Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
336/10.2TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: RECURSO
FACTOS NOVOS
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 829º-A, Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL; 511º E 653º, Nº 2 DO CPC.
Sumário: a) O recurso ordinário não pode incidir sobre matéria sobre a qual se formou, na instância recorrida, caso julgado.

b) O ónus da prova implica a prévia satisfação de um outro ónus implicado no princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo - o ónus da alegação.

c) Dado que o recurso de apelação é um recurso de reponderação e não de reexame, não é admissível, em regra, a alegação, na instância de recurso, de factos novos.

d) A fundamentação da decisão da matéria de facto deve conter-se nessa mesma decisão e não na sentença final.

e) Os vícios substanciais da decisão da matéria de facto não constituem causas de nulidade da sentença.

f) O exame crítico das provas, a que a sentença deve proceder, resume-se à inferência de factos por presunção, judicial ou legal, e, em caso de non liquet sobre qualquer facto, à aplicação do critério de julgamento representado pelo ónus da prova.

g) O error in iudicando da matéria de facto pode radicar num erro na apreciação da prova ou simplesmente num erro na selecção do objecto dessa prova.

h) O recorrente que impugne a matéria de facto, com fundamento no erro na valoração da prova, está adstrito ao ónus de especificar os meios de prova que reputa de mal apreciados.

i) O acto administrativo autorizativo jurídico-público - v.g. de uma edificação – não conforma juridicamente as relações jurídicas civis, não produzindo quaisquer efeitos preclusivos dos direitos de terceiros.

j) A ilicitude, no plano administrativo, de uma obra não se transfere, ipso facto, para o plano civil, continuando a ser exigível a demonstração do preenchimento de uma das cláusulas de ilicitude dispostas na lei – a ofensa de um direito absoluto ou a violação de uma disposição de protecção.

l) A prova da autoria do facto danoso vincula o lesado.

m) A sanção pecuniária – judicial ou autêntica - só é aplicável a prestações de facto infungíveis – positivas ou negativas duradouras, dada a inadmissibilidade da sua execução específica.

n) A obrigação de facto negativo cujo objecto seja constituído pela abstenção de um determinado comportamento, não pode, pela natureza das coisas, ser realizada por terceiro, sendo, por isso, infungível.

o) O tribunal é soberano na escolha da modalidade da sanção pecuniária compulsória.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

L… e cônjuge, N…, pediram ao Sr. Juiz de Direito do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal que condenasse J…, S.A. e I…, Lda.,

a) - A reconhecerem que os A.A. são os donos legítimos quer deste imóvel urbano identificado, além de outros, no artigo 1º desta p.i., que já adquiriram por usucapião, tudo, aliás, nos legais termos e consequências;

b) - A reconhecerem que têm os A.A. o direito de assim fazerem proceder à sua inscrição, a seu favor na Conservatória do Registo Predial, com fundamento nesta sentença, logo que transitada em julgado;

c) – A reconhecerem que todas as alegadas obras levadas a cabo pelas Rés, designadamente as paredes altas no ângulo sul - poente do imóvel identificado na al. a) deste petitório, constituem violação dos seus legítimos direitos, consequentemente, a demoli-las, à sua custa, de modo a repor o status quo ante, bem como toda a legalidade;

d) – A dali fazerem retirar tudo quanto colocaram, à vista ou (e) enterrado na parte sul do seu dito imóvel e por sobre o seu muro de vedação lado poente, designadamente a parte que nele altearam, bem como a espécie de caleira, os fios, tubos e canos que sobre ele mantêm;

e) – Retirarem as botijas de gás, bem como os manípulos, designadamente os que as atarraxam à face poente do muro dos A.A. e tubos que conduzem tal gás para as instalações das Rés;

f) – A taparem/eliminarem todos os furos, buracos e tubos que proporcionam escorrências ou cheiros, ou fumos, gases ou águas ou seja o que for, deles provenientes (caso as paredes venham a manter-se até esta altura);

g) – A absterem-se, de futuro, da prática de todo e qualquer acto que perturbe, impeça, dificulte ou, de qualquer modo estorve os A.A. do livre exercício dos seus legítimos direitos de seus proprietários;

h) – A pagarem-lhes, a título de danos patrimoniais a quantia de €2.500,00 alegada e o que se vier a liquidar em ulterior execução de sentença, quantia acrescida do pagamento dos juros legais devidos, contados desde a sua citação até integral embolso, à taxa legal vigente;

i) – A pagarem-lhes a título de ressarcimento pelos danos morais sofridos a quantia de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros);

j) - Serem, por último, condenadas, sempre solidariamente, a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no nº 1 do art. 829º-A do Código Civil, no pagamento de €100,00 por cada dia de atraso na observância do que for decidido.

Fundamentaram estas pretensões no facto de serem donos, por o terem adquirido por usucapião, de um prédio urbano localizado em …, matricialmente inscrito sob o artº …, com o qual confrontam, pelo lado nascente, sul e poente, os prédios matricialmente inscritos sob os artºs …, da ré J…, SA, … da ré I…, Lda. que as rés juntaram e apresentaram, em nome da primeira, no dia 6 de Março de 2009, na CM de … um projecto para construção de um edifício (artº 3º) de terem vendido à ultima, em 24 de Julho de 2001, o prédio matricialmente inscrito sob o artigo … e definido, no momento da venda, por escrito, a linha divisória da estrema sul e do ângulo sul – poente (artº 7º) de as rés, com as obras que estão a levar a cabo nos prédios, antes da obtenção de licenciamento camarário, terem emparedado, pelo lado nascente, sul e poente, o seu imóvel (artº 20º), havendo, ao longo do ângulo ponte – sul e das suas estremas, paredes contínuas com 12,50 m de altura, revestidas de chapa metálica de cor cinza, de as rés terem alteado e revestido o muro - que é parte do seu prédio - ao longo de quase todo o comprimento, com placa isolante, formando uma espécie de caleira, sobre a qual estenderam tubos, um para água, outros gás, e outro cuja função se desconhece, para alimentar indústria nas instalações das rés, das quais são libertados, por orifícios que abriram nas paredes e deitam directamente para o seu prédio, cheiros e fumos, de as rés haverem mandado colocar, junto à face externa do muro, e nele aparafusadas, duas botijas de gás, estando atarraxados, no próprio muro, os manípulos da instalação de gás, de haver, nas paredes do ângulo sul – poente do seu prédio, quatros tubos cujas aberturas deitam directamente para ele, cuja função se desconhece, tubos de plástico preto e verde a deitar directamente para a sua para sul, atravessando-o, e um tudo preto que atravessa o seu logradouro, de as rés haverem revolvido toda a parte sul do terreno, constituído por terra arável, que se apresenta agora barrento e rebaixado e coloca em perigo um muro que segura as terras da estrema para norte, com cujo topo há um portão cuja fechadura foi forçada, arrancando nogueiras, pessegueiros, que desapareceram, e uma nespereira e um cerejeira, que foram replantadas em sítios diferentes e que estão mortas, causando um prejuízo, com a substituição do solo, aquisição e replantação de novas árvores, de € 2.500,00, de haver vestígios de algo ter sido enterrado a estabelecer uma ligação subterrânea com a parte nascente do prédio das rés, cuja reposição, ao estado anterior, depende do que estiver enterrado, prejuízo a liquidar em execução de sentença, de haver, além dos insólitos e inqualificáveis abusos, pelo emparedamento, uma desvalorização total do imóvel (artº 52º) atenta a sua função habitacional e de lazer, havendo a sensação de se estar dentro do “poço da morte” quando está no seu interior, contrariando o que consta do Regulamento do PDM de …, no que respeita à altura do edifício e à proximidade, e de sentirem um profunda tristeza, não se sentindo tranquilos e seguros na fruição do seu prédio, receosos de algo pior aconteça pela força do vento na estrutura metálica e pelo perigo das instalações de gás agarradas ao seu muro, a cerca de 2 metros da casa de habitação, desconhecendo a função dos orifícios que apontam para o seu imóvel, alguns emanando gases tóxicos (artº 58) sentindo-se enclausurados na sua casa, privados das normais vistas, do seu horizonte visual (artº 59), o que lhes cria um estado de ansiedade que lhes desvaloriza a qualidade de vida, andando a amargurados e intranquilos, não conseguindo conciliar o sono, não lhes saindo do pensamento a triste situação em que se encontram na velhice, a sofrer tão profunda decepção.

As rés defenderam-se por impugnação alegando, designadamente, que a construção que levaram a efeito nos seus prédios se encontra em fase de licenciamento, que as paredes tê, 8, 70 me de altura, respeitando a cércea média para o local, que não procederam a qual obra sobre qualquer muro de vedação dos autores, que o muro de vedação do lado poente foi construído, há vários anos, pela 1ª ré, num prédio seu, que os tubos se encontram instalados na sua propriedade e os buracos em nada afectam os direitos dos autores, que nunca invadiram, atravessaram ou utilizaram o prédio destes nem procederam ao arranque de quaisquer árvores e que não causaram àqueles quaisquer prejuízos.

Os autores reclamaram, por deficiência, contra a selecção da matéria de facto inserta na base instrutória, pedindo, a inclusão, nesta base, com fundamento na sua relevância para a boa decisão da causa, dos factos que alegaram nos artºs 3º, 20º 7º, 52º, 58º e 59º, e requereram se procedesse à inspecção judicial do local.

Porém, o Sr. Juiz de Direito, por despacho de 2 de Fevereiro de 2011 - com fundamento em que os artigos da p.i. aludidos na reclamação, que continham factos com relevo para a decisão da causa ou foram levados ou à matéria de facto assente ou à base instrutória, e que se não constam quaisquer pontos com a formulação pretendida pelos autores é precisamente porque os ditos artigos da p.i. contêm conclusões e não alegação de verdadeiros factos que possam ser quesitados – indeferiu a reclamação.

Realizada a perícia colegial pedida pelos requerentes, procedeu-se, no dia 4 de Julho de 2012, com a presença dos Exmos. Advogados de ambas as partes, à audiência de discussão e julgamento – sem registo sonoro das provas produzidas oralmente – no decurso da qual, por despacho proferido para a respectiva acta, se decidiu, por desnecessidade, não proceder à realização da inspecção judicial requerida pelos autores – despacho que estes não impugnaram através de recurso ordinário.

A sentença final, concluindo pela parcial procedência da acção, condenou as RR:

1. A reconhecer os autores como legítimos donos e possuidores do prédio identificado no art. 1º) da petição inicial, que adquiriram pela via originária da usucapião;

2. A reconhecerem que os AA. têm direito a levar a cabo os actos que se mostrem necessários em ordem à regularização da situação registral do seu identificado imóvel;

3. A retirarem a espécie de caleira que colocaram sobre o muro de vedação do prédio dos AA., a poente, ou sobre o seu logradouro, bem como os materiais usados para o altear, nos termos referidos em 19., 20., 21., 22. e 28. dos factos provados;

4. Julgar extinta a instância no que tange aos pedidos de tapagem dos orifícios mencionados em 23. dos factos provados e à retirada dos mecanismos de fixação do equipamento mencionado em 25. dos mesmos factos provados, inutilidade superveniente da lide, na medida em que tais acções foram levadas a cabo pelas RR. na pendência da acção.

