Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4237/18.8T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: TRANSPORTE RODOVIÁRIO INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
AVARIA DE BENS TRANSPORTADOS
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Data do Acordão: 07/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Indicações Eventuais: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º, 18º/1, 30º E 32º, Nº 2 DA CONVENÇÃO CMR.
Sumário: I – O conceito de «avaria» utilizado na CMR, corresponde a “deterioração”, implicando qualquer desgaste ou estrago que a coisa sofra por algum facto exterior: calor, frio, chuva, atrito, trepidação, choque, etc, de modo que ela já não possa servir ou tenha menor utilidade para o fim a que é destinada.

II – Decorre do art. 18º/1 da CMR que compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2.

III – As normas dos nº 1 e 2 do art. 17º da CMR correspondem, grosso modo, ao art. 383º CCom, segundo o qual, «o transportador, desde que receber até entregar os objetos, responderá pela perda ou deterioração que venham a sofrer, salvo quando proveniente de caso fortuito, força maior, vícios do objeto, culpa do expedidor ou do destinatário».

IV - A não adopção pelo destinatário dos procedimentos a que se reporta o art. 30º da CMR, entre eles a não aposição de qualquer reserva na declaração CMR que titula o transporte da mercadoria, não tem como consequência a perda do direito a reclamar. Apenas implicam a presunção do bom estado da mercadoria à data da sua recepção, sem prejuízo do destinatário poder fazer a prova do contrário.

V –A suspensão do prazo de um ano de prescrição do direito de ação prevista no nº 2 do art. 32º da CMR - resultante da existência de uma reclamação escrita e que se mantém até ao dia em que o transportador rejeite tal reclamação por escrito e restitua os documentos com ela juntos - aplica-se, segundo o nº 3 dessa norma, independentemente do que estatuir o direito interno, por isso, entre nós, independentemente do que resulta dos arts 318º a 322º do C.C.

VI - A CMR contém um regime especial de indemnização para o transportador, admitindo a limitação do seu valor, mas esse regime, como decorre do art. 29º, apenas se aplica nas situações em que o dano não tenha provindo de atuação dolosa do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, não seja considerada equivalente ao dolo.

VII – Porque na lei portuguesa o legislador na responsabilidade civil contratual faz equivaler ao dolo a negligência, não se verifica entre nós a referida limitação de responsabilidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – S..., Lda, em 29/11/2018, intentou ação, com processo declarativo comum, contra T..., Lda, pedindo que a mesma seja  condenada a pagar-lhe a quantia de 7.516,60€, acrescida de juros comerciais de mora, à taxa legal, desde 12/10/2017 até efetivo e integral pagamento.

Alegou que em Outubro de 2017, no exercício da sua atividade de prestação de serviços de construção civil, contratou a R. para prestação de serviços de carregamento e de transporte de mercadorias. Esta, em 09/10/2017, pelo preço de 1.600,00€, efetuou dois carregamentos de portões e placas de chapas na Vila das Aves e em Celeirós, Braga, mercadorias que, conforme instruções recebidas, entregou, no dia 12/10/2017, em França. Sucede que tais mercadorias foram mal cintadas e mal-acondicionadas, pelo que à chegada ao seu destino encontravam-se empenadas e amolgadas, facto que levou, de imediato, ao conhecimento da aqui R., na pessoa do motorista e, bem assim, do respectivo gerente. Em consequência da conduta da R., sofreu prejuízos no valor de 5.916,60€, a que acresce o valor do transporte, entretanto liquidado, no montante de 1.600,00€, prejuízos pelos quais entende dever ser ressarcida.

