Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
376/08.1TBOFR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CONFISSÃO
DÍVIDA
VÍCIOS
VONTADE
DECLARAÇÃO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 359º Nº1 DO CC
Sumário: Não logrando o oponente em execução provar a falta ou vícios da vontade da declaração confessória extrajudicial de dívida, no documento particular que constitui o título executivo, onde foi indicada a causa da dívida (desvio ou subtracção de frangos), a oposição improcede e a execução terá de prosseguir.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... veio, por apenso aos autos de execução comum para pagamento de quantia certa, movidos por “B..., Lda.” (hoje massa insolvente, na sequência da sua declaração de insolvência), deduzir oposição à execução, invocando que a declaração de dívida dada à execução, no montante de € 250.000,00, foi assinada sob ameaças e coacção moral, inexistindo qualquer obrigação causal subjacente à emissão do documento em causa já que a oponente nunca se apropriou de qualquer quantia monetária pertença da exequente.

Notificada, contestou a exequente alegando que, enquanto trabalhador da exequente e no âmbito das suas funções, o executado “desviou” frangos em quantidade e montantes correspondentes aos € 250.000,00 que declarou dever àquela, mais impugnando os factos alegados pelo executado integradores das ameaças e coacção.

Foi elaborado o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória (b. i.) de que não houve lugar a reclamação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi lida a decisão sobre a matéria de facto, igualmente sem reclamação.

Proferida sentença, foi a oposição julgada procedente e declarada extinta a execução.

Inconformada, recorreu a exequente, apresentando alegações que rematou com as seguintes úteis conclusões:

a) - O documento que serve de base à execução, sendo um documento particular que está assinado pelo devedor e pelo então representante legal da exequente, onde aquele confessa dever a esta a quantia de € 250.000,00, cabe inequivocamente na espécie de títulos executivos que a alínea c) do nº 1 do art.º 46.º do CPC designa por “documentos particulares, assinados pelo devedor, que importam reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado”;

b) - Foi invocado pelo próprio executado no título a causa do reconhecimento da divida, ou seja, a obrigação exequenda, na confissão “ por desvios furtados à empresa B (...) de frangos sem serem devitados era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate.”;

c) - Também, pelo seu próprio punho, o executado altera e convenciona a forma de pagamento desse montante, conforme resulta expressamente da cláusula 3ª onde termina afirmando “… e quando puder pago o resto”;

d) - A confissão extrajudicial que o executado faz no próprio título executivo (documento particular) da realidade de um facto, (furto de frangos no montante de € 250.0000,00), que lhe é desfavorável e favorece a exequente e tendo sido feita à parte contrária, tem força probatória plena, com as legais consequências daí advenientes, conforme dispõem os art.ºs 352.º e 358.º, nº 2, do CC;

e) - A oposição à execução é uma contra-acção tendente a obstar aos efeitos da execução onde incumbe ao executado o ónus de alegação e de prova dos factos susceptíveis de infirmar o relevo executivo do documento dado à execução, conforme preceitua o art.º 342.º do CC, o que não se verificou;

f) - Ao executado cabia provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda;

g) – Designadamente, incumbia ao executado provar que nunca desviou ou subtraiu frangos da instalação da exequente (como alegou), assim como provar que o documento dado à execução foi assinado sob coação (como alegou), o que não logrou provar, como resulta das respostas negativas dadas aos factos controvertidos de 28.º a 44.º inclusive (este último parcial) da base instrutória e das respostas restritivas aos factos controvertidos 3.º, 20.º e 24.º;

h) - Donde resulta que a causa para o débito, considerada como fonte ou o facto gerador constitutivo da dívida, reconhecido pelo executado nos presentes autos através da declaração de divida dada à execução - desvio de frangos - existiu, contrariamente ao decidido na douta sentença ora recorrida.

i) - Considerando a matéria dada como provada na sentença recorrida nomeadamente que o executado não desviou ou subtraiu frangos das instalações na quantidade correspondente ao montante referido no título executivo nada obstava a que face a falta de elementos para fixar a quantidade do desvio de frangos, se pudesse ter recorrido ao incidente de liquidação, de acordo com o disposto nos art.ºs 661º nº2, 378.º, n.º 2 e 380.º do CPC, atenta à estrutura declarativa da oposição à execução.

j) – A resposta dada ao art.º 20.º da b. i. deve ser negativa face aos documentos juntos assinalados e aos depoimentos das testemunhas também indicadas;

l) – A sentença recorrida, violou e interpretou erradamente o disposto nos art.ºs 45.º nº 1, 46.º nº 1, alín. c), 458.º nº 1, 661.º nº 2 e 378.º nº 2 todos do CPC, assim como o disposto nos art.ºs 352.º e 358.º nº 2 e 342.º do CC, pelo que deve ser revogada, da mesma forma que tendo sido impugnada a matéria de facto no ponto supracitado, deve a mesma ser alterada.