5. Condenar as RR. a dotarem o equipamento de fornecimento de gás mencionado em 25. das condições de segurança legalmente exigidas, mormente procedendo à sua protecção;

6. A absterem-se, de futuro, da prática de qualquer acto que impeça, dificulte ou estorve o livre e pleno exercício do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio mencionado em 1.;

7. Condenar as RR. a pagarem aos AA. a quantia de 5.000€ a título de compensação pelos danos não patrimoniais que com a sua descrita conduta lhes causaram, acrescida de juros moratórios à taxa legal e supletiva, contados da presente data e até integral pagamento;

8. Absolver as RR. de tudo o que, de mais, havia sido peticionado.

É, justamente, esta sentença que tanto os autores como as rés impugnam através de recurso ordinário independente de apelação.

Os autores – que pedem, no seu recurso, a revogação da sentença na parte em que se recorre, se for caso disso, deve julgar-se procedente a impugnação do despacho que lhes indeferiu a reclamação por omissão dos identificados factos na Base Instrutória, fazendo-se, se for caso disso, baixar os autos nos legais termos e efeitos, devendo neste caso, ordenar-se se proceda à inspecção judicial ao local a fim de esclarecer o facto reconhecidamente relevante para a sorte da procedência do petitório ora em recurso; em consequência, substituir-se a douta Sentença recorrida por Acordão que acolha a pretensão dos Apelantes, condenando-se a final as Apeladas nos pedidos deduzidos nesta Acção que ainda o não foram – remataram a sua alegação, apresentada por via electrónica no dia 14 de Dezembro de 2012, com estas conclusões:

Por sua vez as rés – que pedem, no seu recurso, a declaração da nulidade da sentença recorrida por omissão de fundamentação da matéria de facto e de direito ou, se assim se não entender, a revogação da sentença recorrida por insuficiência da prova produzida para a matéria de facto provada – finalizaram a sua alegação com estas conclusões:

Nenhuma das partes respondeu ao recurso da outra.

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito dos recursos.

O âmbito do recurso é determinado, antes de mais, pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida. Dentro do objecto do processo e com observância dos casos julgados formados na acção, o âmbito do recurso delimita-se objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente, âmbito que pode ainda ser restringido pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição do recurso ou nas conclusões da alegação (artºs 684 nº 2, 1ª parte, e nº 3 do CPC).

O recurso ordinário não pode, pois, desde logo, incidir sobre matéria sobre a qual se formou caso julgado[1].

Um primeiro ponto que merece o descontentamento dos autores é o que prende com a decisão de indeferimento da diligência de inspecção judicial do local. No seu ver deve ser ordenada a produção desta prova, tendo a sua conta a sua relevância, atenta a matéria de facto alegada.

A este processo, dado que foi instaurado em data posterior a 1 de Janeiro de 2008, é aplicável, no tocante à impugnação das respectivas decisões, o sistema de recursos tal como foi reconformado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (artºs 11 e 12 nº 1 deste diploma legal).

No direito anterior a impugnação das decisões interlocutórias era instrumentalizada pelo recurso de agravo. Em face da supressão deste recurso ordinário poderia supor-se uma restrição da recorribilidade das decisões com tal natureza. Nada de menos exacto. A lei nova manteve a regra da recorribilidade das decisões interlocutórias, limitando-se, para obviar às desvantagens dessa recorribilidade, a estabelecer a regra da sua irrecorribilidade autónoma imediata, apenas admitindo a sua impugnação diferida e concentrada com o recurso interposto na decisão final (artº 691 nºs 1, 3 e 4 do CPC).

A irrecorribilidade autónoma imediata das decisões meramente interlocutórias dá decerto satisfação ao princípio da celeridade, dado que impede que o movimento do processo seja, a todo o momento, interrompido e prejudicado pela interposição de recursos, e da concentração de meios, uma vez que possibilita a apreciação simultânea pelo tribunal ad quem, num só recurso, de todas as decisões interlocutórias desfavoráveis para o recorrente.

Mas é claro que uma tal opção não é isenta de inconvenientes.

Desde logo provoca uma permanente insegurança sobre e eficácia das múltiplas decisões interlocutórias, dado que obsta à formação de caso julgado e á produção do efeito preclusivo correspondente. O vencido pela decisão final, no recurso que dela interpuser, tenderá a impugnar toda e qualquer decisão interlocutória anterior que julgue relevante para a procedência do recurso.

A recorribilidade diferida favorece decerto, a celeridade processual, mas pode provocar, no caso de procedência do recurso no tocante a uma decisão interlocutória, a inutilização dos actos processuais praticados depois do proferimento da decisão revogada.

Na verdade se o tribunal ad quem decidir que o recorrente tem razão relativamente quanto a qualquer decisão interlocutória, a procedência do recurso terá como consequência a inutilização de tudo o que se processou posteriormente ao despacho não autonomamente recorrível, incluindo, naturalmente, a decisão final que, assim, é proferida em pura perda. A procedência da apelação sem o proferimento de uma decisão sobre o mérito será, por isso, uma ocorrência vulgar.

A concentração da impugnação inerente à irrecorribilidade autónoma imediata das decisões interlocutórias diminui formalmente o número de recursos – mas aumenta materialmente, por impedir que sobre elas se forme de caso julgado, o número de questões susceptíveis de constituir objecto dele e a probabilidade de proferimento, pelo tribunal ad quem, decisões de forma inutilizadoras de decisões finais de mérito.

Para obviar a este último inconveniente, a lei exceptua da regra da impugnação diferida e concentrada, justamente o despacho de admissão ou de rejeição de meios de prova – que deve ser interposto no prazo de 15 dias, contado da sua notificação (artºs 685 nº 1 e 691 nº 2 i) e 5 do CPC). A razão pela qual uma tal decisão é recorrível imediata e autonomamente prende-se, precisamente, com a minimização do risco de inutilização do processo – quer por força da necessidade de produzir o meio de prova rejeitado ou da exigência de reconformar a decisão da matéria de facto assente em meios de prova admitidos em violação da lei[2].           

Pois bem. Na espécie do recurso, os autores requereram a realização da inspecção judicial ao local, mas o requerimento foi indeferido por despacho proferido para acta da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 4 de Julho de 2012. Ora, como os recorrentes se consideram notificados logo no momento em que tal decisão foi proferida – por estarem presentes nesse momento – mas não a impugnaram nos 15 dias seguintes, por recurso autónomo imediato, mas apenas no recurso que interpuseram da sentença final, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que deixaram caducar o direito à sua impugnação e que, portanto, aquela decisão passou em julgado (artºs 144 nºs 1 a 3, 145 nºs 1 a 3 e 677 do CPC).

Portanto, por constituir res judicata, o recurso da decisão final não pode ter objecto a questão do indeferimento da realização da inspecção judicial. Efectivamente, como dentro do objecto do processo, o recurso deve observar os casos julgados entretanto formados na acção – e como por força do caso julgado que se formou sobre a apontada decisão de indeferimento, está irrepetivelmente decidido que a produção daquela prova é desnecessária - aquela questão não constitui objecto admissível dele.

É exacto que se lê a dado passo da sentença impugnada, que permanece a indefinição, na alegação (dos autores) sobre o tipo, a origem ou o destino das paredes que mencionam, por forma a poderem qualificar-se como simples vedação ou como parte de uma edificação/construção, e qual a sua natureza ou destino e, no que tange à altura, igualmente não alegam qual a conexão com a sua habitação (…).

A prova é a actividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos (artº 341 do Código Civil). Essa actividade incumbe à parte onerada, que não obterá uma decisão favorável se não satisfizer esse ónus (artºs 516 do CPC e 346 do Código Civil).

O objecto da prova são factos – ou mais rigorosamente, afirmações de facto, dado que só estas podem ser dadas como verdadeiras ou falsas - que podem ser acontecimentos físicos, ou estados anímicos ou psíquicos, ou mesmo situações jurídicas, como, por exemplo, o direito cuja violação origina responsabilidade civil. E factos pertinentes, ou seja factos que interessem à solução do pleito segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artº 511 nº 1 do CPC). Mesmo entre os factos pertinentes, o juiz, num processo – como o nosso – regido pelo princípio da disponibilidade privada, só pode servir-se dos factos alegados pelas partes, excepto se se tratar de factos puramente instrumentais, notórios ou de conhecimento funcional (artºs 264 nº 2, 514 nºs 1 e 2 e 664, 2ª parte, do CPC).

O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo determina que incumbe às partes a definição desse objecto e a realização da prova desses factos. Assim, cabe ao autor, além do mais, invocar a causa de pedir, i.e., os factos necessários essenciais dos quais resulta a situação subjectiva alegada pela parte, o facto concreto e não a categoria jurídica em que se enquadra o facto alegado (artºs 498 nº 4, 1ª parte, do CPC). Como complemento desta delimitação privada do objecto processual, incumbe às partes a realização da prova dos factos incluídos no objecto do processo (artº 342 nº 1 do Código Civil).

Como decorre do passo citado da sentença apelada, esta ficou na dúvida sobre a origem, a finalidade das paredes erigidas nos prédios das rés, sobre a sua integração ou não numa construção, a natureza e finalidade desta. Mas essa dúvida não se deve a uma insuficiência do exercício da prova – v.g., resultante da omissão da realização da prova por inspecção – mas a uma deficiência da alegação dos autores, da invocação dos factos integrantes da causa petendi, o mesmo é dizer, dos factos essenciais para individualizar a situação subjectiva alegada.

Realmente, os autores limitaram-se a alegar, na petição inicial, para individualizar o seu direito à demolição das paredes erigidas pelas rés nos seus prédios, que se trata de paredes contíguas erigidas a 12, 50 metros de altura, revestidas de chapa metálica de cor cinza, de uma cortina metálica, de altos muros e obras clandestinas de emparedamento, não tendo, em lado nenhum daquele articulado, indicado a exacta finalidade daquelas paredes e das obras correspondentes, caracterizado a construção ou edificação em que eventualmente se integram, e a finalidade desta construção ou edificação, etc.

A realização da prova dos factos supõe, logicamente, que os factos probandos tenham sido alegados. Dito doutro modo: o ónus da prova implica a prévia satisfação de um outro ónus decorrente do princípio da disponibilidade das partes – o ónus da alegação. Do que deriva, em boa lógica, esta consequência irrecusável: a prova não supre o ónus da alegação, pelo que não é admissível, através do exercício da prova, julgar demonstrados factos que não foram alegados.

Os recorrentes alegam no recurso que as obras novas implantadas pelas rés no seu prédio consistem num edifício industrial. E, realmente, os peritos, na resposta ao quesito nº 24 - no qual se lhes perguntava se pelo emparedamento a que as rés sujeitaram o imóvel dos autores, se verificava uma desvalorização deste imóvel, atenta a sua função habitacional e de lazer – admitem uma desvalorização do imóvel, pela existência de construção tipo industrial na proximidade.

Simplesmente - e abstraindo do que se deve entender por construção tipo industrial - em lado nenhum da petição inicial, os recorrentes alegaram que as obras realizadas pelas rés nos seus prédios consistiam num edifício industrial. Nestas condições, como a prova não supre o ónus da oportuna alegação, não é admissível, por força da prova pericial – ou de qualquer outra – julgar provado que as obras levadas a cabo pelas rés consistem num edifício industrial, dado que tal facto não foi objecto de alegação.

De resto, há que articular o ónus da alegação com a finalidade que a nossa lei adjectiva assinala ao recurso ordinário.

Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[3].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[4].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[5].

Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[6].

Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso[7]: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito, os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis ou falta de citação do demandado, quando a nulidade correspondente não deva considerar-se sanada – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

Na espécie sujeita, o facto relativo ao tipo ou à natureza da edificação levada a cabo pelas rés no seu prédio – um edifício industrial - não foi objecto de alegação na instância recorrida. Trata-se, portanto, de um facto novo. Como o recurso de apelação visa apenas reapreciar o pedido ou pedidos formulados na 1ª instância com a matéria de facto nela alegada, é claro que aquele facto – por mais relevante que seja – não pode ser considerado no recurso. De resto, de harmonia com a prova documental disponível – o requerimento de licença apresentado pela ré J…  na CM de … – a obra para a qual aquela foi pedida tem por destino não o exercício da indústria mas do comércio.

O exame da alegação dos autores e das rés mostra que a impugnação, de uns e de outras, se dirige contra a decisão da matéria de facto. Mas é nítida a diferença, num caso e noutro, do fundamento dessa impugnação.

Realmente, ao passo que a impugnação da decisão da matéria de facto das rés tem por fundamento o error in iudicando daquela matéria por erro na aferição ou valoração da prova – já que segundo as rés, da prova testemunhal e pericial produzida não pode concluir-se que se mostram provados os factos constantes dos nºs 10 a 24, 30, 31, 32 e 34 da sentença recorrida – a impugnação dos autores radica no error in iudicando da questão de facto, mas por erro sobre o objecto da prova, ou mais exactamente, por erro na selecção do objecto dessa prova: não se trata da violação dos critérios de apreciação da prova – mas da infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto.

Um outro fundamento da impugnação – também comum a ambos os apelantes – é o da nulidade substancial da decisão impugnada, de resto, por uma multiplicidade de causas: a falta de fundamentação, a contradição intrínseca e a omissão de pronúncia.

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e da alegação de ambas das partes, as questões concreta controversas que esta Relação é chamada é resolver são as de saber se:

a) A sentença impugnada se encontra ferida com o valor negativo da nulidade substancial;

b) O tribunal da 1ª instância, incorreu, na decisão da matéria da matéria de facto num error in iudicando, por erro na avaliação da prova e por erro sobre objecto dessa prova;

c) A sentença impugnada deve ser revogada e substituída por acordão que julgue a acção inteiramente procedente ou, inversamente, integralmente improcedente.

3.2. Nulidade substancial da sentença impugnada.

Todos os recorrentes assacam, à uma, à sentença impugnada o vício grave da nulidade substancial. De harmonia com a alegação dos autores, esse vício radicaria na falta de fundamentação, na omissão de pronúncia e na contradição intrínseca; segundo as rés, esse valor negativo teria por causa a omissão de pronúncia e a falta de fundamentação.

Toda e qualquer decisão do tribunal – despacho, sentença, acórdão – comporta, sempre, dois elementos essenciais: os fundamentos e a decisão. Os fundamentos incluem a matéria de facto relevante e o regime jurídico que lhe é aplicável; a decisão em sentido estrito contém a conclusão que se extrai da aplicação do direito aos factos.

Uma das funções essenciais de toda e qualquer decisão judicial é convencer os interessados do bom fundamento da decisão. A exigência de motivação da decisão destina-se a permitir que o juiz ou juízes convençam os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz ou juízes devem passar de convencidos a convincentes.

Compreende-se facilmente este dever de fundamentação, pois que os fundamentos da decisão constituem um momento essencial não só para a sua interpretação – mas também para o seu controlo pelas partes da acção e pelos tribunais de recurso[8].

A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível – como sucede na espécie sujeita - de garantia do direito ao recurso.

A exigência de fundamentação decorre, pois, desde logo, da necessidade de controlar tanto a coerência interna como a correcção externa da decisão.

A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.

A correcção ou justificação externa da decisão diz respeito à correcção da construção das suas premissas de facto e de direito: ainda que a decisão se mostre coerente com aquelas premissas e, por isso, seja logicamente válida, a decisão não pode ser correcta se aquelas premissas não tiverem sido obtidas correctamente.

Todavia, o dever funcional de fundamentação não está orientado apenas para a garantia do controlo interno - partes e instâncias de recurso - do modo como o juiz exerceu os seus poderes. O cumprimento daquele dever é condição mesma de legitimação da decisão.

Na motivação da decisão o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual devem resultar as boas razões que fazem aceitar razoavelmente a decisão, numa base objectiva, não só para as partes, mas também – num plano mais geral – para toda a comunidade jurídica. Na motivação, o juiz deve demonstrar a consistência dos vários aspectos da decisão, que vão desde a determinação da verdade dos factos na base das provas, até à correcta interpretação e aplicação da norma que se assume como critério do julgamento. Da motivação deve resultar particularmente que a decisão foi tomada, em todos os seus aspectos, de facto e de direito, de maneira racional, seguindo critérios objectivos e controláveis de valoração, e, portanto, de forma imparcial[9]. Dito doutro modo: a decisão não deve ser só justa, legal e razoável em si mesma: o juiz está obrigado a demonstrar que o seu raciocínio é justo e legal, e isto só pode fazer-se emitindo opiniões racionais que revelem as premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[10].

A fundamentação da decisão é, pois, essencial para o controlo da sua racionalidade. Pode mesmo dizer-se que esta racionalidade é uma função daquela fundamentação. E como a racionalidade da decisão só pode ser aferida pela sua fundamentação, esta fundamentação é constitutiva dessa mesma racionalidade.

Por isso que as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer, dúvida suscitada no processo serão sempre fundamentadas (artºs 208 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 158 nº 1 e 659 nº 2 do CPC).

A falta de motivação ou fundamentação verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. A nulidade decorre, portanto, da violação do dever de motivação ou fundamentação de decisões judiciais (artº 208 nº 1 da CRP e 158 nº 1 do CPC).

No entanto, quanto a este ponto, há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (artº 158 nº 1 do CPC)[11].

Depois, o tribunal não está vinculado a analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas fundamentais e necessários á decisão da causa[12]. Se a decisão invocar algum fundamento de facto ou de direito – ainda que exasperadamente errado - está afastado a nulidade, no tocante à justificação fáctica e jurídica da decisão.

O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[13].

A decisão é igualmente nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão (artº 669 nº 1 c) do CPC)[14]. Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.

O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, evidentemente, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artº 660 nº 2 do CPC).

Este corolário do princípio da disponibilidade objectiva, significa que a sentença deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se torne inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. Por isso, é nula a decisão em que o tribunal deixe de se pronunciar, de forma infundamentada, sobre questões que devesse apreciar, ou seja quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 661 nº 1 d), 1ª parte, do CPC).

Ambas as partes se queixam da violação, pela decisão impugnada, do dever de fundamentação. Mas sem razão.

No tocante à arguição da nulidade, por este fundamento, da decisão recorrida, deduzida pelas rés, é patente a confusão entre a fundamentação da decisão da matéria de facto – e a motivação da sentença.

O quadro dos valores negativos da sentença está nitidamente pensado para um sistema de cisão entre a decisão da matéria e aquela sentença (artºs 653 nº 2, 658 e 659 nºs 1 a 3 do CPC).

Num contexto de um sistema de césure entre o julgamento da matéria de facto e a sentença, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último acto decisório[15].

Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: aquela decisão é impugnável por meio de reclamação, acto contínuo à sua publicação, e não é autonomamente recorrível, i.e., apenas pode ser impugnada no recurso que for interposto da sentença final, podendo, neste caso o controlo sobre o julgamento da matéria de facto ser feito pela Relação, nos termos gerais (artºs 653 nº 4, 2ª parte, e 712 do CPC). Quer dizer: qualquer vício que afecte a decisão da matéria de facto não constitui realmente causa de nulidade da sentença.

Assim, por exemplo, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão da questão de facto, dá lugar a uma forma mitigada do uso de poderes de cassação: a Relação pode ordenar, a requerimento da parte, que o tribunal de 1ª instância fundamente a sua decisão sobre a matéria de facto, mesmo que, para isso, tenha de repetir a produção da prova (artº 712 nº 5 do CPC). Na espécie do recurso, as rés apesar de arguirem o vício da falta de fundamentação daquela decisão, não formularam tal requerimento, pelo que, mesmo que a arguição se devesse ter por exacta, ela seria falha de consequências.

Segundo as rés, a sentença impugnada omitiu, completamente, a fundamentação dos factos considerados provados. Simplesmente, a sentença final não tem que conter a motivação da decisão da matéria de facto: tal motivação deve conter-se, não na sentença, mas no despacho que decidir a questão de facto.

Na impossibilidade de submeter a apreciação da prova a critérios objectivos - como são, decerto, os que exigem uma demonstração por leis científicas - a lei apela à convicção íntima ou subjectiva do tribunal. Essa convicção exigida para a demonstração do facto é uma convicção que, para além de dever respeitar as leis da ciência e do raciocínio, pode assentar numa regra máxima da experiência. A convicção sobre a prova do facto fundamenta-se em regras de experiência baseadas na normalidade das coisas e aptas a servirem de argumento justificativo dessa convicção. Essas regras de experiência podem corresponder ao senso comum ou a um conhecimento técnico ou científico especializado.

A convicção do tribunal extraída dessas regras da experiência é uma convicção argumentativa, isto é, uma convicção demonstrável através de um argumento. A regra de experiência que o tribunal pode utilizar para fundamentar a sua convicção sobre a prova realizada é a mesma que pode ser usada pela parte como argumento para a formação dessa convicção. Quer dizer: a máxima de experiência que pode convencer o tribunal da veracidade do facto é a mesma que pode ser utilizada para a fundamentação da decisão desse órgão sobre a apreciação da prova[16].

A decisão da matéria de facto deve, pois, especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz sobre a prova – ou falta dela – dos factos, para que, através das regras de ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (artº 653 nº 2 do CPC).

A apreciação do meio de prova pressupõe o conhecimento do seu conteúdo - v.g., o teor do documento ou a depoimento da testemunha – a determinação da sua relevância – que pode ser muita ou nenhuma – e a sua valoração – como, por exemplo, a credibilidade da testemunha ou do relatório pericial.

Porém – repete-se - a especificação dos fundamentos que foram decisivos para o julgamento da questão de facto deve conter-se no despacho que decida essa matéria e não na sentença final. Esta, no tocante à matéria de facto, deve limitar-se a expor os fundamentos de facto, que respeitam, naturalmente, aos factos relevantes que foram adquiridos durante a tramitação da causa (artº 659 nº 2 do CPC).

A motivação da sentença compreende igualmente a exposição dos fundamentos de direito, i.e., os fundamentos relativos à interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis aos factos relevantes para a decisão que foram adquiridos durante o processo.

E, no caso, é de todo, indubitável que a sentença impugnada contém, de forma inteiramente suficiente, os fundamentos tanto de uma espécie como de outra. De nulidade da sentença impugnada por falta de fundamentação é coisa que, em boa verdade, não pode falar-se.

Segundo as rés, a sentença padeceria do vício da nulidade também por uma outra causa: a falta de exame crítico das provas.

 Como já se notou, os fundamentos da sentença são de duas espécies: fundamentos de facto e fundamentos de direito. Os fundamentos de facto sobre os quais assenta a decisão podem ter, designadamente, esta origem: o exame crítico das provas (artº 659 nº 3, in fine, do CPC).