A R. contestou, reconhecendo a realização do serviço de transporte em causa, por conta da A., com carregamento e descarga nas datas indicadas e nos locais pela mesma assinalados e pelo valor de 1.600,00€, já recebido, conforme referido. Recusa, porém, a responsabilidade pelo ressarcimento de quaisquer danos sofridos pela mercadoria transportada, desde logo pelo facto de o carregamento e o acondicionamento da mesma terem sido efectuados pelos funcionários da empresa expedidora e não pelo seu motorista, o qual nem sequer dispunha, no local, de meios para o efeito. Acresce que a A. apenas lhe comunicou a alegada verificação de danos em mercadoria transportada no âmbito dos autos nº ..., a que a R. foi forçada a recorrer para cobrança do valor dos transportes efectuados por conta daquela entre 26/10/2017 e 30/10/2017 e entre 27/10/2017 e 02/11/2017, vindo, agora, invocar os mesmos danos, desta feita com referência a outro serviço de transporte. De todo o modo, refere ainda, a A. não colocou qualquer reserva na Declaração CMR correspondente ao serviço efetuado entre 09/10/2017 e 12/10/2017, nem observou os prazos impostos pela Convenção aplicável, quer para comunicação por escrito dos alegados danos, quer para interposição da presente acção, pelo que, conclui, as suas pretensões não poderão deixar de soçobrar, devendo, ainda, a A. ser condenada como litigante de má fé.

A A. respondeu às excepções invocadas, referindo que ao contrário do que a R.  refere, reclamou imediatamente, logo no momento em que se apercebeu dos danos, conforme consta da petição inicial, comunicando ao gerente e ao motorista da R. que o material se encontrava danificado, sendo que em Janeiro de 2018 reclamou novamente, consoante “email” que junta. Por outro lado, referentemente à prescrição, evidencia o disposto no art 32º/3 da Convenção, segundo o qual o prazo da prescrição se começa a contar após 3 meses da conclusão do contrato de transporte, tendo tido assim início apenas em Janeiro de 2018.

Termina por requerer a condenação da R. por litigância de má fé.

Teve lugar audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, nele tendo-se relegado o conhecimento das exceções perentórias de caducidade e de prescrição para final, se procedeu à identificação do objecto do litigio e se selecionaram os temas da prova. 

Realizado o julgamento foi proferido sentença, na qual foi julgada improcedente a ação, sendo a R. absolvida do pedido, tendo sido julgado improcedente o pedido de condenação da A. como litigante de má fé.

II – Do assim decidido apelou a A., que concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:

...

Não foram apresentadas contra-alegações.

III – O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

...

IV – Confrontando as conclusões das alegações com a sentença recorrida, constitui objeto do presente recurso a reapreciação da matéria de facto, nos termos pretendidos pela A./apelante e a consequente repercussão das alterações àquela matéria no mérito da ação.

Defende a A. que (praticamente) toda a matéria que foi julgada não provada (als b) a f)) deveria ter sido julgada provada, e que se deveria fazer acrescer à mesma um outro ponto de facto.

Vejamos:

...

Estabilizada nos termos antecedentes a matéria de facto, há que verificar se as alterações nela produzidas implicarão, ao contrário do decidido na 1ª instância, a procedência total ou parcial da ação. O mesmo é dizer se a R/apelada, como transportadora da mercadoria, se deve ter ou não como responsável pelos danos causados à A., expedidora.

Para o que importa conhecer das exceções com que a R. se defendeu: a decorrente da al c) do nº 4 do art. 17º da Convenção CMR, tendo alegado, para esse efeito, que foram os funcionários da expedidora quem procedeu ao carregamento e acondicionamento da mercadoria em causa -  cfr art. 2º e B.2 da contestação; a caducidade do direito de reclamar e a prescrição do direito da ação.

Mostra-se pacífico estar em causa um contrato de transporte de natureza comercial (valendo ainda a este respeito a noção do CCom a respeito da natureza comercial do transporte, constante do seu art 366º, segundo a qual o mesmo «considerar-se-á mercantil quando os condutores tenham constituído empresa ou companhia regular e permanente), contrato esse que se mostra internacional, e que é essencialmente regulado  pela Convenção de Genebra, de 19 de Maio de 1956, aprovada pelo DL 46.235, de 18 de Março de 1965, relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, conhecida pela sigla CMR.

