Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3072/23.6T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: SUSPENSÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
GERENTE DE SOCIEDADE POR QUOTAS
DEVER DE LEALDADE
NÃO APRESENTAÇÃO DE CONTAS
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 64.º, 65.º, N.º 1, 251.º, N.º 1, 397.º, N.º 2, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS E 1055.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Tendo em conta que a justa causa de destituição assenta na violação dos deveres de lealdade e de cuidado, de molde a provocar a quebra de confiança no administrador ou gerente a destituir, constitui fundamento válido para a destituição de gerente de sociedade por quotas a venda – na sequência de deliberação em que aquele votou sozinho, como sócio maioritário – a uma outra sociedade, de que é também sócio maioritário, de um veículo automóvel e duas frações autónomas, pelo preço de € 14.000,00, cada uma, com violação dos deveres de zelar pelo património da sociedade e de lealdade.
II – Também a não apresentação de contas – em violação do disposto no art.º 65.º, n.º 1, do CSCom. –, cujo incumprimento é suscetível de fazer incorrer o gerente relapso em responsabilidade criminal e/ou contravencional, constitui justa causa de destituição.
Decisão Texto Integral: Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos: Paulo Correia
Catarina Gonçalves

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente na Rua ..., ... instaurou o presente processo especial de destituição de titulares de órgãos sociais, previsto no artigo 1055º, nº 1, do Código de Processo Civil, com medida cautelar de suspensão imediata, prevista no nº 2, do normativo citado contra BB, residente na Avenida ..., ..., ..., ..., ... e a sociedade A... LDA, com sede no Bairro ..., concelho e freguesia ....

Alegou para tal que o 2.º requerido não lhe tem prestado informações relevantes da vida da sociedade; alienou um veículo automóvel e duas fracções de que a 1.ª requerida era proprietária, a favor de uma outra sociedade de que é sócio maioritário, sem a aprovação do ora requerente; nem prestou contas da sociedade relativamente ao ano de 2022, nem o ora requerente foi convocado para deliberar sobe as mesmas.

*

Foi dispensada a audiência prévia dos requeridos e designada data para a inquirição das testemunhas.

*

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas, cf. consta das respectivas actas.

Após o que, foi proferida decisão de fl.s 72 a 87 v.º (aqui recorrida), na qual se procedeu ao saneamento dos autos e se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Em face do exposto, decide-se:

- decretar a suspensão do cargo de gerente exercido pelo requerido BB na sociedade comercial A... LDA e nomear, como gerente da requerida, o requerente, AA.

Custas a fixar a final, aquando da apreciação do pedido de destituição de gerente (artigo 539º, nº 2, do Código de Processo Civil, aqui devidamente aplicado).”.

Inconformado com a mesma, dela interpôs recurso o requerido BB, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 100), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. No seguimento da instauração de Ação de Destituição de Titular de Órgãos Sociais, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 1055.º e ss. do CPC, foi, no imediato e sem prévia audição do aqui Recorrente, decretada a sua imediata suspensão do cargo de gerente que vinha exercendo na sociedade comercial denominada “A..., Lda.

2. O presente recurso cuida pois do segmento decisório que determinou a suspensão imediata de funções de gerente que ao Requerido e aqui recorrente estavam cometidas na sociedade A..., LDA.

3. Reportam as presentes Alegações ao recurso interposto da decisão produzida pelo Juízo de Comércio ... – Juiz ..., que decidiu “- decretar a suspensão do cargo de gerente exercido pelo requerido BB na sociedade comercial A... LDA e nomear, como gerente da requerida, o requerente AA …”

4. Salvo, reitera-se, o devido respeito pela Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, cuja pessoa nunca fica em causa nas presentes Alegações – fica-o sim, e tão-somente, a sua decisão –, a sentença recorrida não conforma a boa solução do caso sub iudice, uma vez que faz, salvo melhor e Douta Opinião, uma incorreta aplicação dos factos (dados como provados) ao direito, considerando nessa sequência – indevidamente no entendimento do recorrente – verificados os pressupostos/requisitos que legitimam uma decisão de suspensão imediata de funções, quando, na verdade, tal não ocorre (muito menos com base na matéria de facto dada como provada).

5. Da análise e apreciação da decisão, constata-se que a mesma assentou em 2 comportamentos / atuações imputadas ao aqui Recorrente (foram as condutas – por ação e/ou por omissão – que, no entendimento do Tribunal, legitimaram a decisão por se entender que preenchia os requisitos de probabilidade séria da existência do direito (fumus boni iuris) e o fundado receito de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do direito (o periculum in mora), a saber: i) Alienação de 2 imóveis e um veículo a sociedade (B..., Lda.) da qual o requerido (e aqui recorrente) é sócio

maioritário e gerente; ii) Ausência de convocatória de Assembleia Geral da sociedade Requerida para apreciação e votação do relatório de gestão e das contas do exercício desta de 2022

6. Por via de tais condutas, o Douto Tribunal a quo concluiu (no caso da al. i)) que o recorrente desprezou os interesses da sociedade requerida em favor dos seus interesses pessoais, agindo em claro abuso de direito e que, (no caso da al. ii)) violou o dever de elaborar e assinar o relatório de gestão e as contas do exercício, bem assim apresentá-los ao órgão competente para apreciação no prazo de 3 meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual. Assim, o presente Recurso incidirá sobre o seguinte ponto: Erro no Julgamento da Matéria de Direito, por o Tribunal ter realizado errónea subsunção do direito à matéria factual apurada no caso sub iudice

7. O Recorrente, nesta sede, por razões de economia processual, dá por integralmente reproduzida toda a matéria de facto dada como provada e que consta da decisão de n.ºs 1 a 28. Na verdade, toda a factualidade relativamente à qual o Recorrente, para sustentar a sua alegação, invoque, será reportada à concreta numeração que a cada facto foi atribuída.