Este exame crítico das provas a que a sentença deve proceder pode levantar dúvidas fundadas. Com efeito, os factos que interessam à decisão da causa – abstraindo dos notórios – repartem-se por aqueles que foram considerados assentes e por aqueles que constam da base instrutória. Da prova dos primeiros já não tem o juiz que se ocupar neste momento – já foram dados como factos não controvertidos; da prova dos segundos não tem que se ocupar o juiz na sentença final, mas o tribunal da audiência final.

Parece, por isso, que aquele exame crítico se refere a duas figuras que, latamente, se podem considerar provas ou que podem ser incluídas na análise crítica das provas: as presunções, legais ou judiciais; o chamado ónus da prova[17].

Assim, se dos factos assentes ou da decisão do tribunal da audiência final constarem factos indiciários donde se possa concluir outros por presunção – de facto, de direito ou judicial – é lícito ao juiz da sentença tirar essa conclusão[18]. No caso de non liquet – i.e., no caso de a prova produzida não ter permitido resolver alguma questão - de facto, ou seja, no caso de dúvida insanável ou irredutível, o tribunal deve decidir contra a parte a quem o facto aproveita (artºs 516 do CPC e 346 do Código Civil): a aplicação deste sistema é uma das formas de fixação dos factos que ao juiz compete conhecer no momento da sentença final.

Portanto, a bem pouco se resume o exame crítico das provas a que o juiz da sentença deve proceder.

No caso, a sentença impugnada, não inferiu, por presunção, judicial ou legal, dos factos provados, quaisquer outros factos, pela circunstância de não existirem factos indiciários dos quais se pudessem concluir outros – mas não deixou de proceder à análise do cumprimento do ónus da prova, tendo proferido decisão parcialmente desfavorável aos autores, justamente fundada no facto de não estarem adquiridos para o processo os factos – cuja prova competia àqueles – susceptíveis, à luz da norma jurídica aplicável, de justificar essa procedência. Foi o que sucedeu, notoriamente, com o pedido de indemnização relativo ao dano da remoção do solo do logradouro do prédio dos autores e à destruição das árvores nele plantadas.

De outro aspecto, como não é patente a razão pela qual os autores imputam à sentença apelada o defeito da omissão de pronúncia, a conclusão a tirar quanto a este ponto é a de que não há a mínima razão para, com fundamento numa omissão de pronúncia, assacar àquela sentença o vício da nulidade substancial.

Segundo os autores, a sentença impugnada incorreu no vício da nulidade por contradição intrínseca, já que no seu ver, aquela apresenta, no seu corpo, fundamentos que conduziriam a uma decisão condizente com o deferimento dos pedidos formulados a este título – para a fixação dos danos patrimoniais – e decidiu, de certo modo, em oposição com eles.

Se bem entendemos o pensamento dos autores, a colisão intrínseca verificar-se-ia, parece, entre os fundamentos e a decisão de improcedência dos pedidos de reparação dos danos patrimoniais.

Os autores pediram a condenação das rés a reparar os danos relativos à substituição do solo do terreno do seu prédio e à replantação de novas árvores – que computaram em € 2 500,00 – e à reposição de parte desse terreno ao estado anterior, cuja liquidação pediram que fosse relegada para momento ulterior. A sentença apelada, porém, notando que não estava demonstrado que o solo arável tivesse sido removido e as árvores destruídas pelas rés julgou improcedente o pedido de indemnização, tanto o líquido como o genérico.

Do mesmo modo, a sentença impugnada, depois de assentar em que a matéria de facto disponível era insuficiente para concluir pela ilicitude, tanto no domínio administrativo como no plano estritamente civil, das obras realizadas pelas rés nos seus prédios, julgou improcedente o pedido da sua demolição.

Ora, desde que no ver da decisão recorrida, faltava, num caso, a prova da autoria do facto ilícito e, noutro, da ilicitude da obra realizada pelas rés, e julgou improcedentes os pedidos de reparação do dano e de demolição da obra, respectivamente, pode dar-se por certo que não há qualquer colisão entre a decisão e os fundamentos em que se apoia, dado que os fundamentos invocados pelo decisor da 1ª instância não conduzem, logicamente, à procedência dos apontados pedidos, mas à decisão inversa nela expressa. Não se verifica, portanto, na construção da sentença, qualquer vício lógico que comprometa, irremediavelmente, a sua coerência interna. A contradição intrínseca dessa decisão verificar-se-ia, sim, por exemplo, se depois de assinalar que faltava a prova da autoria do facto ilícito, condenasse as res na reparação do dano correspondente.

A decisão impugnada não se encontra, pois, ferida com o vício da nulidade que todas as partes, ainda que por fundamentos vários e diversos, lhe assacam

De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.

O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.

Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC).

No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).

Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso.

Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.

Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).

A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.

Por este lado, nem um nem outro recurso, dispõem, pois, de bom fundamento.

3.3. Impugnação da decisão da matéria de facto.

3.3.1. Erro de julgamento da matéria de facto por erro na valoração das provas.

A apelação destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria, que pode radicar, desde logo, num erro na apreciação dessa prova. Esse controlo concretiza-se, nomeadamente, no poder de alterar a decisão da matéria de facto proferida pelo decisor da 1ª instância (artº 712 nº 1 do CPC).

Simplesmente, a atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe, naturalmente, desde logo, que a esse Tribunal sejam disponibilizadas as provas produzidas na instância recorrida,

            A Relação pode reapreciar a decisão da matéria de facto e, consequentemente, alterar e substituir a decisão corresponde da 1ª instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, ou se a prova pessoal produzida na audiência tiver sido objecto de registo ou quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa que não possa ser contrariada por quaisquer outras provas (artº 712 nº 1 b) do CPC).

De qualquer modo, a impugnação, no segmento em que se refere à valoração da prova testemunhal está, de todo, prejudicada.

 Efectivamente, na espécie sujeita, os depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência não foram objecto de qualquer registo, sonoro ou outro. O controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de facto como provado ou não provado, pelo depoimento de uma testemunha não requer a presença desta perante a Relação. Todavia, compreende-se, pela natureza das coisas, que para que a Relação possa exercer a sua função de controlo sobre a decisão recorrida, lhe seja facultado o acesso a essas provas, designadamente, ao seu registo.

            Como, no caso, a prova testemunhal não foi registada está, evidentemente, impossibilitado o exercício por esta Relação dos apontados poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto.

             É verdade que a prova testemunhal não foi a única prova produzida na instância recorrida e que a Relação deve actuar os seus poderes de controlo designadamente quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa que não possa ser contrariada por quaisquer outras provas (artº 712 nº 1 b) do CPC). Estará nessas condições, o documento ou a declaração confessória que façam prova plena do facto documentado ou confessado que o decisor da 1ª instância tenha desconsiderado (artºs 371 nº 1, 376 nº 1, 377, 352 e 358 nº 1 do Código Civil).    

            Mas não é, decerto, esse o caso da outra prova indicada pelos recorrentes: a prova pericial. Esta prova está sujeita à livre – mas prudente – apreciação do tribunal e pode ser contrariada designadamente pela prova testemunhal ou documental (artºs 388 do Código Civil).

Em todo o caso, é claro, de um aspecto, que a prova que, na espécie sujeita, concorreu decisivamente para o julgamento da esmagadora maioria dos pontos de facto que os recorrentes acham que foram erroneamente julgados – como decorre da motivação com que o decisor de facto procurou justificar o seu julgamento, cotejada com o objecto fixado à perícia – foi, patentemente, a prova testemunhal e, de outro, que no tocante aos pontos de facto para cuja prova relevou a perícia – v.g., o relativo ao receio dos autores com o perigo da fixação as instalações de gás no seu muro – não há a mínima razão para concluir que uma tal prova foi mal aferida ou apreciada. Recorde-se, no tocante a este ponto, que os peritos foram terminantes e acordes em concluir que as instalações de gás, face à justificação técnico-legal, poderão suscitar alguma preocupação.

A conclusão a tirar é, portanto, a de que a impugnação dirigida pelas rés contra a decisão da matéria de facto é - tal como a arguição da nulidade da sentença impugnada - é de todo improcedente. E como aquela impugnação e esta arguição constituam os únicos fundamentos do seu recurso, outra coisa não resta que negar-lhe provimento.

3.3.2. Erro de julgamento da matéria de facto por erro sobre o objecto da prova.

O error in judicando da matéria de facto pode, todavia, radicar numa causa diversa do erro na apreciação da prova: o erro na selecção do objecto dessa prova.

Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância não respeita à violação dos critérios de apreciação da prova – mas à infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto. Não se trata, portanto, de controlar a correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto – mas a exactidão da operação de selecção dessa matéria.

A selecção da matéria de facto desdobra-se em duas operações diversas: a primeira é a escolha, a partir do mole de factos articulados pelas partes, dos factos relevantes, i.e., dos factos que correspondem a todos os possíveis enquadramentos jurídicos da causa (artº 511 nº 1 do CPC); a segunda é a separação, no conjunto factos julgados relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, daqueles que devem considerar-se assentes e dos que se mostram controvertidos, i.e., dos que devem constituir objecto da prova e, como tal, devem figurar na base instrutória (artºs 508-A nº 1 e 511 nº 1 do CPC).

Esta selecção deve incidir sobre todos os factos que sejam relevantes segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção. Assim, qualquer facto não deve deixar de ser seleccionado, ainda que ele só possa ser relevante se, em relação a uma questão controversa na doutrina ou na jurisprudência, o tribunal vier a adoptar um determinado entendimento ou a preferir uma certa solução: ao juiz da causa não cabe, no momento da selecção dos factos relevantes, antecipar qualquer solução jurídica e, menos ainda, excluir da escolha os factos que não forem relevantes segundo esse enquadramento.

A decisão de selecção da matéria de facto pode encontrar-se ferida dos vícios da deficiência, excesso ou da obscuridade (artº 511 nº 2 do CPC).

Aquele despacho é deficiente quando omite factos relevantes para a decisão da causa, i.e., facto articulado controvertido pertinente à causa e indispensável para a resolver; sofre do vício oposto, i.e., do excesso, se versa sobre factos não articulados ou sobre factos alegados mas que não pertencem à categoria dos factos controvertidos; padece do defeito da obscuridade, quando se encontra redigido em termos tais, que suscita dúvida legítima sobre o verdadeiro sentido ou alcance dos pontos de facto objecto de selecção ou quando de todo em todo não se apreende o seu sentido ou aqueles se prestam a interpretações diferentes.

A cada um destes vícios corresponde um simétrico fundamento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, que é decidida por despacho. Mas o despacho que recai sobre essa reclamação não é autonomamente recorrível, só podendo ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC).

Ao despacho que decida a reclamação contra a matéria de facto não se associa, portanto, o efeito de caso julgado, que torne indiscutível, a exactidão do procedimento quer da escolha dos factos relevantes quer da sua repartição entre os que devem desde logo considerar-se assentes e os que devem reputar-se controvertidos.

Todavia, a impugnação do erro na selecção do objecto da prova, não está sequer na dependência da dedução de reclamação contra o despacho correspondente, desde que qualquer dos vícios dessa selecção se repercuta no julgamento da matéria de facto, por se manterem no momento desse julgamento, seja pelo singular seja pelo tribunal colectivo.

A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido impugnada através de reclamação, não transita em julgado e, portanto, não impede o exercício, mesmo oficiosamente, pela Relação do poder de controlo da correcção do procedimento correspondente.

