Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4416/17.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: BALDIOS
ACTO DE APROPRIAÇÃO
DEFESA DA POSSE
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.204, 1276, 1279 CC, LEI Nº 68/93 DE 4/9, LEI Nº 75/2017 DE 17/8
Sumário: 1.- O corte de árvores não se traduz num acto de apropriação ou apossamento de terreno baldio ou de parte deste, configurando, quando não autorizado, um acto de violação da posse ou esbulho.

2. - Os compartes não têm legitimidade para a acção de defesa da posse do baldio, a qual está legalmente deferida apenas ao Ministério Público ou a órgãos ou entidades a quem sejam conferidos os poderes de administração do baldio.

Decisão Texto Integral:









            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A (…), J (…), M (…), E (…) e H (…) , intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra H (…) e A (…), já todos identificados nos autos, alegando, em suma, que no limite da povoação de x (...) , y (...) , z (...) , onde residem, existem terrenos baldios, um dos quais o denominado “ K (...) ”; que a Assembleia de Compartes de x (...) levou a cabo em arrematação pública a venda de dois lotes de pinheiros deste prédio, alienando-os a dois negociantes de madeira, que pagaram o valor da venda; que os RR., comerciantes de madeira, assistiram à arrematação, e deslocaram-se ao prédio baldio, cortando e fazendo suas as árvores aí existentes, que venderam, fazendo seu o preço, e destruindo árvores novas que aí cresciam – frustrando assim a venda em hasta pública da madeira.

Mais alegam que a madeira cortada pelos RR. tem o valor de € 200.000,00, e as destruídas o valor de € 60.000,00.

Invocam os AA. o art. 4º da Lei n.º 68/93 para defenderem a nulidade dos atos praticados pelos RR.

Com estes fundamentos, terminam pedindo a condenação dos RR.:

a) A reconhecerem que os prédios “ W (...) ” e “ K (...) ” são baldios, e são possuídos e geridos pela comunidade de vizinhos/compartes da povoação de x (...) , de que os AA. fazem parte;

Devendo abster-se de, por qualquer forma, de perturbarem o uso ou utilização dos baldios e de neles praticarem qualquer ato ou sobre eles fazerem negócio, à revelia e sem autorização da comunidade de vizinhos de x (...) ;

b) A restituírem/pagarem à comunidade de vizinhos/compartes de x (...) , à qual pertence o baldio do “ K (...) ”, a quantia de € 260.000,00 que perceberam da venda da madeira ali cortada, sem qualquer autorização e contra a vontade da mesma comunidade, a que, o baldio pertence, e bem assim da destruição ou corte das pequenas árvores que cresciam, para lá de se absterem de ali praticarem outro qualquer ato, valor esse acrescido de juros legais vincendos a partir da citação até integral pagamento.

Citados os RR., apresentaram contestação, alegando que o diploma invocado pelos AA. não é aplicável aos autos, por ter sido revogado por lei posterior; que o tribunal não pode reconhecer a qualidade de compartes dos AA., mas apenas a Assembleia de Compartes; e a ilegitimidade activa dos AA., por não estar em causa nos autos qualquer ato ou negócio jurídico de apropriação ou apossamento do baldio, mas apenas um negócio de venda de madeira.

Mais impugnam a factualidade alegada, negando ter cortado e feito sua madeira integrada no baldio em causa nos autos, alegando que o corte de madeira que levaram a efeito foi por ordem e no interesse da sua entidade patronal, e em prédio distinto do baldio.

Terminam pedindo a sua absolvição da instância, na procedência das invocadas exceções, ou, caso assim se não entenda, pela improcedência da ação, e sua absolvição do pedido.

Responderam os AA., em cumprimento do contraditório, defendendo a aplicação aos autos da Lei 68/93, em vigor à data dos factos, embora a nova lei mantenha a disciplina jurídica anterior. Respondendo à invocada ilegitimidade ativa, alegam que os atos praticados pelos RR. resultam numa apropriação do prédio baldio, e que estes subtraíram ao domínio e posse da comunidade o prédio, ao cortarem um número elevado de árvores no mesmo – sendo os AA. compartes parte legítima para a presente ação.

Defendem ainda a legitimidade passiva dos RR., sócios da sociedade comercial para a qual trabalham, requerendo a final a intervenção principal provocada da “H (…)Lda.”

Contestaram os RR. a intervenção peticionada.

Convidados a comprovarem a sua qualidade de compartes dos baldios em causa nos autos, e convidados a esclarecer se se encontram constituídos os órgãos de administração do baldio, a fls. 93, responderam os AA. afirmativamente e, para assegurarem a sua legitimidade ativa, requereram a intervenção provocada do Conselho Diretivo dos Compartes dos Baldios de x (...) .