8. Em primeiro lugar, no que tange a este segmento (alienação de bens), o Recorrente é sócio maioritário da sociedade requerida (A...) e, também, da sociedade B..., a adquirente dos imóveis e do veículo, detendo, em cada uma delas, participação social correspondente a 70% dos respetivos capitais sociais (factos 3 e 13) e O requerido e Recorrente, desde a constituição da sociedade Requerida (2010) que exerce o cargo de gerente.

9. Da factualidade dada como provada, para além das atuações / comportamentos em discussão no presente recurso, não consta atribuído ao recorrente – enquanto gerente desde 2010 – qualquer comportamento que se possa considerar “desviante” das suas funções.

10. O facto provado em 8) – porque nele consta em “data não concretamente apurada” - não tem – salvo melhor e Douta opinião – qualquer relevância uma vez que o próprio Tribunal, em sede de fundamentação, conclui que “não é possível concluir pela violação de qualquer direito à informação”.

11. Quer alienação do veículo quer a alienação dos imóveis foi objeto de deliberação social. Acrescenta-se que – cfr. factos 9 a 11 e 21 – no tocante aos imóveis foram, inclusive, realizadas 2 deliberações sobre o mesmo tema, uma vez que a representante do sócio faltoso na Assembleia Geral de 29.08.2022 não comprovou a sua legitimidade com apresentação do original da procuração que lhe foi conferida.

12. E, contrariamente ao entendimento do Douto Tribunal, nenhuma das deliberações padece de qualquer vício. Designadamente aquele que o Tribunal assaca, à deliberação de 19.12.2022, nomeadamente por inexistir deliberação atendendo a que o sócio – alegadamente – terá votado em conflito de interesses.

13. A interpretação feita da deliberação não pode – salvo melhor e Douta opinião – colher. Com efeito, o que a sociedade deliberou – por intermédio do sócio maioritário e único que compareceu à Assembleia Geral – foi a alienação dos imóveis por um valor mínimo. Mais deliberando a nomeação do gerente para representação da sociedade na venda.

14. Não foi deliberada qualquer venda à sociedade B..., Lda.. Ao sócio-gerente, na sequência de uma deliberação tomada em Assembleia Geral de Sócios regularmente convocada, foram-lhe conferidos poderes para representar a sociedade na venda de 2 imóveis, por uma valor mínimo estabelecido / deliberado, sem que houvesse ou constasse identificado qualquer potencial adquirente.

15. Não existem quaisquer elementos nos autos que demonstrem que aquando da deliberação já era conhecido ou já se encontrava definido o comprador dos bens. Pelo contrário, o que se extrai dos autos é que a deliberação é de 19.12.2022 (facto 21) e os imóveis apenas foram alienados em 23.06.2023 (facto 22)

16. Acresce ainda que, conforme se fez constar da deliberação por parte do sócio presente e presidente – a necessidade da venda foi justificada com o facto da sociedade não ter praticamente atividade e que a manutenção das frações apenas gerava encargos – veja-se que as mesmas encontravam-se dadas em comodato ao sócio minoritário. Aqui sim – reconhece-se (se bem que não fundamenta qualquer pedido de destituição) – uma conduta não permitida pelo Código das Sociedades Comerciais, uma vez que às sociedades comerciais está vedada a prática de atos gratuitos (cfr. art.º

6.º n.º 2) – este sim em claro benefício do sócio minoritário.

17. Inexiste, pois, qualquer conflito de interesses – não há na matéria de facto nenhum elemento que o sustente – que coloque em causa a deliberação que foi tomada ou que a inquine nos termos em que o Douto Tribunal conclui.

18. Veja-se que nos casos em que as sociedades se dedicam à atividade de compra e venda de imóveis sequer é necessário proceder a qualquer deliberação de Assembleia Geral de sócios para que o gerente, livremente, possa fazer os negócios que entender (sem embargo da responsabilidade que lhe possa ser assacada pelas condutas)

19. Por outro lado, também não consta da matéria de facto dada como provada que o veículo e os imóveis não foram pagos. Ora, não se pode concluir como verificado qualquer prejuízo para a sociedade quando a mesma, mesmo tendo visto os seus bens (veículo e imóvel) alienados, recebeu a contraprestação pelos mesmos, ou seja, o competente preço.

20. Se a sociedade ficou privada de 2 imóveis e de um veículo, ganhou, por outro lado, na sua conta bancária, o valor correspondente a aquisição de cada um desses bens. Não existindo qualquer lesão ou qualquer ato / conduta lesivo sobre o património da empresa que, continuou, exatamente o mesmo.

Anteriormente possuía 2 imóveis e 1 veículo e agora – em outra rúbrica contabilística – possui exatamente o mesmo valor mas em numerário.

21. Diga-se ainda – mesmo sem conceder – que ainda que se entendesse ter existido conduta suscetível de configurar violação de deveres e/ou responsabilidade perante a sociedade, o certo é que não legitima uma suspensão de funções, pois não há qualquer risco de ser causado qualquer lesão grave ou dificilmente reparável, por – reitera-se que sem conceder – a alegada lesão, como o Tribunal (mal) conclui) já foi provocada. A providência cautelar não tem qualquer efeito prático.

22. Face ao aqui vertido e à matéria de facto dada como provada na decisão em crise, é entendimento do recorrente que inexiste qualquer fundamento para o Douto Tribunal considerar que a atuação /comportamento do gerente da sociedade (o requerido e aqui recorrente) revelou desprezo pelos interesses da sociedade, violou o dever de lealdade e/ou que lesou o património da sociedade, no que concretamente respeita à alienação do veículo e dos 2 imóveis, pelo que se impõe que, quanto a este concreto segmento, seja concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a decisão de 1.ª instância.