O oponente respondeu a defender a manutenção da decisão.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir, vindo colocadas as seguintes questões:

            a) – A natureza do título executivo e a força probatória que encerra;

            b) – O título enquanto declaração unilateral de dívida e a falta de prova pelo devedor da causa subjacente;

            c) – A impugnação da resposta explicativa (restritiva) dada ao art.º 20.º da base instrutória no sentido de dever ser considerada como não provada.


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            2. Fundamentação

            a) - De facto

            Foram os seguintes os factos dados como provados pela sentença recorrida:

1. A Exequente deu à execução o documento particular de fls. 17 dos autos de execução de que os presentes são apensos, o qual se encontra assinado pelo executado e pelo, na altura, sócio - gerente da exequente (C... ) e do qual consta designadamente o seguinte: “(…) 2.º - O 2º outorgante reconhece e confessa-se devedor à 1.ª outorgante da quantia de € 250.000,00”;

2. Do mesmo documento consta, a letras manuscritas pelo executado, designadamente o seguinte: “(…) Quando puder pago o resto por desvios prestados à empresa B (...) frangos sem serem devitados. Era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate”;

3. O executado trabalhou para a exequente até ao dia 25 de Fevereiro de2008;

4. Durante os 35 anos em que o executado foi funcionário da exequente não foi o executado alvo de qualquer processo disciplinar junto da exequente, ou reprimenda por parte desta;

5. Até ao dia 25.02.2008 o executado sempre foi tido como um funcionário responsável e cumpridor no exercício das suas funções;

6. O executado exercia as suas funções na sede da exequente, na área do matadouro, nomeadamente na zona de cargas de mercadoria, sendo um dos responsáveis pelo registo das encomendas e pela sua expedição para os clientes;

7. No âmbito das suas funções profissionais o executado era um dos funcionários responsáveis por atender o telefone e registar as encomendas de mercadoria que os diversos clientes da exequente solicitavam telefonicamente;

8. Anotadas as encomendas realizadas pelos clientes, em livro de notas interno, o executado, enquanto encarregado, solicitava aos demais colegas de trabalho que procedessem à pesagem da mercadoria requerida pelos clientes, bem como que estes procedessem ao carregamento da mercadoria, já devidamente pesada, nos camiões da exequente;

9. A pesagem e carregamento da mercadoria eram realizadas por diversos funcionários da exequente;

10. A maioria das vezes, o executado limitava-se a acompanhar e a verificar tais trabalhos, não intervindo neles directamente;

11. As guias de remessa eram emitidas em duplicado;

12. O original e o duplicado eram entregues ao cuidado do motorista do camião onde fosse a mercadoria carregada;

13. O duplicado das guias era entregue aos serviços de escritórios da exequente, nomeadamente à funcionária D... , à funcionária E... e à funcionária F... , todas elas familiares dos 2 sócios gerentes da exequente, após a entrega e pelos motoristas;

14. Pesada e carregada a mercadoria e emitidas as correspondentes guias, a mercadoria era então distribuída e entregue pelos camiões da exequente junto dos clientes desta;

15. Os motoristas encarregues de proceder a tal distribuição e entrega de mercadoria eram, entre outros, o Sr. G... , o Sr. H... , o Sr. I... , sendo às vezes acompanhados por um ajudante;

16. E eram estes que conferiam com os clientes o peso e o preço da mercadoria;

17. Não era o executado que procedia à entrega das mercadorias junto dos clientes;

18. O executado não recebia ou tinha acesso a pagamentos feitos pelos clientes;

19. Nem tinha acesso a dinheiros e a quaisquer receitas da exequente;

20. O executado não tinha acesso à contabilidade da exequente;

21. O executado não desviou ou subtraiu frangos das instalações da exequente na quantidade e montante referidos no título executivo;

22. Caso o executado retirasse mercadorias do matadouro da exequente, tal, seria necessariamente constatado pelos seus demais colegas de trabalho;

23. A única relação do executado com a exequente era o vínculo laboral que os ligava;

24. O executado, no exercício das suas funções, nunca teve acesso às contas da exequente nem ao dinheiro de clientes desta;

25. No dia 26 de Julho de 2008, o executado foi interceptado pelo sócio gerente da exequente, C (...) , que lhe referiu precisar falar com ele;

26. Nessa sequência e no mesmo dia e manhã, o executado deslocou-se às instalações da exequente;

27. Onde se encontravam o sócio - gerente C (...) e a sua esposa, M... ;

28. No final da conversa referida em 27) o executado assinou o documento referido em A) dos factos assentes;

29. O executado desempenhou funções, primeiro como motorista e depois como operário fabril, auferindo cerca do salário mínimo em cheque mas, pelo menos até à morte de N... , recebia igualmente um montante em dinheiro que não era vertido no recibo de vencimento;

30. Nos últimos anos o executado construiu uma moradia sem recurso a crédito bancário no prédio inscrito na matriz predial sob o nº 670 e adquiriu dois veículos automóveis, um ligeiro de passageiros, marca Mercedes – Benz matrícula, (...) PE e um ligeiro de passageiros, marca Citroën, modelo AX, matricula (...) FZ.


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b) - De direito

Porque são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o seu objecto, vejamos a 1.ª das questões suscitadas.