Após oposição dos RR., foi deferida a requerida intervenção provocada da sociedade “H (…), Lda.”, e indeferida a intervenção principal provocada do “Conselho Diretivo dos Baldios de x (...) ”, a fls. 102-103.

Teve lugar audiência prévia, na qual (cf. acta de fl.s 127 e 128) foram os AA., além do mais, convidados a juntar nova petição inicial onde concretizassem os factos alegados inicialmente, tendo os mesmos requerido o prazo de 10 dias para juntarem petição inicial aperfeiçoada – o que lhes foi concedido.

Nesse prazo, os AA. nada disseram, não tendo junto qualquer articulado.

Efectivamente, como resulta do despacho de fl.s 145, terá sido o Conselho Directivo dos Compartes de x (...) , que veio juntar procuração a favor do Ex.mo Mandatário subscritor da p.i. e apresentar articulado em que respondeu ao despacho ao convite de aperfeiçoamento proferido na audiência prévia.

Ali se consignando que “podendo tratar-se de manifesto lapso”, se ordenou a notificação do subscritor para que esclarecesse o que tivesse por conveniente.

A que se seguiu a prolação do despacho de fl.s 147, datado de 21 de Janeiro de 2019, sobre o qual não incidiu qualquer recurso ou reclamação, que tem o seguinte teor:

“Não sendo o requerente parte na acção, ordeno o desentranhamento do requerimento junto pelo Conselho Directivo dos Compartes de x (...) a 8.11.2018, ficando nos autos os documentos com os mesmos juntos, por ser admissível a sua junção por terceiro”.

Após o que foi proferida a decisão de fl.s 148 a 151 (aqui recorrida), que julgou procedente a invocada excepção de ilegitimidade dos autores, absolvendo os réus da instância, ficando as custas a cargo dos autores.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso, os autores, A (…) e outros, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 179), apresentando as seguintes conclusões:

A- A d. sentença proferida pelo Tribunal “ a quo” enferma de duas causas diversas de nulidade (arts. 608º,2 CPC), esta que expressamente se invoca:

Uma - O Tribunal não se pronunciou sobre a nova p.i. que foi entregue em prazo e acompanhada de dois documentos fundamentais, porquanto “não a viu...”; era absolutamente essencial à decisão o ter tido em linha de conta o conteúdo da nova petição (art. 615º,1, d) CPC)

Duas: - A evidente contradição entre os fundamentos da decisão e esta, na medida em que, decide por um lado a ilegitimidade activa dos AA. no pedido de indemnização, sem se referir à legitimidade activa destes para peticionar a declaração de nulidade do acto translativo da propriedade ou reivindicar a posse a favor da comunidade... o que eles fizeram afinal e sobre o que o Julgador nada decidiu;

B- Ao declarar a ilegitimidade activa dos autores, “tout court”,o Julgador ignorou que deveria decidir igualmente sobre a sua (deles, autores) legitimidade activa (precisamente por serem compartes) para reivindicarem como reivindicaram dos RR. a posse e a propriedade comunitária do baldio “ K (...) ”, até porque considerou expressamente assistir-lhes, nos termos do nº 2 do art. 4º direito de reivindicar a posse a favor da comunidade, como a lei substantiva também concede (art. 1286º,1 CC)

C- Os RR. ao abaterem as árvores (pinheiros, carvalhos, eucaliptos, sobreiros, etc..) no baldio “ K (...) ”, árvores que se achavam materialmente ligadas ao solo (bens imóveis, art. 204º,c) CC) e que eram parte integrante do mesmo baldio,

D- Ao destruírem a vegetação envolvente (as árvores em crescimento que ficaram esmagadas sob a ramagem e os troncos das árvores adultas abatidas),

E- Transportando-as (as árvores em rolaria) no seu próprio veículo para venda onerosa e recebendo o preço,

F- Tudo à revelia e contra a vontade legitima dos compartes,

G- Consubstancia uma perda de rentabilidade que ciclicamente trás ao proprietário (entenda-se, à comunidade de vizinhos) e

H- Traduz uma usurpação, uma apropriação ou apossamento, ilícitos e indevidos, de uma parte do prédio “ K (...) ”, precisamente da parte integrante deste e que é composta do e pelo seu povoamento florestal que ora não existe; uma ofensa clara à posse comunitária!

I- Tudo isto foi alegado e invocado como se referiu e documentou supra.