23. Já no que concerne à conduta (omissiva) de ausência de convocatória e subsequente aprovação de contas, o Recorrente entende que, mesmo que a mesma se verifique – reconhece-se – tal não configura só por si, desacompanhada de qualquer outra factualidade que demonstre intencionalidade por parte do recorrente ou de qualquer outra conduta – comportamento suficiente para legitimar uma decisão de suspensão imediata do cargo.

24. Não resulta da matéria de facto dada como provada a referência a qualquer outro ano onde se tenha verificado a não aprovação de contas (e a não convocatória para esse efeito). O que efetivamente consta da matéria de facto dada como provada – cfr. factos 9 e 21 – é que houve 2 convocatórias e subsequentes Assembleias gerais onde o sócio minoritário numa se fez representar por quem não veio, posteriormente, a justificar e legitimar a representação e, noutra, faltou.

25. Também não consta da matéria de facto dada como provada que o sócio maioritário tenha requerido à sociedade ou ao gerente a marcação da Assembleia Geral com vista à aprovação das contas e não consta da matéria de facto dada como provada que tenha solicitado ao Tribunal que instasse a sociedade / gerência para o fazer.

26. O Douto Tribunal a quo, salvo melhor e Douta opinião, precipitou-se na conclusão de que o gerente – por não ter convocado a Assembleia Geral para a apreciação das contas – violou grave e culposamente os seus deveres, pois não cuida de apreciar quais as razões e motivos que determinaram que tal sucedesse, o que sucederia se houve sido – dependeria do sócio minoritário, dado cumprimento ao art.º 67.º do CSC

27. O que se extrai dos autos e da matéria dada como provada é que o sócio minoritário não demonstra qualquer interesse na discussão dos destinos da sociedade – falta a Assembleias Gerais ou faz-se representar por quem, depois, não prova a sua legitimidade – não pede quaisquer informações sobre a sociedade ao gerente, não solicita ao Tribunal a abertura de inquérito face à não aprovação das contas.

28. A sociedade está constituída desde 2010, sendo que apenas as contas respeitantes ao ano de 2022 é que não foram objeto de Convocatória e de Deliberação. Não obstante o gerente é sócio maioritário da empresa e, o sócio minoritário não deu cumprimento ao previsto no art.º 67.º do CSC.

29. Não foram desencadeados os procedimentos com vista à devida aprovação – ainda que tardia – das contas, designadamente para aferir da responsabilidade – ou não – do gerente por esse facto.

30. Sendo manifestamente abusivo e excessivo – apenas porque ao fim de 13 anos de vida de uma empresa não foi feita uma convocatória e subsequente aprovação de contas – tal configura uma grave violação de deveres de gerente que sustenta e determina a sua imediata suspensão de funções.

31. Face ao aqui vertido e à matéria de facto dada como provada na decisão em crise, é entendimento do recorrente que inexiste qualquer fundamento para o Douto Tribunal considerar que a atuação / comportamento do gerente da sociedade (o requerido e aqui recorrente) constitui violação grave e culposa dos deveres de gerente, pelo que se impõe que, quanto a este concreto segmento, seja concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a decisão de 1.ª instância.

32. Por tudo, deverá pois, concedendo-se provimento ao Recurso apresentado pelo Recorrente, ser proferido Acórdão que revogue a decisão em crise e, consequentemente, a substitua por outra que mantenha o recorrente em funções (no cargo de gerente da sociedade A...), determinando ainda a não nomeação (revogando pois esse segmento decisório também) do requerente AA.

33. É pois manifesta a violação, por parte do Douto Tribunal, do disposto no 1055.º do CPC, 65.º e 67.º do CSC.

(…)

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. Doutamente suprirá, deve ser concedido provimento ao recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, substituindo-se a mesmo por outra que mantenha o recorrente em funções (no cargo de gerente da sociedade A...), determinando ainda a não nomeação (revogando pois esse segmento decisório também) do requerente AA.

Por essa forma fazendo VV. Exas. COSTUMADA JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se não se verificam os pressupostos para o recorrente ser destituído da gerência da 1.ª requerida, devendo, por isso, nela ser mantido.

 É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida:

1)- Em 01.02.2010, por deliberação, o Requerente e o 2.º Requerido constituíram a Sociedade A... Lda.

2)- A Sociedade tem por objecto social a prestação de serviços médicos, comércio de produtos de higiene, beleza e afins, alojamento mobilado para turistas e arrendamento de bens imobiliários.

3) - O capital social é de €5.000,00, distribuído do seguinte modo:

-o Requerente com uma quota no valor nominal de €100,00 e outra de €1.400,00;

- o Requerido com uma quota no valor nominal de €3.500,00.

4)- Desde a sua constituição que a gerência está atribuída ao requerido.

5) - A Sociedade, em 3.07.2019, adquiriu o prédio urbano composto pela fracção autónoma identificada com a letra “G”, correspondente ao segundo andar D do prédio, e a fracção autónoma identificada pela letra “J”, correspondente ao segundo andar G, ambas as fracções sitas em Rua ..., ..., ..., união das freguesias ..., ... e ..., concelho ..., inscritos na matriz predial da referida união de freguesias sob o artigo ...26 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...12/..., pelo preço global de €28.000,00, correspondendo €14.000,00 a cada fracção autónoma.

6)- As fracções referidas em 5) foram entregues ao requerente mediante contrato de comodato.

7) – O requerente exercia a actividade de advocacia em prática individual, nas fracções referidas em 5), onde tinha a sua morada profissional.

8)- Em data não concretamente apurada, o Requerido passou a não habilitar o Requerente com qualquer informação relativa à vida da Sociedade.