Esta patologia da decisão da matéria de facto, proveniente de erro na selecção da matéria de facto, pode dar lugar à alteração, pela Relação, daquela decisão ou à anulação mesmo do julgamento correspondente. No primeiro caso a apelação é julgada de harmonia com o modelo de substituição; no segundo, o julgamento desse recurso segue, nitidamente, o sistema de cassação.

Sempre que considere deficiente obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto ou quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto – por se ter omitido o julgamento de um facto relevante, designadamente por não constar da base instrutória – a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC)[19].

O julgamento do recurso de harmonia com o modelo de cassação justifica-se pelo facto de a decisão da matéria de facto se encontrar ferida de um erro de julgamento, mas de este erro não resultar de um erro na apreciação da prova - mas de um erro sobre o objecto dessa prova.

Seria esse, segundo os autores, justamente o caso do recurso já que não foram seleccionados para base instrutória – devendo tê-lo sido - as alegações que produziram nos artºs 3º, 20º, 52º e 59º do articulado de petição inicial.

Consabidamente qualquer operação urbanística exige um título habilitativo – a licença administrativa que constitui o acto de controlo prévio mais exigente e rigoroso das operações urbanísticas. Estão sujeitas a licença administrativa, desde logo, as operações de loteamento, cujo alvará deve definir os parâmetros das obras de urbanização – i.e., de dotação do terreno de infraestruturas urbanísticas - bem como das obras de construção de edifícios (artº 4 nº 2 do RJUE, aprovado pelo Decreto-Lei nº 559/99, de 16 de Dezembro, modificado, por último, pela Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro, e pelo Decreto-Lei nº 26/2010, de 30 de Março).

O controlo prévio da operação urbanística é actuado – de harmonia com o princípio da procedimentalização da actividade administrativa – através de um procedimento – o procedimento de licença - rigorosamente formal, e a legitimidade para a sua promoção, radica na titularidade de qualquer direito que confira a faculdade de realizar a operação urbanística, titularidade que deve ser indicada e comprovada no requerimento, através do qual aquele procedimento é colocado em marcha (artº 8 nº 1 e 9 nºs 1 e 2 do RJUE).

Pode dizer-se, de forma deliberadamente simplificadora, que a licença da operação urbanística – v.g., obras de construção de edifício - mais não é de que o acto administrativo autorizativo pelo qual a administração realiza um controlo prévio da actividade dos administrados, traduzidas, em geral, na realização de transformações urbanísticas do solo, com vista a verificar se ela se ajusta ou não, às exigências do interesse público urbanístico, tal como ele se encontra plasmado no ordenamento jurídico vigente. A concessão da licença – que é um título que adopta a designação tradicional no nosso direito autárquico de alvará – permite a realização da operação urbanística e atesta, em princípio, a sua conformidade com o ordenamento jurídico-urbanístico, e, portanto, a sua licitude administrativa; o indeferimento do pedido de licenciamento, tem, naturalmente, o efeito inverso.

Portanto, o requerimento inicial do procedimento de licença – e qualquer acto deste procedimento, maxime, o seu deferimento ou indeferimento – só documentalmente podem provar-se (artº 364 nº 1 do Código Civil). Ergo, tal facto é insusceptível de ser seleccionado para a base instrutória, visto que ao tribunal – singular ou colectivo – da audiência, está proibido, sob pena de existência da resposta, de se pronunciar sobre factos que só documentalmente possam provar-se (artº 646 nº 4 do CP). O que não obsta a que tal facto seja considerado pela sentença final, dado que esta deve utilizar como fundamentos de facto todos os factos que foram adquiridos durante a tramitação da causa, designadamente os provados por documentos juntos ao processo por iniciativa das partes ou do tribunal – e não apenas os factos que, na fase da audiência final, foram julgados provados pelo tribunal singular ou colectivo (artºs 514 nº 2, 523, 524, 535 e 659 nº 3 do CPC).

Nestas condições, os factos relativos ao requerimento do procedimento de licença e ao seu deferimento ou indeferimento não devem ser seleccionados para a base instrutória.

De resto – ao contrário do que nitidamente supõem os autores – os factos relativos ao licenciamento das obras realizadas pelas rés não devem ter-se por relevantes para a apreciação da sua situação jurídica.

O facto de ao autor de uma operação urbanística de edificação ter sido concedida, pela autarquia, licença de construção e de utilização dessa obra não inibe terceiros de exercerem os seus direitos.

O problema de saber se um acto autorizativo administrativo, que exclui a ilicitude no âmbito do direito administrativo, deverá também ser considerado como causa justificativa o domínio jurídico-civil é particularmente complexo[20].

Uma solução possível é a de delimitar o âmbito da aplicação da norma de justificação ao domínio específico de que ela faz parte, deixando incólume a norma de ilicitude pertencente a outros ramos de direito. Assim, uma licença de construção civil exclui apenas a ilicitude segundo as normas do direito urbanístico e de edificações urbanas – mas não exclui a ilicitude no campo do direito civil. Portanto, apesar de a actividade destinatária de uma autorização ser valorada como lícita pela ordem jurídico-administrativa, ela pode ter suportar, em alguns casos, a actio negatória de terceiros e acções de responsabilidade extracontratual por actos ilícitos.

A autorização administrativa opera como causa justificativa no âmbito do direito administrativo não se transfere ipso facto para o direito civil. O acto autorizativo jurídico-público deixa, por isso, imperturbados os direitos de terceiro modelados pela lei civil. Está nestas condições a autorização de construção ou utilização que deve limitar-se a reconhecer e a conotar juridicamente o ius aedificandi e já não a obrigar terceiros a tolerar efeitos resultantes do exercício, pelo beneficiário da autorização, da actividade privada de construção, autorizada pela administração. O acto administrativo não conforma jurídico-materialmente a relação jurídica civil, não produzindo quaisquer efeitos preclusivos dos direitos de terceiros[21].

É esta, de resto, a razão que explica as especiais exigências de publicidade a que o alvará de licença está sujeito, que têm justamente por finalidade facilitar a utilização por terceiros lesados nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, pelos actores populares ou pelo Ministério Público, dos meios jurisdicionais de protecção contra a licença.

Numa palavra: o facto de obra ter sido licenciada pela administração não obsta a que terceiros a quem ela prejudica, exerçam os direitos que para eles decorrem, por exemplo, do conteúdo do seu direito real de propriedade[22].

E o inverso também é verdadeiro. O facto de a obra não ter sido licenciada pela administração não a torna automaticamente ilícita, no plano civil. Seja qual for a consequência jurídica no plano administrativo, no plano estritamente civil é sempre necessário demonstrar que a obra preenche uma das cláusulas de ilicitude dispostas na lei; a ofensa de um direito absoluto ou de uma disposição de protecção (artº 483 nº 1 do Código Civil).

A matéria de facto respeita à averiguação de factos e o resultado dessa actividade exprime-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Este critério gnoseológico é seguido pela jurisprudência, para a qual é questão de facto o apuramento das ocorrências do mundo real, dos eventos materiais e concretos, de quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, bem como o do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou coisas[23].

Maneira que para a base instrutória apenas podem ser seleccionados factos concretos e positivos e não puras conclusões ou juízos valorativos. Nestas condições, expressões como insólitos e inqualificáveis abusos e desvalorização total do imóvel, obras clandestinas, normais vistas da sua habitação, horizonte visual, desvalorização da qualidade de vida, são insusceptíveis de ser levadas à base instrutória, dado que exprimem, não factos materiais concretos, mas simples conclusões.

 De resto, os factos concretos dos quais se pode concluir pela depreciação do prédio dos recorrentes e da sua qualidade de vida – como, por exemplo, a localização e a altura das paredes erigidas pelas rés nos seus prédios – foram insertos naquela base.

Ao não seleccionar para a base da prova aquelas alegações das recorrentes, o tribunal a quo não incorreu em qualquer erro na selecção da base instrutória e, não houve, portanto, a omissão de julgamento, por não constar da base instrutória, de qualquer facto relevante.

Não há, por isso, razão para esta Relação ordene a ampliação da matéria de facto, com a consequente cassação do julgamento dessa matéria.

Este fundamento do recurso dos autores deve, pois, improceder também.

E face a essa improcedência de um tal fundamento da impugnação segue-se que todas as demais questões objecto do recurso serão apreciadas tendo em conta a matéria de facto, tal como se mostra recortada pelo tribunal de que provém o recurso.

3.4. Pedido de demolição da obra realizada pelos rés nos seus prédios.

Um dos pedidos dos autores – formulado na al. c) da conclusão do articulado de petição inicial - que a sentença impugnada desamparou foi o de demolição das paredes altas levada a cabo pelas nos prédios das rés.

A sentença impugnada observou, para julgar improcedente este pedido, designadamente que os AA. nem sequer clarificaram na sua alegação o que são as paredes, se são vedações se constituem, de facto paredes, de uma edificação urbana (casa, armazém, ou o que seja) e qual a sua específica finalidade, e que os AA. nem sequer alegaram factos de onde se possa retirar, com clareza, qualquer violação à legislação administrativa, na medida em que permanece a indefinição, na sua alegação sobre o tipo e origem ou destino das paredes que mencionam, por forma a poderem qualificar-se como simples vedação ou como parte de um edificação/construção e qual a sua natureza ou destino e, no que tange à altura, igualmente não alegaram qual a conexão com a sua habitação (casa propriamente dita), antes se tendo escorado na totalidade do imóvel, incluindo os logradouros, os quais como supra referido, só por si têm mais de 900 m2, ou seja, área mais que suficiente para permitir aos AA. avistamento, respiração e qualidade de vida normais, dentro da sua propriedade.

Os autores insistem, porém, na sua alegação, que as obras novas ali implantadas pelas rés não têm não têm nem podem vir a ter licenciamento e que a sua demolição é o único destino consagrado pelo nosso sistema jurídico.

A leitura da matéria de facto apurada mostra que a este propósito, apenas de demonstrou que no seu ângulo poente-sul, ao longo das estremas que o definem, foram construídas pelas RR., paredes contíguas aos limites do prédio dito em 1. – o prédio urbano dos autores a superfície coberta de 196m2 e logradouros com 905 m2 - com revestimento em chapa metálica, que possuem alturas cujo valor médio é de 10,50m, e que ao avistarem as novas construções que rodeavam a sua casa, os AA., vindos de França sentiram-se tristes pelo facto de a sua casa estar agora rodeada de três lados. Só isto.

É lícito assentar – em face do requerimento de licença apresentada pela ré J... – que aquela estrutura se integra, por qualquer modo, na obra, destinada a comércio, para que foi pedida aquela licença.

Simplesmente, tais factos são, de todo, insuficientes – insuficiência que radica, em última extremidade, na avareza da alegação mesma, produzida a este propósito pelos autores - para concluir, quer pela ilicitude, tanto no plano administrativo – por violação de qualquer parâmetro urbanístico definido no instrumento de gestão urbanística aplicável - como no plano civil – por ofensa do seu direito real de propriedade ou de qualquer outro direito absoluto - da edificação daquelas paredes.

Decerto que os autores, por força da titularidade do direito real de propriedade, gozam, entre outros, dos poderes de uso, de fruição e de transformação do seu prédio e de exclusão de terceiros não autorizados do gozo dele (artº 1305 do Código Civil). Mas o mesmo sucede com as rés no tocante aos prédios de que são titulares de direito real com igual conteúdo.