J- As árvores não são frutos nem na Lei ( arts. 204º,c) e 212º CC) e nem no seu significado e uso correntes pelo que o Tribunal andou mal ao descaracterizar os actos de apossamento ditos.

L- Os RR. de forma alguma se limitaram a carregar e a fazer sua madeira que existisse, antes da sua entrada no “ K (...) ”; a madeira por eles transportada fizeram-na eles da rolaria das árvores que iam abatendo.

M- Os autores referenciaram e indicaram precisamente as datas de inicio e duração do abate das árvores pelos RR.

N- Os autores são vizinhos/compartes dos baldios da povoação de x (...) , onde nasceram, vivem e trabalham; onde elegem e são eleitos em termos de cidadania e dos órgãos de gestão comunitária;

O- Os RR. reconhecem, até por não se oporem, que o “ K (...) é baldio;

P- O prédio “COVÃO”, bem distinto e demarcado do baldio, cujas árvores os RR. pretensamente adquiriram – o dono não vendeu, não assinou e , ausente no Luxemburgo nem sequer negociou ou recebeu o preço – não tinham ainda valor comercial e a data aposta no “recibo”foi de três meses mais tarde que o corte por eles (RR.) levado a cabo no “ K (...)

Q- O prédio “ K (...) ”, sendo como é baldio sempre (mormente após a devolução dos baldios às comunidades locais em 19 de Janeiro de 1976) esteve sob a gestão e administração dos vizinhos da povoação de x (...) , eles que se vêm regularmente organizando em órgãos próprios para o efeito.

R- Os autores (compartes), individual ou colectivamente, assumem a gestão e administração dos ditos baldios.

S- Os autores/compartes gozam de isenção do pagamento de custas processuais nas acções que envolvam, directa ou indirectamente, baldios – art. 16º, 5 da Lei 75/2017

T- O Julgador omitiu essa isenção que se impunha.

TERMOS EM QUE

E nos melhores de direito, P. e R. a V. Exa. se dignem, na procedência do presente recurso, declarar a nulidade da d. sentença com as inerentes consequências legais e confirmando a legitimidade activa dos utores já pela sua inequívoca qualidade de vizinhos/compartes da comunidade de vizinhos da povoação de x (...) e bem assim, revogada a absolvição da instância, ordenar-se o prosseguimento dos autos, com o que V.Exas. farão a costumada

JUSTIÇA!

Contra-alegando, os réus, pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que a legitimidade para os pedidos formulados está conferida ao Conselho Directivo e não aos compartes individualmente considerados, aderindo aos fundamentos naquela expostos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se a decisão recorrida padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, al.s c) e d), do CPC;

B. Se os autores têm legitimidade para peticionar os pedidos formulados em A, da parte da conclusiva da p.i.; ou seja:

a) A reconhecerem que os prédios “ W (...) ” e “ K (...) ” são baldios, e são possuídos e geridos pela comunidade de vizinhos/compartes da povoação de x (...) , de que os AA. fazem parte;

Devendo abster-se de, por qualquer forma, de perturbarem o uso ou utilização dos baldios e de neles praticarem qualquer ato ou sobre eles fazerem negócio, à revelia e sem autorização da comunidade de vizinhos de x (...) ; e;

C. Se os autores estão isentos do pagamento de custas.

  

É a seguinte a matéria de facto dada por provada e considerada na decisão recorrida:

1. Nos limites da povoação de x (...) existem os seguintes terrenos baldios:

- “ h (...) ou W (...) ”, rústico, de pinhal, mato e pastagem, com a área de 46.000 m2, a confinar do norte com (…), sul com (…), nascente com o caminho da Quinta (...) e poente com (…), inscrito na matriz sob o art. 1024º;

- “ q (...) , v (...) , K (...) e Rio h (...) ”, rústico, de pinhal e mato, com a área de 320.000 m2, a confinar do norte com o (…),, sul com vertente da Quinta de (...) , nascente com (…)  e outros, e poente com caminho florestal e vertente de h (...) , inscrito na matriz sob o art. 1256º.

2. Encontra-se constituída a Assembleia de Compartes dos Baldios de x (...) , que administra, entre outros, os referidos prédios, encontrando-se em funções o Conselho Diretivo do Baldio eleito na Assembleia de Compartes.

A. Se a decisão recorrida padece das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, al.s c) e d), do CPC.

No que a esta questão concerne, alegam os recorrentes que a decisão recorrida padece das ora referidas nulidades, com o fundamento em que a mesma não se pronunciou sobre a nova p.i.. que foi, segundo referem, atempadamente, entregue, que continha matéria essencial para a decisão da causa e, ainda, porque existe contradição entre os fundamentos e a decisão, porque esta não se referiu à legitmidade activa dos autores para peticionar a nulidade do acto translativo de propriedade ou de reivindicação da posse a favor da comunidade.