9) - Em 04.08.2022 o Requerente recebeu, via e-mail, uma convocatória de Assembleia Geral da Sociedade, para comparecer no dia 29 de Agosto de 2022 no Escritório, com vista à deliberação dos seguintes pontos:

1. Alienação do Escritório dado em comodato ao Requerente;

2. Alienação do veículo marca ..., matrícula ..-OS-.., n.º de quadro ..., propriedade da Sociedade.

10) - O Requerente, fez-se representar na assembleia por procuradora, a Exma. Sra. Dra. CC.

11) - Na assembleia geral, a procuradora votou desfavoravelmente ambos os pontos da votação.

12) - O veículo referido em 9) foi vendido à sociedade B..., Lda, com sede em Rua ..., Bairro ..., Ansião, freguesia e conselho de Ansião, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e pessoa coletiva ...91, em 06 de Outubro de 2022,

13) – A sociedade B..., Lda foi constituída em 10.01.2022, com o capital social de 3.000,00€, distribuído por duas quotas, uma com o valor nominal de €2.100,00, pertencente a BB e outra com o valor nominal de €900,00, pertencente a ....

14) – A gerência da sociedade B..., Lda está atribuída a BB.

15) - Em 21.11.2022, por e-mail, o requerente recebeu uma comunicação da sociedade requerida, relativa ao contrato de comodato, onde consta, para além do mais: “considerando que não foi convencionado prazo para a restituição das frações acima descritas e pretendendo a sociedade signatária que estas lhe sejam entregues, somos pela presente missiva, nos termos e para os efeitos do art. 1137.º do Código Civil, a solicitar a V. Exª que proceda à entrega das fracções acima descritas livres e desocupadas no prazo de 10 dias após a receção da presente comunicação”.

16) - A 1ª requerida sabe que o requerente terá promovido todas as diligências necessárias à adaptação funcional do Escritório à actividade por este exercida.

17) - A sociedade requerida, bem como o seu sócio-gerente, 2º requerido recorreram, diversas vezes aos serviços profissionais do requerente, tendo para esse efeito se dirigido ao seu domicílio profissional/ Escritório.

18) - A requerida por volta do mês de Maio de 2023 ordenou o corte da energia eléctrica no escritório.

19) - O Requerente foi designado membro da Administração de Condomínio do prédio onde se encontra instalado o escritório.

20) - Em 21.11.2022, o Requerente recebeu uma carta com o seguinte conteúdo:

“ (…) na qualidade de sócio gerente da Sociedade A... LDA, (…) vem pela presente convocar Assembleia Geral da supra citada sociedade para o que fica V. Exa., enquanto sócio e porque titular de duas quotas, uma com o valor nominal de 100,00€ (cem euros) e outra de 1.400,00€ (mil e quatrocentos euros) correspondentes a 30% do Capital Social de 5.000,00€, notificado para comparecer no dia 20 de Dezembro de 2022 pelas 10.00h nos escritórios pertencentes à sociedade sitos na Rua ..., ..., ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., dado que ambos os sócios residem na localidade de ..., assim evitando a deslocação para Ansião onde se encontra a sede, não existindo qualquer prejuízo para os sócios em que a Assembleia se realize no local acima referido.

A Ordem de Trabalhos será a seguinte:

PONTO UM: Aprovar e deliberar a alienação da fração autónoma identificada com a letra "G", correspondente ao segundo andar D, para escritório, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado em Rua ..., ..., ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da referida união de freguesias sob o artigo ...26 que provém do artigo ...41 da extinta freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...12/..., afeto ao regime da propriedade horizontal pela inscrição correspondente à AP... de vinte de abril de 1983, com aquisição aí registada a favor da sociedade, com a autorização de utilização nº ...5 de 18/04/1983, pelo valor mínimo de 14.000€ bem como sobre a identificação do gerente que representará a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda.

PONTO DOIS: Aprovar e deliberar a alienação da fração autónoma identificada com a letra "J", correspondente ao segundo andar G, para escritório, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado em Rua ..., ..., ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da referida união de freguesias sob o artigo ...26 que provém do artigo ...41 da pela inscrição correspondente à AP... de vinte de abril de 1983, com aquisição aí registada a favor da sociedade, com a autorização de utilização nº ...5 de 18/04/1983, pelo valor mínimo de 14.000€ bem como sobre a identificação do gerente que representará a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda.

Os sócios poderão participar no debate em Assembleia Geral e exercer o seu direito de voto nos termos da Lei sobre os supra referidos Pontos da Ordem de Trabalhos”.

21)- Consta da acta nº 20 da sociedade A... Lda, o seguinte:

“Pelas dez horas do dia dezanove de Dezembro do ano de dois mil e vinte e dois, reuniu, nos termos da convocatória regularmente efectuada, num dos imóveis da propriedade da empresa sito em Rua ..., ..., ...: ...: ... Freguesia: ..., ... e ... ... ... a Assembleia-Geral da sociedade A... LDA, sociedade comercial por quotas com o Capital Social de 5.000,00€ (cinco mil euros), pessoa coletiva e matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único ...14, com sede social em Bairro ..., Distrito: ...: Ansião Freguesia: Ansião, 3240 240 Ansião, tendo a mesma sido convocada nos termos do art. 248° do Código de Sociedades Comerciais.

--- Esteve presente o seguintes sócio, estando, dessa forma, representada a maioria do capital social da empresa:---

- - - BB, NIF ...28, solteiro, maior, titular de uma quota com o valor nominal de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros):

Em acto prévio ao início da reunião, foi referido pelo sócio BB que a presente Assembleia foi realizada no hall de entrada para o imóvel da sociedade acima identificado e também devidamente identificado na convocatória, em espaço reservado, atendendo a que o sócio AA, NIF ...52, não compareceu e não disponibilizou, por ser ele o detentor exclusivo, a chaves para aceder ao interior da fracção. Mais referiu que assinalou a sua presença batendo à porta que acede à fracção sem obter qualquer resposta.---

Por se encontrar representada a maioria do capital social, o presente decidiu deliberar sobre os pontos da convocatória da presenta assembleia geral, que são os seguintes:

PONTO UM: Aprovar e deliberar a alienação da fração autónoma identificada com a letra "G", (…) pelo valor mínimo de 14.000€ bem como sobre a identificação do gerente que representará a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda.

