é irrecusavelmente corroborada pela circunstância de a apelante ter pedido expressamente essa atribuição no contexto da fixação de um regime provisório e o apelado ter requerido essa atribuição, por a casa constituir um bem comum, até à sua partilha, subsequente à extinção, por divórcio da comunhão de bens entre os cônjuges.  O eixo em torno do qual gravita o conflito é, pois, o da atribuição provisória, de interim, da casa de morada da família, ainda que essa atribuição transcenda as fronteiras da acção de divórcio, na qual, por decisão contemporânea, foi declarada a dissolução, por divórcio por mútuo consentimento dos cônjuges, do seu casamento.

Segundo a impugnante a decisão recorrida só se explica, desde logo, pelo erro em matéria de provas em que incorreu a Sra. Juíza de Direito. No ver da apelante, os pontos de facto n.ºs 1, 14, 16 e 17, julgados não provados devem, numa prudente e sã avaliação das suas declarações e do depoimento das testemunhas CC, DD e EE, conjugado com a acusação do Ministério Público no qual assaca ao apelado factos susceptíveis de integrar, designadamente, um crime de violência doméstica, de que é vítima, julgar-se provados.

Maneira que, considerando os parâmetros, acima definidos, da competência funcional ou decisória desta Relação, a questão concreta controversa colocada à sua atenção é a de saber se, efectivamente, os apontados enunciados de facto foram julgados em erro, por equívoco na avaliação ou aferição das provas, pessoais e documental referidas e, portanto, se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que atribua à apelante a utilização – provisória – da casa morada da família ou, subsidiariamente, se esta Relação deve ordenar  a renovação da prova por declarações de parte – da apelante – e testemunhal: o depoimento da testemunha CC, filha da impugnante e do apelado.

A resolução destes problemas vincula, desde logo, à determinação do critério de atribuição provisória da casa de morada da família e dos parâmetros de actuação dos poderes de correcção da decisão da matéria de facto de que esta Relação dispõe.

3.2. Critério de atribuição provisória da utilização da casa de morada da família.

O local da residência permanente, estável da família constitui a casa de morada da família. Esta é a sede da vida familiar, o espaço habitacional da família, o centro da sua organização doméstica e social[3]. As residências secundárias e ocasionais não constituem a residência da família e o local correspondente não consubstancia a casa de morada da família[4].

                O dever matrimonial de coabitação compreende, naturalmente, a obrigação recíproca dos cônjuges de viver em comum, sob o mesmo tecto, na mesma casa. Essa obrigação de vida em comum - a comunhão de mesa, leito e habitação - que vincula os cônjuges, supõe a fixação da residência da família. A comunhão de vida entre os cônjuges, que constitui a essência mesma do casamento, pressupõe a coabitação e, consequentemente, exige, em princípio, a sua convivência na mesma residência. Esta residência tem de ser escolhida, pelos cônjuges, de comum acordo (art.º 1673.º do Código Civil).

                A acção de divórcio visa obter a dissolução do casamento. Pode, contudo, mostrar-se necessário na sua pendência acautelar certos efeitos dessa dissolução ou definir regimes provisórios relativamente a alguns desses efeitos.

É o que ocorre, justamente, com a utilização da casa de morada da família, que constitui nitidamente uma providência cautelar específica da acção de divórcio (art.º 931.º, n.º 7 do CPC)[5]. Com uma diferença extraordinariamente relevante: o seu julgamento, ao contrário do que sucede com as providências cautelares comuns, é feito segundo critérios de conveniência (art.º 931º n.º 7, e 987.º do CPC)[6].           

O critério geral da composição provisória da utilização da casa de morada da família é fundamentalmente homótropo ao que vem estabelecido na lei a propósito da transferência ou concentração do direito ao arrendamento em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens ou da constituição desse direito, portanto, relativamente ao destino da casa de morada da família arrendada ou própria ou comum dos cônjuges, respectivamente, que, insiste-se, é distinto da utilização decorrente do regime provisório fixado na acção divórcio[7]. Mas não é difícil demonstrar que ele é inteiramente aplicável à fixação, nessa acção, de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, visto que procedem, até a fortiori, as respectivas razões justificativas. Basta atentar no facto de a providência assumir também natureza antecipatória, atribuindo, embora transitoriamente, o mesmo efeito jurídico da atribuição definitiva da casa.

                A casa de morada da família deve ser provisoriamente atribuída ao cônjuge que dela tiver necessidade ou maior necessidade - provocada tanto pela eminência da extinção do vínculo matrimonial, como pela separação de facto, i.e., pela cessação da convivência conjugal, não reconhecida em determinada judicialmente e pela deterioração irreversível das relações conjugais e pela hostilidade recíproca intratável dos cônjuges que impossibilita ou torna intolerável a partilha da mesma habitação.

                O divórcio dissolve o casamento e essa dissolução importa, irremissivelmente, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges (art.º 1688.º e 1788.º do Código Civil).    

Um dos efeitos ou consequências da dissolução do casamento e da cessação das relações pessoais conjugais é a do destino da casa de morada da família. Mas esse destino não se confunde com a utilização decorrente do regime provisório fixado na acção de divórcio (art.º 931.º, n.º 7, do CPC)[8]. Sobre o destino da casa de morada da família, há que distinguir consoante essa casa é arrendada por um ou ambos os cônjuges, está na posse do casal por qualquer outro título ou é propriedade de um deles ou de ambos.

                Se a casa é arrendada, os cônjuges podem acordar que a posição de arrendatário fique, por transmissão ou por concentração, pertencendo a qualquer deles (art.º 1105.º, n.º 1, do Código Civil, na sua redacção actual). Na falta desse acordo, cabe ao tribunal do divórcio decidir, a requerimento de qualquer dos cônjuges, tendo em conta os interesses de cada um e dos filhos e outros factores relevantes (art.º 1105.º, n.º 2, do Código Civil).