Na decisão recorrida, como dela consta, apreciou-se a legitimidade dos autores para formularem os pedidos peticionados na acção, vindo a concluir que os mesmos não gozam de legitimidade para tal, pelo que procedeu a excepção dilatória de ilegitimidade activa dos mesmos, nos termos que dela constam, porque se considerou que a legitimidade para tal, está atribuída ao Conselho Directivo dos Baldios.

O artigo 615, n.º 1, al.s c) e d), do CPC, sanciona com a nulidade a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c) ou quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d).

Cf. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, a pág. 669, a oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos, respeita à contradição real entre os fundamentos e a decisão, em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto.

Não indicam os recorrentes a concreta causa das apontadas nulidades, nem nós as vislumbramos.

Não padece a sentença recorrida da nulidade com base na oposição entre os seus fundamentos e a decisão que nela foi proferida.

Isto porque na mesma se considerou que a legitimidade para os pedidos em causa está atribuída ao referido Conselho Directivo, pelo que teria de proceder a invocada excepção de ilegitimidade, que se conheceu, sendo esta, dada tal procedência, a única questão a conhecer, cf. artigo 577.º, do CPC.

A nulidade a que se refere a al. d), do artigo 615, NCPC, radica na omissão de pronúncia (não aprecia questões de que devia conhecer – 1.ª parte) ou no seu inverso, isto é, do conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, por não terem sido postas em causa (2.ª parte).

Como decorre da análise da decisão recorrida, esta debruçou-se sobre todas as questões que lhe impunha conhecer e só destas, nos assinalados termos, não indicando, igualmente, os recorrentes, em concreto, qual a questão que ficou por conhecer.

Ao invés, conheceu-se da questão da legitimidade, mas em termos de que os ora recorrentes discordam o que, como é óbvio, não configura a aludida nulidade.

Sendo, ainda, de salientar, que inexiste qualquer “nova petição”, já que a apresentada foi desentranhada dos autos, como acima já referido, cf. despacho de fl.s 147, transitado em julgado.

Consequentemente, não padece a decisão recorrida das apontadas nulidades.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder.

B. Se os autores têm legitimidade para peticionar os pedidos formulados em A, da parte da conclusiva da p.i.; ou seja:

a) A reconhecerem que os prédios “ W (...) ” e “ K (...) ” são baldios, e são possuídos e geridos pela comunidade de vizinhos/compartes da povoação de x (...) , de que os AA. fazem parte;

Devendo abster-se de, por qualquer forma, de perturbarem o uso ou utilização dos baldios e de neles praticarem qualquer ato ou sobre eles fazerem negócio, à revelia e sem autorização da comunidade de vizinhos de x (...) ;

No que a esta questão concerne, os autores, ora recorrentes, defendem ser partes legítimas para a dedução do pedido de condenação dos réus a reconhecerem que os prédios em causa são baldios e a absterem-se de perturbar o uso da comunidade de compartes de os fruírem (note-se que como os autores referem a fl.s 162 v.º, aceitam a sua «declarada» ilegitimidade para a dedução do pedido de indemnização que formularam), com fundamento em que a conduta dos réus – ao cortarem árvores e destruindo outras – se traduz num acto de apossamento do baldio, pelo que podem defender a posse dos compartes, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2, da Lei 68/93, de 4/9.

Na sentença recorrida, ao invés, considerou-se que os autores carecem de legitimidade para o pedido acima reproduzido, porquanto inexiste qualquer acto de apossamento do baldio por parte dos réus, que se limitaram a cortar árvores ali existentes, que foram qualificadas como “frutos”.

A questão está, pois, em determinar se existiu, por parte dos réus algum acto de “apropriação ou apossamento” do baldio.

Os autores situam, temporalmente, a conduta dos réus em “meados de 2017”, sem concretizarem o dia(s) exacto(s) em que estes procederam ao corte das árvores, o que levanta problemas quanto à determinação da lei aplicável.

Efectivamente, a Lei n.º 75/2017, de 17 de Agosto, revogou a Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro, ambas regulando o regime jurídico aplicável aos baldios.

Por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro (dado que a Lei 75/2017 nada refere quanto à data da sua entrada em vigor), esta entrou em vigor no dia 22 de Agosto de 2017.

Assim, como a expressão “meados de Agosto de 2017” é equívoca, ficamos sem saber, com exactidão, qual a lei a aplicar, embora, tendencialmente, se possa concluir que a data de 22 de Agosto já se situa para lá dos “meados do mês” e, por isso, seja de aplicar a Lei 68/93.