- PONTO DOIS: Aprovar e deliberar a alienação da fração autónoma identificada com a letra "J (…) pelo valor mínimo 14.000€, bem como sobre a identificação do gerente que representará a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda----------

Estando em condições de deliberar validamente, assumiu a presidência o sócio gerente BB que deu início aos trabalhos, passando a ser analisados e discutidos os pontos da ordem de trabalhos.

---Ponto UM- Aberto o debate sobre a matéria constante do referido ponto um da ordem de trabalhos, o sócio gerente BB propôs a venda da fração autónoma identificada com a letra "G", (….) considerando que a sociedade, neste momento, não tem praticamente actividade e que a manutenção da fracção apenas gera os respectivos encargos. Mais sugere que o valor de venda seja fixado no mínimo de 14.000€ entendendo que deve ser este, enquanto Sócio gerente, a representar a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda.

Posto à discussão, o Ponto UM da Ordem de Trabalhos mereceu o voto favorável do sócio BB, tendo sido aprovado por maioria correspondente a 70% do capital social (percentagem de participação social detida pelo sócio presente que votou favoravelmente o assunto da ordem do dia), a venda da fração autónoma identificada com a letra "G (…) fixando-se o montante mínimo em 14.000€ nomeando-se o sócio gerente BB, (…) para representar a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda. –

- --- Ponto DOIS- Aberto o debate sobre a matéria constante do referido ponto dois da ordem de trabalhos, o sócio gerente BB referiu que entende ser também de vender a fração autónoma identificada com a letra "J", (….) considerando que a sociedade, neste momento, não tem praticamente actividade e que a manutenção da fracção apenas gera os respectivos encargos. Mais sugere que o valor de venda seja fixado no mínimo de 14.000€, entendendo que deve ser este, enquanto sócio gerente a representar a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda.

------- Posto à discussão, o Ponto DOIS da Ordem de Trabalhos mereceu o voto favorável do sócio BB, tendo sido aprovado por maioria correspondente a 70% do capital social (percentagem da participação social detida pelo sócio presente que votou favoravelmente o assunto da ordem do dia), (…) fixando-se o montante mínimo em 14.000€, nomeando-se o sócio gerente BB, (…) para representar a sociedade na outorga da Escritura Pública de Compra e Venda ou Documento Particular Autenticado e, se necessário, no contrato promessa de compra e venda. -

Referiu ainda o sócio presente que as deliberações ora tomadas já haviam sido objecto de discussão e deliberação em Assembleia Geral realizada em vinte e nove de Agosto de 2022, contudo o sócio AA fez-se naquela representar por mandatária que exibiu fotocópia de procuração com poderes para o efeito, comprometendo-se a entregar o original. Contudo, e apesar de lhe ter sido permitida a presença e participação, nunca até esta data foi apresentado o referido documento original, o que justifica a presente Assembleia e a nova submissão aos sócios destas deliberações(…)”.

22) – Por escritura de compra e venda, outorgada no dia 23.06.2023, a sociedade requerida, representada pelo requerido, vendeu à sociedade B..., Lda as fracções referidas em 5), pelo preço global de €28.000,00, correspondendo €14.000,00, a cada fracção autónoma.

23) - A fracção autónoma identificada pela letra G, em 23.06.2023, tinha o valor patrimonial de €14.789,45 e a fracção autónoma identificada pela letra J o valor de €15.779,62.

24) – As contas relativas ao exercício do ano de 2022 foram depositadas pela contabilista da sociedade requerida na Conservatória do Registo Comercial no dia 19.07.2023 por o 2º requerido lhe ter transmitido que as contas tinham sido aprovadas.

25) - No entanto, como o 2º requerido nunca entregou a acta da assembleia, a contabilista cancelou o depósito das contas na Conservatória do Registo Comercial no dia 29.08.2023.

26) – O Requerente não foi convocado para a assembleia geral da requerida com vista à aprovação de contas de exercício do ano de 2022.

27) - A empresa de contabilidade não forneceu ao requerente os elementos contabilísticos da sociedade requerida, por este solicitados, por a ordem dos contabilistas lhe ter referido que apenas podia fornecer essa informação ao gerente da requerida.

28) - A empresa de contabilidade não forneceu ao requerente a acta de aprovação das contas do exercício de 2022 por não a ter na sua posse.

*

Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a presente decisão, nomeadamente que:

A)- As fracções referidas em 5) dos factos provados tenham sido adquiridas com o único intuito de serem entregues por via de contrato de comodato ao requerente para este ali exercer a actividade de advocacia em prática individual.

b) – o requerido tenha ordenado o cancelamento do cartão multibanco atribuído ao Requerente, junto do Banco 1... S.A. com o n.º ...54, com validade até 09/2026.

c) - Com este comportamento, o requerido tenha impedido o Requerente de estar informado acerca dos movimentos bancários, créditos/débitos, ocorridos na conta bancária da Sociedade, domiciliada na Instituição Bancária referida no artigo anterior.

d) – o requerente, através de mandatária, tenha solicitado ao requerido a acta correspondente às deliberações referidas em 9) dos factos provados.

e) - até ao presente momento, o requerido, na sequência da interpelação referida em d), não tenha promovido pelo envio da acta.

f) o requerido tenha recusado o envio da acta e não a tenha colocado no livro de actas na sede social da Sociedade.

g) o Requerente tenha tomado conhecimento da alienação do veículo automóvel apenas em 11.11.2022, através da consulta da Certidão Permanente Automóvel.