Nem por isso deixa o contrato de transporte de ser «o que se celebra entre aquele que pretende conduzir a sua pessoa  ou as suas coisas de um lugar para o outro e aquele que por um determinado preço se encarrega dessa condução»[1], estando em causa um contrato bilateral, oneroso e meramente consensual, devendo assinalar-se que «os princípios jurídicos que conformam a matéria dos transportes, bem como numerosas das suas concretizações, mantêm-se fiéis à comercialística privada, com as múltiplas especificidades que o Direito dos Transportes exige»[2].

Segundo o art 1º da Convenção CMR ela aplica-se «a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes».

Referindo o seu art 4º que, não obstante o contrato de transporte se estabelecer por meio de uma declaração de expedição, «a falta, irregularidade ou perda da declaração de expedição não prejudicam nem a existência nem a validade do contrato de transporte, que continua sujeito às disposições da presente Convenção», forçoso é concluir que o contrato de transporte é um contrato consensual  - forma-se  por mero consenso das partes,  não estando sujeito a forma especial, designadamente escrita, além de que a sua conclusão  não depende da prática de qualquer acto material de entrega, real ou simbólica da mercadoria, não se tratando também de um contrato real quanto à constituição[3], configurando-se a entrega como um acto da execução do contrato.

Importa, por outro lado, salientar que o contrato de transporte se analisa num contrato de prestação de serviço, na medida em que «o  que interessa ao contratante não é o serviço em si, mas antes o seu resultado, isto é, a colocação da pessoa ou do bem, íntegros, e nas condições acordadas, no local do destino, razão pela qual o transporte funciona como modalidade do contrato de empreitada, em que a relevância do resultado final acaba por assumir um conteúdo lato, abrangendo todas as operações necessárias para que o seu sentido útil possa ser atingido, ou seja, a entrega das coisas ao destinatário»[4] .Trata-se, pois, de um contrato de resultado, isto é, que gera ou de que deriva uma obrigação de resultado, que só se pode ter por cumprida com a entrega da mercadoria transportada ao seu destinatário[5].

Refere o art 367º CCom que «o transportador pode fazer efectuar o transporte directamente por si, seus empregados e instrumentos, ou por empresa, companhia ou pessoas diversas», explicitando o parágrafo único dessa disposição que, «no caso previsto na parte final deste artigo, o transportador que primitivamente contratou com o expedidor conserva para com este a sua originária qualidade, e assume para com a empresa, companhia ou pessoa com quem depois ajustou o transporte, a de expedidor».

Quando assim suceda soma-se ao contrato de transporte, o contrato de expedição, ou de trânsito, que se define «como aquele em que uma parte [transitário] se obriga perante a outra [expedidor] a prestar-lhe certos serviços, que tanto podem ser actos materiais como jurídicos, ligados a um contrato de transporte, e, também, a celebrar um ou mais contratos de transporte, em nome e representação do cliente»[6], nessa medida intervindo, normalmente em contratos internacionais, os chamados transitários, que funcionam como representantes ou auxiliares do transportador, dizendo-se ainda no acórdão do STJ que se tem vindo a acompanhar que «numa formulação ampla, o contrato de expedição ou de trânsito desenha-se como uma figura mista, que envolve elementos de organização, de mediação, de agência e de prestação de serviço, ao passo que, em sentido estrito, o contrato de expedição é, simplesmente, um mandato pelo qual o transitário se obriga a celebrar um ou mais contratos de transporte, por conta do expedidor».

Não é essa a situação dos autos em que a transportadora, R., foi quem realizou, por si, os actos materiais inerentes ao transporte.

Nem por isso, nesta versão mais simples, deixa o contrato de transporte de coenvolver três figuras distintas - o interessado ou expedidor, o transportador ou agente, e o destinatário, figuras a que alude o art  6º da Convenção CMR, podendo pois falar-se duma relação triangular, «num negócio a três», cuja natureza jurídica tem vindo a ser discutida, parecendo ser a figura do contrato a favor de terceiro, «embora com alguns desvios», a que «parece ser a que melhor explica o transporte dirigido para a entrega da mercadoria a um terceiro- destinatário» [7].

Segundo o art 17º/1 da CMR «o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega».

Segundo o nº 2 desta norma, «o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar».