No entanto, dado que o regime legal previsto em ambas estas leis, é semelhante, ficam afastadas as dificuldades da impossibilidade da exacta definição da lei aplicável, chegando-se, salvo o devido respeito por contrário entendimento, à mesma conclusão, à luz do preceituado em cada uma delas.

Assim, dispunha o artigo 4.º da Lei 68/93, o seguinte:

“1 – Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na lei.

2 – A declaração de nulidade pode ser requerida pelo Ministério Público, por representante da administração central, da administração regional ou local da área do baldio, pelos órgãos de gestão deste ou por qualquer comparte.

3 – As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore”.

Estabelecendo-se no artigo 6.º da Lei 75/2017, o seguinte:

“3 - Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião.

4 – Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei.

5 – Os atos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por terceiros, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, são, nos termos de direito, anuláveis a todo o tempo.

(…)

9 – A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes;

b) Pelo Ministério Público;

c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele;

d) Pelos cessionários do baldio.

10 – As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respectiva comunidade ou entidade que legitimamente o explore.”.

Comparando ambos os preceitos, forçoso é concluir, reitera-se, que os ora autores só têm legitimidade para intervir no caso de se tratar de um acto de “apropriação ou apossamento” do baldio ou de parte dele.

Será que o corte de árvores assim se pode classificar?

Desde já antecipando a resposta parece-nos que não.

É certo que os autores têm razão quando se insurgem contra o facto de na decisão recorrida se ter dito que as árvores são frutos do baldio e não parte integrante deste.

Nos termos do disposto no artigo 204.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, as árvores e arbustos, enquanto estiverem ligadas ao solo, são coisas imóveis.

Ou seja, cortadas, as mesmas “passam à categoria de móveis”, cf. P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anottado, Vol. I, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 196, não obstante possam ser objecto autónomo de relações jurídicas, designadamente a venda, caso em que “a transferência da respectiva propriedade para o adquirente só se dá no momento da separação material” – ob. cit., a pág. 197.

No mesmo sentido, veja-se M. Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumário das Lições ao Curso de 1966 – 1967, Coimbra, 1967, edição policopiada, pág.s 24 a 26 e Rodrigues Bastos, in Das Relações Jurídicas, Vol. II, 1968, a pág.s 112 e 113.

Em face do que se impõe concluir que o corte de árvores não se traduz num acto de apropriação ou apossamento de terreno baldio ou de parte deste, traduzindo-se, quando não autorizado, num acto de violação da posse ou esbulho, cf. artigos 1276.º a 1279.º do Código Civil, caso em que, nos termos dos preceitos acima citados, a competência para a dedução de acção com vista a defender a posse já não cabe aos compartes, mas sim às entidades neles referidas – cf. artigos 4.º, n.º 3, da Lei 68/93 e 6.º, n.º 10, da Lei 75/2017.

O corte das árvores é um acto instantâneo que se traduz (meramente à luz do regime que regula a disciplina dos direitos reais, sem entrar em linha de conta, com a possibilidade da existência de ilícito criminal) no esbulho da coisa e não no apossamento ou apropriação do terreno onde as mesmas se encontravam implantadas até ao respectivo corte.

Estando em causa a defesa da posse, a legitimidade para a dedução de acção, com vista à sua restituição está conferida não aos compartes mas sim e apenas ao MP ou órgãos ou entidades a que estejam conferidos os poderes de administração do baldio, em função do que não merece censura a decisão recorrida.

Pelo que, quanto a esta questão, igualmente, improcede o recurso.

C. Se os autores estão isentos do pagamento de custas.

Defendem os autores que assim é, com fundamento no disposto no artigo 16.º, n.º 5, da Lei 75/2017.

Efectivamente, este preceito estabelece a isenção de custas aos compartes nos litígios que tenham por objecto terrenos baldios.

Idêntica isenção resulta do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. x), do Regulamento das Custas Processuais.

Assim, estão os autores isentos de custas, isenção que não depende da procedência da acção.

A sua improcedência apenas tem como consequência não ser atendida a pretensão deduzida, mas não que, neste caso, tenham de suportar as custas.

Pelo que, quanto a esta questão, procede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida, apenas com a menção de que os autores, ora recorrentes, estão isentos de custas.

Sem custas, que seriam a suportar pelos apelantes, atenta a ora referida isenção de que gozam.

Coimbra, 28 de Maio de 2019.

Arlindo Oliveira ( Relator)

Emídio Santos

Catarina Gonçalves