                Se a casa de morada da família está na posse do casal, com fundamento noutro título, só em função do seu regime jurídico se pode averiguar se os cônjuges podem acordar entre si em conceder essa posse a um deles, ou se, pelo contrário essa transmissão não é admissível ou só o é com intervenção de terceiros interessados. Assim, por exemplo, se o direito com base no qual é utilizada a casa de morada da família for o direito real de usufruto, quer dele seja titular um só dos cônjuges ou ambos, nada obsta a que – salvo restrição contrária imposta pelo título - seja trespassado, definitiva ou temporariamente, a favor do cônjuge que dele não seja titular ou co-titular; se o direito que faculta a utilização da casa for o de habitação e só um dos cônjuges for dele titular, não é admissível a sua transmissão para o outro cônjuge (art.ºs 1484.º e 1486 do Código Civil)[9]. Se a casa é emprestada e só um dos cônjuges é comodatário, também só esse cônjuge pode continuar a servir-se dela[10]. Enfim, se a casa de morada da família é propriedade de um ou de ambos os cônjuges, uma vez decretado o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, o tribunal pode dá-la de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal (art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil)[11].

                Com este conjunto de soluções, a lei dá expressão a um princípio da protecção da casa de morada da família, defendendo a estabilidade da habitação familiar também contra ameaças ou perigos internos – no interesse dos cônjuges e eventualmente dos filhos, tanto no decurso da vida conjugal em termos normais como nas situações de crise provocadas, designadamente pelo divórcio.

                Decerto que o casamento não deve ser encarado como uma fonte indiscutível de direitos para o futuro e não deve, em si mesmo, criar um direito à casa de morada da família; de harmonia com o princípio da responsabilidade pessoal de cada um dos cônjuges pelo seu futuro económico depois do divórcio, cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges deve ser responsável pela satisfação das suas necessidades, designadamente de habitação.

                Todavia, a lei não poderia deixar se mostrar sensível à penosa situação habitacional em que pode vir a encontrar-se o cônjuge divorciado e, eventualmente, os filhos menores dos cônjuges, após um período de vida em comum, mais ou menos longo. A ultractividade do vínculo conjugal, designadamente no tocante ao uso da habitação familiar, legitima-se, assim, pelos princípios da solidariedade dos cônjuges e da tutela do cônjuge mais fraco, em regra, o cônjuge feminino[12]. O que bem se compreende, se se tiver em vista que as regras de direito comum não dariam satisfação adequada aos reais interesses dos cônjuges ou dos filhos, na situação aludida.

No caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, e quer os cônjuges vivessem em casa própria ou de ambos, as regras de direito comum poderiam conduzir a resultados indesejáveis.

Residindo os cônjuges em casa própria de um deles, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, o outro ficaria privado da habitação em que vivera, embora fosse o que mais carecia dessa habitação e os filhos do casal lhe tivessem ficado confiados. E o mesmo aconteceria se a casa de morada da família fosse comum: adjudicada a casa a um dos cônjuges ou ex-cônjuges na partilha subsequente ao divórcio ou à separação judicial de pessoas e bens – o outro cônjuge ver-se-ia privado da residência familiar, mesmo que fosse o que mais dela carecia, designadamente por lhe ter sido atribuída a guarda dos filhos.

Deste modo, quer a casa de morada da família seja comum quer esta seja do outro cônjuge, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, o tribunal pode dá-la de arrendamento a qualquer dos cônjuges ou ex-cônjuges, a seu pedido, ponderando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges e o interesse dos filhos do casal (art.º 1793.º do Código Civil).

A lei, sacrificando deliberadamente o interesse do proprietário da casa ao interesse da protecção da casa de morada da família, quer que esta casa, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a que for mais justo atribuí-la, tendo em conta designadamente, as necessidades de um e outro. Mais rigorosamente: a lei visa proteger o cônjuge que não é proprietário da casa – ou a quem esta não seja adjudicada na partilha – oferecendo-lhe a possibilidade de, apesar do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, continuar a utilizá-la, desde que seja o que mais dela necessite. A protecção do cônjuge titular da casa – ou a quem ela for adjudicada na partilha – é assegurada pelas regras de direito comum.

Note-se, porém, que não se trata aqui de transmitir – inter vivos ou mortis causa – por determinação judicial ou mediante permissão da lei, o direito a um arrendamento já celebrado, como sucede no caso de casa arrendada: aqui há uma verdadeira expropriação prévia, embora limitada, sem indemnização, dos poderes do contitular ou do proprietário para, com base neles, celebrar o contrato de arrendamento com o cônjuge em que se considera encabeçada a família, depois do divórcio[13],[14].

                Para a atribuição da casa a um ou a outro dos cônjuges, a lei consagra um sistema móvel ou aberto, incluindo critérios que apontam para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade: as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal (art.º 1793.º do Código Civil). Por filhos deve, evidentemente, entender-se, neste contexto, os filhos menores ou equiparados.

                A referência às necessidades de cada um dos cônjuges e ao interesse dos filhos do casal é, de forma declarada, meramente exemplificativa o que coloca uma primeira dificuldade na definição do critério geral de atribuição da casa: a representada pelo facto de a lei não esclarecer o peso relativo que deve ser atribuído aos dois factores que menciona ou entre eles e quaisquer outras circunstâncias atendíveis, dado que a ordem por que estão referidos não permite estabelecer entre eles relações de hierarquia[15].

Até à Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, o divórcio era perspectivado, entre nós, numa dupla função de divórcio-remédio e de divórcio-sanção - conforme claramente se inferia dos artigos 1779.º e 1781º do Código Civil, na redacção imediatamente àquela que lhe foi impressa por aquele diploma legal - em que, portanto, se dava à culpa um lugar apreciável.  Não assim actualmente em que, assumidamente, se admite um princípio geral de dissolução do casamento, com fundamento na ruptura definitiva da vida em comum[16] e, portanto, a adopção clara do modelo do divórcio-remédio, ou divórcio constatação da ruptura. Decididamente, o legislador terá sido sensível à consideração de que a recondução da causa de divórcio a uma situação objectiva de ruptura da vida conjugal tem a vantagem de favorecer o divórcio por mútuo consentimento, de evitar que os cônjuges tenham que, no processo, expor a sua intimidade, alegar e ver discutidos, com acrimónia, factos por vezes penosos, e sejam forçados a recriminações recíprocas sobre a censurabilidade imputável à contraparte – o que facilita a obtenção de consensos entre os cônjuges sobre alguns dos efeitos do divórcio – como por exemplo, a regulação das responsabilidades parentais ou o destino da casa que foi morada da família – e permite que os cônjuges – e o tribunal – se concentrem, com evidente vantagem, mais sobre as consequências do divórcio e menos sobre as suas causas.