Constitui problema de solução difícil, objecto de larga controvérsia, o de saber se o ius aedificandi – que compreende não só a faculdade de construir, mas também as de levar a cabo os actos jurídicos e as operações materiais necessárias à construção, v.g., loteamento e realização de infraestruturas urbanísticas – constitui uma faculdade integrante do direito real de propriedade ou se nasce, antes, dos actos da administração[24].

Mas o que se tem por indiscutível é que aos recorrentes não assiste o direito de, com fundamento no facto da tristeza que lhes causa sua casa estar agora rodeada de três lados, excluir o ius aedificandi de qualquer outro prédio contíguo ao seu. Tanto mais que, como também logo observou a sentença impugnada, um dos prédios em que aquelas paredes foram erigidas foi vendido pelos autores à ré I…, Lda.

Não está demonstrado – e só pode vir a sê-lo no procedimento administrativo de licença – que as obras consistentes na edificação das apontadas paredes não sejam licenciáveis. Em todo o caso, a alegação dos autores de que o seu único destino é a demolição não pode ter-se por inteiramente exacta, mesmo no plano estrito do direito urbanístico.

Duas das medidas de tutela da legalidade urbanística são, decerto, legalização da operação urbanística e a demolição, total ou parcial da obra, e a reposição do terreno (artº 106 nºs 1 e 2 do RJUE). Todavia, a demolição da obra ilegal deve ser encarada pela administração como ultima ratio, ou seja, só deve ser decretada se a obra não for susceptível de ser licenciada ou objecto de comunicação prévia ou se não for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis, mediante a realização de trabalhos de correcção ou de alteração, o mesmo é dizer, a administração não goza de qualquer poder discricionário entre o procedimento de legalização e de demolição da obra ilegal[25].

Aliás, mesmo no plano civil, a demolição da obra ilícita não é uma consequência irrecusável, dado que o direito à demolição se considera cessado, havendo apenas lugar à indemnização, se o prejuízo da demolição para o devedor for consideravelmente superior ao prejuízo sofrido pelo credor (artºs 829 nº 2 do Código Civil, 941 nº 1 e 942 nº 1 do CPC).

Como quer que seja, exacto é, por certo, que a factualidade disponível é de todo inidónea para concluir pela ilicitude, pela violação do direito real de propriedade dos autores sobre o prédio, das paredes edificadas nos prédios das recorridas. E como só a prova dessa ilicitude – que onerava os autores - justificaria a procedência do pedido da sua demolição, na falta dela, é claro que um tal pedido deve ter-se por improcedente.

3.5. Pedido de reparação do dano patrimonial resultante da replantação das árvores e de reposição do solo do logradouro ao estado anterior.

A sentença apelada julgou improcedente também este pedido dos autores. Na sua alegação, os recorrentes, se são claros a exprimir a sua discordância quanto a esta decisão de improcedência, a verdade é que não perderam uma só palavra para explicar as razões pelas quais acham que a sentença incorreu, neste ponto, num qualquer error in iudicando.

Seja como for, o motivo dessa improcedência: não se ter demonstrado, de um aspecto, que esse dano seja da autoria das rés, de um outro, sequer que no solo do logradouro do prédio dos autores tenha sido enterrado em profundidade qualquer ligação. Este motivo é inteiramente exacto. Como a prova de qualquer destes factos competia aos autores – e estes se não livraram de um tal ónus – a improcedência deste pedido é irremissível (artºs 342 nº 1 e 346 do Código Civil e 516 do CPC).

3.6. Pedido de reparação do dano não patrimonial.

Os autores pediram que lhes fosse arbitrada, para os compensar do dano não patrimonial que sofreram, a quantia de € 25.000,00. A sentença apelada, porém, fixou essa compensação em apenas € 5.000,00.

Os recorrentes discordam – mas a verdade é que na sua alegação´, e nas conclusões que dela extraíram – também não tornam patentes as razões dessa discordância.

Mas também quanto a este ponto não há razão, por menos fundada que seja, para divergir da sentença impugnada.

Seja qual for o escopo que, em definitivo se deve assinalar á responsabilidade civil[26] - seja ela obrigacional ou aquiliana - é inquestionável que esta visa, fundamentalmente, a reparação do dano, juridicamente entendido como a diminuição duma situação favorável que estava protegido pelo Direito[27]. A responsabilidade civil depende tenazmente da existência de dano: a supressão deste assume-se, por isso, como o seu escopo primordial[28].

É ao lesado que cumpre a prova do dano (artº 342 nº 1 do Código Civil). Caso não consiga libertar-se do encargo dessa prova, intervém a regra de julgamento representada pelas normas sobre a distribuição do ónus da prova: a questão de facto correspondente é resolvida contra o lesado (artºs 516 do CPC e 346, in fine, do Código Civil).

Já se adiantou a noção jurídica de dano que se tem por exacta: a diminuição duma situação favorável protegida pelo Direito.

O dano não tem, porém, uma natureza unitária, podendo separar-se em duas grandes categorias: o dano patrimonial e o dano não patrimonial.

A lei não define o dano não patrimonial. Doutrinariamente o conceito é recortado pela negativa. O dano diz-se não patrimonial quando a situação vantajosa lesada tenha natureza espiritual[29]; o dano não patrimonial é dano insusceptível de avaliação pecuniária, reportado a valores de ordem espiritual, ideal ou moral[30]; é o prejuízo que não atinge em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. Há uma ofensa a bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro[31]; é o prejuízo que, sendo insusceptível de avaliação pecuniária, porque atinge bens que não integram o património do lesado que apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária[32].

A distinção entre o dano patrimonial e não patrimonial assenta na natureza do interesse afectado. É, por isso, possível que da violação de direitos patrimoniais resultem danos não patrimoniais, da mesma maneira que da violação de direitos ou bens de personalidade podem derivar danos patrimoniais.

A indemnização visa reparar danos não patrimoniais quando tem por objecto um interesse não patrimonial, i.e., um interesse não avaliável em dinheiro[33]. Diferentemente do que acontece com a indemnização do dano patrimonial, a do dano não patrimonial não é uma verdadeira indemnização, pois não coloca o lesado na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse tido lugar, mediante a concessão de bens com valor equivalente ao dos ofendidos em consequência do facto. Por isso, melhor se lhe tem chamado satisfação ou compensação[34]. Trata-se, apenas de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo não patrimonial, não é susceptível de equivalente, e, por isso, possível é apenas uma espécie de reparação, na forma de uma indemnização pecuniária, a determinar, por indicação expressa da lei, segundo juízos de equidade.

Na verdade, no tocante à determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade (artº 494, ex-vi artº 493, 1ª parte, do Código Civil). O critério de determinação da indemnização do dano não patrimonial não obedece, portanto, à teoria da diferença que, de resto, se mostra para essa finalidade, imprestável[35]. Mas esta circunstância não obsta à aplicação àquele dano de um princípio orientador do cômputo do dano patrimonial: o princípio da reparação integral do dano.

A lei é terminante na declaração de que o montante da indemnização do dano não patrimonial será fixado equitativamente (artº 496 nº 3, 1ª parte do Código Civil). Neste contexto, a equidade visa determinar aspectos quantitativos de uma prestação: a indemnização. Mas seria errado pensar-se que a fixação da indemnização, a que a equidade é chamada, está no livre arbítrio do juiz; a leitura da lei evidencia a existência de critérios a que o juiz, nessa tarefa delicada, deve atender.

A actividade do juiz na determinação do montante da indemnização, não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção - dado que o obriga a converter a sua valoração de critérios jurídicos de determinação numa quantificação numérica; trata-se, porém, de uma actividade juridicamente vinculada que constitui estruturalmente autêntica aplicação do direito. Desta constatação faz-se, naturalmente, decorrer a consequência da controlabilidade por via de recurso do procedimento de determinação da indemnização.

 No tocante ao processo de determinação do valor da indemnização não se deve reconhecer um espaço de discricionariedade diverso daquele que sempre se encontra presente em qualquer decisão verdadeiramente jurídica, antes se devendo qualificar a actividade correspondente como aplicação do direito, susceptível de controlo por via do recurso.

Mas também aqui se deve reconhecer que os instrumentos dispostos para orientação e racionalização da decisão judicial cobrem apenas parte das variáveis de que o juiz é portador. Se se introduzirem conceitos como basic rules ou second codes, aludindo ao complexo de regras e de mecanismos reguladores que determinam efectivamente a aplicação que o juiz faz da lei, pode dizer-se que os princípios regulativos de determinação do valor da indemnização cobrem apenas uma parte do processo decisório.

Esta constatação decorre da circunstância de a lei se limitar disponibilizar proposições indeterminadas que apenas se materializam no caso concreto. A indeterminação é de resto dupla: ela resulta quer da possibilidade de introduzir, na aplicação, novos factores atendíveis quer da intermutabilidade dos especificados na lei, cujo peso relativo, também se não encontra determinado. Existe, portanto, uma ilimitada variedade dos factores relevantes para o processo de individualização da medida da indemnização, a que soma a ausência de explicitação do seu peso relativo, tudo apontando para uma valoração casuística infindável, que vinca, também por esta via, a natureza móvel ou aberta do sistema.

Tudo inculca, pois, a conclusão de que a determinação da prestação da indemnização não está na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae, de uma discricionariedade livre ou desvinculada do juiz – que implicaria conferir a nota de irrecorribilidade à decisão correspondente – e, consequentemente, que o processo de determinação do quantum da indemnização deve, em concreto, ser reconduzível a critérios objectivos, e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo. Mas seria imprudente não reconhecer a importância de elementos racionalmente não explicitáveis e mesmo puramente emocionais, e, portanto, uma margem inescapável de subjectividade.

Serve isto para dizer que a remissão no caso para a equidade é aparente, visto que esta só ocorre, não quando haja uma qualquer indeterminação que o juiz tenha de resolver no caso concreto – mas quando se verifique uma decisão tomada à revelia do ius strictum, no sentido de sistemático[36]. De resto, um modelo de decisão ex aequo e bono tem ainda a particularidade de não ter preocupações generalizantes, característica que é abertamente contrariada por um dos parâmetros sob cujo signo deve decorrer a actividade de fixação da indemnização: o da uniformização ou padronização do seu valor.

Seja como for, a verdade é que o sistema de ressarcimento do dano não patrimonial é móvel ou aberto, indicando a lei, de forma inteiramente exemplificativa, para determinar o dano de cálculo – i.e., a expressão monetária do dano não patrimonial real – o grau de culpa do lesante a situação económica do lesante e do lesado e outras circunstâncias do caso (artº 494 do Código Civil).

Decisivo, em qualquer caso, para se sustentar, nas condições apontadas, a reparação do dano não patrimonial é a gravidade desse dano, visto que é ela e só ela que, em último termo, justifica a tutela do direito (artº 496 nº 1 do Código Civil)[37]. A exigência da gravidade do dano não patrimonial para que se deva afirmar a reparabilidade dele, esconjura, de resto, o perigo da excessiva extensão da obrigação de indemnizar e diminui, para limites socialmente toleráveis, as perturbações do tráfico jurídico.