E decorre claramente do nº 1 do art 18º que compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos n(esse) artigo 17, parágrafo 2.

É evidente que o conceito de «avaria», utilizado nestas normas da CMR, corresponde a “deterioração”. Assinala Cunha Gonçalves[8] que se chama deterioração ou avaria «qualquer desgaste ou estrago (fermentação, ferrugem, fractura, corrupção, escoamento, feridas etc) que a coisa sofra por algum facto exterior: calor, frio, chuva atrito, trepidação, choque, etc, de modo que ela já não possa servir ou tenha menor utilidade para o fim a que é destinada». 

Com o que a circunstância dos painéis em causa nos autos assim que foram descarregadas no local de destino, França, se mostrarem estragados (empenados, amolgados, como resulta do ponto 12º da matéria de facto  provada), implica a respectiva «avaria».

Correspondem, grosso modo, os aludidos nº 1 e 2 do art 17º/1 da Convenção CMR ao art 383º CCom, segundo o qual, «o transportador, desde que receber até entregar os objectos, responderá pela perda ou deterioração que venham a sofrer, salvo quando proveniente  de caso fortuito, força maior, vícios do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário».

Assim, e como o evidencia o já mencionado Ac STJ 14/6/2011, considerando que se está na presença de uma prestação de resultado final, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil, contratualmente previsto, «basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para estabelecer o incumprimento do devedor, sendo, então, que este apenas se desonera da responsabilidade, através da impossibilidade objectiva e não culposa da prestação, provando que a inexecução é devida a causa que lhe não é imputável, como, por exemplo, a existência de factores externos que a excluam, de circunstâncias exoneratórias da sua responsabilidade, previstas pelas disposições conjugadas dos artigos 17º, nº 2 e 18º, da Convenção CMR.».

O transportador exonerar-se-á da culpa que o não alcance do resultado lhe implica   em função das causas liberatórias a que aludem os arts 17º e 18º da Convenção, das quais resulta, em termos gerais, a existência de circunstâncias, especiais ou excepcionais, que eliminem a censurabilidade da sua conduta.

Dispõe o nº 2 do art 18º que «quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17, parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes».

É desta  presunção que a aqui R., transportadora, se pretenderia fazer valer na sua defesa, ao alegar que foram os funcionários da expedidora quem procedeu ao carregamento e acondicionamento da mercadoria em causa,  pois que resulta do nº 4 do art 17º que  «o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes, entre o mais, ao facto referido na sua al c)»: o da «manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria ter sido (feita) pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário». [9]

Sucede que a R. não logrou provar a matéria em causa.

É evidente, em face das consideração atrás feitas a propósito desse ponto da matéria de facto, que não seria possível julgar como provado que foram os funcionários da expedidora quem procedeu ao acondicionamento das mercadorias em causa, por ter ficado muito claro da prova, que, pese embora tenham sido funcionários da empresa fabricante a carregar os painéis no reboque, os mesmos foram “acondicionados” pelo motorista da R., a quem cabia cintá-los (atá-los), obrigação que o mesmo e, inclusivamente o legal representante da R., não escamoteou.

Ora, quando na al. c) do nº 4 do art. 17º da CMR se  erige o facto da «manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria ter sido (feita) pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário» como causa (presumida) da exclusão da culpa da transportador, está-se necessariamente a pressupor a total responsabilidade do expedidor ou do destinatário pela manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria, e não apenas o facto da execução material daqueles actos ter sido feita por funcionários daqueles, mas em função de ordens do funcionário da transportadora, como foi o caso.

Importa agora saber se os factos provados são de molde a que se julgue verificada a caducidade (cfr nº 2 do art. 298º CC) do direito da A. reclamar, que a R. faz decorrer da circunstância de a A. não ter cumprido os pressupostos referidos no nº 2 do art. 30º da Convenção CMR - não ter aposto qualquer reserva nas declarações de CMR que titulavam o transporte e não ter efectuado qualquer reclamação por escrito nos sete dias (domingos e feriados não incluídos) seguintes.