Num contexto de um sistema de divórcio que dava à culpa dos cônjuges uma importância considerável, perguntava-se que relevo deveria dar-se à culpa que podia ser ou tenha sido imputada na sentença a um ou ambos os cônjuges e, portanto, se aquela culpa era atendível para decidir da atribuição a casa a um ou a outro dos cônjuges. No tocante a este ponto, a doutrina exacta era a de que a ausência de referência expressa à culpa não significava a sua exclusão dos factores ou circunstâncias atendíveis - mas apenas a sua relativização ou subalternização enquanto critério reitor de decisão[17]. Se isto já era assim no âmbito de um sistema de divórcio-sanção, em que a culpa ocupava um lugar proeminente, mais o deve ser no contexto – que é o actual – de um modelo do divórcio-remédio, ou divórcio constatação da ruptura, assente em causas puramente objectivas.

De tudo isto pode, assim, retirar-se a proposição conclusiva de que o critério geral que deve fixar-se para a atribuição da casa é o da necessidade da casa: a casa de morada da família deve ser atribuída ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela[18]. Vinca-se, efectivamente que, o objectivo da lei, ao permitir ao juiz atribuir a casa a um ou a outro dos cônjuges ou ex-cônjuges não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada da família o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto - é antes, o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que seja mais atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar. Não se trata, na verdade, do resultado do ajuste de contas desencadeado pela crise do divórcio, que deva ser resolvido ainda com base na culpa ou na imputabilidade da ruptura do casamento a um dos cônjuges - mas uma necessidade provocada pela dissociação dos cônjuges que deve ser satisfeita em atenção à instituição familiar.

Decerto que da plena comunhão de vida, que assenta na dádiva profunda e permanente de cada um dos cônjuges ao outro, nascida do casamento, decorre para os cônjuges, designadamente, um dever de respeito, dever de conjugal que abrange uma área coincidente com a de alguns direitos fundamentais constitucionalmente garantidos (art.º 1672.º do Código Civil). O dever de respeito compreende, em primeiro lugar, os direitos inerentes à personalidade de cada um dos cônjuges, garantidos constitucionalmente e protegidos, civil e penalmente. Assim, envolve uma violação do dever de respeito, v.g. qualquer ofensa praticada sobre o cônjuge que afecta o seu direito à vida, à integridade moral e física, à imagem e à intimidade da vida privada em matéria estranha à união conjugal, à inviolabilidade da correspondência, etc. (art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 34.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa)..

                Estes direitos valem, naturalmente, contra qualquer pessoa. Se quem quer que seja deve respeitar os direitos de personalidade de cada um dos cônjuges, com maior empenho o deve fazer o outro cônjuge. A proximidade existencial dos cônjuges, decorrente da comunhão de vida, assente na dádiva profunda e permanente de cada um deles ao outro, que é o objecto mesmo do casamento, exige de cada um deles um respeito maior pelos direitos do outro[19]. O dever conjugal de respeito abre, assim, a porta à vigência da generalidade dos direitos de personalidade na vida matrimonial, ou, dito de outro modo, o casamento não afecta a tutela da personalidade de cada cônjuge e, por isso, não exclui, designadamente o direito à privacidade no seio da família: cada um dos seus membros conserva uma esfera inviolável de privacidade e, portanto, cada um dos cônjuges está sujeito, por exemplo, a um dever recíproco de respeito da intimidade do outro. A particularidade da relação conjugal não afecta as regras gerais previstas em matéria de garantia de direitos, designadamente de personalidade, dado que um cônjuge não deixa de ser uma pessoa sempre que está em relação com o outro e, por isso, a protecção de um cônjuge perante o outro, tem de ser, em princípio, igual à que lhe é conferida perante terceiro[20]. Como dever negativo, o dever de respeito, é, assim, desde logo, a obrigação de cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na integridade moral, todos os bens ou valores de personalidade de cada um dos cônjuges: a honra, a consideração social, o amor-próprio, a sensibilidade e a susceptibilidade pessoal. Negativamente, o dever de respeito é também o dever de não praticar actos ou adoptar comportamentos que constituam injúrias indirectas, i.e., que embora não dirigidas directamente ao outro cônjuge, se repercutem na honra e reputação deste[21]. Mas este dever matrimonial pessoal também comporta uma vertente positiva. Por isso que, por exemplo, o cônjuge que não fala ao outro, não respeita a personalidade deste cônjuge e, consequentemente, constitui-se infractor do correspondente dever de respeito.

                Simplesmente – reitera-se – a atribuição da casa de morada da família não tem por fundamento final sancionar o cônjuge infractor do dever de respeito nem compensar o cônjuge vitimizado pela infracção desse ou de qualquer outro dever conjugal: o fim conspícuo da providência de atribuição – provisória ou não - da casa de morada da família é, antes, o de acudir à necessidade, objectiva e premente, de habitação experimentada pelo cônjuge mais atingido, no plano habitacional, pela dissociação conjugal.

                Na avaliação da necessidade da casa, o tribunal deve ter em conta, em primeiro lugar, justamente, as necessidades dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal elementos que mais expressivamente a revelam e por isso mereceram referência expressa na lei.

                Neste plano releva, desde logo, a situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges[22]. Trata-se, desde logo, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, assim como os respectivos encargos; no que se refere ao interesse dos filhos, há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer, por exemplo, a guarda dos filhos menores e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem ficaram confiados.