A gravidade do dano é, portanto, a única condição de ressarcibilidade dele. Essa gravidade deve, decerto, medir-se por um padrão essencialmente objectivo[38]. Porém, ao estimar-se ou mensurar-se esse dano seria erróneo não ponderar uma componente subjectiva, quer dizer, ligada à sensibilidade do lesado ou que releve das especiais características deste[39]: a exigência da gravidade do dano visou única e nitidamente recusar pretensões que convertam simples incómodos e pequenas contrariedades em danos juridicamente relevantes[40].

De entre os tipos mais salientes de dano não patrimonial destaca-se o dano moral em sentido próprio ou subjectivo, como, por exemplo, a humilhação, a angústia, e vergonha, a ansiedade. Inclui-se nele a própria dor, que compreende a dor física e o sofrimento moral.

A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é, como se apontou, a sua gravidade (artº 496 nº 1 do Código Civil). Na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo é infindável, apenas importa acentuar que danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas. De resto, tratando-se de lesão de bens e direitos de personalidade, essa gravidade deve ter-se, por regra, como consubstanciada: deve exigir-se para bens pessoais um tratamento diferente do reservado para as coisas[41].

 É a esta luz que deve ser considerado o problema dos danos não patrimoniais resultantes de lesões de bens patrimoniais, designadamente o dano de estima, da afeição ou de apego, quer dizer, o dano relativo à relação sentimental com um objecto.

Dado que não existe nenhum obstáculo conceptual que afaste a existência de danos não patrimoniais em resultado da violação de direitos patrimoniais, tudo dependerá da conclusão que, em casa caso, se deva ter por exacta quanto à gravidade do dano.

Para isso é necessário determinar, para além de aspectos relativos ao proprio bem – como por exemplo, a sua infungibilidade - que interesses não patrimoniais esse bem satisfazia ou garantia. E, depois de identificada a presença no caso concreto de interesses daquela espécie, há que ponderar, à luz do critério da relevância jurídica do dano não patrimonial, se ele é ou não ressarcível.

Mas, em regra, a resposta deve ser negativa, só em casos muito contados ou excepcionais se devendo tratar a sentimental loss ou o dano de afeição, consequentes a lesões de bens patrimoniais, como graves[42].

Por duas razões: de um aspecto porque isso importaria um alargamento excessivo dos danos não patrimoniais susceptíveis de ressarcimento; de outro, porque um tal latitude contrastaria vivamente com o carácter restritivo do dano de afeição, proprio sensu, resultante da morte de familiares (artº 496 nºs 2 e 3 do Código Civil): mostrando-se a lei particularmente restritiva quando à reparação do dano de afeição proprio sensu não será lógico tratar de modo mais favorável a dor sentida pela perda por um objecto querido do que a dor experimentada pela perda de uma pessoa de família amada. Devemos possuir as nossas coisas – mas não deixarmo-nos possuir por elas.

Quanto a esta espécie de dano, a única coisa que, no plano de facto se apurou, é isto: que avistarem as novas construções que rodeavam a sua casa, os AA., vindos de França sentiram-se tristes pelo facto de a sua casa estar agora rodeada de três lados, e amedrontados, receando que exista perigo para si próprios e para o seu património, advindo das actividades levadas a cabo no interior daquelas instalações, as quais, contudo desconhecem, bem como pela colocação das instalações de gás agarradas ao seu muro.

A tristeza experimentada pelos autores com o facto de a sua causa se encontrar rodeada por novas construções é, decerto, um dano não patrimonial. Simplesmente, um tal dano não imputável a qualquer facto ilícito das rés que, portanto, não estão constituídas no dever de o compensar.

O medo dos autores no tocante ao perigo, para si e para bens seus, das actividades levadas a cabo nas instalações localizadas nos prédios das rés, nem sequer é fundado, dado, de um aspecto, que nem sequer conhecem tais actividades e, de outro, que as construções existentes – como se diz na matéria de facto julgada provada - aparentam encontrar-se em condições consideradas habituais, com a segurança que lhes está associada em normais condições.

            O medo ou receio experimentado pelos recorrentes só se mostra justificado no tocante à instalação de gás que – como se declara na matéria de facto apurada - pode motivar alguma preocupação.

            Assim delimitado, um tal dano não patrimonial não justifica, para a sua compensação, o arbitramento de quantia superior a € 5.000,00, que, aliás, considerada a gravidade do dano compensável, se mostra, se não pródiga, ao menos generosa.

            Não há, pois, a mínima razão – nem ela se mostra sequer alegada consistentemente pelos recorrentes – para atribuir aos recorrentes, para os compensar do apontado dano, quantia superior à aquela que, com essa finalidade, lhes foi arbitrada pela sentença impugnada.

3.7. Fixação de sanção pecuniária compulsória.

Os autores pediram a condenação solidária das rés, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento de € 100,00, por cada dia de atraso na observância do que for decidido.

A sentença, impugnada, porém, com fundamento em que os factos que se visam, na parte em que procedem, são fungíveis, uma vez decretada a sua obrigação por banda das RR., sendo que, caso estas não cumpram a obrigação correspondente, têm os AA. título bastante para através da competente execução, prover à sua concretização por outrem, a expensas daquelas – recusou a fixação daquela sanção.

Também quanto a este segmento da decisão recorrida, a alegação dos autores, e a conclusões com que a remataram, também não evidencia, imperfeitamente sequer, as razões da sua discordância.

Consabidamente, a execução de uma prestação pode ser específica ou não específica: é específica quando se visa a realização da própria prestação não cumprida; é não específica quando a sua finalidade é a obtenção de um valor patrimonial sucedâneo da prestação não realizada. Assim, são susceptíveis de execução específica as prestações de facto fungível, caso em que a prestação é realizada por outrem à custa do devedor, e as prestações de facto negativo, hipótese em que o obra realizada é demolida a expensas do devedor (artºs 828 e 829 nº 1 do Código Civil). Isto mostra que, como ninguém pode ser coagido a praticar um facto – nemo potest praecise cogi ad factum[43] – a execução específica das prestações de facto realiza-se através do custeamento da realização do facto por um terceiro: trata-se, assim, de uma execução específica indirecta.

Todavia, não admite execução específica, mesmo só indirecta, a prestação de facto infungível, porque este facto não pode ser praticado por um terceiro.

A execução para prestação de facto é orientada pelo princípio de que o devedor não pode ser compelido a cumprir, pelo que exceptuada a eventual sujeição do devedor a uma sanção pecuniária compulsória, está excluída a possibilidade da imposição, mesmo na execução pendente, de quaisquer outras medidas sobre o devedor recalcitrante.

Apesar de a doutrina não se mostrar unida quanto à exacta função da sanção pecuniária compulsória[44], ela é decerto acorde num ponto: no seu carácter subsidiário. A sanção pecuniária – judicial ou autêntica - só é aplicável a prestações de facto infungíveis – positivas ou negativas duradouras, dada a inadmissibilidade da sua execução específica, uma vez que o facto não pode ser praticado por um terceiro (artº 829-A nº 1 do Código Civil)[45].

A prestação que com a sanção pecuniária compulsória se visa compelir ou constranger o dever a cumprir é necessariamente uma prestação, que tanto pode ser um facto positivo ou negativo – ou seja uma obrigação de facere ou non facere.

O facto positivo pode ser fungível ou infungível (artºs 828 do Código Civil e 993 nº 1 do CPC). O facto é fungível quando, para o credor é jurídica e economicamente irrelevante se ele é realizado pelo devedor ou por um terceiro; o facto é infungível quando, por razões jurídicas ou económicas, o interesse do credor impõe a sua realização pelo devedor (artº 767 nºs 1 e 2 do Código Civil). O facto negativo pode corresponder a uma obrigação de non facere, em sentido estrito – como sucede quando o devedor está vinculado a uma mera omissão de actuação, por exemplo, a não construir uma obra - ou a uma obrigação de pati – em que o devedor está obrigado a tolerar uma actividade do credor, como, por exemplo, o gozo de um imóvel arrendado ou o exercício de uma servidão de passagem.

Se as obrigações negativas duradouras são domínio, por excelência, da sanção pecuniária compulsória, dada a sua infungibilidade natural e a necessidade de evitar violação repetidas ou sucessivas, há porém, que ver, relativamente a obrigações derivadas de um dever de abstenção, se têm natureza fungível ou infungível, só estas últimas podendo ser seguidas de sanção pecuniária compulsória, dada a natureza subsidiária deste mecanismo de compulsão ao cumprimento. Realmente, no tocante às prestações de facto negativo fungível, se a actuação consistir, v.g., na realização de uma obra, como credor pode requerer que ela seja demolida à custa do que está obrigado a não a fazer, a sanção pecuniária compulsória não é admissível (artº 829 nº 1 do Código Civil).

No caso, as rés foram vinculadas, pela sentença apelada, à realização das seguintes prestações: a retirarem a espécie de caleira que colocaram sobre o muro de vedação do prédio dos AA., a poente, ou sobre o seu logradouro, bem como os materiais usados para o altear, nos termos referidos em 19., 20., 21., 22. e 28. dos factos provados; a dotarem o equipamento de fornecimento de gás mencionado em 25. das condições de segurança legalmente exigidas, mormente procedendo à sua protecção; a absterem-se, de futuro, da prática de qualquer acto que impeça, dificulte ou estorve o livre e pleno exercício do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio mencionado em 1.

As duas primeiras destas prestações são claramente fungíveis, dado que tanto podem ser realizadas pelas rés como por qualquer terceiro, ainda que a expensas do vinculado à sua realização e, portanto, admitem execução específica, ainda que indirecta (artºs 828 e 829 nº 1 do Código Civil). Ergo, a compulsão ao cumprimento, por força da sanção pecuniária compulsória, por força do seu carácter subsidiário, não é admissível. Não assim, porém, quanto à prestação que tem por objecto a abstenção de actos que impeçam, dificultem ou estorvem o livre exercício pelos recorrentes do seu direito real. Esta prestação de facto negativo, além de duradoura deve ter-se – ao contrário do que se lê na sentença impugnada – por naturalmente infungível.

Realmente, importa não confundir a fungibilidade ou infungibilidade da prestação de facto negativo com a fungibilidade ou infungibilidade da obrigação derivada da violação daquela prestação de non facere: a obrigação resultante da violação de uma prestação de facto negativo, poderá, conforme, o caso, ser ela mesma fungível ou infungível e, portanto, admitir ou não execução específica e correspondentemente, o recurso ao instrumento de constrangimento do devedor ao cumprimento representado pela sanção pecuniária compulsória.

A obrigação de facto negativa a que a sentença apelada vinculou as rés, pela natureza do seu objecto – abstenção de um determinado comportamento – não pode, pela natureza das coisas, ser realizada por terceiro. É, por isso, infungível. Trata-se, de resto, se a obrigação for duradoura, do domínio, por excelência, da sanção pecuniária compulsória.

A razão adiantada pela sentença impugnada para recusar a imposição da sanção pecuniária compulsória, no tocante a apontada obrigação de abstenção, não é, portanto, exacta.

A cominação da sanção pecuniária compulsória depende inteiramente de requerimento do credor, embora deva ser decretada pelo juiz de harmonia com critérios de razoabilidade (artº 829-A nº 1 do Código Civil). Contudo, uma vez requerido o cumprimento sob cominação da sanção pecuniária compulsória, o tribunal tem o dever – e não, simplesmente, o poder de a decretar. Significa isto que o tribunal não julga soberanamente a oportunidade de impor ou não a sanção pecuniária compulsória pedida pelo credor. Mas o juiz já é soberano na escolha da modalidade que for mais conveniente às circunstâncias do caso, podendo condenar por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, quer dizer, por unidade de tempo de atraso no cumprimento ou por cada futura infracção à obrigação[46]. Mas só na escolha da modalidade e já não, sob pena de nulidade da decisão, por excesso de pronúncia parcial, em quantia pecuniária superior à pedida pelo credor (artºs (artºs 661 nº 1 e 668 nº 1 e) do CPC).