Dispõe, com efeito, o art. 30º/1 da Convenção CMR, pelo qual se inicia o Cap V relativamente a “Reclamações e Acções”: «1. Se o destinatário receber a mercadoria sem verificar contraditoriamente o seu estado com o transportador, ou sem ter formulado reservas a este que indiquem a natureza geral da perda ou avaria, o mais tardar no momento da entrega se se tratar de perdas ou avarias aparentes, ou dentro de sete dias a contar da entrega, não incluindo domingos e dias feriados, quando se tratar de perdas ou avarias não aparentes, presumir-se-á, até prova em contrário, que a mercadoria foi recebida no estado descrito na declaração de expedição. As reservas indicadas acima devem ser feitas por escrito quando se tratar de perdas ou avarias não aparentes».

Na situação dos autos é evidente que não foi aposta qualquer reserva na declaração CMR que titulava o transporte dos painéis estragados.

Mas já não é verdade que -  estando, como está em causa, avaria aparente - o destinatário tenha recebido a mercadoria sem verificar contraditóriamente o seu estado com o transportador, como resulta do ponto 13 da matéria de facto.

De todo o modo, e como resulta com clareza do referido art 30º, todos os procedimentos a que se reporta essa norma, no caso de não serem adoptados pelo destinatário, não têm como consequência a perda do direito a reclamar. Apenas implicam a presunção que a mercadoria foi recebida no estado descrito na declaração de expedição, isto é, implicam a presunção do bom estado da mercadoria à data da sua recepção, sem prejuízo, no entanto, do destinatário poder fazer a prova do contrário.

Na situação dos autos, se se atentar nos termos do “email” que a A. juntou com a petição inicial constante de fls 20 vº, provindo da FTB, empresa fabricante dos painéis e que funcionou como expedidora, documento esse não impugnado, datado de  24/10/2017, depreende-se com facilidade do seu texto que a questão da responsabilidade pela avaria dos painéis estava em aberto, e que a A. a tinha colocado à FTB, decerto na sequência da transportadora ter tentado endossar essa responsabilidade para a mesma. Diz-se nesse email: «Relativamente ao que temos conversado sobre os problemas da carga e após várias análises internas às fotos enviadas, entendemos que não temos responsabilidade no sucedido. A carga em questão foi executada de acordo com todas as normas e saiu das nossas instalações em perfeitas condições. Quanto à questão das esferovites  de apoio, executamos semanalmente várias cargas para o exterior incluindo contentores, sem nunca ter problemas. O que se passou com o vosso material  entendemos que não é responsabilidade nossa e sim do transporte. Será que o material foi devidamente cintado?».

De todo o modo, desde o momento em que a A. logrou provar que no destino do transporte os painéis se achavam deteriorados, mostra-se indiferente para o direito da A. o cumprimento ou não dos procedimentos do referido art. 30º/1.

Importa, no entanto, ter ainda em consideração que com a resposta às excepções a A. juntou outro “email” – cfr fls 94, também não impugnado – desta feita da A. à R, datado de 10/1/2018, tendo por assunto “MATERIAL DANIFICADO”, onde, claramente denuncia o defeito do material. Refere-se aí: «Exmos Senhores, Como é do V/ conhecimento, o material transportado por V. Exªas não chegou nas devidas condições. Em face do exposto vimos por este meio solicitar nota de crédito das v/ faturas nº 01596 e 01610, no valor de 2.800 (dois mil e oitocentos euros)[10] Iremos averiguar as respetivas responsabilidades relativamente ao material danificado».

E o envio desse “email” torna-se relevante para a última das questões a apreciar como integrante da defesa da R. – a da prescrição do direito de ação.

Pretende a mesma que tendo a petição inicial da ação dado entrada em 29/11/2018 e tendo ela sido citada em 17/12/2018 – isto é, mais de um ano após o evento em que os prejuízos nela invocados tiveram lugar - se mostra prescrito o direito a propor a presente ação, em função do disposto na al a) do nº 1 do art. 32º, ao que a A. contrapôs o disposto no art. 32º/1 al c), para concluir que o prazo de prescrição teria tido início apenas em Janeiro de 2018.