                Mas o juízo sobre a necessidade da casa não depende apenas destes elementos; haverá que considerar ainda toda uma constelação de razões atendíveis: a idade e estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, etc. Atendível é, seguramente, a circunstância de alguns dos cônjuges dispor, eventualmente, de outra casa em que possa estabelecer a sua residência.

                Quando deva concluir-se, em face desses elementos, que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve atribuir-se a casa de morada da família àquele que mais precisa dela.

                Só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a causa da dissociação conjugal; o facto de a casa constituir bem próprio de um ou de outro cônjuge; as circunstâncias em que, após a separação de facto, a casa de morada da família tenha sido ocupada por um ou por outro, elementos ou factores que, neste sentido, devem ser considerados secundários.

Em absoluto remate: o regime provisório de utilização da casa de morada da família deve ser fixado por aplicação dos mesmos factores – e com a ponderação do peso relativo que compita a qualquer deles – que relevam para decidir do seu destino[23], [24]. E entre estes factores, o da necessidade da casa é, decerto, o primordial.

3.3. Error in iudicando por erro em matéria de provas.

3.3.1. Finalidades e parâmetros sob cujo signo são actuados os poderes desta Relação de correcção e de controlo da decisão da matéria de facto.

O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (art.ºs 666,º, nº 1, e 640.º, n.º 1, do CPC).

Todavia, os poderes de correção da decisão da matéria de facto são actuados na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.

Além disso, esse poder de correcção da decisão da matéria de facto orienta-se pelos parâmetros seguintes:

a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (art.º 341.º do Código Civil);

b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (art.º 607.º, nº 5, do CPC).

c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;

d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.

e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;

f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[25].

Note-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – que se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou mesmo só renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não há razão bastante – legal ou sequer epistemológica - para que não proceda àquele exame e à formulação desta convicção - e à sua objectivação - no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (art.º 607.º, nº 5, ex-vi art.º 663.º,  nº 2, do CPC). O controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa – autonomamente, embora com os limites decorrentes da sua vinculação à impugnação do recorrente - não só a sua própria convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente[26].

A conclusão da correcção ou da incorrecção da decisão da questão de facto do tribunal da 1ª instância exige um juízo de relação ou de comparação entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1.ª instância e da Relação forem coincidentes, a decisão da matéria de facto daquele tribunal deve ter-se por correcta, com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a convicção do decisor da 1.ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra conforme aquela mesma convicção[27].

A Relação deve, pois, formar uma convicção verdadeira – e fundamentada - sobre a prova produzida na 1.ª instância, independente ou autónoma da convicção do juiz a quo, que pode ou não ser coincidente com a deste último – não se limitando a controlar a legalidade da produção da prova realizada naquela instância e a aceitar o resultado do exercício da prova - salvo casos em que esse julgamento seja ilógico, irracional, arbitrário, incongruente ou absurdo[28].

A par dos poderes de correcção, esta Relação dispõe também de um poder de controlo sobre os meios de prova, no exercício dos quais pode ordenar, designadamente, a renovação de um ou mais meios de prova (art.º 666.º, n.º 2, do CPC). Mas é bom que nos entendamos sobre os pressupostos do exercício deste poder de controlo. Em primeiro lugar, a renovação daquelas provas só se justifica quando a Relação tiver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou declarante e, portanto, se houver razão fundada para suspeitar da sua falsidade; depois, a renovação só deve ter-se por admissível no caso de divergência grave entre o decisor de facto da 1.ª instância e a Relação sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido e a intelegibilidade do depoimento: se tanto o Juiz de Direito como a Relação forem acordes sobre a falta de credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento, a renovação da prova correspondente não deve ter lugar: a renovação da prova não se destina a conceder ao impugnante uma segunda oportunidade para cumprir o encargo da prova ou da contraprova a que está adstrito.

Resta dizer, que o exercício pela Relação dos poderes de correcção sobre a decisão da matéria de facto e de controlo sobre os meios de prova só deve incidir sobre os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Se o facto ou factos que se reputam de mal julgados não se mostrarem relevantes segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da acção, a reponderação deve ter-se - por aplicação do princípio da utilidade a que deve subordinar-se toda a actividade jurisdicional - mesmo por proibida (art.º 130.º do CPC)[29].

                3.3.2. Reponderação das provas.

A recorrente de mal julgados os pontos de facto n.ºs 1, 14, 16 e 17 que foram declarados não provados.

No tocante ao ponto 17 - A Requerente para satisfação das suas necessidades básicas pediu dinheiro emprestado aos seus filhos – a decisão de o julgar não provado considera-se correcta. É que nem mesmo a apelante, nas suas declarações de parte, ou a testemunha CC – filha das partes e que com o pai não se dá bem – asseverou a sua realidade. Realmente a propósito da sua situação económica, o apelante afirmou foi que – para além de ter como único rendimento a reforma de € 350,00 – tem a ajuda dos filhos, que me vão ajudando; a minha filha, por exemplo, compra a alimentação, paga água, paga a luz, essas coisas; eu tenho um filho no Brasil que antes de ir me deixou dinheiro para me ajudar e outro que tenho está sempre pronto. Por sua vez, a testemunha CC afiançou que paga as despesas da casa; o meu irmão que está no Brasil deixou-lhe – á apelante - € 1 500,00 para ajudar neste tipo de despesas, advogado, tudo isso. Portanto, nem uma nem outra garantiram que a apelante pediu dinheiro emprestado ou que os filhos daquela lhe tenham emprestado qualquer quantia. E como as ajudas que a apelante recebe dos filhos ou a concorrência destes para as suas despesas e empréstimos são realidades facticamente distintas julga-se exacto, em face do conteúdo daquelas provas pessoais, julgar não provado o enunciado correspondente.

No tocante ao enunciado n.º 16 - A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente” a qual recrudesceu após ter deixado a casa de morada de família – a decisão de o julgar não provado considera-se correcta no tocante ao último segmento e incorrecta relativamente ao primeiro.