h) –o requerente tenha interpelado o requerido sobre o registo definitivo do veiculo, o preço pelo qual o bem foi alienado e o destino dado ao proveito resultante da venda e este não o informou.

i) – O requerente, através da mandatária, tenha respondido à carta referida em 15) dos factos provados, fundamentando os motivos pelos quais não procederia à entrega do Escritório (comunicação entre advogados).

j) – o 2º Requerido para além do referido em 18) e do email referido em 15) dos factos provados tenha praticado qualquer outro acto para impedir o requerente de usufruir do Escritório, obrigando-o a rejeitar clientes, deixando de poder laborar em qualquer regime, com a inerente perda de rendimentos.

l) – a sociedade vendedora, na venda referida em 22) dos factos provados, não tenha querido vender nem a sociedade compradora comprar, tendo a venda sido efectuada apenas com o intuito de subtrair as fracções ao património da Sociedade.

m) - A sociedade B... Lda tenha sido constituída para subtrair o património da 1ª Requerida.

n) – o requerente tenha solicitado ao requerido, através da sua mandatária, qualquer documento contabilístico relativo ao ano de 2022;

o) – o requerente tenha solicitado ao requerido o livro de actas e elementos contabilísticos desde o ano 2019.

p)- que o requerente tenha solicitado ao requerido a acta de aprovação das contas do exercício de 2022.

Se não se verificam os pressupostos para o recorrente ser destituído da gerência da 1.ª requerida, devendo, por isso, nela ser mantido.

Como resulta do relatório que antecede e se refere na sentença recorrida, como fundamento para a destituição do 2.º requerido da administração da A..., o requerente alega factos que, na sua óptica, consubstanciam a violação, por parte do 2.º requerido, de deveres de cuidado e de lealdade, assente, no que ao presente recurso interessa, no facto de este ter procedido, apenas com o seu voto, à venda do veículo e das identificadas fracções a uma outra sociedade de que é sócio maioritário e por não ter apresentado o relatório de gestão e das contas, relativo ao ano de 2022, com o que delapidou o património da 1.ª requerida e violou o dever de apresentação das ditas contas.

Contrapõe o recorrido, que das aludidas vendas não resulta qualquer prejuízo para a 1.ª requerida, porquanto entrou no respectivo património o contravalor resultante de tais vendas, tendo o 2.º requerido sido autorizado a proceder às mesmas e sem que, na deliberação já constasse a identificação do comprador dos bens, que só vieram a ser alienados cerca de 6 meses depois.

Pelo que e conjugado com o facto de tais fracções estarem dadas em comodato ao requerente, não configura qualquer conflito de interesses entre o ora recorrente e a requerida.

Quanto à não apresentação das contas, reconhecendo que, efectivamente, não as apresentou, alega que isso só se verificou relativamente ao ano de 2020 e sem que daí resulte justa causa de destituição, até porque ao requerente, nos termos do disposto no artigo 67.º, do CSC, era permitido que requeresse a convocação de uma assembleia geral, com tal finalidade ou que se procedesse a inquérito judicial, o que não fez.

Na sentença recorrida, considerou-se que, no que se refere às referidas alienações, o 2.º requerido violou o dever de lealdade que tinha para com a 1.ª requerida, lesando o património desta, com base na seguinte argumentação:

- existência de uma situação de conflito entre o 2.º requerido e a 1.ª requerida, uma vez que alienou o património desta a favor de uma sociedade e que é, igualmente, o sócio maioritário;

- o que acarreta que o respectivo voto é nulo, nos termos do artigo 251.º, 1, g), do CSC e anulável com fundamento no disposto no seu artigo 58.º, 1, a);

- no que se refere à não apresentação de contas, omitiu a prática do dever de as apresentar, tal como o exige o disposto no artigo 65.º, CSC, o que integra um dos casos de justa causa de destituição de gerente.

Importa, assim, averiguar se existe justa causa para a destituição do 2.º requerido como gerente da A..., L.da, por violação dos citados deveres de lealdade e de cuidado que se lhe impunham.

Como decorre do disposto nos artigos 257.º, n.º 1 e 403.º, n.os 1 e 3, do CSC, vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre destituição de gerentes e administradores. Exigindo-se, para tal, que se verifique a existência de “justa causa” de destituição.

Uma vez que no artigo 403.º, n.º 3 do CSC, se faz depender o pedido de suspensão/destituição de administrador da existência de justa causa, importa analisar o que se entende, para os efeitos pretendidos, por “justa causa”.

Refere Coutinho de Abreu, in CSC Em Comentário, Vol. VI, pág. 384, “que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do administrador, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o administrador violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.”.

E que se consubstancia na violação de deveres legais específicos; deveres (legais gerais) de cuidado; deveres de lealdade; incapacidade para o exercício das funções; quer situações referíveis aos gerentes enquanto tais, v.g., desentendimentos frequentes entre gerentes que comprometam a boa marcha dos negócios sociais, bem como o aproveitamento em benefício próprio de oportunidades de negócio ou de bens da sociedade e a perda, intencional ou por desleixo, de condições necessárias ou convenientes para a vida da sociedade (cf. mesmo autor, in Curso de Direito Comercial, Vol. II, 5.ª Edição, a pág.s 577/8 e 581).

Destacando (pág. 385 do CSC Em Comentário) como violação do dever de lealdade a violação do dever de aproveitar as oportunidades de negócio da sociedade em benefício dela, não em seu próprio benefício ou no de outros sujeitos, o dever de não utilizarem em benefício próprio ou alheio informações ou bens da sociedade bem como o dever de não abusarem do seu estatuto ou posição de administradores.

Raúl Ventura, in Sociedade por Quotas, Almedina, 1991, Vol. III, a pág. 91 e seg.s, aponta como constituindo justa causa “a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções”.