Refere o aludido art. 32º:

«1. As Ações que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano (…)

 O prazo de prescrição é contado:

a) A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora;

b) a partir do 30º dia após a expiração do prazo convencionado, ou, se não tiver sido convencionado prazo, a partir do 60º dia após a entrega da mercadoria ao cuidado do transportador;

c ) Em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte.

 O dia indicado acima como ponto de partida da prescrição não é compreendido no prazo.

2. Uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram (…).

3. Salvas as disposições do parágrafo 2 acima, a suspensão da prescrição regula-se pela lei da jurisdição a que se recorreu (…)».

Ora, não assiste razão à A. quando invoca a seu favor a disposição contida na al. c).

É que ela só rege, como nela se refere, para «todos os outros casos», e, na verdade, a situação em causa nos autos enquadra-se na al a), por estar em causa um caso de «avaria».

Sucede que intercede a favor da A. o envio em 10/1/2018 do acima referido “email, que constitui, nos termos do nº 2 desse art. 32º, «uma reclamação escrita», pelo que, na data do mesmo, e não se mostrando ainda decorrido o prazo de um ano da prescrição, esta ficou suspensa, sem que, ao que parece, tal suspensão tenha terminado, porque a R. não invocou tê-la rejeitado por escrito.

A respeito desta específica causa de suspensão da prescrição diz-se no Ac STJ de 2/11/2010: «Não se ignora que o regime da suspensão do prazo da prescrição acha-se definido nos artºs 318º a 322º do C.Civil e nela não cabe a causa prevista no citado nº 2 do artº 32º. Sucede que tal norma de direito internacional convencional prevalece sobre as normas de direito interno. Estabelece o artº 8º nº 2 da Constituição que as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português e este normativo tem sido interpretado pelo Tribunal Constitucional no sentido da primazia de tais normas sobre o direito anterior (entre outros, ver os acórdãos nºs 118/85, 300/87 e 218/88, publicados no Boletins nºs 360, 501, 370, 175 e 380/183) recolhendo, ainda o beneplácito da doutrina (por todos, Jorge Miranda e outro, Constituição Anotada , Tº 1, 94/95)». «(…) , sempre se tratará de uma norma especial, relativa e apenas aplicável ao contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias, como tal afastando o regime geral dos citados artºs 318º a 322º». E acrescenta-se nesse acórdão: «Haverá que trazer, ainda, à colação a norma do §º3, a qual salvaguarda o parágrafo anterior da aplicação da regra de que a suspensão ou interrupção da prescrição se regula pela lei da jurisdição nacional a que se recorreu. Ou seja, a convenção aplica-se quanto a essa específica causa de suspensão do prazo prescricional, independentemente do que estatuir o direito interno, no caso as normas do Código Civil» [11].

Conclui-se, pois, que a defesa da R. se mostra improcedente.

 Resta saber se a ação deve proceder na totalidade, isto é, quanto ao valor do transporte - €1.600,00 – e quanto ao valor despendido pela A. na aquisição de novos painéis  sem defeito - €5.916,60, como a A. o pretende.

Dispõe o art.  25º da Convenção :

«1. Em caso de avaria, o transportador paga o valor da depreciação calculada segundo o valor da mercadoria determinado em conformidade com o artigo 23, parágrafos 1, 2 e 4.

2. No entanto, a indemnização não poderá ultrapassar:

a) O valor que atingiria no caso de perda total, se toda a expedição se depreciou com a avaria;

b) O valor que atingiria no caso de perda da parte depreciada, se apenas parte da expedição se depreciou com a avaria».

Por seu turno, resulta do art. 23º, 1, 2 e 4:

«1. Quando for debitada ao transportador uma indemnização por perda total ou parcial da mercadoria, em virtude das disposições da presente Convenção, essa indemnização será calculada segundo o valor da mercadoria no lugar e época em que for aceite para transporte.

2. O valor da mercadoria será determinado pela cotação na bolsa, ou, na falta desta, pelo preço corrente no mercado, ou, na falta de ambas, pelo valor usual das mercadorias da mesma natureza e qualidade.