Decorre tanto das declarações de parte da apelante como do depoimento da testemunha CC que a primeira é portadora de uma patologia depressiva: a minha mãe é completamente depressiva; ela teve há 40 anos um esgotamento e nunca mais se equilibrou – afirmou, terminantemente aquela testemunha. Este depoimento julga-se suficiente, considerada a razão de ciência que o anima, numa avaliação prudencial da prova, para julgar provado que a recorrente é portadora daquela afecção psíquica, patologia, dado que é apreensível, v.g. através da frequência de consultas da especialidade ou da terapia, medicamentosa ou outra, prescrita, por qualquer observador medianamente informado e atento. Mas, usando do mesmo critério de aferição da prova, considera-se certa a decisão de julgar não provado que essa patologia recrudesceu ou se agravou depois da saída da apelante da casa de morada da família. Por várias razões, de resto.

Em primeiro lugar pela circunstância de se tratar de uma proposição que reclama, para a sua demonstração, conhecimentos especiais, que relevam da ciência médica, não sendo suficiente para a sua afirmação uma avaliação puramente subjectiva do paciente ou de testemunhas, dado que nem outra dispõem das competências técnicas para fazer esse diagnóstico de agravamento da perturbação psíquica e estabelecer o indispensável nexo causal com a etiologia alegada. De resto, o mais natural seria que a apelante produzisse, a este propósito, um qualquer documento clínico – mesmo que ordenado propositadamente para a prova - pelo que não deixa de ser significante a absoluta ausência de uma prova dessa espécie.

Depois, pelo carácter sugestivo das perguntas feitas, sobre este assunto, quer à apelante quer à testemunha CC – interrogatório sugestivo no qual já vai insinuada a resposta pretendida, pelo que quem depõe, afinal, não é o inquirido, mas o inquiridor. Realmente, o Exmo. Mandatário da apelante perguntou a esta o seu estado de saúde agravou quando teve de sair de casa, ao que aquela se limitou a aquiescer, sim, sim agravou muito. Do mesmo modo o mesmo Sr. Advogado questionou a testemunha CC se notou que, quando foi esse acontecimento no Verão, ela ficou pior, ao que última se limitou a retorquir ela ficou pior, sim. O que daqui decorre para desvalorizar ou depreciar a força persuasiva destas respostas é meramente consequencial: é mais que tempo de os Srs. Advogados - e os Magistrados – levarem a sério a proibição de formulação de perguntas sugestivas às testemunhas o que se consegue, designadamente, recusando às respostas sugeridas das testemunhas qualquer valor persuasivo (art.º 516.º, n.º 3, do CPC).

Relativamente aos enunciados 1 - Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...) – e 14 - Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes, considera-se que a apelante tem efectivamente razão e, portanto, que ao julgá-los não provados, a Sra. Juíza de Direito incorreu no error in iudicando, por erro na aferição das provas, apontado pela recorrente.

A realidade de tais factos foi assegurada tanto pela apelante como pela testemunha CC. Mas mais do que isso, eles constam da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o apelado e relativamente aos quais foi proferido despacho de designação de dia para julgamento, i.e., despacho equivalente ao de pronúncia.

                E quanto a este ponto não vale argumentar com o princípio probatório do in dubio pro reo.

Em processo civil é sobre as partes que recai o risco de condução do processo em matéria probatória. Daí que se qualquer delas não produzir meios de prova necessários à fundamentação das suas situações jurídicas, recaem sobre si as consequências desvantajosas correspondentes: é o princípio do ónus da prova, com os consequentes problemas que lhe estão ligados da sua repartição entre as partes (art.ºs 342.º e 346.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil).

Não assim no processo penal, no qual – como consequência do princípio estruturante da investigação – não existe um qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre a acusação ou sobre o arguido. Por isso que a falta de provas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido e, portanto, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a seu favor. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo, conhecido também como presunção de inocência – presunção que, enquanto tomada como equivalente do princípio in dubio pro reo, pertence, sem dúvida, aos princípios fundamentos do Estado de Direito e, portanto, á constituição processual penal (art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). O princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo – seja qual for o modo como ambos os princípios se articulam – enquanto princípios constitutivos do Estado de Direito democrático, são extensíveis a todo o direito sancionatório público e, portanto, v.g. ao processo contraordenacional (art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa)[30].

                Mas se deve ter-se por correcta a aplicação a todos os processos sancionatórios públicos do princípio probatório in dubio pro reo, embora com os matizes ou adaptações reclamadas pelo tipo de ilícito e pela diferença da sua ressonância ética, também deve ter-se por segura a sua inaplicabilidade ao processo civil, ainda que o objecto do processo seja constituído por um facto de relevância dupla, i.e., do qual derivem, ou possam derivar, consequências jurídicas que relevem, simultaneamente, no plano penal e no plano estritamente civil. Tratando-se de valorar consequências ou situações jurídicas exclusivamente na sua estrita vertente jurídico-privada, valem, para a prova dos factos correspondentes, as regras de direito probatório formal – que regulam a actividade probatória que, e na medida em que se desenrola no processo – e material – i.e., as normas reguladoras da admissibilidade e valoração da prova – do processo civil, regras de valoração da prova entre as quais se não conta, garantidamente, o princípio probatório in dubio pro reo (art.ºs 410.º a 526.º do CPC e 341.º a 346.º do Código Civil).

                A dedução da acusação pelo Ministério Público assenta, necessariamente, na existência de indícios suficientes dos factos nela imputados ao arguido, que deles resulta uma probabilidade razoável de àquele vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, ou, noutra formulação, radica na maior probabilidade de uma condenação do que de uma absolvição (art.º 283.º, n.ºs 1 e 2, do CP Penal).