Acrescentando que “A causa é justa quando for considerada bastante para produzir esse efeito. E pode mesmo suceder que o efeito específico pretendido pela invocação da justa causa influa na apreciação desta, o mesmo facto justificando certo efeito e não outro.”

Adiantando, também, como exemplo de facto que integra a justa causa, seguindo a jurisprudência alemã. “a discórdia permanente entre os gerentes que se reflicta na boa marcha dos negócios sociais” – pág. 93 da ob. cit..

A pág.s 88/89, aponta, ainda, como circunstâncias justificativas de destituição “a falta de apresentação do balanço e contas no tempo e formas legais; o prejuízo intencional causado a sócios não gerentes; a recusa de informações que legalmente devessem ser prestadas; o aproveitamento em seu benefício de vantagens que devessem pertencer a todos os sócios; a utilização do cargo para satisfação de interesses pessoais em conflito com os interesses da sociedade ou pessoais de outros sócios”.

Nos dizeres de Paulo Olavo Cunha, Direito Das Sociedades Comerciais, Almedina, 2016, 6.ª Edição, a pág.s 751/2, a lei enuncia que a justa causa ocorre mediante a violação grave dos deveres do gerente, a incapacidade para o exercício normal das funções ou o exercício não autorizado de uma actividade concorrente, que compromete e desaconselha a manutenção do vínculo e, relativamente ao exercício de uma actividade concorrente, tal constitui causa de justificação ainda que se não prove o prejuízo, sendo, por isso, suficiente que a sociedade demonstre que o gestor exerce uma actividade (de administração) que recaia sobre um objecto análogo ao seu.

Defendendo, ainda, que “A violação grave deve configurar «uma situação que torne inexigível à sociedade a manutenção da pessoa em causa como gerente»”.

De colher, também, os ensinamentos de Batista Machado, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, a pág.s 193/4, que ali refere:

“O conceito de «justa causa» é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto. Será uma «justa causa» ou um «fundamento importante» qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A «justa causa» representará em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um «incumprimento»): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual.”.

Relativamente à qualificação/definição dos deveres que impendem sobre os gerentes ou administradores das sociedades, rege o disposto no artigo 64.º do CSC, de acordo com o qual, cf. seu n.º 1:

“Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:

a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses em jogo de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, clientes e credores.”.

Como acima já referimos, importa, in casu, apreciar o conteúdo dos deveres de lealdade, a fim de analisar a conduta do 2.º requerido e se a mesma configura ou não, a violação de tais deveres.

Como referem Ricardo Costa/Gabriela Figueiredo Dias, in CSC Em Comentário, já citado, Vol. I, pág.s 742/3, como corolário deste dever de lealdade “os administradores no exercício das suas funções, devem considerar e intentar em exclusivo o interesse da sociedade, com a correspectiva obrigação de omitirem comportamentos que visem a realização de outros interesses próprios e/ou alheios. Conduta desleal é aquela que promove ou potencia, de forma directa ou indirecta, situações de benefício ou proveito próprio dos administradores (…), em prejuízo ou sem consideração do conjunto dos interesses diversos atinentes à sociedade, neles englobando-se desde logo os interesses comuns de sócios enquanto tais, e também os de trabalhadores e (…) demais stakeholders relacionados com a sociedade”.

Acrescentando que tais deveres não se reconduzem apenas ao princípio geral da boa fé, mas que “Antes se pode configurar a já vista relação fiduciária – e a confiança especial que lhe subjaz – que se estabelece entre a sociedade e o administrador como o fundamento adequado: gera o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade, enquanto instrumento que esta é para a consecução desse fim e a correspondente satisfação do interesse social”.

Referindo, a pág.s 746/7, que um administrador “criterioso e ordenado”, perante uma “oportunidade de negócio”, “deve informar-se sobre a existência de interesse objectivo e efectivo da sociedade nela ou se a sociedade já está envolvida em negociações para a conclusão do negócio respectivo.

(…)

o dever de lealdade não admite ponderações, enquanto não está disponível para fragmentações derivadas de escolhas do administrador, entre o “interesse da sociedade” e o interesse próprio e/ou de terceiros – aqui é um dever absoluto.

(…)

o administrador “criterioso e ordenado” da sociedade é aquele que a gere para o fim correspondente à maximização do interesse social e à concordância possível com os interesses do stakeholders (particularmente, credores, trabalhadores, clientes e outros especialmente interessados …)”.

A nível jurisprudencial, têm-se seguido os mesmos critérios, como resulta, entre outros dos Acórdãos do STJ, de 30 de Maio de 2017, Processo n.º 4891/11.1TBSTS.P1.S1 (e no qual se cita, em abono do ali decidido, inúmera jurisprudência); de 30 de Setembro de 2014, Processo n.º 1195/08.0TYLSB.L1.S1 e de 26 de Fevereiro de 2019, Processo n.º 219/13.4YLSB.L2.S3, todos disponíveis no respectivo sítio do itij.

No primeiro dos Arestos ora citados, refere-se que:

“Em suma, pode dizer-se que o conceito de justa causa, para este efeito de substituição de gerente, deve ser encarado pelo prisma da protecção da confiança e com a dose de maleabilidade ou plasticidade que a lei concede na sua aplicação, perante as concretas circunstâncias de cada caso: verifica-se a justa causa para a destituição de gerente quando, dos factos provados, se retire a prática por este de actos que impossibilitem a manutenção da relação contratual de gerência, por quebrarem gravemente a relação de confiança que o exercício do inerente cargo supõe, ou que, segundo a boa-fé, tornam inexigível à sociedade o prosseguimento do seu exercício.