4. Além disso, serão reembolsados o preço do transporte, os direitos aduaneiros e as outras despesas provenientes do transporte da mercadoria, na totalidade no caso da perda total e em proporção no caso de perda parcial; não serão devidas outras indemnizações de perdas e danos».

Importa ainda ter em consideração o disposto no art. 29º, onde se dispõe:

«1. O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo».

Vê-se assim que na CMR se pretendeu para o transportador um regime especial de indemnização, com limitação do seu valor, mas não na totalidade das situações. Como se prevê neste art. 29º, o legislador não quis que essa limitação da indemnização ocorresse  quando o dano tenha provindo de actuação dolosa do transportador ou tenha provindo de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.

Importa, pois, verificar se a lei portuguesa, em matéria de responsabilidade civil contratual, faz equivaler ao dolo a negligência.

Tem sido recorrentemente entendido na jurisprudência [12] que, porque o disposto no  art. 494º do CC – que prevê a limitação da indemnização no caso de mera culpa, desde que se verifiquem circunstâncias especiais que a justifiquem - não é aplicável à responsabilidade civil contratual[13], se deverá concluir que entre nós, no âmbito dessa responsabilidade civil, não há limitação à indemnização por efeito da mera culpa (diz-se  não ser compatível, no geral, com as legítimas expetativas do contraente lesado) .

O que leva a concluir – como se conclui no Ac STJ de 12/10/2017[14]-  que,  «face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor».

Diz-se no mesmo sentido no  Ac STJ 6/7/2006 (respectivo sumário)[15]: «(…) em vista do art.29º CMR, e no âmbito especial do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que, consoante arts17º e 23º CMR, vigora a regra da limitação da responsabilidade do transportador, o dolo deste ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual (como decorre dos arts.494º, a contrario sensu, e 562º C.Civ.). (…) No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé - cfr. art.456º CPC».

E igualmente no já muito citado Ac STJ 14/6/2011: «A presunção de culpa que, por força da Convenção CMR, incide sobre o transportador, desde que não seja ilidida, implica, em caso de perda da mercadoria, provando-se a existência de prejuízo, o pagamento de uma indemnização forfetária, que deve ser equivalente ao preço do transporte, ao passo que se o dano emergente da perda resultou de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que segundo a jurisdição do país julgador seja considerada equivalente ao dolo, a indemnização deve, então, reparar, integralmente, os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença. Estabelecendo-se, no art. 799.º, n.º 1, do CC, a presunção de culpa do devedor no âmbito da responsabilidade civil contratual, é despicienda a modalidade de culpa, lato sensu, para efeitos de imputação de responsabilidade ao agente».

http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif O que significa que, entre nós, o transportador não vê limitada a indemnização em função da sua actividade negligente.

Pelo que importa concluir, sem necessidade de mais considerações, no sentido de que a R. é responsável pela quantia pedida, resultante da soma do valor do transporte, com o do valor dos painéis avariados - €7,516,60 – quantia a que acrescerão juros, à taxa comercial, desde o dia 12/10/2017 - dia da recepção da mercadoria avariada -  até efetivo e integral pagamento, como vem peticionado.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogar a sentença recorrida e condenar a R. a pagar à A. a quantia de €7,516,60, acrescida de juros à taxa comercial desde o dia 12/10/2017  até efetivo e integral pagamento.

Custas na 1ª instância e nesta pela R.

                                                           Coimbra, 12 de Julho de 2020

                                                           (Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)

I – O conceito de «avaria» utilizado na da CMR corresponde a “deterioração”, implicando qualquer desgaste ou estrago que a coisa sofra por algum facto exterior: calor, frio, chuva, atrito, trepidação, choque, etc, de modo que ela já não possa servir ou tenha menor utilidade para o fim a que é destinada. 

II – Decorre do art 18º/1 da CMR que compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2.

III – As normas dos nº 1 e 2 do art 17º da CMR correspondem, grosso modo, ao art 383º CCom, segundo o qual «o transportador, desde que receber até entregar os objetos, responderá pela perda ou deterioração que venham a sofrer, salvo quando proveniente de caso fortuito, força maior, vícios do objeto, culpa do expedidor ou do destinatário».