                Pois se já no momento em que se pode dizer da qualificação, o juízo que o Ministério Público faça sobre a verificação do crime está aberta ás mesmas dificuldades e exigências que pode, analogamente, suscitar qualquer aplicação concreta do direito, menos ainda se poderá exigir uma univocidade efectiva quanto a concluir se o resultado do inquérito oferece indícios suficientes para acusar ou se, pelo contrário, não logrou confirmar a suspeita que deu origem à investigação; no que toca à suficiência de prova ou dos indícios, deve observar-se que não se trata de aceitar um menor grau de comprovação, uma mera probabilidade insegura, que seria sempre directa função de uma posição pessoal – da maior ou menor exigência que pessoalmente o Magistrado real do Ministério Público fizesse das regras de experiência ou dos critérios de probabilidade – antes se impõe também aqui uma comprovação acabada e objectiva, i.e., a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final, só que o inquérito não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz de julgamento e, por isso – mas só por isso – o que seria insuficiente para a sentença, pode ser bastante ou suficiente para a acusação (desde logo porque não concorrem nesse momento elementos que anulem ou contrabalancem a força convincente dos elementos incriminadores obtidos).

                Portanto, quer a acusação, quer o despacho que designa dia para julgamento contêm, necessariamente, quanto aos factos imputados ao arguido uma exigência de verdade, embora evidentemente menor que a exigida para a condenação numa consequência jurídica do crime. Mas essa exigência de verdade, conjugada com outras provas que a corroborem, é suficiente para, em processo não penal, numa avaliação prudencial da prova, assentar na realidade dos factos correspondentes – sendo certo que a decisão proferida no processo não penal – pela diferença dos princípios probatórios aplicáveis – não vincula o juiz penal (art.º 623.º e 624.º, a contrario, do CPC).

O resultado da actividade de julgamento da matéria de facto, como se notou já, pode, numa perspectiva essencialmente gnoseológica, exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática - embora deva ser uma verdade assente nunca convicção, objectivável e motivável, portanto, capaz de se impor aos outros. No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Estão nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal e a prova por declarações de parte.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse mesmo facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[31]. As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica, mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
A verdade oferecida pela prova, dado que é alcançada por aplicação das normas e técnicas que valem no processo é, sempre, uma verdade contextual, obtida nas condições que a relação processual permite. Verdade que, todavia, é obtida no exercício de uma liberdade para a objectividade e não aquela que permite uma intime conviction, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objectividade, uma verdade que transcenda a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros, pois tal só pode ser a verdade do direito e para o direito.
 Se isto é assim em geral, mais o deverá ser nos casos em que a prova, pela peculiaridade dos factos que constituem o seu objecto, se revela particularmente difícil como comprovadamente sucede, nos casos em que tem por objecto factos relativos ocorridos no interior de relações marcadas pela intimidade ou reserva.

Realmente, a prova em juízo nunca é fácil e é, por certo, muito mais difícil, quando o seu objeto são factos situados no âmago da intimidade dos membros da vida familiar, quer se trate da família matrimonializada quer não, ou ao menos da vida doméstica ou, que relevam do foro interno ou do plano psíquico das partes em conflito, como propósitos, intenções, expectativas, etc. Para ultrapassar esta dificuldade, justifica-se uma utilização intensiva de regras de experiência e de critérios sociais – do id quod plerumque accidit, daquilo que normalmente sucede[32] - e, mesmo, em última extremidade, de uma prova prima facie, i.e. de uma prova em que a tipicidade da inferência probatória é de tal modo forte que só cede perante dúvidas fundadas, quer dizer, perante uma contraprova também ela prima facie ou perante a prova do contrário.

                Considera-se, assim, que a decisão da Sra. Juíza de Direito, ao julgar não provados as referidas proposições de facto assentou numa convicção que não foi alcançada com o uso da prudência, i.e., da faculdade de decidir de forma correcta[33].

O conjunto de considerações exposto, é suficiente para mostrar, apesar do modo como esta Relação conheceu das provas pessoais – através da audição do registo sonoro e da leitura, fria e inexpressiva dos troços transcritos pelas partes - que a decisora de facto da 1.ª instância incorreu na avaliação das apontadas provas – documental e pessoal – relativamente aos factos referidos, no error in iudicando acusado pela apelante, pelo que há que fazer prevalecer a convicção que esta Relação extrai dessas provas sobre o convencimento, erróneo, que sobre elas formou a decisora da 1.ª instância. Importa, pois, reconformar, correspondentemente, a decisão da matéria de facto dos pontos impugnados, julgando provado que A Requerente sofre, desde há muito, de “Perturbação Depressiva Recorrente”,  que Desde o início da vida conjugal o Requerente sempre foi muito agressivo com a esposa (...) – e que Nesse dia 18 de agosto, o Requerente ameaçou a Requerente de morte (...) ameaça que já tinha proferido diversas vezes.

Conclusão que, evidentemente, deixa prejudicada, a pretensão subsidiária de renovação das provas formulada pela recorrente que, de resto, sempre se teria por improcedente, dado que no caso, o problema colocado pelas provas representadas pelas suas próprias declarações e pelo depoimento da testemunha CC não é uma questão de credibilidade – portanto, de falsidade das declarações - ou de inintelegibilidade – mas simplesmente de força persuasiva, resultante, no primeiro caso, de a declarante ter a qualidade de parte em que é mais que natural a tendência do depoente para exprimir pontos de vista que o favoreçam e mesmo a inexigibilidade de dizer a verdade que conhece, e, no segundo, por virtude da relação de parentesco com as partes – e da nítida solidarização com uma delas – o que é susceptível de a privar da serenidade para prestar um depoimento isento e descomprometido e, portanto, imparcial. Nesta hipótese, a atitude correcta é a de julgar, o enunciado de facto controvertido, de sobreaviso ou com as cautelas e reservas que aquelas circunstâncias aconselham, portanto, de harmonia com o grau de credibilidade que a declarante ou a testemunha realmente merecem e não a de renovar a produção dessas provas, repetição que, aliás, é susceptível de prejudicar a espontaneidade dos depoimentos, espontaneidade em que, como se sabe, se deve ver uma garantia de veracidade.

Resta, porém, saber se esta modificação da matéria de facto garante à apelante a procedência do recurso.