Existe justa causa para a destituição de gerente se não for justo exigir que a sociedade mantenha o contrato vinculante - «A “justa causa” preconizada no n.º 6 do artigo 257.º CSC pode definir-se como toda a ação praticada pelo gerente que merece a abominação generalizada dos demais associados e que, devido à reprovabilidade individual daquela sua conduta, faz desaparecer a habitual segurança e boa-fé que antes e até aí existia, deste modo tornando impraticável a prossecução desta habitual ligação funcional e, inexoravelmente, reclamada por uma fortalecida administração da sociedade»”.

Volvendo ao caso concreto, vejamos, então cada um de per si os fundamentos invocados para a destituição da gerência do 2.º requerido, tendo em vista, como já referido, que a justa causa de destituição assenta na violação dos deveres de lealdade e de cuidado que acarretam a quebra de confiança no administrador ou gerente a destituir.

Ora, como resulta dos itens 12.º, 13.º, 21.º e 22.º, o 2.º requerido, actuando na qualidade de gerente da ora 1.ª requerida, na sequência da deliberação referida em 21.º, vendeu a uma outra sociedade de que é, igualmente, sócio maioritário, o veículo identificado em 9.º e as fracções identificadas em 5.º, pelo preço de 14.000,00 €, cada uma.

Como acima já referido, dos deveres de zelo e diligência, que recaem sobre o gerente de uma sociedade, sem sombra de dúvidas, resulta o dever de zelar pelo património da sociedade, o que não se verifica no caso em apreço.

Desde logo, não colhe o facto de o VPT, ser um pouco superior ao valor da venda (cf. item 23.º). Efectivamente, este, só por si, não é determinante para a fixação do valor da venda.

Para mais se se pensar que a mesma foi consumada em 23 de Junho de 2023, numa altura em que, notoriamente, o preço dos imóveis estava inflacionado.

Por outro lado, não releva o facto de na deliberação não se indicar o comprador.

O facto é que se deliberou que era o ora recorrente, na qualidade de sócio da vendedora, que representava a sociedade na venda, fixando-se o preço mínimo, que veio a corresponder ao declarado na escritura.

O facto de, logo na deliberação não se indicar o comprador, não tem qualquer relevância, sendo de notar, saliente-se, que o 2.º requerido ficou com “carta branca” para negociar e veio a vender tais bens a uma sociedade de que é sócio maioritário.

Nos termos do disposto no artigo 251.º, n.º 1, do CSC, o sócio não pode votar por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade, exemplificando-se nas várias alíneas do mesmo, situações em que se verifica tal conflito de interesses, de que se realça o disposto na al. g): “Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade”.

A venda de bens não faz parte do contrato da 1.ª requerida (cf. item 2.º).

Como refere Coutinho de Abreu, CSC Em Comentário, 4, pág. 69 “Deve entender-se por relação estranha ao contrato de sociedade a relação jurídica alheia à socialidade e/ou organicidade societária, isto é, em que o sócio participa mas não enquanto tal (não enquanto titular de participação social) nem como titular da gerência ou do órgão de fiscalização.

Assim, por exemplo, em deliberação sobre a compra e venda de prédio a celebrar entre a sociedade e um sócio, este não pode votar por conflito de interesses”.

O que deve ser conjugado com o disposto no artigo 397.º, n.º 2, do CSC, que sanciona com a nulidade os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por interposta pessoa, a não ser que nas demais condições ali previstas.

Proibição que, seguindo, mais uma vez, autor e ob. cit., 6, pág.s 343/4 “… compreende não apenas contratos celebrados diretamente entre a sociedade e administrador mas também os contratos em que o administrador participa “por interposta pessoa” … mas ainda outros sujeitos, singulares ou coletivos, próximos do administrador, em suma todos os sujeitos que ele pode influenciar diretamente (v.g. uma sociedade de que o administrador é sócio maioritário)”.

Por outro lado, tais vendas não podem ser classificadas como “negócios livres”, a que se refere o n.º 5 do artigo 397.º CSC – cf. Coutinho de Abreu, ob. ora cit., pág.s 345/6:

“Um negócio está “compreendido no próprio comércio da sociedade” quando seja ato da espécie daqueles em que tipicamente se traduz a actividade que constitui o objecto da sociedade (…).

E nenhuma “vantagem especial” o negócio proporciona ao administrador quando ele é celebrado em condições idênticas às aplicáveis a qualquer terceiro que celebra com a sociedade negócio da mesma espécie, sem, portanto, qualquer cláusula intuitu personae”.

No caso em apreço, o ora recorrente, aproveitando o facto de ser sócio maioritário da 1.ª requerida, votou, sozinho, (quando isso lhe estava vedado) pela realização das vendas dos referidos bens, vendendo-os a uma outra sociedade de que, também, é sócio maioritário.

Violando, assim, os deveres de zelo e lealdade a que estava adstrito para com a ora 1.ª requerida.

Também, no que concerne à não apresentação das contas, como acima já referido, tal consubstancia a violação do disposto no artigo 65.º, n.º 1, do CSC que, como acima já referido, constitui justa causa de destituição de gerente.

E nem a tal obsta o facto de o sócio minoritário não ter requerido a realização do inquérito judicial ou requerer judicialmente a realização de assembleia com tal propósito, nos termos do disposto no artigo 67.º, do CSC.

Desde logo, porque, tal constitui uma faculdade e não uma obrigação de um dos sócios, depois porque, como se refere na decisão recorrida o incumprimento da obrigação de prestação de contas é susceptível de fazer incorrer o gerente relapso em responsabilidade criminal e/ou contravencional, cf. artigos 515.º, 1 e 528.º, 1, CSC, o que, reitera-se, por si só, constitui justa causa de destituição de gerente.

Assim, é ajustada a decisão recorrida, em face das condutas do recorrente, que a lei sanciona com a destituição por justa causa, a qual, por isso, é de manter.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas, pelo recorrente.

Coimbra, 20 de Fevereiro de 2024.