 Sem pretensão à formulação de uma regra de valor universal, a fixação da sanção pecuniária compulsória por unidade de tempo de atraso será a modalidade mais adequada nas prestações de facto positivo, ao passo que fixação por cada infracção ou contravenção ulterior à obrigação, será a mais adequada nas prestações de facto negativo.

No caso, julga-se mais adequado, dada a natureza da obrigação que, com a sanção pecuniária compulsória, se visa motivar o devedor a cumprir escrupulosamente, a sua fixação por cada violação dela.

Quanto a este ponto - mas só quanto a este ponto – há que dar razão aos autores e, portanto, que revogar na parte correspondente, a decisão impugnada.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese estreita, que:

a) O recurso ordinário não pode incidir sobre matéria sobre a qual se formou, na instância recorrida, caso julgado;

b) O ónus da prova implica a prévia satisfação de um outro ónus implicado no princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo - o ónus da alegação;

c) Dado que o recurso de apelação é um recurso de reponderação e não de reexame, não é admissível, em regra, a alegação, na instância de recurso, de factos novos;

d) A fundamentação da decisão da matéria de facto deve conter-se nessa mesma decisão e não na sentença final;

e) Os vícios substanciais da decisão da matéria de facto não constituem causas de nulidade da sentença;

f) O exame crítico das provas a que a sentença deve proceder, resume-se à inferência de factos por presunção, judicial ou legal, e, em caso de non liquet sobre qualquer facto, à aplicação do critério de julgamento representado pelo ónus da prova;

g) O error in iudicando da matéria de facto pode radicar num erro na apreciação da prova ou simplesmente num erro na selecção do objecto dessa prova;

h) O recorrente que impugne a matéria de facto, com fundamento no erro na valoração da prova, está adstrito ao ónus de especificar os meios de prova que reputa de mal apreciados;

i) O acto administrativo autorizativo jurídico-público, v.g. de uma edificação – não conforma juridicamente as relações jurídicas civis, não produzindo quaisquer efeitos preclusivos dos direitos de terceiros;

h) A ilicitude, no plano administrativo, de uma obra não se transfere ipso facto, para o plano civil, continuando a ser exigível a demonstração do preenchimento de uma das cláusulas de ilicitude dispostas na lei – a ofensa de um direito absoluto ou a violação de uma disposição de protecção;

i) A prova da autoria do facto danoso vincula o lesado;

j) A sanção pecuniária – judicial ou autêntica - só é aplicável a prestações de facto infungíveis – positivas ou negativas duradouras, dada a inadmissibilidade da sua execução específica;

l) A obrigação de facto negativo cujo objecto seja constituído pela abstenção de um determinado comportamento, não pode, pela natureza das coisas, ser realizada por terceiro, sendo, por isso, infungível;

m) O tribunal é soberano na escolha da modalidade da sanção pecuniária compulsória;

As custas de cada um dos recursos serão satisfeitas pelo respectivo sucumbente e, no caso de sucumbência parcial, na medida dessa sucumbência (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Justifica-se, dada a complexidade do tratamento processual do recurso, que a respectiva taxa de justiça seja fixada nos termos da Tabela I-C que integra o RCP (artºs 8 nº 1 da Lei 7/2012, de 13 de Fevereiro e 6 nº 5 do RCP).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julgando improcedente o recurso das rés, J…, SA e I…, Lda., e parcialmente procedente o dos autores:

a) Revoga-se a decisão impugnada na parte em que absolveu as rés do pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória e fixa-se em € 100,00 essa sanção por cada violação da obrigação daquelas de se absterem, de futuro, da prática de qualquer acto que impeça, dificulte ou estorve o livre e pleno exercício do direito de propriedade dos AA. sobre o prédio mencionado em 1.;

b) Mantém-se no mais a sentença impugnada.

Custas do recurso das rés, por estas; custas do recurso dos autores, por estes e pelas rés, na proporção de 9/10, para os primeiros, e de 1/10, para as segundas.

A taxa de justiça devida por cada um dos recursos é a fixada na Tabela I-C, integrante do RCP.

                                                                                 

                           Henrique Antunes - Relator

                           José Avelino Gonçalves

                           Regina Rosa


[1] Ac. do STJ de 04.02.93, CJ, STJ, I, pág. 137.
[2] Abrantes Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 177.
[3] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, pág. 138 e ss., e Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra, 2009, págs. 50 e 51, Freitas do Amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.
[4] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 14.05.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62 e da RL de 02.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[5] Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[6] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.
[7] Ac. do STJ de 23.05.96, CJ, II, pág. 86.
[8] Ac. do STJ de 09.12.87, BMJ nº 372, pág. 369.
[9] Michele Tarufo, Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, 2009, pág. 53.
[10] Michele Tarufo, cit., págs. 36 e 37.
[11] Acs. do STJ de 08.07.87, BMJ nº 369, pág. 481, da RP de 06.01.94, CJ, 94, I, pág. 197 e da RL de 03.11.94, CJ, 94, V, pág. 90.
[12] Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, III, pág. 22 e da RE de 24.11.94, BMJ nº 441, pág. 420.
[13] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pág. 139 e 140 e Acs. da RP de 06.01.94 e da RL de 03.11.94 e 17.1.91, CJ, 94, I, págs. 197, 94, V, pág. 90 e 91, I., pág. 121, respectivamente.
[14] Acs. da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 633, do STJ de 21.10.88, BMJ nº 380, pág. 444 e de 30.05.89, BMJ nº 387, pág. 456 e da RC de 21.01.92, CJ, I, pág. 86.
[15] V.g., Ac. do STJ de 31.01.91, BMJ nº 403, pág. 382 e 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.
[16] Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pág. 239.
[17] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil III, AFFDL, Lisboa, 1980, págs. 267 e 268.
[18] Ac. do STJ de 28.06.12, www.dgsi.pt.
[19] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.
[20] José Joaquim Gomes Canotilho, Actos Autorizativos Jurídico-Públicos e Responsabilidade por Danos Ambientais, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1983, págs. 2 a 59.
[21] Ac. da RC de 31.10.06,www.dgsi.pt.
[22] Acs. do STJ de 25.05.00, CJ, STJ, VIII, II, pág. 80, e de 26.05.82, BMJ nº 417, pág. 734, da RL de 09.05.85, BMJ nº 534, pág. 608, e de 27.06.91, CJ, XVI, III, pág. 176 e da RC de 19.12.89, BMJ nº 292, pág. 525 e de 10.01.95, CJ, XX, I, pág. 15.
[23] Ac. do STJ de 08.11.95, CJ, STJ, III, pág. 293.
[24] Cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Principia, 2002, pág. 70 a 74, Fernando Alves Correia, Estudos do Direito do Urbanismo, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 51 e 52, e Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais, Ainda sobre o Jus Aedificandi, Trunfos contra a Maioria, Coimbra Editora, 2006, págs. 117 e ss. A jurisprudência parece orientar-se claramente para a ideia de que o ius aedificandi constitui uma concessão da administração. Cfr. Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Direito do Urbanismo, Relatório, Lisboa, Lex, 1999, págs. 88 e 89.
[25] Ac. do TCA Sul de 05.09.09, CJA, nº 75 (2009), pág. 67 e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, Volume III, Almedina, Coimbra, págs. 281 a 283.
[26] Cfr. Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 228 a 293.
[27] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, vol. 2º Volume, pág. 283.
[28] Pereira Coelho, o nexo de causalidade na responsabilidade civil, Boletim da Faculdade de Direito, suplemento IX, Coimbra, 1951, pág. 107 e ss. Tratando-se de danos não patrimoniais, só são atendíveis os que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artº 496 nº 1 do Código Civil). À luz desta exigência, a jurisprudência sustenta que não compensáveis dos danos não patrimoniais que se traduzam em meros incómodos. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 2.10.73, BMJ nº 230, pág. 107, de 26.6.91, BMJ nº 408, pág. 438 e de 10.11.03, CJ, STJ, I, III, pág. 132.
[29] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, Lisboa, AFDDL, 1980, págs. 285 e 286.
[30] Maria Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 1998, págs. 514 e 515.
[31] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra Editora, 1989, pág. 370.
[32] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 601.
[33] Vaz Serra, Reparação do Dano Não Patrimonial, BMJ nº 83, págs. 65 e ss.
[34] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 566.
[35] Ac. do STJ de 26.02.04, www.dgsi.pt.
[36] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, Coimbra, 1984, pág. 1202 e 1203 e A Decisão Segundo a Equidade, O Direito, Ano 122, II, 1990, pág. 261 e ss.
[37] Maria Manuel Veloso, Danos Não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, págs. 501 a 508. Cfr., porém, no sentido que, no contexto do incumprimento de obrigações, o critério da relevância jurídica do dano não patrimonial nem sempre será apropriado, Rui Soares Pereira, A Responsabilidade por Danos Não Patrimoniais do Incumprimento das Obrigações no Direito Civil Português, Coimbra Editora, 2009, pág. 320.
[38] Dano grave não é, porém, apenas o dano excepcional: cfr. Ac. do STJ de 04.03.08, www.dgsi.pt.
[39] Assim, v.g. Ac. da RC de 06.02.90, CJ, I, pág. 92.
[40] Acs. do STJ de 2.10.73, BMJ nº 230, pág. 107, de 26.6.91, BMJ nº 408, pág. 438 e de 10.11.03, CJ, STJ, I, III, pág. 132.
[41] Jorge Sinde Monteiro, Reparação dos Danos Pessoais em Portugal, CJ, 86, IV, pág. 11.
[42] Maria Manuel Veloso, Danos Não Patrimoniais, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, págs. 512. Os Ac. da RC de 19.11.87, BMJ nº 379, pág. 543, da RL de 04.07.00, CJ, IV, pág. 73, da RP de 02.05.02 e do STJ de 29.06.94, www.dgsi.pt., assentaram nessa gravidade no tocante aos incómodos resultantes para o proprietário da privação do veículo automóvel enquanto se aguarda a sua reparação, à danificação de um automóvel Alfa Romeu antigo, no caso de lesão de um cão e, por último, no caso do abate, não autorizado, de 73 eucaliptos e 3 pinheiros, respectivamente.
[43] Pedro de Albuquerque, “O direito ao cumprimento de prestação de facto, o dever de a cumprir, o princípio nemo ad factum cogit potest, providência cautelar, sanção pecuniária compulsória e caução”, ROA, Ano 65, Vol. II, Set, 2005.
[44] António Menezes Cordeiro – “Embargos de terceiro, reintegração do trabalhador e sanção pecuniária compulsória”, ROA, Ano 58, III, 1998, págs. 1229-1230 - assinala-lhe uma função preventiva e coerciva, ao passo que Calvão da Silva – Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1987, pág. 397 – lhe assinala uma natureza coercitiva e sancionatória, e Paula Meira Lourenço – A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra, 2006, pág. 308 – uma função compulsório-punitiva.
[45] Assim, v.g., José Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, pág. 161.
[46] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, cit., pág.