3.4. Concretização.

                Ao contrário da lógica argumentativa que perpassa pelas conclusões com a que a apelante rematou a sua alegação, o facto de a recorrente ter sido vitima de violência doméstica de género não é – nem deve ser – o factor conspícuo ou decisivo, muito menos automático, de atribuição, ainda que de interim, da casa de morada da família. Decerto que o apelado violou, de forma grave, o dever de respeitar a recorrente, seu cônjuge, mas é também certo que a apelante ofendeu esse mesmo dever, dado que do cônjuge que ordena o corte da prestação de serviços essenciais, como a água, saneamento e comunicações da casa de morada da família, habitada pelo outro cônjuge, se não pode dizer que respeita, com uma pontualidade religiosa, este mesmo cônjuge.

A imputabilidade da causa da ruptura do casamento é, como se salientou, apenas um factor a ter em conta na formulação do juízo sobre a necessidade da casa e a que deve reconhecer um carácter subalterno, no sentido de que só deve intervir no caso de as necessidades dos cônjuges serem idênticas ou sensivelmente iguais. Repete-se: o objectivo prosseguido com a atribuição da casa de morada da família não é o de castigar o culpado – ou mais culpado -  ou de premiar o inocente – ou menos culpado, ou de fazer um qualquer ajuste de contas assente na imputabilidade, a um ou ambos os cônjuges ou ex-cônjuges, da ruptura ou rompimento da relação matrimonial.

                Ao contrário do que sucede com uma frequência indesejável em que os cônjuges apenas dispõem da casa de morada da família - e em que, por isso, a sua atribuição ainda provisória a um deles coloca o outro numa situação dramática por não ter nem poder obter uma outra habitação – o que explica, como mostra a observação da realidade social  a permanência, muitas vezes, dos cônjuges a habitar uma mesma casa apesar de não existir entre eles qualquer comunhão de vida, por se terem rompido todas as relações características dessa convivência, e mesmo depois do divórcio – no caso do recurso os cônjuges dispõem de duas casas de habitação. E, como se apontou, a disponibilidade, por qualquer dos cônjuges de outra casa para além daquela que constitui a casa de morada da família deve, evidentemente, pesar na decisão sobre a sua atribuição, dado que o que se trata é sempre de assegurar as necessidades habitacionais de qualquer deles.

                Na espécie do recurso, quando saiu da casa de morada da família, na qual permaneceu o apelado, a apelante não ficou ao relento, tendo ido habitar um apartamento que constitui um bem comum dos cônjuges. É certo que nessa casa vive também, actualmente de modo gratuito, uma filha de ambos os cônjuges, mas ao inverso do que sugere a apelante, não foi a recorrente que foi viver para casa da filha, é antes a filha que vive na casa da apelante (e do apelado). É também certo que, dada a composição do apartamento e o facto de a apelante ocupar o único quarto, força a filha a dormir na sala. Simplesmente temos por seguro que os interesses daquela filha dos cônjuges não são atendíveis, considerada a sua idade e a sua autonomização e a inerente auto-responsabilidade pela satisfação das suas necessidades de habitação e, portanto, são inidóneos para servir de critério para se decidir a questão delicada da atribuição da casa de morada a um dos cônjuges cujos interesses são, assim, neste contexto os únicos atendíveis.  De resto, os interesses daquela descendente das partes ficariam ainda mais desprotegidos se a casa de morada da família fosse atribuída à apelante, dado que, nesta hipótese, o mais natural seria que a apelado fosse viver para o apartamento o que forçaria a sua saída, dada a deterioração do relacionamento entre ambos e a consequente impossibilidade de partilha ou de coexistência numa mesma habitação, para mais com aquela tipologia.

                Independentemente da correcção deste argumento, a verdade é, de um aspecto, que a apelante dispõe de uma habitação e, de outro, que os factos adquiridos para o processo não inculcam a existência de qualquer motivo atendível ou preferencial, v.g. de natureza laboral, de proximidade de  serviços públicos, de equipamentos de saúde, etc. - para que as suas necessidades de habitação sejam, transitoriamente, satisfeitas, não através da casa que actualmente habita – mas através da ocupação da que foi casa de morada de família.

                De modo que se tem por inteiramente correcta a conclusão tirada sentença apelada de que não resulta da factualidade provada que a Requerente tenha a necessidade, atual, de habitação, pois que reside num imóvel, bem comum do casal e, consequentemente, que a pretensão de atribuição da casa de morada da família deve improceder. Importa, pois, manter, no plano habitacional, o status quo actual dos cônjuges, até para os estimular, em face do fim ao casamento, já anteriormente desfeito no plano dos factos, a centrarem a sua atenção nas consequências do divórcio, designadamente sobre o destino definitivo que deve ser dado à casa que foi morada da família.

                Há, assim, boas razões para concluir pela falta de bondade do recurso. Cumpre julgá-lo improcedente.

                (…).

                A apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pelas respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

                4. Decisão.

                Pelos fundamentos expostos:

a. Altera-se, nos termos supra expostos, a decisão da matéria de facto do Tribunal da 1.ª instância;

b. Nega-se provimento ao recurso.

                Custas pela apelante.