IV -  A não adopção pelo destinatário dos procedimentos a que se reporta o art. 30º da CMR, entre eles a não aposição de qualquer reserva na declaração CMR que titula o transporte da mercadoria, não tem como consequência a perda do direito a reclamar. Apenas implicam a presunção do bom estado da mercadoria à data da sua recepção, sem prejuízo do destinatário poder fazer a prova do contrário.

V –A suspensão do prazo de um ano de prescrição do direito de ação prevista no nº 2 do art. 32º  da CMR  - resultante da existência de uma reclamação escrita e que se mantém  até ao dia em que o transportador rejeite tal reclamação por escrito e restitua os documentos com ela juntos - aplica-se, segundo o nº 3 dessa norma,  independentemente do que estatuir o direito interno, por isso, entre nós,  independentemente do que resulta dos arts  318º a 322º do C.C.

VI - A CMR contém um regime especial de indemnização para o transportador, admitindo a limitação do seu valor, mas esse regime, como decorre do art. 29º, apenas se aplica nas situações em que o dano não tenha provindo de atuação dolosa do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, não seja considerada equivalente ao dolo.

VII – Porque na lei portuguesa o legislador na responsabilidade civil contratual faz equivaler ao dolo a negligência, não se verifica entre nós a referida limitação de responsabilidade.


***


[1] - Cunha Gonçalves, «Comentário ao Código Comercial Português», 2º, p 394
[2] - Ac STJ 14/6/2011 (Helder Roque)
[3]  -Carlos Lacerda Barata,  «Contratos de Transporte Terrestre: Formação e Conclusão, Temas de Direito dos Transportes», vol III, p 646. 
[4]- De novo o referido Ac STJ (Helder Roque)
[5] - Ac. STJ de 10/11/93, CJSTJ, I, 3º, 118

[6] - De novo o Ac STJ 14/6/2011 (Helder  Roque)
[7] -Cfr Carlos Lacerda Barata, obra referida. Segundo esclarece, os desvios resultam essencialmente da importância que assume no contrato de transporte de mercadorias a entrega, momento central no lógica do transporte, na expressão de Januário  da  Costa Gomes, em «O direito de variação  ou de controlo no transporte de mercadorias», in Temas de Direito dos Transportes , II , 34-35 ; Francisco Costeira da Rocha, «O contrato de transporte de mercadorias/Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias», 2000, 209 ess
Na jurisprudência, cfr Ac STJ de 15/5/2013 (Granja da Fonseca); Ac R C 16/12/2015 (Manuel Capelo)
[8] - Obra referida, p 440
[9] -A respeito desta norma,  cfr Ac STJ 25/9/2003 (Salvador da Costa), Ac R P 29/1/2013 (Pinto dos Santos), Ac R L 19/3/2009 (Manuela Gomes), Ac R P 21/2/2018 (Freitas Vieira), Ac R C 7/2/2012 (António Barateiro) Ac R L 5/5/2009 (José Augusto Ramos)
[10] - Trata-se das facturas cujo não pagamento pela A. deu origem ao Proc de injunção  acima referido

[11] - No mesmo sentido, e como se acentua no referido acórdão, o Ac do STJ de 1/07/2008, proc.nº 081917 disponível em dgsi, e Ac STJ 11/06/1992, JSTJ 00020964. dgsi.

[12] - Ac STJ 15/5/ 2013, 5/6/2012, 14/6/ 2011, todos acessíveis em www dgsi pt
Ac STJ 17/5/2001 CJ STJ, II, 51; 20/5/2007 CJSTJ, II, 85 , Ac R L 21/11/1991 CJ, TV, 134; Ac R P 23/6/1987 CJ TIII, 211; Ac R P 21/2/2018
[13]- Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», II, 4ª ed. 1990, p 95, e Almeida Costa, «Direito das Obrigações», 3ª ed., 1979, p. 363 e 531
[14]- Relator, Olindo Geraldes
[15] -Relator, Oliveira Barros