De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 45.º do CPC toda a execução tem por base um título pelo qual se determina o fim e os limites da acção executiva.

Entre as espécies de títulos figuram na alín. c) do n.º 1 do art.º 46.º do CPC “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (…)”.

Foi nesta espécie que a exequente (agora massa insolvente) baseou a execução, concretamente num denominado “Acordo de Pagamento” assinado pelo sócio-gerente da exequente, P C (...) e pelo executado, cuja cláusula 1.ª refere que “o 2.º outorgante (executado) trabalhou para a 1.ª (exequente) até 25 de Fevereiro de 2008, data em que apresentou demissão”, a 2.ª que “o 2.º outorgante reconhece e confessa-se devedor à 1.ª outorgante da quantia de € 250.000,00” e cujo pagamento, de acordo com o manuscrito pelo executado, seria “entrego 20.000 Euros depositados na conta em cima descriminada até ao dia 30.7.08 e casa dos meus pais será da firma B (...) , avaliada no valor de 40.000 Euros e se não puder ser vendida no prazo de um ano entregarei o dinheiro. O carro no valor de 10.000 Euros vendido no prazo de um mês. Quando puder pago o resto por desvios prestados (ou furtados) à empresa B (...) . Frangos sem serem devitados; era o responsável pela expedição de saída do Centro de Abate”.

Trata-se, pois, de um documento particular, assinado pelo devedor e que claramente contém uma declaração confessória de dívida, no valor de € 250.000,00 feita à exequente, parte contrária, na pessoa do seu legal representante.

Ora, de acordo com o disposto no art.º 352.º do CC confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária e conforme o n.º 2 do art.º 358.º do CC a confissão extrajudicial, v. g. em documento particular, que aqui releva, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e se for feita à parte contrária, ou a quem a represente, tem força probatória plena.

Assim, a confissão do executado plasmada em tal documento tem força probatória plena da assumida dívida de € 250.000,00 para com a exequente.

E porque assim é e por imposição do n.º 4, parte final, do art.º 646.º do CPC a resposta dada ao art.º 20.º da base instrutória, ainda que confirmativa da dívida em montante que se não determinou, ter-se-á por não escrita, impertinente tendo sido, de resto, a sua formulação (art.º 659.º, n.º 3, do CPC).

A força probatória plena só cederia face à declaração de nulidade ou anulabilidade da confissão com base na falta ou vícios da vontade (art.º 359.º, n.º 1, do CC).

E, para tanto, o oponente lançou mão, no requerimento de oposição fosse da nulidade ao invocar coacção física na emissão da declaração (art.º 246.º do CC), fosse da anulabilidade decorrente da coação moral (art.º 255.º, n.ºs 1 e 2 e 256.º do CC).

Simplesmente, a respectiva matéria, foi toda ela julgada não provada (resp. dada aos art.ºs 28.º a 44.º da base instrutória) pelo que, incidindo sobre o oponente o respectivo ónus da prova (art.º 342.º, n.º 2, do CC) uma vez não cumprido, na expressão de Manuel de Andrade[1], incorrerá nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário.

A sentença recorrida procurou uma outra (e incorrecta, salvo o devido respeito) solução jurídica, acabando por enredar-se em manifesto ilogicismo e contradição na parte dispositiva.

Considerou o título executivo como uma declaração unilateral de dívida, sem indicação da respectiva causa (art.º 458.º do CC), onde se presume a existência da dívida e da sua causa, fazendo impender (e bem, nesse quadro legal) sobre o executado o ónus da prova de não ser devedor, de que não havia causa para a dívida.

Sem razão.

Por um lado, a declaração confessória assinada pelo recorrido indica a respectiva causa (desvio/subtracção de frangos) e, por outro, a resposta encontrada pelo tribunal a quo para o art.º 20.º da base instrutória (de que a apropriação dos frangos não atingiu o valor indicado, mas outro, não apurado) não provou que a dívida não tivesse causa e não fosse devida, pelo que na sua lógica não se justificaria a procedência da oposição, antes haveria que ter-se prevenido a liquidação de tal importância para com ela prosseguir a execução…

Seja como for, a solução correcta a considerar é aquela que acima se expressou, da confissão extrajudicial e da força probatória plena, que a acompanhou, da dívida assumida pelo oponente no título executivo pelo que, e prejudicadas que ficam as demais questões suscitadas, revogando-se a sentença recorrida, haverá que julgar improcedente a oposição e ordenar o prosseguimento da execução.[2]


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            3. Resumindo e concluindo

            - Não logrando o oponente em execução provar a falta ou vícios da vontade da declaração confessória extrajudicial de dívida, no documento particular que constitui o título executivo, onde foi indicada a causa da dívida (desvio ou subtracção de frangos), a oposição improcede e a execução terá de prosseguir.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgam improcedente a oposição e determinam o prosseguimento da execução.

            Custas pelo recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Francisco M. Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 196.
[2] Neste sentido v. o recente acórdão desta Relação de 29.5.12 que subscrevemos como adjunto, no Proc. 175/11.3TBNLS-A.C1.