                                                                                                                                                             2024.01.09


[1] Acs. do STJ de 28.01.1997, CJ, STJ, T V, I, pág. 83, 29.05.1991, BMJ n.º 407, pág. 446, 05.12.2002, 18.09.2003 e 24.02.2005, www.dgsi.pt. e da RP de 14.03.1995 e 22.05.2000, www.dgsi.pt. Cfr., em sentido concordante, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2004, pág. 227 e, em sentido dubitativo, Paula Costa e Silva, Acto e Processo, Coimbra, 2003, págs. 63 e ss. Note-se, porém, que alguma jurisprudência adiciona, aos critérios de interpretação da declaração negocial, as directrizes da interpretação da lei: cfr. os Acs. do STJ de 03.12.1998 e 05.11.1998, www.dgsi.pt. No sentido da aplicação à interpretação da decisão judicial dos princípios comuns à interpretação do negócio jurídico e da lei, Antunes Varela, RLJ, Ano 124, pág. 152.
[2] À luz desta jurisprudência a interpretação dos actos processuais surge marcada por um princípio da unidade, visto que os actos das partes estão também sujeitos aos mesmos critérios interpretativos. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, Lex, 2000, pág. 98.
[3] Guilherme de Oliveira, A Família, pág. 20, N. E. Gomes da Silva, Posição Sucessória do Cônjuge Sobrevivo, pág. 72, Leonor Beleza, Direito da Família, pág. 88 e R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. III, pág. 373; Acs. STJ de 06.03.86, BMJ nº 355, pág. 346, RC de 04.06.91, CJ XVI, III, pág. 84, RL de 06.02.92 CJ XVII, I, pág. 154 e 25.11.93, CJ XVIII, V, pág. 132.
[4] Pereira Coelho, RLJ ano 122, pág. 136.
[5] A natureza cautelar da providência resulta da circunstância de através dela se obter uma composição provisória da situação controvertida antes do proferimento da decisão definitiva, mediante uma regulação provisória ou uma definição transitória daquela situação. Mas é também uma providência de antecipação, visto que atribui, ainda que de interim, provisoriamente, o mesmo que se pode obter na composição definitiva. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1998, págs. 226 e 227.
[6] Ac. da RL de 10.07.1997, CJ, IV, pág. 87.
[7] Ac. da RP de 26.02.1998, CJ, 1998, I, pág. 222.
[8] Ac. da RP de 26.02.88, cit.
[9] Nuno de Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, págs. 306 e 307.
[10] Acs. da RP de 26.01.1984, CJ, IX, I, pág. 231, e do STJ de 26.10.1989, BMJ n.º 390, pág. 398.
[11] Dar de arrendamento a casa – mas não alugar o respectivo recheio, ainda que só os móveis indispensáveis à vida do lar. Cfr. Nuno de Salter Cid, A Protecção, cit. págs. 63 e 64.
[12] Trata-se de um fenómeno designado por feminização da pobreza. Estudos feitos nos EUA demonstram que, em geral, após o divórcio o nível de vida dos homens sobe ao passo que o das mulheres desce. Cfr. Chambers, Making Fathers Pay, The Enforcement of Child Support, The University of Chicago Press, Chicago and London, 1979, págs., 54 e 56.
[13] Contrato que fica sujeito ao regime do arrendamento, podendo, contudo, o tribunal, ouvidos os cônjuges, definir as suas condições (art.º 1793.º, n.º 2, do Código Civil). Haverá, por isso, imperativamente, lugar à fixação de uma renda. Cfr. Ac. RP de 06.12.1991, CJ, V, pág. 210. Discute-se, porém, se essa renda deve ser fixada em atenção ao valor de mercado, resultante da oferta e da procura de arrendamento, desconsiderando a situação patrimonial dos cônjuges, ou antes tendo em consideração a situação económica do cônjuge beneficiado com o arrendamento e outros factores atendíveis: cfr. no primeiro sentido, Acs. RL de 26.02.1982 e 09.11.1993, CJ, VII, II, pág. 151, e XVIII, V, pág. 120; no segundo, RP de 06.12.1991, RL de 16.11.1993, RP de 14.03.1995 e STJ de 14.05.1991, CJ, XVI, V, pág. 210, XVIII, V, pág. 123 e XX, II, pág. 199, e BMJ n.º 407, pág. 536 e Nuno de Salter Cid, a Protecção, cit., pág. 345 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução ao Direito Patrimonial, 2ª ed., pág. 664.
[14] Considerando, embora de forma não peremptória, que esta expropriação forçada se deve considerar inconstitucional, cfr. Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, pág. 305.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, pág. 571.
[16] Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 276,
[17] Antunes Varela, Direito da Família, 1º Volume, 5ª Edição, Revista, Actualizada e Completada, pág. 529.
[18] Pereira Coelho, RLJ ano 122, pág. 120 ss., M. Januário C. Gomes, Arrendamentos para Habitação, pág. 154, Jorge Alberto de Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 3º Ed., págs. 430 a 437, Nuno de Salter Cid, A Protecção, cit., págs. 337 a 340 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso cit., vol. I, págs. 662 a 663; Acs.  do STJ de 19.11.1991, BMJ nº 411, pág. 578, RE de 24.02.1994, BMJ nº 343, pág. 712, RL de 26.10.1995, BMJ n.º 450, pág. 540, e da RP de 16.04.1991, BMJ n.º 406, pág. 722.
[19] Antunes Varela, Direito da Família, 5º ed., 1º vol., pág. 359.
[20] Rabindranath V. A. Capelo de Sousa O Direito Geral de Personalidade, pág. 451.
[21] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, Introdução ao Direito Matrimonial, 2º Ed., págs. 353 e 354.
[22] Ac. do STJ de 15.12.1998, CJ, III, pág. 164.
[23] Nuno de Salter Cid, Sobre a atribuição da casa de morada da família, Revista Julgar, n.º 40 – 2020, pág. 65. O autor nota, aliás, que se trata de uma resposta unânime.
[24] Objecto de controvérsia é, porém, a questão de saber se o direito provisório de utilizar a casa de morada da família tem ou não de ser atribuído a título idêntico ao que serve de base à sua atribuição, dado que a lei não determina que, no plano patrimonial, a decisão judicial de fixação do regime provisório de utilização observe o que nela se dispõe quanto ao seu destino, i.e., não determina que essa utilização provisória seja conferida a título de arrendamento, única solução admissível em face do disposto no art.º 1793.º do Código Civil. No sentido de que pode ou não ser atribuída uma compensação, cfr. o Ac. do STJ de 13.10.2016 (135/12).
[25] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[26] João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
[27] Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Ac. do STJ de 24.9.2013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
[28] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 350.
[29] Acs. do STJ 09.02.2021 (26069/18.3T8PRT.P1.S1), 30.09.2020 (4420/18.6T8GMR.G2.S1) e 14.03.2019 (8765/16.1T8LSB.L1.S2).
[30] Acs. do TC n.ºs 397/2017, 675/2016 e 338/2018, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[31] Antunes Varela, RLJ, Ano 116, pág. 330.
[32] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[33] João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pág. 521.